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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.9 n.2 São Paulo dez. 2007

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A zona muda das representações sociais sobre o portador de HIV/AIDS: elementos normativos e contranormativos do pensamento social

 

The mute zone of the social representations about the person with HIV/AIDS: normative and counternormative elements of the social thinking

 

La zona muda de las representaciones sociales sobre personas con VIH/SIDA: elementos normativos e contra-normativos del pensamiento social

 

 

Denize Cristina de Oliveira; Tadeu Lessa da Costa

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se de um estudo quali-quantitativo, descritivo, tendo por objetivo analisar o conteúdo e a estrutura das representações sociais de enfermeiros acerca da pessoa com HIV/AIDS, considerando seus elementos explicitados e não explicitados (zona muda). Teve por sujeitos 150 enfermeiros de um hospital universitário do Rio de Janeiro. Para a coleta de dados, aplicou-se a técnica de evocações livres e a de substituição. Para análise dos dados, utilizou-se o Quadro de Quatro Casas e comparou-se estatisticamente o conjunto das evocações tradicionais e em situação de substituição, com auxílio do software EVOC. Como elementos provavelmente centrais na representação, em coleta tradicional, emergiram: educação em saúde, proteção profissional e tratamento. Para a substituição, destacaram-se: medo, preconceito e homossexualidade, que consistiram, entre outros, em possíveis elementos de zona muda. Concluiu-se que o método empregado mostrou-se profícuo para um aprofundamento nos estudos de representações sociais do HIV/AIDS.

Palavras-chave: Síndrome da imunodeficiência adquirida, Portador, Representações sociais, EVOC, Enfermagem.


ABSTRACT

This is a quali-quantitative and descriptive study. Its objective is analyze the content and the structure of the social representations of nurses about the person with HIV/AIDS, considering the explicit and masked elements (mute zone). The subjects were 150 nurses of a university hospital in Rio de Janeiro. Free evocations and the technique of substitution were used for the data collection. Data analyze was developed thought the methodology of construction of the Picture of Four Houses and the statistical comparison of the evocations in normal and substitution situation, thought EVOC software. The results showed central elements for the normal situation: health education, professional protection and treatment. For the substitution, were identified: the fear, prejudice and homosexuality, which with others were the probable elements of the mute zone. The method is important to make profound studies of social representations of the HIV/AIDS.

Keywords: Acquired immunodeficiency syndrome, Carrier state, Social representation, EVOC, Nursing.


RESUMEN

Se trata de una investigación cuali-cuantitativa, descriptiva que tuvo como objetivo analizar el contenido y la estructura de las representaciones sociales de enfermeros sobre la persona con VIH/SIDA, con sus elementos explícitos y escondidos (zona muda). Los sujetos fueron 150 enfermeros de un hospital universitario, Rio de Janeiro. Se colectaron los datos con la técnica de evocaciones libres y la técnica de substitución. El análisis de los datos se realizó a través de la construcción del Cuadro de Cuatro Casas y de una comparación estadística entre las evocaciones en situación habitual y substitución, con auxilio del programa EVOC. Los resultados indican como elementos centrales de la representación en recolección habitual: educación en salud, protección profesional y tratamiento. En substitución, se identificó: miedo; prejuicio y homosexualidad, que fueron junto a otras evocaciones los probables elementos de zona muda. Se concluye que el método ha sido relevante para profundizar los estudios sobre las representaciones sociales del VIH/SIDA.

Palabras clave: Síndrome de inmunodeficiencia adquirida, Portador, Representación social, EVOC, Enfermería.


 

 

Introdução

Este estudo vincula-se ao projeto de pesquisa intitulado “Representações e memória profissional da AIDS entre enfermeiras no Brasil: estudo bi-cêntrico Rio de Janeiro (RJ)/Florianópolis (SC)”, desenvolvido por meio de uma parceria entre Brasil e França, respectivamente, por meio do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FENFUERJ) e do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e do Institut National de la Santé et de la Recherche Medicale (Inserm).

Tendo surgido no início da década de 1980, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), causada pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), tornou-se um importante marco da passagem do século XX para o XXI, quando se pensava que as doenças infecto-contagiosas estavam sob o controle da medicina, sendo as devastadoras e incontroláveis epidemias imagens de um passado longínquo (NASCIMENTO, 2005).

