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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.9 n.2 São Paulo dez. 2007

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A atenção pública à saúde e a constituição simbólica do Sistema Único de Saúde: representações socioprofissionais1

 

Public health police and the symbolic constitution of the unique health system: social-professional representations

 

La atencion publica a la salud y la constitucion simbolica del sistema unico de salud: representaciones socio-profesionales

 

 

Denize Cristina de Oliveira; Antonio Marcos Tosoli Gomes; Celso Pereira de Sá; Sonia Acioli

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar os conceitos e as imagens construídos pelos profissionais de saúde sobre o Sistema Único de Saúde (SUS). Foram estudados cem profissionais que atuam em cinco instituições públicas de saúde do Rio de Janeiro. Realizaram-se entrevistas semi-estruturadas, analisadas pela técnica de análise lexical cruzada com o software ALCESTE 4.7. Os resultados apontam para as seguintes definições associadas ao SUS: lei normalizadora e reguladora das ações de saúde; modelo assistencial avançado; plano de saúde da população para facilitar o acesso; sistema de saúde integrado para atender a população; sistema de atendimento único e igual de saúde; direito do cidadão e dever do Estado; sistema que não gera os frutos que deveria. Os conceitos associados à sigla SUS estão enovelados por elementos participantes do conhecimento reificado, e também por construções subjetivas do grupo de profissionais, no entanto a sua compreensão e definição pelos sujeitos sociais não acompanham a mesma unicidade da proposta filosófica.

Palavras-chave: SUS, Representações sociais, Conceitos, Políticas públicas de saúde, Profissionais da saúde.


ABSTRACT

This paper aims to analyze the concepts and images constructed by health professionals regarding the Brazilian health public policy (SUS). They were studied hundred professionals which worked in five public health institutions in Rio de Janeiro. The contents of semi-structured interviews were submitted to the crossing technique of lexical analysis provided by ALCESTE 4.7 software. Results evidenced the following definitions associated to the SUS: a normative and ruling organ law for health actions; an advanced model of health care; a health security plan for facilitate access to health services; an integrated health system to assist the population; an unique and equalitarian system of health care; a citizen’s right and a state’s duty; a system that does not generate the products that it should. The concepts associated to the SUS involve both objective knowledge and subjective constructions by the professionals’ group. Nevertheless, its understanding and definition by the social subjects does not follow the same unity that is present in its philosophical proposal.

Keywords: SUS, Social representations, Concepts, Public health policy, Health professionals.


RESUMEN

El presente trabajo tuvo como objetivos analizar los conceptos e imágenes construidas por los profesionales de salud sobre el Sistema Único de Salud (SUS). Fueron estudiados cien profesionales que actuan en cinco instituiciones públicas de salud de Río de Janeiro. Fueron realizadas entrevistas semiestructuradas, analizadas a través de la técnica de análisis lexical cruzada con el software ALCESTE 4.7. Los resultados indican para las siguientes definiciones asociadas al SUS: Ley normatizadora y reguladora de las acciones de salud; Modelo asistencial avanzado; Plano de salud de la población para facilitar el acceso; Sistema de salud integrado para atender a la población; Sistema de atención único e igual de salud; Derecho del ciudadano y deber del Estado; Sistema que no genera los frutos que debería. Los conceptos asociados a la sigla SUS estan permeados por elementos participantes del conocimiento reificado y también por construcciones subjetivas del grupo de profesionales, sin embargo su comprensión y definición por los sujetos sociales no acompaña la misma unicidad de la propuesta filosófica.

Palabras clave: SUS, Representaciones sociales, Conceptos, Políticas públicas de salud, Profesionales de salud.


 

 

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) possui importância no quadro sanitário brasileiro não somente como estrutura de organização institucional da área da saúde ou modelo teórico de atendimento à clientela, mas especialmente pela mudança que a sua instituição trouxe para o direcionamento das formas de pensar, conceber e realizar a assistência à saúde no país.

As políticas de saúde, como políticas sociais, têm suas diretrizes voltadas para o planejamento e a organização do sistema de saúde em todos os níveis de atenção, bem como incluem aspectos voltados à organização dos serviços, à política de recursos humanos e tecnológicos, instâncias de participação da população e financiamento, entre outros. No entanto, esse plano organizativo de preocupações não pode excluir o processo por meio do qual o indivíduo gesta consciência política de suas necessidades, emergindo como sujeito de seu próprio destino. Nesse cenário, a própria atuação organizada da sociedade aparece como condição essencial de enfrentamento das desigualdades sociais.

A formulação do SUS englobou movimentos sociais diversificados, que se expressaram nas Conferências Nacionais de Saúde, como resultado de uma longa história de centralização de poder sobre as políticas de saúde e de atendimento de variados interesses na sua constituição. Nos dias atuais, a saúde pública no Brasil se apresenta com variados desafios, inclusive com dificuldades históricas, pois os problemas de saúde vêm ocorrendo desde o período colonial do país, como as epidemias indígenas na época do descobrimento, como a varíola, por exemplo.

Dentre os marcos históricos que tiveram impacto sobre o que se propõe hoje como entendimento da saúde, coloca-se a criação do Ministério da Saúde, durante o governo Vargas, ao mesmo tempo que as empresas criavam sua própria assistência médica, colocando as bases para o surgimento da previdência privada. Em 1966 foi criado o Instituto Nacional de Previdência Social, que deveria tratar individualmente dos doentes, enquanto o Ministério da Saúde deveria se ocupar da população como um todo, por meio de campanhas coletivas voltadas a problemas específicos. Nesse mesmo período, houve a entrada de capital estrangeiro no país, permitindo o surgimento das seguradoras privadas de saúde. Esses marcos, entre outros, firmaram as bases conceituais vivenciadas pelos agentes sociais que atuam e interagem com o setor saúde, dentro do continuum no qual a constituição do sistema atual ocorreu (AGUILERA; BAHIA, 1993).

