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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.7 n.2 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGO

 

Violência conjugal em uma perspectiva relacional: homens e mulheres agredidos/agressores

 

Conjugal violence from a relational perspective: battered/agressors men and women

 

 

Simone Ferreira Alvim; Lídio de Souza

Universidade Federal do Espírito Santo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo discute dados de uma pesquisa sobre violência conjugal. O estudo objetivou identificar as concepções de violência, o contexto conjugal, os tipos de agressão, os sentimentos gerados após o ocorrido e as conseqüências para a saúde dos envolvidos. Uma amostra de dez sujeitos agredidos/agressores (sete homens e três mulheres) foi entrevistada, utilizando-se um roteiro semi-estruturado, que contemplava os núcleos de interesse. A análise temática do conteúdo das entrevistas revelou que as diferenças presentes no cotidiano foram utilizadas como explicação para as dificuldades da conjugalidade. Assim, a intolerância à alteridade se constituiu na principal situação conflitual, que dificulta a negociação das diferenças psicossociais e ocasiona episódios violentos, físicos e/ou psicológicos.

Palavras-chave: Relação conjugal, Violência conjugal, Alteridade


ABSTRACT

This paper discusses the data of a research about the conjugal violence. The study aimed at identify conceptions on violence, conjugal context, kinds of aggression, feelings stirred up by such occurrences and there consequences on the health of those involved in them. A sample composed by ten battered/aggressor subjects (seven men and three women) was interviewed through a semi-structured script, wich approached the points of interest. The thematic analysis of the interviews content showed that the lack of compatibility within the daily routine have been used to explain the difficulty of relationship. Thus, the intolerance to alterity have become the main conflicting situation, which makes it harder to deal with the psychosocial divergences and causes violent physical and/or psychological episode.

Keywords: Conjugal relationship; Conjugal violence; Alterity


 

 

Introdução

A partir de meados do século XX as mulheres concretizaram a luta por independência econômica e direitos políticos que vinha sendo gestada desde o final do século XIX e, no bojo do movimento feminista, as mulheres questionaram os padrões de masculinidade e produziram transformações significativas nas relações conjugais.

A produção acadêmica sobre gênero no Brasil acompanhou a movimentação feminista, mas iniciou-se mais tardiamente (meados dos anos 1970) do que nos Estados Unidos e nos países europeus. Estudou-se a saúde, o comportamento, a sexualidade e o cotidiano das mulheres, notando-se uma forte tendência, nessa época, à aproximação com o marxismo, com as esquerdas e com os movimentos sociais brasileiros, tendo como foco, principalmente, a mulher trabalhadora. Nestes trabalhos, já se encontravam apontamentos sobre a necessidade de diálogo entre as perspectivas feministas e estudos sobre os homens, mesmo que as reivindicações e propostas de autores feministas ainda não problematizassem a masculinidade (DARIO, 2001; ARILHA; RIDENTI; MEDRADO, 1998).

Embora seja inegável a ocorrência de transformações importantes, quando nos referimos à violência presente nas relações conjugais, as mulheres têm sido as vítimas preferenciais. Já foram desenvolvidas inúmeras pesquisas que, se por um lado tiveram o mérito de tornar pública a violência que ocorria no âmbito privado, por outro, contribuíram para uma forte identificação entre as mulheres pelo viés da vitimização (VIZCARRA; CORTÉS; BUSTOS; ALARCÓN; MUÑOZ, 2001; MENEGHEL; CAMARGO; FASOLO; MATTIELLO; SILVA; SANTOS; DAGORD; RECK; ZANETTI; SOTTILI; TEIXEIRA, 2000; DESLANDES; GOMES; SILVA, 2000; ARCOS; MOLINA; REPOSSI; UARAC; RITTER; ARIAS, 1999).

Mesmo com as transformações históricas que visaram a igualdade entre os gêneros, as diferenças não podem ser suprimidas posto que são a base das sociedades contemporâneas. As sociedades se apresentam heterogêneas e com enorme potencial de conflito, exigindo que diferenças sejam continuamente negociadas, tanto no plano intergêneros quanto no plano intragêneros. No plano das relações de gênero, as novas configurações sociais passam a exigir negociações até então sequer cogitadas, negociações que exigem um sistema de reciprocidade mínimo que possibilite o relacionamento entre as partes em conflito. Tal sistema é constituído sócio-historicamente e, em função de representações e valores tradicionais, pode ser acompanhado de recorrentes impossibilidades de troca que podem evoluir para irrupções de violência (VELHO, 1996). Para existir a possibilidade de negociação é imprescindível haver consenso em relação a uma noção de justiça concebida como valor comum, consenso que é difícil mesmo em grupos reduzidos como a família ou o casal.

De acordo com Féres-Carneiro (1998), as relações conjugais se constituem no encontro de duas identidades - cada uma individual/social - que, ao viverem um projeto de conjugalidade, se (re)definem como díade e ser único, confirmando, assim, a alteridade, onde cada identidade, na consciência da diferença do outro, se (re)formula e também o faz com o outro; e vice-versa. Assim, as representações sociais em relação à alteridade - entendidas como identidades, afetos, conceitos, representações, sentimentos – são formas de mediação construídas historicamente que participam da vida social na comunicação entre os seres, que permitem comparações e reformulações sobre a diferença, bem como a negociação com a diferença. Necessário se faz lembrar que embora a maior parte das negociações presentes nas relações conjugais se realize de modo pacífico, parte delas pode evoluir para a utilização de violência, fundada nas concepções do que é ser homem ou ser mulher.