Conforme aponta Jodelet (2001), antes que o campo médico trouxesse esclarecimentos acerca da natureza dessa nova doença, os diferentes grupos sociais, apoiados nas informações que dispunham sobre os modos de transmissão e os atingidos por aquela, construíram suas próprias teorias sobre o fenômeno, envolvendo aspectos de cunho biológico e moral.

Assim, diversos autores do campo das representações sociais, como apontam Oliveira et al. (2006), Acioli et al. (2006) e Marques, Tyrrel e Oliveira (2006), interessaram-se pelo estudo da temática em questão. Tais investigações têm contribuído para a identificação de elementos de uma “teoria do senso comum” relacionada às diversas dimensões do HIV/AIDS, desvelando, em contextos e momentos distintos, as diferentes formas de os grupos sociais lidarem com o fenômeno. Neste ponto, é importante salientar que

[...] se desejamos transformar as práticas de saúde, é necessário pensá-las em sua expressão objetiva e subjetiva, uma vez que as estratégias de intervenção em saúde são efetivadas por pessoas, que agem segundo as suas representações do real e também segundo as suas representações do possível. Transformar as ações, portanto, significa transformar as representações que as orientam (OLIVEIRA, 2005, p. 137).

As representações sociais são definidas por Moscovici (1981) como um conjunto de conceitos, proposições e explicações que são construídos no cotidiano, tendo como veículo de sua constituição as comunicações interpessoais. A teoria proposta por Moscovici é considerada uma “grande teoria”, em relação à qual surgiram abordagens complementares e, entre estas, a teoria do núcleo central, com o propósito de torná-la mais heurística para a prática social e para a pesquisa (SÁ, 2002).

Abric (2005), que foi primeiro a propor, em 1976, a teoria do núcleo central ou abordagem estrutural das representações sociais, aponta, em trabalho recente, para a existência de uma região de difícil explicitação das representações sociais, que denominou “zona muda” (zone muette). Esse fenômeno aconteceria, sobretudo, para determinados tipos de objetos mais sensíveis, fortemente marcados por valores e normas sociais (ABRIC, 2005), entre os quais se podem incluir as questões referentes ao HIV/AIDS.

Nesta perspectiva, Flament, Guimelli e Abric (2006) asseveram que os sujeitos selecionariam os aspectos expressáveis da representação de determinados objetos em razão da normatividade que percebem estar em jogo na situação em que se encontram e, então, apresentam aquilo que imaginam ser a “boa resposta” ou o discurso “politicamente correto”. Exatamente, nessas situações existem duas facetas da representação: uma representação explícita, verbalizada pelos sujeitos; e uma segunda parte da representação, não verbalizada ou não expressa pelos sujeitos, a qual consistiria em uma zona muda das representações sociais (ABRIC, 2005).

É importante ressaltar que essa zona muda ou mascarada não consiste na parte inconsciente das representações, ou seja, no recalcado da abordagem psicanalítica. Ela integra a consciência dos indivíduos, entretanto não pode ser expressa por eles, por causa da situação social em que se dá a sua produção (ABRIC, 2005).

De acordo com Guimelli e Deschamps (2000), a zona muda é um subconjunto específico de cognições e de crenças que, mesmo disponíveis, não são expressas pelos sujeitos nas condições normais de produção e, se assim o fossem, poderiam pôr em questão os valores morais ou as normas valorizadas pelo grupo. Assim, a zona muda existe porque em toda situação (em algumas, em especial) há normas sociais, tendo aquela, portanto, caráter contranormativo (ABRIC, 2005).

Outro aspecto que levaria à existência de uma zona muda ou mascarada nas representações sociais seria o que Abric (2005) qualificou como gestão de impressões, a qual consiste na tentativa, por parte dos sujeitos, de gerar uma imagem positiva de si. Assim, a desiderabilidade social poderia ser um dos fundamentos para a existência de facetas mascaradas na expressão de determinadas representações sociais.