Com o início da democratização do país e o ressurgimento da participação popular e do embate entre os diversos grupos com interesses em jogo na definição das políticas sociais no país, foram lançadas as bases conceituais e filosóficas que se expressariam na Constituição de 1988.

A Constituição de 1988, portanto, definiu a criação do SUS a partir do princípio básico de acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde. O texto constitucional expressa, também, uma intenção de descentralizar o poder do centro para a periferia, reforçando a autonomia municipal e a participação da comunidade (BRASIL, 1990).

O SUS é definido como um sistema único porque segue a mesma doutrina e os mesmos princípios organizativos em todo o território nacional, sob a responsabilidade das três esferas autônomas do governo: federal, estadual e municipal. Assim, ele não é um serviço ou uma instituição, mas um sistema composto por um conjunto de ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público e, de forma complementar, pela iniciativa privada (BRASIL, 1990).

A compreensão da proposta SUS implica o entendimento dos seus objetivos finais, quais sejam prestar assistência à população a partir do modelo de promoção da saúde, resultando no desenvolvimento de ações que buscam eliminar ou controlar as causas das doenças e dos agravos, ou seja, que determinam ou condicionam o aparecimento de casos; proteger a saúde da população, mediante ações específicas para prevenir riscos e exposições às doenças, ou seja, manter o seu estado de saúde; e oferecer ações de recuperação da saúde de forma a evitar mortes e seqüelas em pessoas já acometidas por processos mórbidos (BRASIL, 1990).

Assim, esses objetivos orientados pelos princípios organizativos d a descentralização, regionalização, hierarquização, resolutividade, participação social, e os princípios doutrinários, definidos pela universalidade, eqüidade e integralidade das ações e dos serviços de saúde devem constituir objetivos estratégicos que dêem concretude ao modelo de atenção à saúde desejado para o Sistema Único.

Os princípios doutrinários podem ser compreendidos como: universalidade, afirmando o direito de todas as pessoas ao atendimento, ou seja, a saúde é direito de cidadania e dever dos governos municipal, estadual e federal; eqüidade, reconhecendo que todo cidadão é igual perante o Sistema Único de Saúde e será atendido conforme as suas necessidades, permitindo a diminuição das desigualdades existentes; integralidade, cujas ações de promoção, proteção e de recuperação formam um todo indivisível que não pode ser compartimentalizado (BRASIL, 1990).

Os princípios organizativos são definidos como: regionalização e hierarquização, ou seja, a rede de serviços do SUS deve ser organizada de forma regionalizada e hierarquizada, permitindo um conhecimento maior dos problemas de saúde da população de uma área delimitada, favorecendo ações de vigilância epidemiológica, sanitária, controle de vetores, educação em saúde, além das ações de atenção ambulatorial e hospitalar em todos os níveis de complexidade; resolutividade, definida como a exigência de que, quando um indivíduo busca atendimento ou quando surge um problema de impacto coletivo sobre a saúde, o serviço correspondente esteja capacitado para enfrentá-lo e resolvê-lo até o nível de sua complexidade; descentralização, na qual ocorre uma redistribuição das responsabilidades às ações e aos serviços de saúde entre os vários níveis de governo; participação dos cidadãos, entendida como controle social, que se refere à garantia constitucional de que a população, por meio de entidades representativas, deverá participar do processo de formulação das políticas de saúde e do controle de sua execução, em todos os níveis, desde o federal até o local (BRASIL, 1990).

A plena regulamentação do SUS estendeu-se pelo menos até 1990 (com a aprovação das leis nº 8.080 e 8.142) e sofreu vetos presidenciais importantes em diversos artigos, especialmente no que se refere aos mecanismos de transferência de recursos financeiros. Em decorrência disso, a implementação efetiva do SUS encontrou obstáculos de diversos tipos, tais como a não-implementação do sistema de Seguridade Social, com a manutenção da fragmentação e ultra-setorialização da burocracia estatal nas áreas de saúde, previdência e assistência social, o clientelismo, o corporativismo e o fisiologismo, entre outros.

Dessa forma, buscar conhecer as políticas municipais e as práticas de saúde desenvolvidas reveste-se de importância e implica a definição de um referencial teórico que possibilite visualizar a implantação do SUS não apenas a partir do olhar normativo-institucional, mas também por diferentes pensares, que permitam retraduzir o cotidiano das relações dentro desse complexo sistema. Desta forma, acessar as construções psicossociais dos diferentes grupos que interagem dentro desse sistema e, de certa forma, reconstroem o SUS no cotidiano dos serviços de saúde pode ser um caminho profícuo para a compreensão do SUS vivo, ou seja, aquele que se expressa pela rede de serviços e ações de saúde no cotidiano dos seus usuários.

A orientação teórica dada pelas proposições de Moscovici (1976, 1984), Jodelet (1989) e Sá (1998) que adotam a noção de representação social como entidade constituída por um conjunto de crenças, informações, opiniões e atitudes a propósito de um dado objeto social, conjunto este de elementos que se organiza, estrutura e constitui um sistema sociocognitivo de tipo específico, coloca-se como uma ferramenta teórica útil para o propósito que se apresenta.

O objetivo do presente trabalho consiste em analisar os conceitos construídos sobre o Sistema Único de Saúde por profissionais, como conteúdos sociocognitivos participantes da representação social do SUS.