Alguns dos estudos recentes sobre relações de gênero (VENTURINI, BAZON; BIASOLI-ALVES, 2004; NEGREIROS; FÉRES-CARNEIRO, 2004; NEVES; NOGUEIRA, 2003; DANTAS-BERGER; GIFFIN, 2005; CARVALHO, 2001; HINES; MALLEY-MORRISON, 2001; ARAÚJO, 2002) indicam que apesar das mobilizações e das efetivas conquistas produzidas pelos movimentos feministas, as concepções sobre o que é ser homem ou ser mulher sofreram poucas mudanças. As características essenciais, e definidoras, dos gêneros continuam sendo mediadas pelas dicotomias destacadas por Giffin (1994, p.151-152). A autora afirma que nas sociedades ocidentais as idéias sobre masculino/feminino estão embutidas nos conceitos de cultura/natureza, razão/emoção, sujeito/objeto, mente/corpo e refletem uma polaridade onde os pares são considerados opostos e excludentes. Esta dualidade afirma que o homem é ativo e a mulher é passiva e, conseqüentemente os homens são identificados com cultura/mente/razão e as mulheres com natureza/corpo/emoção. Estas concepções sobre o que é ser homem ou mulher favorecem a produção de violência na medida em que um se julga superior ao outro e procura submeter o outro aos seus interesses e desejos.

Nos casamentos, como em outras relações, pode-se identificar um tipo de violência denominada por Zaluar e Leal (2001) de “violência psicológica”: conceito estabelecido tendo como parâmetro os limites e regras de convivência, sendo complicadas não só sua identificação por terceiros como também a sua denúncia, visto que não possui materialidade. Considerando tal dimensão, estamos afirmando que a violência não se caracteriza apenas pelo uso da força física, mas também pela ameaça de usá-la (VELHO, 1996) e pelas agressões não-físicas, que variam entre gritos e xingamentos, exposição pública, entre outras. Este tipo de violência contribui para o desgaste das relações e, de tanto se repetir, torna-se “natural”; dessa maneira, a díade estabelece um padrão de relação onde o respeito mútuo à singularidade de cada um passa a ser ignorado. Tanto as violências físicas como as psicológicas são englobadas na definição fornecida por Chauí (1980) em que a violência é compreendida como um processo pelo qual um indivíduo é transformado de sujeito em coisa, processo que está presente na assimetria característica das relações de gênero.

Como já dissemos acima, uma das conseqüências da mobilização feminina foi o questionamento dos padrões de masculinidade. Os homens, inicialmente os norte-americanos de classe média, passaram a se preocupar com seu senso de masculinidade, pois percebiam ameaças vindas de várias fontes. A principal era a emergente presença das mulheres nos locais de trabalho com a conseqüente redução da autoconfiança masculina no mundo dos negócios. Outra era a expansão da classe operária, com a crescente incorporação de imigrantes que, possuindo um senso de masculinidade enraizado no vigor físico, desafiavam a autoridade de homens da classe média (MINTON, 2000).

Kimmel (1997) chegou a afirmar que a masculinidade heterossexual branca teve sua hegemonia ameaçada pelos questionamentos inerentes ao movimento feminista e, também, pelas minorias oprimidas que demandavam igualdade: homossexuais e negros, além de grupos de outras etnias. Quando foi questionado o poder hegemônico do heterossexual, ficou clara a associação deste poder também com raça, escolarização e propriedades, e não somente com o fato de eles serem homens. “Não foram os homens, mas a receita de masculinidade que causou a crise de masculinidade e contribuiu para a opressão das mulheres e das minorias” (KIMMEL, 1997, p. 286, tradução nossa). Pode-se pressupor que o questionamento em relação às masculinidades também se difundiu por onde o movimento feminista foi adquirindo força. Entretanto, chama atenção o fato de que as pesquisas sobre violência conjugal, produzidas sob a perspectiva feminista, ignoraram, até o momento, as transformações produzidas no âmbito das masculinidades, pois, nos estudos em que os homens são considerados agentes de violência conjugal, eles são focalizados pura e simplesmente como violentos e agressores. A socialização masculina, ao prescrever certa permissividade em relação à prática de violência, pode ser uma das razões para a escassez de estudos sobre as possíveis relações entre masculinidade e violência (NOLASCO, 2001).

Os estudos relacionados à masculinidade surgem por volta da década de 80, mais claramente problematizando o tema da paternidade e nos anos 90 nota-se certa ênfase nos estudos sobre a sexualidade masculina. Hoje, pode-se perceber que tanto as produções internacionais quanto as brasileiras apresentam novas tendências: os estudos feministas, assim como os estudos sobre masculinidades, têm mostrado preocupação em analisar as relações de gênero e não apenas as mulheres ou os homens (BADINTER, 2003; ARILHA et al., 1998).