Remetendo, agora, à questão da abordagem estrutural, propriamente dita, Abric (2005) aponta para o fato de que é importante saber o que está escondido, pois, se são os elementos periféricos, não se trata de algo tão grave. Porém, se são elementos do núcleo central, todo o significado da representação encontrarse- á mascarado, ou seja, o não dito que é essencial.

Tendo em vista, portanto, o HIV/AIDS, pensa-se que existe uma grande probabilidade da existência de uma zona muda nas representações sociais coletadas junto aos diferentes grupos sociais, haja vista constituir um objeto sensível, dada a relação ensejada entre os campos da doença e do comportamento sexual, bem como o estigma e a discriminação em relação às pessoas que vivem com a doença.

Assim, considerando a atuação dos profissionais enfermeiros em atividades de prevenção da transmissão do HIV/AIDS, bem como de atendimento a pessoas que convivem com este, definiu-se como objetivos para a presente pesquisa: identificar os elementos constituintes e sua estruturação nas representações sociais acerca da pessoa soropositiva ao HIV ou com AIDS entre enfermeiros; verificar a existência de elementos de uma zona muda nas representações sociais de enfermeiros acerca da pessoa soropositiva ao HIV ou com AIDS; discutir as implicações da existência de uma zona muda nas representações sociais de enfermeiros acerca da pessoa que vive com o HIV/AIDS para as suas práticas profissionais.

A efetivação deste estudo torna-se relevante pela necessidade de compreensão dos fenômenos relacionados ao surgimento da epidemia do HIV/AIDS, considerando as suas dimensões psicossociais, haja vista ter sido esta a primeira doença em que a história médica e a social se desenvolveram juntas. Esse aspecto favoreceu, então, a eclosão de uma concepção da doença de tipo moral e social e outra de cunho biológico, além do seu valor simbólico, que resgata elementos de saberes enterrados na memória social (JODELET, 2001).

Além disso, pode-se afirmar que, dado o caráter recente da construção da proposta e da investigação em zona muda das representações sociais, existem poucos trabalhos a respeito, sobretudo no Brasil, bem como com o foco voltado para a dimensão psicossocial do HIV/AIDS. Desse modo, pretende-se contribuir para as reflexões e o subsídio de estudos referentes à temática em tela.

 

Método

Trata-se de um estudo quantitativo-descritivo, pautado na Abordagem Estrutural da Teoria das Representações Sociais, tal qual apresentada por Abric (1994; 1998; 2003a, 2003b), Sá (1996; 2002) e Oliveira (1996; 2001).

Os sujeitos da pesquisa foram 150 enfermeiros pertencentes ao quadro permanente de um hospital universitário localizado no município do Rio de Janeiro, correspondendo a 83,3% do universo dessa categoria de profissionais atuantes em tal instituição, no período da realização do estudo. A inclusão daqueles se deu de acordo com a presença no local de trabalho nos dias delimitados para a coleta de dados.

Os campos de coleta de dados foram 47 setores de um hospital universitário situado no município do Rio de Janeiro. Essa instituição tem por características: ser de grande porte; possuir atendimento nas variadas especialidades clínicas e cirúrgicas e de alta complexidade; assistência na área de saúde maternoinfantil, saúde mental e saúde do adolescente; dispor de um serviço de acompanhamento ambulatorial nas referidas especialidades; contar com um Banco de Sangue; e constituir-se, também, em um Serviço de Assistência Especializada (SAE) em HIV/AIDS.

A coleta de dados, ocorrida no período entre 5 de janeiro e 15 de fevereiro de 2007, se deu por meio da técnica de evocações livres e da técnica de substituição.

A aplicação da técnica de evocações livres, conforme sugerem Oliveira et al. (2006; 2007), consistiu em demandar aos sujeitos a produção das cinco primeiras palavras ou expressões que lhes viessem imediatamente à mente ao pensar no termo indutor “portador do HIV/AIDS” e, após, a hierarquização destas segundo a ordem de importância. Esta aplicação tradicional da técnica configurou o contexto normativo de coleta de dados da pesquisa.

Considerando que as normas sociais em jogo em determinado contexto podem levar ao mascaramento de certas facetas contranormativas na explicitação da representação social acerca de objetos mais sensíveis, Abric (2005) aponta como uma das estratégias metodológicas para o desvelamento destas últimas a técnica de substituição.