 

Método

Este trabalho teve uma orientação metodológica qualitativa, buscando a apreensão da dimensão conceitual das representações sociais, mais especificamente o conhecimento produzido pelos profissionais sobre o SUS, após a sua implantação.

O desenho metodológico do estudo envolveu cinco instituições de saúde localizadas na cidade do Rio de Janeiro, segundo os seguintes critérios de inclusão: um hospital público federal de grande porte; um hospital estadual, geral, de grande porte; um hospital municipal; um hospital privado, conveniado com o SUS, de grande porte; e um centro de saúde de grande porte, pertencente à rede pública municipal de saúde.

Foram entrevistados cem profissionais que desenvolviam ações no âmbito das instituições selecionadas, vinte de cada instituição, e que atuavam havia pelo menos quinze anos. A escolha dos profissionais obedeceu aos seguintes critérios de inclusão: cinco sujeitos ocupando cargos administrativos não-diretivos; cinco sujeitos ocupando postos administrativos diretivos; dez sujeitos envolvidos em atividades operacionais, cinco de nível superior e cinco de nível médio ou básico.

A coleta de dados foi realizada no primeiro semestre de 2003 com entrevistas semi-estruturadas, analisadas pela técnica de análise lexical mecanizada, com o uso do software ALCESTE 4.7, que permite realizar análise do conteúdo essencial presente no texto por meio de técnicas quantitativas de estatística textual. Assim, o ALCESTE recorre à análise das co-ocorrências das palavras nos enunciados que constituem o texto, para organizar e sumariar informações consideradas relevantes, possuindo como referência da sua base metodológica a abordagem conceitual dos “mundos lexicais” (REINERT, 1990; OLIVEIRA; GOMES; MARQUES, 2005).

A operacionalização da análise implica a segmentação do corpus de análise em grandes unidades denominadas unidades de contextos iniciais (UCI), que neste estudo foram as cem entrevistas de diferentes sujeitos reunidas em um mesmo conjunto de texto. O texto completo é, então, dividido em segmentos menores de algumas linhas, respeitando os cortes propostos pela pontuação, que são denominados unidades de contextos elementares (UCE) e correspondem à menor unidade de análise relevante à formação das classes.

Após a realização da análise ALCESTE standard, foi realizada uma segunda modalidade de análise, denominada triagem cruzada (tri-croisé). Esse tipo de análise permite identificar dimensões específicas presentes no material discursivo, buscadas intencionalmente pelo pesquisador, neste caso a sigla SUS.

Num segundo momento, aplicou-se a técnica de categorização às UCE selecionadas na análise de triagem cruzada, buscando identificar as dimensões conceituais assumidas pelo SUS nas representações profissionais, que nem sempre ganham visibilidade na análise standard.

No que se refere aos aspectos éticos da pesquisa, foram respeitados os princípios da Resolução nº 196/96 do Ministério da Saúde. O projeto recebeu parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da UERJ sob o protocolo 1650-CEP/HUPE, e cada sujeito participante formalizou o seu aceite assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE.

A constituição simbólica do Sistema Único de Saúde: suas definições e princípios

A classe SUS e suas categorias se apresentam como o espaço de definição do Sistema Único de Saúde, revelando a incorporação dos seus princípios, das suas bases filosóficas, da sua estrutura organizacional e financeira, a partir da construção de representações. Essas representações são correlacionadas aos diferentes conceitos construídos pelo grupo analisado, tanto com base no conhecimento reificado presente na legislação definidora do SUS, artigos científicos e de opinião, bem como pela mídia que promove a circulação de percepções, fragmentos da legislação e opiniões diversificadas sobre o SUS.

Como resultado da análise de triagem cruzada, o software dividiu o material em duas classes, a primeira que contém a palavra ou variável de interesse, neste trabalho a sigla SUS, e a segunda que não a contém. O conteúdo da classe definidora do SUS pode ser inferido do resultado da análise hierárquica ascendente, que permite visualizar as formas reduzidas pertencentes à classe e a associação entre elas, conforme Figura 1.

O contexto lexical e as formas reduzidas associadas à classe indicam sua relação com as definições que os entrevistados associam ao SUS, bem como os princípios relacionados ao sistema, como pode ser observado na Tabela 1.

As categorias construídas com base na análise do conjunto de contextos semânticos (UCE) da classe SUS foram as seguintes: lei normalizadora e reguladora das ações de saúde; modelo assistencial avançado; plano de saúde da população para facilitar o acesso; sistema de saúde integrado para atender a população; sistema de atendimento único e igual de saúde; direito do cidadão e dever do Estado; sistema que não gera os frutos que deveria.

A compreensão dessas categorias poderá ser facilitada com a explicitação dos seus conteúdos descritos a seguir.

 

 

Figura 1. Dendograma da análise hierárquica descendente. Rio de Janeiro, 2007.

 

Tabela 1. Formas reduzidas associadas à classe definidora da sigla SUS na análise Alceste. Rio de Janeiro, 2007

 

 

Lei normalizadora e reguladora das ações de saúde

A compreensão do SUS como um arcabouço jurídico é esperada no grupo estudado, considerando que são profissionais que atuam há longa data no sistema de saúde, alguns deles tendo acompanhado e/ou participado das discussões em torno da criação do sistema de saúde atual.

Paradoxalmente, o SUS também é representado como uma proposta governamental, elaborada e implementada pelas instâncias de governo com responsabilidade sobre a regulação das ações de saúde, o que revela o desconhecimento por parte dos profissionais acerca da própria evolução histórica do sistema de saúde brasileiro, constituído a partir das Conferências Nacionais de Saúde e de ampla participação social, culminando na Constituição de 1988 com a efetivação do SUS (CORDEIRO, 2001). No entanto, também revela certo desconhecimento dos espaços de participação e controle social assegurados pela própria legislação.