Estes estudos sobre masculinidades surgiram a partir das críticas internas e externas ao movimento feminista e consideram os aspectos relacionais da questão dos gêneros. Os trabalhos mais recentes têm considerado que não existe uma masculinidade única e geral, mesmo que questionem uma dominante, podendo-se falar em masculinidades e feminilidades (TRINDADE; MENANDRO, 2002; DARIO, 2001; ARILHA, 1999; MEDRADO; LYRA, 1999; SILVA, 1999; ARILHA et al., 1998). Contudo, as produções com a temática da violência, principalmente a conjugal, ainda contam com pouca participação masculina como sujeitos de pesquisa e com raras análises que consideram os aspectos relacionais deste fenômeno, ainda que alguns autores concordem com a necessidade destas análises relacionais para uma melhor compreensão da conjugalidade violenta (CASTRO; RIQUER, 2003; NOLASCO, 2001; MÉNDEZ, 1999; GIDDENS, 1993). É necessário reconhecer que:

“[...] a dimensão relacional do gênero possibilita desconstruir principalmente os argumentos culpabilizantes em relação ao masculino, que demarcam o discurso de parte do movimento feminista e que ainda se faz presente, direta ou indiretamente, nas produções acadêmicas contemporâneas”. (ARILHA et al., 1998, p. 24)

Se homens e mulheres agridem e são agredidos, o foco deve, então, recair em como se constroem tais relacionamentos e quais são os efeitos para o casamento/namoro e para os diversos aspectos da vida de seus atores.

Com freqüência afirma-se que os homens são privilegiados, mas, atualmente, em relação à longevidade, propensão a doenças, mortes por causas externas (suicídio, crimes, acidentes), alcoolismo e drogas, eles estão mais ameaçados do que as mulheres. Pensando a partir destas estatísticas de deterioração pessoal, tal privilégio deve ser relativizado em função dos riscos e das prescrições para os papéis masculinos, os quais podem acarretar sérias conseqüências - sexuais, financeiras e com envolvimentos violentos (GIDDENS, 1993; MEDINA, 1992). Desde a década de 1980, as mortes violentas por causas externas constituem a segunda principal causa de óbitos no Brasil, confirmando a deterioração das condições da vida urbana. As taxas de mortalidade aumentaram muito mais para os homens do que para as mulheres, principalmente entre os mais jovens (SANT’ANNA; LOPES, 2002; SOUZA; MENANDRO, 2002; CORDEIRO; DONALISIO, 2001; NOLASCO, 2001; FREITAS; PAIM; SILVA; COSTA, 2000; BARATA; RIBEIRO; MORAES, 1999; DRUMOND JR.; LIRA; FREITAS; NITRINI; SHIBAO, 1999). Em termos estatísticos, se abstrairmos a dicotomia público/privado, pode-se observar que os homens estão, diariamente, mais expostos à violência, e nem por isso têm sido alvo de campanhas, serviços ou políticas públicas.

Uma possível explicação é que grande parcela de formas de violência não chega ao conhecimento institucional oficial e sobre elas não há quaisquer informações. Outras tantas nem mesmo são reconhecidas pela sociedade e, conseqüentemente, por suas instituições, como a violência conjugal contra homens. Considerando os registros, o conjunto de informações é limitado, devido à maneira como são preenchidos os formulários, com a freqüente omissão de dados essenciais ao esclarecimento do fenômeno da violência em geral, o que dificulta a resolução dos casos (GONÇALVES; FERREIRA, 2002; DRUMOND JR. et al., 1999; NJAINE; SOUZA; MINAYO; ASSIS, 1997). As instituições (de segurança, de educação e de saúde) são marcadas pelas péssimas condições de trabalho e pelo despreparo de parte dos profissionais em relação à importância da própria atividade que desenvolvem, contribuindo, também, para a péssima qualidade dos registros. Nos Estados Unidos, o Departamento de Justiça utiliza as estatísticas geradas pelos registros policiais, com a finalidade de contribuir para os planos e políticas públicas (COOK, 1997). McLeod analisou mais de 6.000 casos de violência conjugal, em Detroit, e verificou que o registro de homens agredidos por suas companheiras abarca 6% do número total de notificações, resultado compatível com dados coletados no Canadá e em outras cidades dos EUA, aonde chegam a até 10% dos registros (COOK, 1997).

No âmbito das relações conjugais violentas, dois importantes trabalhos brasileiros analisaram assassinatos cometidos pelas mulheres contra seus parceiros (ALMEIDA, 2001; CORRÊA, 1983). Almeida (2001) afirma que as mulheres de sua amostra agiram pelos mais variados motivos (rixas com inimigos, vinganças e envolvimento com drogas e álcool), e não somente por ciúmes e maus-tratos dos companheiros, conforme afirmam os operadores do direito. Mesmo sendo o sujeito principal do ambiente doméstico, geralmente associado a relações amistosas e proteção, a mulher não está imune ao envolvimento em ações criminosas (ALMEIDA, 2001). Corrêa (1983) observou que na maioria dos casos em que homens mataram suas esposas, eles alegavam defesa da honra. Quando a mulher era a autora do crime contra o companheiro, a justificativa era a defesa própria, colocando-se na condição de vítima, não apenas no momento do crime mas ao longo de suas vidas, com testemunhos convincentes sobre o quanto suas vidas eram ruins. A autora também observou que em todos os casos em que as mulheres eram as autoras, uma justificativa comum era a de que os proventos disponibilizados pelo companheiro eram insuficientes para o sustento do lar. Corrêa (1983) verificou ainda que o número de absolvições foi maior para as mulheres do que para os homens, principalmente porque o sistema judiciário estava organizado de modo a manter/reproduzir os conceitos relacionados aos papéis sexuais, demarcados na sociedade.