A técnica de substituição objetiva a diminuição das pressões normativas sobre o grupo estudado, por meio do deslocamento dos sujeitos do contexto marcado pela normatividade, permitindo, assim, uma redução da implicação destes em relação ao discurso produzido. Desse modo, conforme Abric (2005), seria possível o desvelamento de possíveis aspectos mascarados de uma dada representação social.

O referido deslocamento dos sujeitos das pressões normativas em jogo no contexto de explicitação da representação social se daria, portanto, por meio da solicitação aos depoentes para que, após falarem por si mesmos, o fizessem, também, como se fossem outros sujeitos, ao que se denominou de contexto contranormativo (ABRIC, 2005). Os outros, em nome dos quais os sujeitos deveriam se expressar acerca do objeto investigado, foram delimitados como as pessoas em geral. Assim, após a evocação habitual descrita, foi demandada aos sujeitos a produção das cinco primeiras palavras ou expressões que pensavam que viriam imediatamente à mente das pessoas em geral ao pensarem no termo “portador do HIV/AIDS”, procedendo, após, a uma hierarquização daqueles conforme, igualmente, acreditavam que o faria este último grupo.

Os sujeitos registravam as suas enunciações em instrumento apropriado, a partir dos quais se procedeu à construção de dois corpora de análise, um referente à condição tradicional ou normativa de coleta de dados e outro concernente à situação de substituição ou contranormativa de evocações. A análise do material coletado foi realizada com o auxílio do software desenvolvido por Vergès, denominado EVOC (Ensemble de programmes permettant l’analyse des evocations) – versão 2003. Este recurso permite a organização das evocações produzidas de acordo com as suas freqüências e com a ordem de evocação ou, como se adota no presente estudo, de importância, possibilitada pela hierarquização dos termos enunciados pelos sujeitos.

De acordo com Oliveira (2005) e Sá (2002), o cruzamento entre estes dois critérios (freqüência e hierarquização das evocações) possibilita a formação de um Quadro de Quatro Casas ou quadrantes, que expressa o conteúdo e a estrutura das representações sociais para dado objeto de estudo. Assim, foi possível a construção de um quadro para cada um dos corpora de análise – em situação normal e em situação de substituição – passíveis de serem comparados por meio de uma análise qualitativa.

A interpretação dos dados da análise das evocações livres, com a construção dos Quadros de Quatro Casas, pautou-se nos pressupostos teóricos dos autores da abordagem estrutural das representações sociais, como Abric (2003a, 2003b), Sá (2002) e Oliveira (2005).

Deve-se ressaltar igualmente que, para a configuração do Quadro de Quatro Casas, além dos elementos constituintes da representação em questão, de suas freqüências e ordens médias de importância (OMI), foi possível inserir os resultados do teste estatístico t de Student entre os corpora dos dois contextos normativos, bem como os sentidos de positividade ou negatividade relativos à atitude (respectivamente, com os símbolos + ou –) para os termos evocados pelos sujeitos.

Este último aspecto, referente à avaliação da atitude relativa aos termos evocados, foi obtido em um segundo momento, após a construção dos Quadros de Quatro Casas, com um questionário aplicado em uma amostra de 30 (20%) dos 150 enfermeiros iniciais, contendo os elementos com maior destaque na representação nas duas situações de coleta, segundo os critérios de freqüência e ordem de importância. Aqueles termos não incluídos neste instrumento foram classificados pelos próprios pesquisadores, sendo identificados na descrição dos resultados.

É relevante ressaltar que o EVOC 2003 realiza, também, a comparação estatística por meio do Teste t de Student entre as produções semânticas de subgrupos de sujeitos ou subpopulações. Utilizando essa ferramenta, foi realizada a comparação entre as evocações dos dois subcorpora – em situação normal e em situação de substituição.