É meio complicado. Hoje tem uma lei que é a 80, do dia dezenove de setembro de noventa. Essa lei nada mais é do que as obrigações que a prefeitura tem para com o estado e com o governo federal, porque dentre os estatutos, dentro da lei que criou o SUS, foi apenas adaptada para o estado e para o município.

Eu sei que isso é uma lei criada para que atendesse a pessoa, atendesse o cidadão nas suas necessidades básicas, agora não sei nem dizer sinceramente o que o SUS exige.

Uma coisa é a parte teórica de um plano determinado, sendo que você tem um plano, faz o cálculo sobre uma demanda. Quando o SUS foi criado, o CONASP foi para o SUDS e aí veio o SUS, a estatística na época era muito pequena para mostrar a magnitude da situação.

O SUS, de um modo geral, deveria ser um órgão normatizador e regulador da questão da saúde no Brasil, deveria atuar nos objetos, faixas e segmentos da saúde.

Sei que a lei do SUS é uma tentativa de hierarquizar e de coordenar as ações de saúde nacional, estadual, municipal, dando atribuições de deveres e direitos para cada um, mas percebemos que isso tem uma dificuldade.

Após o SUS, a gente percebe claramente, com todo esse conteúdo social que existe, essa política de recursos humanos e recursos materiais. A vigilância epidemiológica veio ajudar muito a gerência, se ela é entendida como um fator importante para isso. A organização do serviço está muito melhor.

No Brasil, após a Constituição de 1988, o SUS institucionalizou, por meio dos Conselhos de Saúde, a ação dos grupos de interesses que implicam a participação de grupos sociais organizados, como sindicatos, associações de moradores e igrejas junto a representantes diretos do executivo, como secretários de saúde e técnicos graduados. Essa participação se desenvolve a partir de uma normalização definida pelo Estado, estabelecendo seus contornos, escopo de decisões e participantes, o que parece colocá-la, para os profissionais, como extensão do próprio Estado.

A percepção do caráter jurídico do SUS não é um elemento consensual no grupo estudado, sendo observada em alguns poucos profissionais que desnaturalizam a existência desse sistema e o colocam em um contexto histórico, reconhecendo a sua força como normativa federal pactuada entre estados e municípios.

Modelo assistencial avançado

Outra forma assumida pela representação do SUS é a de um modelo assistencial, orientado por princípios próprios, que se coloca à frente do seu tempo. A promoção da saúde e a prevenção de doenças fazem parte desse novo modelo assistencial, descentralizando o atendimento à saúde do hospital para as unidades básicas e promovendo a integração dos serviços preventivos e curativos em um único sistema.

Esse modelo é exatamente isso, é promover saúde e prevenir doenças, dar uma vertente do hospital egocêntrico. É um mesclar, você integrar os serviços curativos com os serviços preventivos de forma que esse indivíduo possa ter a sua assistência garantida em todos os níveis de complexidade.

É um sistema de saúde que vem inovar o modelo assistencial, onde você precisa levar em conta alguns princípios, principalmente o da igualdade, da integralidade, da assistência, onde traduz e reporta a questão da atenção básica.

O SUS é o sistema de saúde vigente que como modelo é um modelo extremamente avançado para a nossa realidade, um modelo completo que atende. Agora, no Brasil são poucos os locais em que ele funciona e que está adequado à proposta que ele mesmo tem proposto.

O SUS é um sistema de saúde de atendimento público em nível de saúde para a população brasileira. Eu considero importante, embora ache que ainda não está cumprindo totalmente seu papel.

Ao referirem o caráter público do sistema e a consistência da sua organização, os profissionais associam um conteúdo avaliativo a ele, reconhecendo que as dificuldades se expressam à medida que os desafios são colocados pela criação do sistema.

Plano de saúde da população para facilitar o acesso

Um dos objetivos do SUS é o de facilitador do acesso à assistência à saúde, seja por meio de recursos próprios seja pela complementaridade do setor privado, que deve ocorrer quando há necessidade de contratação de serviços privados para a complementação do serviço público. A retradução nas representações desse processo complementar é explicitada nas seguintes UCE:

O SUS seria o plano de saúde da população. A teoria do plano é excelente e é uma necessidade urgente para a nossa população.

Eu acho que o grande sonho da população é ser atendida pelo SUS como o membro que tem o cartãozinho do convênio dela para ser atendida em qualquer lugar.

O SUS vem com um esquema para facilitar o acesso a toda a população carente, inclusive até em hospitais particulares que, às vezes, têm convênio, para viabilizar o atendimento em todas as áreas independente de classe ou nível social.

[...] que ele funcione de forma adequada e de acordo com a proposta que é apresentada. A implantação real do SUS seria uma coisa excelente, as pessoas terem acesso fácil e rápido à saúde, a todo tipo de atendimento.

[...] então você pode fazer um plano de saúde, e já o SUS é um atendimento mais povão. Ele tem todo o direito que eu acho que uma pessoa do convênio, de um plano de saúde, tem todo o direito de ter a mesma coisa.

Um dos principais pontos de estrangulamento do atendimento à saúde, e também de críticas ao SUS, refere-se à dificuldade de ampliação do acesso à assistência à saúde associado à melhoria da qualidade da assistência. Apesar de largamente reconhecido pelos profissionais o avanço que significou a garantia do acesso universal à saúde, a existência de filas, expressando todas as dificuldades de assegurar o atendimento pretendido ou necessário, ainda se coloca como a imagem mais freqüentemente associada ao SUS. De um lado, a expectativa de que a garantia do acesso seja objetivo da criação e implantação do SUS revela uma crença no sistema e na sua base legal. De outro lado, a imagem de filas se opõe à imagem de planos de saúde, nos quais, supostamente, os serviços estariam acessíveis sem filas e de acordo com o desejo dos usuários. A compreensão da relação público-privado se revela nesta categoria definidora do SUS, na qual se observa a expectativa de que o SUS pudesse assegurar a agilidade de atendimento imputada aos planos privados, associada à universalidade da assistência.