Por se considerar que os homens são potencialmente mais fortes e mais agressivos, parece ser socialmente mais aceitável uma mulher agredir seu parceiro, amparada pelas teses de autodefesa. Nesse sentido, a utilização da violência como estratégia de enfrentamento de conflitos, tanto para homens quanto para mulheres, deve ser considerada. Obviamente, as taxas de violência doméstica oficiais contra as mulheres são bem maiores que as dos homens, mesmo considerando que a subnotificação ocorre para os dois casos, tanto pela falta de assistência do governo em oferecer serviços mais eficientes, quanto por questões relacionadas à vergonha feminina, humilhação e medo, e à honra masculina. Contudo, estatísticas reduzidas não são uma boa justificativa para se negar a necessidade de estudos que considerem os homens também como agredidos, ainda que geralmente figurem como os principais agressores (ALMEIDA, 2001; JACKSON, 1999).

A partir dos trabalhos já realizados sobre o tema, em diferentes regiões e culturas, pudemos observar que a ocorrência de violência no relacionamento com o parceiro produz sofrimento tanto para as mulheres quanto para os homens. Parece-nos, então, justificável a investigação sobre os tipos de violência conjugal ocorridos nos relacionamentos entre homens e mulheres, bem como a identificação do contexto em que ocorreram, dos sentimentos envolvidos e das conseqüências para a saúde.

Este trabalho pretendeu, utilizando-se uma perspectiva relacional nos estudos de gênero, compreender os seguintes aspectos relacionados à produção da violência conjugal: as concepções sobre violência, o contexto conjugal, os sentimentos gerados e as conseqüências para a saúde dos envolvidos. A adoção deste “modelo universalista” (BADINTER, 2003) objetiva evitar a reprodução de análises baseadas em vitimizações, geralmente identificadas neste tipo de estudo, e, principalmente, permitir avaliar se a violência pode se constituir em um mecanismo de regulação dos conflitos existentes nas relações conjugais.

Como poderá ser constatado na descrição dos procedimentos, inicialmente a pesquisa objetivava localizar e entrevistar apenas homens que haviam vivenciado ou estavam vivenciando relacionamento conjugal em que tinham sofrido violências cometidas por parte de suas parceiras, a fim de dar visibilidade a um tipo de ocorrência raramente investigado no âmbito das relações de gênero. Diante das dificuldades encontradas, a pesquisa sofreu algumas modificações e passou a focalizar então, indistintamente, homens e mulheres vitimizados pelos parceiros, e quando houve possibilidade o casal foi entrevistado.

 

MÉTODO

Participantes

Participaram do estudo dez sujeitos, três mulheres e sete homens, com idades variadas (de 18 a 56 anos) e tempos diferentes de duração dos seus relacionamentos (de 1 a 36 anos), que já tivessem vivido experiências de violência conjugal, sendo casados ou namorados. Embora se considere que tais características (idade, sexo e tempo de relacionamento) possam de algum modo interferir nos aspectos analisados, elas não se constituíram em critério para a seleção dos participantes. Na presente pesquisa o critério para a composição da amostra foi ter vivenciado relações conjugais violentas. Considerando as dificuldades inerentes à identificação de indivíduos que admitissem abertamente tal condição, não foi possível utilizar procedimentos de homogeneização amostral.

Procedimento de coleta de dados

A coleta de dados foi realizada de modo a evitar a limitação de respostas e aumentar a probabilidade de participação das duas pessoas de um mesmo casal, em entrevistas individuais. Para a execução da primeira entrevista com cada sujeito foi utilizado um roteiro semi-estruturado com os seguintes núcleos de interesse: concepções sobre violência; caracterização do cotidiano do casal; a descrição pormenorizada do primeiro e de outros episódios; os sentimentos provocados pelo envolvimento violento com o(a) parceiro(a); as conseqüências para a saúde. As entrevistas seguintes foram realizadas para esclarecimento ou detalhamento de aspectos não explorados adequadamente na entrevista anterior.

Procedimento de Rastreio e de Análise Temática das Entrevistas

Para convidar os homens a participar da pesquisa foram afixados cartazes em diversas delegacias de Vitória, informando genericamente o objetivo, garantindo o sigilo e fornecendo telefone para contato. Na segunda visita às delegacias, verificou-se que, sintomaticamente, os cartazes tinham sido arrancados, o que indicava o pouco interesse em participar de estudos deste tipo. Simultaneamente, cópias resumidas do projeto foram apresentadas, pelos pesquisadores, em hospitais de Vitória, buscando apoio para localizar sujeitos envolvidos em episódios de violência conjugal. A única instituição que demonstrou interesse autorizou a nossa permanência no Pronto Socorro, alertando-nos que não teriam condições de localizar sujeitos com o perfil requisitado. Alegaram o fato de, nos boletins médicos, constar apenas o atendimento, mas não necessariamente a história que resultou nos ferimentos. Tais informações corroboram os resultados de outros trabalhos que demonstram as péssimas condições dos registros de violência, o que contribui para sua subnotificação (GONÇALVES; FERREIRA, 2002; DRUMOND JR. et al., 1999; NJAINE et al., 1997) e dificulta substancialmente o esclarecimento sobre as causas e a formalização de responsabilidades.

Buscamos contatos “extra-oficiais”, solicitando a conhecidos dos pesquisadores que indicassem pessoas com este perfil. Entretanto, dos 10 sujeitos que foram indicados para entrevista em Vitória, só tivemos acesso a dois deles, sendo que apenas um completou a entrevista e foi incluído nos participantes. A resposta mais freqüente foi que não queriam falar sobre o assunto vivenciado e mais, que não confiavam no anonimato prometido.