No que se refere aos aspectos éticos, a participação dos sujeitos no estudo se deu conforme a Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), tendo sido o projeto de pesquisa previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o Protocolo nº 1.650-CEP/HUPE e os sujeitos esclarecidos em relação ao estudo, aos seus autores e à instituição de vinculação, com a disponibilização do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

Discussão de resultados

Estrutura da representação social do “portador do HIV/AIDS” em contexto normativo de coleta de dados

Para a situação habitual de aplicação da técnica de evocações livres, em que os sujeitos produziam cinco palavras ou expressões ao termo indutor “portador do HIV/AIDS” por si mesmos, constatou-se um total de 747 evocações, entre as quais eram 174 diferentes. A média das ordens médias de importância calculada pelo EVOC 2003 foi aproximada para 2,9.

Com base na lei de Zpif, como sugerem Oliveira (2005), foi identificada a freqüência mínima 11, sendo descartados na composição do Quadro de Quatro Casas os elementos enunciados um número de vezes menor que aquela pelos sujeitos. Feito isso, calculou-se o valor da freqüência média de evocações, cujo resultado foi aproximado para 18. Assim, tornou-se possível a construção do Quadro de Quatro Casas para a situação normal, conforme apresentado na Tabela 1.

Tabela 1. Quadro de Quatro Casas ao termo indutor “portador do HIV/AIDS” entre enfermeiros de um hospital universitário – situação normal. Rio de Janeiro, 2007

 

 

De acordo com Abric (2003b), Sá (2002) e Oliveira (2005), os elementos presentes no quadrante superior esquerdo do Quadro de Quatro Casas consistem em cognições provavelmente centrais para a representação social estudada, sendo mais freqüentes e mais importantes entre as evocações. Conforme pode ser observado na Tabela 1, as cognições com características centrais foram cuidado-precaução-profissional, referindo-se à proteção do profissional diante da exposição à infecção pelo HIV no trabalho, educação-saúde, em relação a práticas de educação em saúde e tratamento.

Neste ponto, faz-se necessário salientar que o núcleo central constitui a base comum e consensual de uma representação social, aquela que resulta da memória coletiva e do sistema de normas ao qual certo grupo se refere, constituindo-se em prescrições absolutas. Possui três funções, quais sejam: geradora, permitindo conferir significado a uma dada representação social; organizadora, determinando a organização interna da representação; e estabilizadora, pois confere significativa estabilidade à representação social, preservando o fundamento dos modos de vida e a identidade e permanência de um grupo social (ABRIC, 2003a).

Segundo Abric (2003a), podem-se classificar os elementos do núcleo central em dois tipos: funcionais e normativos. Estes últimos seriam diretamente originados do sistema de valores dos indivíduos, consistindo em uma dimensão fundamentalmente social do núcleo. Por sua vez, os primeiros são associados às características descritivas e à inscrição do objeto nas práticas sociais ou operatórias, determinando as condutas diante do objeto. Isto posto, pode-se dizer que os elementos identificados por meio das evocações livres e composição do Quadro de Quatro Casas, como provavelmente centrais neste estudo, têm caráter, sobretudo, funcional, determinando as condutas dos enfermeiros em relação à pessoa que vive com HIV/AIDS, envolvendo a autoproteção no trabalho, as orientações e o tratamento.

O elemento com maior destaque entre aqueles provavelmente centrais refere-se à educação em saúde, com uma freqüência de evocação de 25 e OMI de 2,24. Sob essa designação, foram homogeneizadas as palavras ou expressões que apontavam para atividades educativas profissionais em torno da questão do HIV/AIDS, relacionadas tanto às pessoas que convivem com a doença quanto a outros trabalhadores de saúde.

No campo do HIV/AIDS, a participação do enfermeiro no processo educativo é destacada em múltiplas facetas, abarcando: a prevenção da ocorrência da infecção pelo HIV; a atuação nas orientações às pessoas que vivem com a doença, considerando sua adesão à terapia anti-retroviral, sua sexualidade e relações familiares; nas intervenções junto à equipe de enfermagem, no que diz respeito às relações de cuidado e à utilização de equipamentos de proteção individual; entre outros (OLIVEIRA et al., 2006; ACIOLI et al., 2006).

O segundo elemento a se destacar na zona do núcleo central foi cuidado-precaução-profissional, referente à adoção de medidas de proteção individual e coletiva no trabalho e, tendo em vista o termo indutor em questão, no cuidar de pessoas com HIV/AIDS. Sua freqüência foi de 20 e ordem média de importância de 2,70.