Um último aspecto apontado pelos entrevistados refere-se a uma percepção de aumento da complexidade das demandas após a implantação do SUS, já que para alguns esse fato se associa à universalização da assistência e, para outros, a uma mudança no perfil epidemiológico da população brasileira.

Sistema de saúde integrado para atender a população

O SUS é definido como um sistema destinado a oferecer ações e serviços de saúde à população, caracterizado pela integração das esferas governamentais na atenção à saúde, objetivando a efetivação das suas premissas e princípios e uma maior resolutividade da assistência à saúde (BRASIL, 1986), entendendo a integração das ações como um dos pilares do sistema.

Os profissionais associaram uma imagem de pirâmide ao definir o SUS, valorizando o papel da rede básica de serviços de saúde na composição do sistema.

O SUS é o sistema de saúde integrado, uma vez que a gente teve a unificação das instituições para facilitar o atendimento, melhorar e qualificar. É muita carência. Então, acho que o SUS é unir todos em um só para favorecer.

Na verdade, o nosso sistema é uma pirâmide onde a atenção básica tem que resolver pelo menos 80% dos problemas de saúde dessa população. Tem que garantir isso. A gente tem falha, mas precisamos ter essa lógica de assistência. A cidade do Rio de Janeiro é uma cidade grande, é uma capital, é uma metrópole.

A proposta do SUS é que seja um atendimento integrado para todo mundo, sem filas. Eu acho que a questão da fila não está dentro da proposta do SUS.

Eu acho que seria integrar, não existir mais estado, município, federal. Cada lugar que a pessoa vai ser atendida tem que ter uma matrícula. Eu acho que deve ser, realmente, um SUS. Se não cada lugar que você vai, filas quilométricas, vai aqui, filas quilométricas, vai no hospital..., filas quilométricas, vai para uma maternidade do município, outra fila.

O SUS, para mim, tem um semblante. É o nosso sistema de saúde integrado. Para mim seria um sistema de saúde que atendesse as necessidades da população e que essa população fosse atendida de forma adequada, com recursos que são gerados dentro do próprio município juntamente com o governo federal.

O SUS é um sistema de saúde, é uma proposta de sistema de atendimento de saúde integrado para toda população, que na verdade a gente não vê ainda de fato ser implementado pelo menos em nível de grande Rio de Janeiro.

O SUS é um sistema de saúde integrado, onde se associam poderes de saúde tanto municipais, estaduais e federais, dando o mesmo direito a todos e a mesma qualidade de atendimento.

O SUS é uma integração entre as instituições de saúde, visando melhor atendimento à população. Atendimento, no caso primário, secundário e terciário, havendo uma integração de todos eles.

O SUS, para mim, é uma unificação para melhorar o atendimento do paciente. Eu achei que realmente houve uma melhora, não tanto, mas houve uma melhora significante.

A integração entre as diferentes esferas públicas traduz o princípio de descentralização como elemento participante da representação dos profissionais, sendo reconhecido como processo de responsabilização do nível municipal e das instituições locais de atenção à saúde na prestação de assistência direta à população, mas também é observada nas relações de poder e nos recursos financeiros (BRASIL, 1997).

Essa integração dos serviços deve ser efetivada a partir de uma integração dos serviços de menor complexidade com aqueles de maior complexidade e custo em um único sistema. O princípio de hierarquização da assistência, segundo o qual os serviços devem atender a uma demanda específica, conforme o grau de complexidade das ações oferecidas, está também aí contemplado. O funcionamento desse sistema hierarquizado deveria ocorrer por meio do encaminhamento, pelo profissional de saúde, de clientes de um nível de assistência para outro, segundo a necessidade do usuário (GIL, 2006).

No entanto, os profissionais afirmam que esse princípio não é respeitado, uma vez que o atendimento de emergência é utilizado para resolver todas as queixas que, por dificuldade ou falta de acesso, não são atendidas nos outros níveis de assistência. Ou seja, o cliente faz uso do sistema segundo as suas necessidades, encontrando formas de burlar a organização predefinida dos serviços. Reconhecem, portanto, que as atribuições dos serviços são específicas e hierarquizadas, mas a sua utilização não o é.

Simultaneamente, a descentralização parece caracterizar, de modo especial, o Sistema Único de Saúde em sua dimensão organizacional e administrativa, diferenciando-o do sistema anterior e constituindo uma nova estrutura em que a atenção ao processo saúde-doença se concretizou em um determinado período histórico do país e se prolonga até hoje.

Além disso, os princípios como regionalização e hierarquização estão intimamente relacionados ao processo de descentralização, concretizando-se a partir de sua idealização e implementação. No que se refere à descentralização, esta se configura como sendo tanto política quanto administrativa, observandose a presença transversal na legislação da “direção única em cada esfera”. Ou seja, o sistema se consolida como único em razão da existência de uma direção exclusiva em cada esfera governamental, permitindo que as decisões tenham um determinado fluxo e seguindo uma lógica segundo o grau de complexidade. Essa concepção teórica nasce da idéia de se agir localmente, próximo das demandas e do público-alvo, mas pensar globalmente, tendo uma visão de longo alcance com vistas a um amplo impacto na saúde dos brasileiros (HARTZ; CONTANDRIOPOULOS, 2004).