Obtivemos a indicação de um Institutoi que trabalha com homens em situação de violência, no Rio de Janeiro. Após uma reunião com o Núcleo de Gênero desta instituição, foram fornecidos seis nomes de pessoas que participaram de seus grupos de discussão sobre violência. Os outros quatro participantes foram indicados por conhecidos dos pesquisadores.

No contato inicial foram fornecidas informações sobre os objetivos da pesquisa e após a obtenção do consentimento informado foi marcada a primeira entrevista. Os participantes, já na primeira entrevista, eram informados de que talvez houvesse necessidade de outros encontros e se verificava a disponibilidade. Os dados foram coletados em três capitais, Vitória, Rio de Janeiro e Goiânia, e todas as entrevistas foram gravadas com o consentimento dos participantes.

As entrevistas transcritas foram submetidas à Análise Temática proposta por Bardin (1977) que busca, por procedimentos sistemáticos de descrição e classificação de conteúdos, indicadores que permitam a construção de conhecimentos relativos às condições de produção e de recepção desses conteúdos. Assim, a partir dos núcleos de interesse que constituíram o roteiro semi-estruturado as entrevistas foram analisadas e as respostas foram classificadas a partir da adoção do seguinte procedimento: 1) leitura flutuante; 2) leitura visando destacar o conteúdo relevante, a partir dos temas de interesse indicados no roteiro; 3) categorização temática do conteúdo destacado; 4) decomposição temática do conteúdo das entrevistas; 5) reagrupamento do conteúdo em categorias.

Para efeito de divulgação dos resultados encontrados, os nomes dos participantes foram substituídos por nomes fictícios, a fim de manter o anonimato garantido aos participantes.

 

DISCUSSÃO DE RESULTADOS

Conceituação da Violência

Os processos de violência conjugal desta amostra estão associados aos relacionamentos concretos, não importando o estado civil (casados ou namorados), e nem mesmo a idade, já que se observa uma faixa etária bem variável. Todos conceituaram a violência como se sentir agredido e/ou agredir verbal e/ou psicologicamente. Alguns ainda exprimiram a idéia de que violência é algo muito forte que está no interior, algo que é individual ou natural de cada um e que, em algum momento, é colocado para fora ou explode (“É uma energia que vem de dentro, que a gente não consegue controlar” [Carla]; “Eu sou grosso, é do meu interior mesmo, eu sou grosso desse jeito” [Lúcio]). Os segmentos indicados abaixo exemplificam as concepções de violência dos sujeitos:

“Eu me sinto agredida quando sou maltratada” (Fabiana).

“Violência é quando a gente destrata uma pessoa; se a gente chega deselegante para uma pessoa, seja de que faixa ela for, é uma violência” (Lúcio).

“Eu acho que fui violentado, não só fisicamente como psicologicamente, que é o principal” (Breno).

“Quando não existe respeito, existe a violência” (Antonio).
“Violência, em primeiro lugar, para mim, é agressão física, mas existe muitos outros tipos” (Júlio).

Cotidiano conjugal

No que se refere ao cotidiano, obtivemos as seguintes descrições: a) as brigas ocorrem (quase) todos os dias; b) as diferenças tornam difícil a convivência - modos de se comportar, de pensar e agir na vida, avaliações sobre amor e dedicação, educação formal e familiar, vida sexual, vida social e amizades, e em relação às questões financeiras; c) o início do relacionamento foi evocado como uma fase boa, mas que já se tornou passado; d) fortes indicações de idealização do casamento ou do parceiro; e e) freqüentes rompimentos e reatamentos. Alguns dos aspectos do cotidiano estão expressos nos segmentos abaixo:

“Ele é muito fechado a mudar de opinião, ele tem tal posição e pronto. Isso acaba comigo, quando eu vejo que ele não está aberto a mudar. Eu to sempre disposta a ouvir o outro, até a mudar de opinião, se ele conseguir me convencer” (Carla).

“Eu, apesar de ser bem mais nova do que ele, sempre tive mais cabeça do que ele” (Lúcia).

“Ela quer uma vida sempre correta, séria, disciplinada, não admite falhas de forma alguma. Minha cunhada, já achava que não ia dar certo. (...) Eu não via problema, enquanto ‘tava dando pra levar’.” (Carlos).

“Ela veio de uma família muito pobre e eu vim de uma família de classe média alta, em consenso diferente, educação diferente, forma de comer diferente. (...) Tinha aquelas vezes que ela retrucava, retrucava... Eu já retruquei muito até chegou uma hora que eu parei” (Alberto).

Tipos de Violência

Os principais tipos de violência física citados, considerando tanto a situação em que agrediram/revidaram quanto aquelas em que foram vitimados, foram os seguintes: beliscar, morder, arranhar, dar tapas, socar, surrar, imobilizar, apertar, empurrar e bater em algo, agredir com objetos ou jogar coisas. Alguns participantes (5 homens e 2 mulheres) indicaram ter ficado com marcas no corpo em função da violência conjugal.

Todos os sujeitos avaliaram que foram vítimas de violência psicológica, direta ou indiretamente. Embora pareça difícil identificar tal violência, os sujeitos a identificam com facilidade no seu cotidiano: falar absurdos, mentir, xingar, fazer escândalo, expor publicamente, gritar e ameaçar. Um dos sujeitos indicou como violência psicológica o fato de ter sido roubado pela parceira.