A presença deste elemento em destaque na representação social remete ao fato de que o surgimento da AIDS, no início da década de 1980, acerca da qual pouco se conhecia, gerou uma série de repercussões nos serviços de saúde, em que se negava o atendimento ou observava-se a utilização de diversos recursos para lidar com clientes com AIDS, como capotes, luvas, máscaras, gorros, entre outros. Tais instrumentos eram relacionados, sobretudo, à proteção do profissional (GIAMI, 1997).

Dessa forma, em pesquisa acerca das alterações trazidas pelo HIV/AIDS ao trabalho de enfermagem, em hospital público de ensino de São Paulo, os sujeitos referiram, como principais, a incorporação de medidas de proteção individual e coletiva no atendimento aos clientes, em diversas circunstâncias (GIR et al., 2000).

Dada a presença deste elemento na zona do núcleo central da representação social em tela, é importante salientar que a adoção das medidas de proteção individual e coletiva no trabalho em saúde tem se configurado como um desafio para a enfermagem. Conforme Gir et al. (2004), há uma aceitação teórica das normas e orientações de biossegurança, porém sua operacionalização, freqüentemente, não permeia as práticas diárias, mostrando-se de modo descontínuo e, até, contraditório.

Finalmente, outro elemento que compôs a zona do núcleo central da representação social do portador do HIV/AIDS para os enfermeiros foi o tratamento, com freqüência de 18 e ordem média de importância de 2,44. Pode-se dizer que a presença dessa cognição, provavelmente, sofreu influência dos avanços no desenvolvimento de medicações anti-retrovirais, que teve como marco a apresentação da Terapia Antiretroviral Altamente Ativa (HAART), em 1996, na XI Conferência Internacional de AIDS, quando alguns pesquisadores declararam, inclusive, acreditar na cura da doença pelo tratamento precoce com uma combinação tríplice de drogas (NASCIMENTO, 2005).

De acordo com Nascimento (2005), houve ampla divulgação da descoberta da nova terapia antiretroviral, também denominada coquetel, gerando um clima geral de otimismo. O Brasil foi, então, o primeiro país a aprovar uma legislação específica, a Lei nº 9.313/96, garantindo a distribuição universal e gratuita da HAART para as pessoas que vivem com HIV/AIDS. A introdução dessa terapia permitiu uma redução significativa da mortalidade por AIDS, bem como um aumento no tempo de vida das pessoas acometidas pela doença, culminando com sua classificação como uma doença com características cada vez mais próximas da cronicidade (SCHAURICH; COELHO; MOTTA, 2006).

Assim, a presença da cognição tratamento aponta, também, para a possibilidade de um processo de mudança no contexto das representações sociais da AIDS, como sugeriram Camargo (2000), Ragon (2005) e Oliveira et al. (2007), as quais se encontravam, no início da epidemia, fortemente, ligadas à idéia de morte.

No quadrante inferior esquerdo, encontram-se as cognições ajuda, controle da doença, esperança, família, medicações, prevenção e solidariedade (Tabela 1). Os elementos desta casa integram a chamada zona de contraste, sendo enunciados por menor quantitativo de sujeitos, os quais, por sua vez, referem-nos como muito importantes (ABRIC, 2003b).

Primeiramente, cabe ressaltar que o termo prevenção foi considerado o mais importante na representação social do portador do HIV/AIDS, para o grupo estudado, com uma OMI de 2,18. Assim, consiste em um conhecimento e uma conduta diante da possibilidade de transmissão do vírus causador da doença, reforçando a dimensão das atividades de educação em saúde, identificada como provável elemento central.

Em reforço à cognição provavelmente central tratamento, encontraram-se controle da doença e medicações. Pode-se dizer que esses aspectos apontam, fundamentalmente, para uma percepção da necessidade de ações que garantam o acesso aos recursos de cuidados em saúde para as pessoas que vivem com HIV/AIDS.

Em relação às demais cognições presentes na zona de contraste, a saber, ajuda, esperança, família e solidariedade, parecem apontar para a existência de um subgrupo com uma representação distinta, marcada por um discurso e atitude mais positiva acerca das pessoas que vivem com HIV/AIDS, com um caráter mais humanístico. Sugerem, também, uma visão mais complexa do processo saúde-doença, envolvendo a subjetividade e a percepção da necessidade de uma rede social de apoio para aqueles que convivem com a doença.