A própria legislação, contudo, entende a descentralização como um processo que ainda não está completamente implementado, como pode ser inferido deste trecho da Norma Operacional da Assistência à Saúde (Noas de 2001:

Considerando a necessidade de dar continuidade ao processo de descentralização e organização do Sistema Único de Saúde SUS, fortalecido com a implementação da Norma Operacional Básica SUS 01/96, de 05 de novembro de 1996.

Nesse sentido, mais de duas décadas depois da promulgação do SUS, o processo de descentralização continua a ser implementado, provavelmente em razão da complexidade que se apresenta ao gerir um sistema de saúde em um país como o Brasil. Ao mesmo tempo, pode-se observar como a legislação coloca, lado a lado, os termos descentralização e organização como interdependentes e inter-relacionados (TEIXEIRA, 2002).

Sistema de atendimento único e igual de saúde

O SUS é entendido como um sistema universal, orientado por uma política unificada, bem como por uma proposta integrada, sendo esses dois atributos representados como pilares do sistema. Esses atributos são reconhecidos pelos profissionais que atuam no sistema, tendo sido integrados à representação
construída nos dezessete anos de sua implantação.

Observa-se, nas representações profissionais, uma atitude crítica ante a universalização do acesso à saúde, associando a ela as dificuldades de efetivação dos dois princípios apresentados, e também o longo tempo de espera enfrentado pelos clientes para a obtenção dos atendimentos especializados ou de maior complexidade. Nesse aspecto, observa-se nas representações profissionais uma tentativa de definição do que é ou não lícito para o atendimento à saúde.

Quando era INAMPS era tudo junto: tratava para a saúde, era pensão e aposentadoria. Quando passou a ser o SUS, o próprio nome já diz: único. Ele é especifico para a saúde e hoje está a cargo da prefeitura.

O que eu vejo no SUS é o que eu coloquei no início, você pagando ou não o INSS, sei lá como é que chama, tem direito.

O SUS é o SUS. Então, perante a lei, todos têm direito a uma saúde de qualidade e igual, em todos os sentidos. Antigamente cada classe de trabalhadores tinha a sua previdência.

É um regime, tanto do governo estadual, municipal, federal que é abrangido pelo mesmo SUS, o mesmo estilo, o mesmo tipo, todo mundo trabalhando igual e recebendo igual.

O SUS é um projeto muito bonito que emprega o atendimento a toda população, atende a todos os níveis, primário, secundário e terciário, e que deu um atendimento de qualidade, um atendimento igual a toda população, independente de ter algum vínculo.

O SUS para mim tem como propósito assistir totalmente as pessoas, independente de cor, raça e idade. Eu acho que ele se propõe a atender em todo âmbito nacional.

No momento eu não reclamaria de nada não, porque eles mudaram muito para melhor. Agora é de igual para igual. Antes tinha, mas agora não tem, pelo contrário, não tinha atender a primeira vez. O que eu quero falar sobre o SUS é isso, e que seja conscientizado, que se faça mais divulgação para que as pessoas tenham mais consciência de quão importante é o SUS.

O SUS para mim é uma entidade que deveria atender toda a população e a parte mais carente que tem na população também, deveria abranger tudo. Essa parte médica, ambulatorial, todo esse sistema de saúde, o pessoal de nível médio e os mais carentes que procuram mais.

O termo “igual” surgiu nas décadas de 1980 e 1990 em diversas legislações fundamentais à vida da população brasileira (Constituição Federal, constituições estaduais, Lei Orgânica da Saúde, Código Civil e Código Criminal, entre outros). A ênfase na igualdade (e não explicitamente na eqüidade) surgiu como um contramovimento à ditadura militar e à política centralizadora e de concentração de renda até então vigente (VIANA, 1998).

No que tange à política de saúde, os legisladores optaram pela ampliação da participação democrática e da garantia dos direitos de cidadania, mediante conformação de um sistema de saúde com características universalistas, de cunho igualitário, sustentado pela idéia da justiça social (VIANA, 1998).

Nesse contexto, Whitehead (1991, p. 80) considera que a idéia de eqüidade remete

à noção de que todos os indivíduos de uma sociedade devem ter justa oportunidade para desenvolver seu pleno potencial de saúde e, no aspecto prático, ninguém deve estar em desvantagem para alcançá-lo. Conseqüentemente, eqüidade em saúde refere-se à redução das diferenças consideradas desnecessárias, evitáveis e injustas.

Partindo dessa definição de eqüidade, observa-se que a questão central abordada teve a sua construção continuada nas décadas seguintes, tratando da redução ou da eliminação das diferenças que advêm de fatores considerados evitáveis e injustos. Cria-se, desse modo, igual oportunidade em saúde e reduzem-se as diferenças injustas, tanto quanto possível. Neste caso, dois parâmetros estarão sempre em jogo, na tentativa constante de equilíbrio, quais sejam, a justiça social e as desigualdades evitáveis e desnecessárias.

Starfield (2001, p. 53) discute, por sua vez, o conceito apresentado por Whitehead e propõe que a

eqüidade em saúde é a ausência de diferenças sistemáticas em um ou mais aspectos do status de saúde nos grupos ou subgrupos populacionais definidos socialmente, demograficamente ou geograficamente. Eqüidade nos serviços de saúde implica em que não existam diferenças nos serviços onde as necessidades são iguais (eqüidade horizontal), ou que os serviços de saúde estejam onde estão presentes as maiores necessidades (eqüidade vertical).

A categoria analisada mostra o processo de incorporação do conceito de eqüidade pelos profissionais, traduzindo-o atrelado à noção de igualdade, e não de eqüidade como proposto na legislação do SUS.