“Ela me agrediu, com um tapa, um soco na barriga. O total hoje é de umas sete agressões. Ela me agrediu dentro de um ônibus, me arranhou, rosto, pescoço, braço, tapas. As agressões normalmente são assim: começa com tapa, começa com um arranhão” (Carlos).

“Eu fui com a unha assim (mostra como arranhou o rosto/bochechas dele), acho ruim quando pego no rosto dele. Eu faço assim mesmo, aperto o rosto dele, ou então, vou em cima dele e arranho ele assim” (Carla).

“Se eu agredia ela, um dia ela se colocou contra mim. Eram socos, eu já tirei o cinto para bater nela. Eu tomei a faca dela e depois não sei como ela pegou e quando puxou me machucou” (Lúcio).

“Ele meteu um tapão nas minhas costas, me arrastou pelos cabelos, foi me levando até a porta, me jogou para dentro do carro, e chegando perto de casa, ele começou a dar uns tapas nas minhas costas, me xingando. Ele me ofendia, eu empurrava ele, ele me empurrava e aí a gente começava. Eu dava uns tapas e murros nele, batia mesmo, já dei um monte de murro na cara dele, de mão fechada mesmo. Ele reagia, batia em mim também.” (Fabiana)

Os sujeitos foram unânimes em responder às violências praticadas pelo parceiro. No início, quando se perguntava diretamente se revidavam à agressão do parceiro, respondiam que não, ou que tinham vontade de revidar, mas não o faziam. Entretanto, antes das entrevistas terminarem, afirmaram que o fato de falarem coisas impulsivamente devia ser considerado violência psicológica porque ao invés de conversar sobre suas diferenças de interesses, utilizavam a agressão psicológica para revidar.

Sentimentos após a Violência

Entre os que agrediram fisicamente os sentimentos gerados foram, principalmente, a culpa e a necessidade de se desculparem. Entre os agredidos fisicamente as principais reações emocionais foram o medo em relação ao agressor e a vergonha, pois vários episódios aconteceram em público. Um homem esclareceu como se sentiu, quando foi agredido fisicamente por sua parceira, afirmando que sua honra masculina foi abalada e que isso o desorientou:

“No início eu me sentia mal. Mas como já aconteceu tantas vezes. (...) Na hora, eu fico muito nervosa, começo a tremer, fico quente, coisa mesmo de quem ‘tá nervosa, com raiva. Vomito, fico tremendo, fico muito nervosa. (...) Eu me arrependo e penso que não devia ter agido dessa forma. Dez minutos depois eu vou, já arrependida, e peço desculpas” (Carla).

“O único arrependimento que eu tenho mesmo foi de ter dado um tapa na minha filha e na mulher, pelo que veio em seguida [a separação]” (Marco).

“Depois, passa o excesso, pronto, você não consegue esquecer. Quando você apanha da tua mulher, a intensidade é como se fosse um soco no olho. Você fica impotente, isso dói, machuca lá na tua alma. Você fica impotente, como homem. (...) Não consegui olhar para ninguém dentro do ônibus, (...) você se acua e fica com medo!” (Carlos).

“Antes, eu tinha medo dele, ele me ameaçava, tinha medo até de falar, não reagia. Depois, quando ele vinha para cima de mim, eu ia para cima dele, e a gente caia no cacete. Morria de vergonha da vizinhança, eu saía na rua de cabeça baixa" (Lúcia).

“Eu sentia muita vergonha, eu achava ruim, eu achava que perdia o respeito e como é que eu ia continuar com uma pessoa assim?” (Fabiana).

Comprometimentos para a Saúde

Todos os sujeitos entrevistados afirmaram que sua saúde foi afetada e indicaram desde alterações no peso, reações corporais no ato da agressão, reflexos na vida sexual, até perturbações psicológicas mais sérias, chegando inclusive à internação psiquiátrica da parceira de um participante e ao tratamento psiquiátrico de outro. Também foram citados os danos psicológicos causados aos filhos que, inevitavelmente acabavam participando dos conflitos do casal. Vale destacar o envolvimento num acidente de trânsito, que o próprio sujeito identificou como uma tentativa de suicídio. Para ilustrar tais efeitos na saúde, selecionamos alguns fragmentos das falas dos sujeitos:

“Ficou mais frio, depois das agressões e discussões. Começo a ver o C., antes muito passivo, mostrar um lado que eu desconheço. Com esse meu jeito agressivo ele se decepcionou muito” (Carla).

“Você não olha mais com carinho, com ternura. (...) Já não digo que amo, digo que gosto. (...) Eu não consigo dormir com ela, enrolo até o ponto que ela não consegue mais e vai dormir. Quando estou no trabalho, procuro o trecho mais engarrafado, pra chegar em casa mais tarde e só ter o trabalho de tomar banho, está acontecendo esse processo da distância (Carlos).

“A gente já estava separado sexualmente, eu já não queria mais que ele me tocasse. Eu fui me afastando e isso, ele não aceitava. (...) Ele não aceita que acabou, e por culpa dele! (...) Eu adorava ele, eu gostava demais dele” (Lúcia).

“Eu fiquei totalmente estressada, muito nervosa. Eu tentei me suicidar, por causa disso (...)” (Fabiana).

“Eu fui lá [clínica psiquiátrica] e vi que ela realmente estava lá, ficava gritando o meu nome, 'tava completamente doida, cheia de remédio. Virei as costas, saí e comecei a chorar. (...) Já tem um ano e tenho um trauma de relacionamento mais sério. Eu acho que fiquei mais frio” (Breno).