No quadrante superior direito do Quadro de Quatro Casas, foram identificados os elementos discriminação, efeitos-AIDS, medo, preconceito e sofrimento. Conforme Abric (2003b), as cognições presentes nessa casa constituem a primeira periferia da representação social, a qual abarca os componentes periféricos considerados mais relevantes, possuindo maiores freqüências de evocação, mas, menor importância segundo os depoentes.

No quadrante inferior direito do Quadro de Quatro Casas, encontram-se os termos carinho, doença, morte e tristeza. De acordo com Abric (2003b) e Oliveira (2005), esses elementos configuram a segunda periferia da representação social em questão, sendo pouco freqüentes e definidos como menos importantes pelos sujeitos da pesquisa.

Nessa perspectiva, o preconceito e a discriminação parecem refletir o contexto social em que se inserem os sujeitos, bem como o desconhecimento e as falsas crenças sobre o HIV/AIDS e as atitudes observadas diante das pessoas que vivem com a doença.

A palavra preconceito corresponde ao que Mann denominou, em 1987, como a terceira epidemia, ou seja, a epidemia de significados, com efeitos tão ou mais deletérios e sinérgicos aos da epidemia do HIV/AIDS, propriamente dita, como a estigmatização e a discriminação (PARKER; AGGLETON, 2006).

Esse aspecto pode relacionar-se, também, ao medo e ao sofrimento, observados na primeira periferia. Dessa forma, a estigmatização e a discriminação podem gerar sofrimento para as pessoas com HIV/AIDS e, a percepção deste, uma atitude de medo de adquirir a doença. O medo, também, pode relacionar-se à prática profissional dos sujeitos da pesquisa, dada a possibilidade de ocorrência de acidentes envolvendo fluidos orgânicos no trabalho.

Além disso, associa-se aos referidos aspectos o elemento efeitos da AIDS, abarcando as alterações físicas provocadas pela imunodepressão, a idéia da morte suscitada pela convivência com a doença AIDS, que, por sua vez, remetem ao sentimento de tristeza, estas três últimas cognições presentes na segunda periferia do Quadro de Quatro Casas.

Estrutura da representação social do “portador do HIV/AIDS” em contexto contra-normativo de coleta de dados

Em situação de substituição, os sujeitos evocaram 746 termos, sendo 115 diferentes. A freqüência mínima para a situação de substituição foi 11, a partir do que se tornou possível a identificação da freqüência média, com resultado aproximado para 28. É interessante, neste ponto, outrossim, notar que esse valor é significativamente superior àquele encontrado para a situação normal de coleta de dados, por causa de uma maior dispersão em seu corpus. A média das ordens médias de importância foi aproximada para 2,9. Uma vez definidos os parâmetros mencionados, foi possível a construção do Quadro de Quatro Casas para a situação de substituição (Tabela 2).

Tabela 2. Quadro de Quatro Casas ao termo indutor “portador do HIV/AIDS” entre enfermeiros de um hospital universitário – situação de substituição. Rio de Janeiro, 2007

 

 

No quadrante superior esquerdo, observam-se as cognições homossexualidade, medo e preconceito, que consistem em termos com caráter mais normativo, originado do sistema de valores dos indivíduos, expressando uma dimensão fundamentalmente social, pois ligam-se à historia e à ideologia do grupo. Segundo Abric (2003a), tal tipo de elementos determina os julgamentos e as tomadas de posição relativas ao objeto, neste caso, a pessoa com HIV/AIDS.

O termo provavelmente central com maior destaque foi medo, abarcando um total de 83 evocações, tendo sido atribuída uma ordem média de importância de 2,048. Consiste em uma cognição mais carregada afetivamente, associada a diversas situações, perpassando pelo medo da doença, de sua aquisição, da morte até o receio do contato com as pessoas com HIV/AIDS.