Lucchese (2003) pontua que a situação social observada na atualidade indica que os investimentos realizados nestas quase duas décadas de implementação do SUS ainda não resultaram em redução substancial das desigualdades em saúde do país. Outros autores ainda referem que, no final da década de 1990, persistem iniqüidades relacionadas, especialmente, a: 1. distribuição espacial da oferta de recursos humanos e de capacidade instalada; 2. acesso e utilização de serviços (públicos e privados); 3. qualidade da atenção recebida; e 4. condições de vida e de saúde da população nas diferentes localidades.

Direito do cidadão e dever do Estado

A presença simbólica da expressão título desta categoria revela a força das abordagens cartesianas da realidade social, qual seja, se alguns têm direitos outros têm deveres para assegurar os direitos dos primeiros. Apesar de afirmado na legislação, a saúde como direito (e não dever) traz uma forma de abordar a saúde com crivo paternalista, como se o Estado pudesse ofertar serviços de saúde aos seus cidadãos sem nenhuma contrapartida destes.

[...] e até sei que é um direito do cidadão com relação ao SUS, e tanto que quando a pessoa tem necessidade de maior informação, procura um posto de saúde, um posto do SUS e vai se informar.

O SUS é o SUS, sistema de saúde, esse que tem como base dar o serviço de saúde a todos aqueles que precisam, aos excluídos, visando melhorias da política de saúde e dar ao cidadão o que é de direito dele.

[...] tem muitos que não sabem que a assistência é gratuita, que é direito de todos, que o SUS é a realidade e a assistência para todos indistintamente.

O SUS é um dever do estado. E os convênios são uma coisa privada, uma instituição privada. Eu acho que não tem nada a ver uma coisa com a outra.

Eu entendo o SUS como sendo uma proposta de um atendimento integrado em nível de saúde, aquela coisa do estado assegurar saúde para todos.

Eu acho que a proposta do SUS foi essa: unificar o atendimento em saúde, proporcionando a quem não tinha direito a nada, passar a ter direito também a uma assistência de saúde.

O SUS é um direito que a pessoa tem, só que não assume, quando a pessoa precisa mesmo, não tem direito. Você se dedica tanto e às vezes quando você precisa não tem.

Para mim, até permite o acesso das pessoas ao sistema de saúde em que ele tenha resolutividade. O SUS foi implantado aqui logo depois da constituição que promulgou a saúde como um direito de todos, depois da Lei 8.080.

Observa-se certa contradição na categoria analisada, na medida em que os conteúdos representacionais se referem a ter direito à saúde, mas nem sempre a poder exercê-lo. Direito à saúde e gratuidade da assistência são conceitos que se sobrepõem, numa referência clara à desconsideração dos recursos públicos como oriundos do pagamento de impostos.

Deve-se considerar que a saúde como direito não implica somente a oferta de atenção básica reduzida a grupos específicos, uma vez que neste caso ele não funciona como uma porta de entrada para outros níveis de atenção à saúde, ou seja, não opera como um filtro para selecionar os casos que requeiram cuidado especializado em outro nível de atenção.

Os desafios colocados para a gestão governamental quando se busca a efetivação do direito à saúde, portanto, envolvem as reconfigurações recentes da relação Estado e sociedade na produção de políticas públicas, particularmente de políticas sociais, e se relacionam: ao alargamento dos padrões de inclusão social; à articulação das questões econômicas, sociais e ambientais no planejamento governamental visando à eqüidade; ao estabelecimento de vínculos mais concretos entre os diferentes atores sociais nos espaços de gestão; à democratização das tarefas de coordenação de interesses no processo decisório; ao fortalecimento de processos orgânicos de negociação (RIBEIRO, 2007).

Da gestão estatal exige-se a atualização de suas funções públicas; a articulação intersetorial e a integração regional das políticas públicas; o aperfeiçoamento dos processos de tomada de decisão e dos sistemas de planejamento; um estilo gerencial adaptativo, criativo e participativo; um novo modo de regulação social. Em Estados Federativos como o brasileiro, tais desafios se tornam ainda mais complexos em virtude da necessidade de coordenação intergovernamental e de equilibrar responsabilidade, regulação e autonomia no desenvolvimento de políticas eqüitativas (RIBEIRO, 2007).

Três ordens de questões podem ser consideradas essenciais para a produção de políticas públicas: a integridade e a dignidade como fundamentos para a organização e regulação das intervenções públicas; o reconhecimento e o respeito à diferença como condição para a realização do direito à saúde; e a territorialização dos problemas e das políticas na produção de respostas às novas realidades (RIBEIRO, 2007).

Observa-se, portanto, um quadro bastante complexo envolvendo o Estado e a sociedade na questão da garantia do direito à saúde, o que reforça a idéia de existência de um ícone expresso nesta categoria, sem que este traduza uma reflexão profissional sobre o tema.

Sistema que não gera os frutos que deveria

A implantação do SUS é representada tanto como um processo perceptível no cotidiano dos usuários, e que resulta em bom funcionamento dos serviços, quanto como algo dissociado da realidade dos serviços e sem impacto no cotidiano dos usuários e dos profissionais. Dessa maneira, o grupo estudado não expressa consenso acerca da implantação do SUS, observando-se referências à sua não-implementação em cidades grandes como o Rio de Janeiro:

O SUS é um projeto que foi criado, ele existe, ele funciona entre aspas, mas ele não gera os frutos que ele deveria gerar. O nosso hospital é estadual, então a verba sempre veio da arrecadação do governo estadual. Tem que manter para destinar a Secretaria de Saúde, e esse orçamento do estado distribuir de lá para cá. A coisa não funciona como deveria funcionar. Tem alguma vantagem você hoje poder se dirigir a qualquer unidade de saúde, independente de ser município, estado, como era antes no INAMPS, mas a proposta real do SUS para mim não foi implantada como deveria ter sido não.