“E eu modifiquei, eu não estou mais saindo, eu não sei mais namorar. Eu tenho medo. A gente, não só eu, como as crianças, vive assim estressado, preocupado com o que pode acontecer. Me dá revolta, tristeza, me dá pena, muita coisa!” (Noir).

 

DISCUSSÃO

Os dados que acabamos de descrever explicitam, parcialmente, a complexidade relacionada aos episódios de violência no âmbito das relações conjugais, indicando uma etiologia localizada inelutavelmente nas relações estabelecidas entre o casal, onde os papéis de vítima e agressor são intercambiáveis. Os dados demonstram que mesmo aqueles que se consideram agressores, o que não é um privilégio masculino no conjunto de participantes deste estudo, também se reconhecem vitimizados tanto física quanto psicologicamente. Diante destes resultados, é possível postular a importância das representações sobre alteridade no estabelecimento de um diálogo com o outro através da violência. Jovchelovitch (2000) já enfatizou a importância do conceito de alteridade para a Psicologia Social como uma dimensão essencial para compreender o ser humano a partir das relações, entendendo que o “outro” participa da construção do que é o “eu”.

Os sujeitos indicaram os fatos do cotidiano conjugal que os agridem psicologicamente, focalizando principalmente os comportamentos controladores do parceiro, que podem se agravar, se estendendo para outras ações controladoras futuras (COOK, 1997). A este respeito, os dados apresentados por Martin (1999) sugerem que as mulheres superam os homens na utilização violência não-física como estratégias de controle nos relacionamentos (gritos e xingamentos, entre outros), embora agressões físicas também sejam utilizadas. Erin Pizzey, fundador do primeiro abrigo do mundo para mulheres violentadas, afirma que uma grande proporção de ferimentos em olhos de homens foi ocasionada por violência conjugal, quando objetos de vidro são jogados pelas mulheres em seus parceiros. Estudos indicam que as esposas têm duas vezes mais probabilidade de jogar coisas em seus maridos e têm muito mais probabilidade de chutar de usar objetos para agredir (apud COOK, 1997).

Muitas vezes, os participantes atribuíram um caráter individualizante à violência ("algo do interior de cada um"; "uma energia destrutiva que vem de dentro"), isolando-a do contexto social, naturalizando-a e banalizando-a, dificultando sua compreensão e superação. Além disso, a aprisionam em um conceito de doença/tratamento, diminuindo a ênfase na necessidade de um processo de negociação das diferenças. Compreendendo-se tal negociação como a principal ferramenta para a construção de um sistema de reciprocidade eficaz, que possibilite uma relação de trocas com eqüidade (VELHO, 1996), pode-se afirmar que a não-negociação gera violência e vice-versa, caracterizando um processo de realimentação contínua.

Assim, avaliamos que o não acolhimento à alteridade, ou a afirmação de um “outro violento”, que “já era assim”, serviu para atribuir-lhe culpa, individualizando o processo de violência no agressor, dinâmica observada independentemente do sexo do agredido. Portanto, as diferenças “não-negociadas” nas brigas eram impostas sobre o outro através de violência física/psicológica, o que, obviamente, contribuiu para a (re) produção de tais dificuldades. Por não saberem lidar com a diferença, não concebiam a capacidade de negociação como um aspecto importante no relacionamento conjugal, e sim, a busca de alguém semelhante a si mesmo para, assim, tentar anular as diferenças. Quando os casais apontaram as dificuldades para conviver com as diferenças, também demonstraram o quanto essa barreira é influenciada pela idealização de homem e mulher, além da idealização do casamento como uma relação sem conflitos. Quando percebem que se distanciaram desse ideal almejado tendem a utilizar um discurso negativo, descrevendo o cotidiano em crise (GARCIA, 2001).

Além de uma tendência individualizante e do não acolhimento à alteridade, também verificamos a necessidade de destacar o sofrimento ético-político (SAWAIA, 2001). Esta categoria retrata os aspectos que desrespeitam a cidadania (ético) e a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica (político), inclusive a dor de ser tratado como inferior (SAWAIA, 2001). Nenhum homem ou mulher quer admitir para o mundo, que ele(a) foi atacado(a) fisicamente por um(a) parceiro(a), pois a maioria das pessoas quer que seus lares pareçam uma situação de família boa e "normal"; medo do ridículo, vergonha e o desejo de manter os assuntos da família em privacidade proíbem muitos homens e mulheres de revelar a violência conjugal para outros (COOK, 1997).

Muitos fatores estão implicados na vivência de uma conjugalidade violenta: dificuldades financeiras, estilos de criação dos filhos, trabalho e desemprego, sexo, ciúme e traição. Os sentimentos envolvidos neste processo, para os que se sentiram agredidos fisicamente, oscilaram entre o medo em relação ao agressor - enquanto ainda não estavam dispostos a reagirem, comportamento que adotaram com o passar do tempo - e a vergonha, quando os episódios aconteceram em público. Também explicitaram um sofrimento imediato à agressão, relatando, inclusive, choro e angústia, principalmente quando os filhos estavam envolvidos nas ocorrências violentas.

Para os que afirmaram ter agredido fisicamente, os sentimentos oscilaram entre a culpa e a necessidade de se desculparem, uma vez que se arrependiam após o ocorrido. No caso da violência física por parte da esposa, podemos observar que é possível um homem questionar suas prescrições de masculinidade, avaliando que a agressão de uma mulher a um homem, principalmente se casados, é pior do que se fosse o contrário. Isto porque, ao homem é socialmente aceitável ser agressivo, mesmo que ele opte por não ser (NOLASCO, 2001; COOK, 1997). É preciso, portanto, atentar para o fato que, em termos de sofrimento, os dados indicam que ambos os envolvidos sofrem, tanto quem agride quanto quem é agredido. Em relação às conseqüências para a saúde, todos os sujeitos conseguiram identificar diversas delas, demonstrando que o sofrimento os abate de várias maneiras: provoca alterações físicas no peso, reações corporais no ato da agressão, efeitos na vida sexual e outras perturbações psicológicas.

Ainda são raros os trabalhos que abordam a violência conjugal e a violência doméstica a partir de uma abordagem também dos homens envolvidos (MARTÍN, 1999), embora seja alentador verificar que trabalhos sobre masculinidades já foram desenvolvidos focalizando temas importantes, como sexualidade, paternidade e saúde reprodutiva, sob uma perspectiva psicossocial (TRINDADE; MENANDRO, 2002; DARIO, 2001; ARILHA, 1999; SILVA, 1999; ARILHA et al., 1998). Considerando que os relacionamentos conjugais violentos apresentam uma complexidade considerável, as pesquisas com a temática numa perspectiva relacional tornam-se urgentes.

Algumas questões ainda se colocam, como por exemplo, a identificação e análise da violência conjugal psicológica. Quando se inserir o conceito violência psicológica nas análises sobre os relacionamentos conjugais, poderemos reconhecer como alguém responde à ameaça ou aos atos de violência, desde um “tapinha” até um ataque severo. Também devemos considerar com maior nível de detalhes o modo como representações sociais relacionadas ao “ser homem” e “ser mulher” interferem na violência conjugal, mas em uma perspectiva que também incorpore os homens envolvidos neste processo.

Obviamente, perdemos, cada vez mais, se a sociedade não interrompe a violência e não reconhece a perigosa mensagem que estas experiências transmitem às crianças: os esforços contra outras formas de violência são desvalorizados e a própria sociedade se torna cada vez mais produtora de violência. Se desejarmos relações igualitárias, o primeiro passo é conhecer como os problemas relacionados a gênero se constituem, garantindo que aspectos relacionais entre masculinidades e feminilidades serão contemplados nas análises, bem como a sua articulação com o respeito à integridade humana, respeito que é necessário para o pleno exercício da cidadania.

 

Considerações finais

A partir de uma perspectiva relacional, este trabalho pretendeu compreender alguns dos aspectos relacionados à produção da violência conjugal, tais como: as concepções sobre violência, o contexto conjugal, os sentimentos gerados e as conseqüências da violência para a saúde dos envolvidos.

Pudemos verificar que os participantes consideram violentas não apenas as agressões físicas que sofreram ou produziram e, ao conceituar violência, todos eles enfatizaram como importante o fato de sentir-se agredido, seja física ou psicologicamente. No entanto, verificamos que vários participantes ainda atribuem um caráter individualizante à violência, considerando-a uma energia destrutiva que vem de dentro, uma força sobre a qual as pessoas não têm controle.

Entre os que agrediram fisicamente os sentimentos gerados foram, principalmente, a culpa e a necessidade de se desculparem. Entre os agredidos fisicamente as principais reações emocionais foram o medo em relação ao agressor e a vergonha, pois vários dos episódios violentos dos quais foram vítimas aconteceram em público.

No que se refere ao cotidiano conjugal, obtivemos indicações de que se trata de um cotidiano onde as brigas e discussões são constantes, provocadas principalmente pela inabilidade em lidar com as diferenças existentes entre o casal. Em função disso, verificou-se a ocorrência freqüente de rompimentos e reatamentos. Também foi possível identificar fortes idealizações relacionadas tanto ao casamento quanto ao parceiro, idealizações que constantemente são confrontadas em função das diferenças existentes entre o casal, o que geralmente contribui para a produção de conflitos.

A saúde dos participantes foi afetada de diferentes maneiras. Eles indicaram desde alterações no peso, reações corporais no ato da agressão, reflexos na vida sexual, até perturbações psicológicas mais sérias, chegando inclusive ao tratamento psiquiátrico. Também foram ressaltados os possíveis danos psicológicos causados aos filhos, que geralmente presenciavam as agressões entre os pais.

Em síntese, o estudo revelou em primeiro lugar a importância da adoção de uma perspectiva verdadeiramente relacional nos estudos sobre violência conjugal, o que permite identificar e conhecer melhor esse tipo de violência na sua origem, ou seja, nas relações sociais de gênero. A adoção de tal perspectiva teria como conseqüência natural a mudança de uma política jurídica e punitiva dirigida aos agressores, para uma política de apoio e assistência a homens e mulheres envolvidos em conjugalidade violenta. Em segundo lugar, revelou a importância central das representações sobre alteridade. O não acolhimento à alteridade, seja através da tentativa de igualação, seja através da afirmação de um “outro violento”, que “já era assim”, serviu apenas para atribuir exclusivamente ao outro a culpa e a responsabilidade pela violência, preservando relações conjugais que, por si só, se constituem em uma fábrica de sofrimentos.

 

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Recebido em: 19/09/2004
Aceito em: 08/07/2005

 

 

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