Eu acho que no Brasil todo não se vê o SUS funcionando. Inclusive nós achamos é que, por exemplo, um convênio de saúde deveria até reembolsar o SUS quando a pessoa paga o convênio de saúde.

O SUS é uma proposta boa, se conseguir se estender às instituições públicas do país, principalmente se o Ministério da Saúde conseguir que o SUS seja implementado de fato.

[...] eu viajo os estados, vejo no sul que o SUS é excelente e no norte funciona muito bem. E vai descendo para o sudeste. Aqui no sudeste, no centro-oeste fica meio a desejar.

E eu acho que, na prática, isso não está acontecendo, apesar de que esses repasses de recursos estão dentro da lei do SUS. Mas na prática, eu acho que isso não acontece. Gostaria muito que fosse implantado, eu acho que foram anos e anos de estudo, foram anos e anos de reuniões, de conferências para se deixar sem ser implantado.

Acho que o SUS é um sistema de saúde que era para ter dado certo, a proposta dele era para dar certo, todos os serviços, mas por conta da política de governo que na verdade eu acredito que não tenha interesse que dê certo.

Na verdade tem n coisas que estão fazendo com que o SUS não seja colocado em prática. Eu acho que até mesmo vontade política.

Os profissionais entrevistados fazem menção às dificuldades encontradas para a implementação do SUS, como a municipalização dos serviços, a descentralização dos recursos financeiros, a dependência da vontade política das lideranças locais. Essas dificuldades estão associadas a diversos elementos, entre eles a estrutura dos municípios do Rio de Janeiro, que incorporaram um grande número de serviços federais durante o processo de municipalização da atenção básica, mas também se associam à falta de vontade política, e à variabilidade regional histórica dos processos de constituição de políticas públicas.

Outros dois aspectos participantes dessa representação são a estrutura organizacional e a estrutura financeira de suporte ao SUS. Quanto à estrutura organizacional, ela é referida às diferentes percepções sobre o processo de implantação do SUS, à supervisão do trabalho no seu interior e ao processo de descentralização das ações. Quanto à estrutura de suporte financeiro ao sistema, esta é representada a partir do repasse de recursos do Estado; da fiscalização e supervisão da utilização dos recursos; das condições e exigências para o recebimento de verbas e da autonomia financeira das unidades de saúde. Com relação à ausência da implantação do SUS na política de repasses financeiros do sistema, os sujeitos não conseguem especificar o repasse de verbas em relação ao SUS; a descentralização dos recursos é destacada como algo discreto e que vem se processando na atualidade; no que se refere à autonomia financeira das unidades de saúde, esta é reconhecida como um fato atual, participante da estrutura do SUS (BRASIL, 1997).

 

Conclusões

Os resultados discutidos refletem as principais características associadas ao sistema de saúde brasileiro, tais como o seu caráter legal, o papel do Estado na sua constituição, a relação público-privado, o sistema de descentralização, a unicidade do sistema e a igualdade no acesso, e a sua posição de dever do Estado e de direito dos brasileiros, revelando um conhecimento fragmentado dos princípios que regem o SUS pelo grupo estudado, mas também uma lógica de apropriação do sistema de saúde vivo, construído e reconstruído pelas representações sociais dos grupos que com ele interagem.

A dimensão das atitudes, presente na representação, revela dois posicionamentos distintos: um negativo referido às dificuldades enfrentadas para a implantação do SUS e para a sua execução; e outro positivo relativo aos direitos assegurados pelo novo sistema. Considera-se que a construção de uma representação implica a incorporação de diversos elementos, tais como conhecimentos relativos aos objetivos do SUS, aos seus princípios e à sua dinâmica interna, mas também implica um posicionamento diante dele, aceitando-o ou não. A dimensão das atividades exerce um papel fundamental de atribuir legitimidade aos esforços de consolidação do SUS, tanto em nível político-institucional quanto em nível da participação popular e profissional nesse processo.

O acesso universal às ações e aos serviços foi a categoria definidora do SUS mais presente e mais bem explicitada pelos profissionais, sendo também identificado como o aspecto diferencial mais importante em relação ao modelo assistencial anterior.

Conclui-se que o SUS, ao longo dos dezessete anos de sua implantação, vem sendo objeto de formação de representações sociais nos grupos que interagem com o sistema, entre eles os profissionais de saúde que o identificam como um sistema de atenção à saúde diferente do anterior. Os conteúdos definidores do SUS refletem alguns princípios propostos pelos documentos da constituição desse sistema, o que reflete a incorporação parcial destes. No entanto, essa incorporação não vem se dando segundo a mesma lógica impressa ao sistema, mas a partir de um pensar que se localiza entre a lógica institucionalreificada e o saber do senso comum, incorporando conteúdos pragmáticos e instrumentais ausentes da proposta legal do SUS e também das contribuições recentes dos seus pensadores.

 

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Endereço para correspondência
Denize Cristina de Oliveira
Rua General Ribeiro da Costa, 178, ap. 1201 – Leme
Rio de Janeiro – RJ
CEP 22010-050
E-mail: dcouerj@gmail.com

Tramitação
Recebido em outubro de 2007
Aceito em novembro de 2007

 

 

1 Agências financiadoras: CNPq Proc. 402373/2005-7 e 402367/2005-7; FAPERJ, proc. E-26/171.232/2004 e CNPq Bolsa de Produtividade em Pesquisa.