De acordo com Sontag (2007), as doenças que causam mais medo são as consideradas não apenas letais, mas também, desumanizadoras, com uma associação aos seus portadores de alterações físicas e comportamentais peculiares, no caso da AIDS, considerados desviantes em relação ao sexo ou à drogadição, por exemplo. Além disso, destaca-se a ancoragem da AIDS na peste, há muito utilizada como metáfora para os piores males coletivos, possibilitando uma moralização da doença, por meio de uma atmosfera de sua generalização.

Esse aspecto, por sua vez, relaciona-se à cognição preconceito, evocada 61 vezes e com uma OMI de 2,148. A AIDS foi, desde o seu início, representada socialmente como uma doença fatal, que atinge determinados grupos da sociedade, caracterizados como diferentes daqueles de pertencimento dos sujeitos. Assim, cada cultura erigiu suas imagens sobre culpados e vítimas, considerando sua história e os grupos estigmatizados, anteriormente, mesmo, ao surgimento do fenômeno em questão (JOFFE, 2003).

O grupo mais fortemente associado ao desvio moral e à culpa pela doença refere-se ao dos homossexuais masculinos, cuja presença se deu tanto no universo reificado, na ciência médica, quanto no consensual, na sociedade em geral (NASCIMENTO, 2005). A alusão ao referido grupo constitui, portanto, a terceira cognição identificada no provável núcleo central da situação de substituição, com uma freqüência de 30 e OMI de importância de 2,40. Esse elemento parece representar uma imagem ou estereótipo dos mais suscetíveis ou culpados pela doença.

É interessante destacar, como o fez Terto Jr. (2002), que, mesmo antes da emergência do HIV/AIDS, existiam diversos preconceitos associados à homossexualidade, seja no domínio da moral religiosa, seja no campo discursivo da ciência e da saúde. O advento da AIDS, no início da década de 1980, tornou complexa tal interação e serviu para o recrudescimento de preconceitos contra os homossexuais, transformando-se a própria homossexualidade masculina em sinônimo da doença em questão.

Atualmente, a AIDS persiste como um grave problema no cotidiano dos homossexuais masculinos, pois as representações sociais que apresentavam esses sujeitos, ora como vítimas, ora como culpados pela doença, ainda perduram. Como conseqüências, tais indivíduos continuam a sofrer estigma e discriminação decorrentes da lógica inicial de grupo de risco. Além disso, a homofobia, ainda presente nos serviços de saúde, consiste em um obstáculo para o acesso a estes, bem como, freqüentemente, para um tratamento adequado aos agravos (TERTO JR., 2002). Paralelamente a isso, devem ser consideradas as repercussões sobre a prevenção da transmissão do agravo, ainda visto como próxima do outro, diminuindo a adesão à utilização de métodos de proteção.

O quadrante inferior esquerdo, correspondente à zona de contraste, é composto pelos elementos contaminação, contágio, prática sexual e doença.

Assim, as evocações relacionadas à contaminação parecem refletir a dimensão de informações ou conhecimentos acerca da transmissão do agravo em foco, e, o contágio, por sua vez, remete à ligação com o que Jodelet (1998) classificara como “falsas crenças”.

Jodelet (1998) salienta a imprecisão do emprego do termo contágio, inclusive na literatura científica, pois longe de limitar-se ao contato, propriamente dito, inclui a transmissão por vias aéreas e, em conseqüência, pela proximidade física, o que assemelharia a AIDS a diversos tipos de infecções. Mesmo entre sujeitos com bom nível de informação poderiam operar “falsas crenças”, em razão de sua condicionalidade. Esta última relaciona-se aos aspectos de facilitação, mais ou menos pertinentes ou imaginários, podendo apoiar-se, ainda, em informações difundidas por canais oficiais. A sua presença se faz sentir, por exemplo: no medo da doação de sangue e dos cuidados dentários; e no receio da transmissão do vírus pela saliva, dada a possibilidade de sangramento.

O sentido trazido por tais elementos parece reforçar, de modo mais direto, a atribuição do medo e do preconceito presentes como prováveis elementos centrais na situação de substituição.

Em relação à prática sexual, pode representar um conhecimento acerca da transmissibilidade do HIV, porém reflete também uma seletividade na apropriação da informação, já que existem outros modos de infecção, como de mãe para o filho, na gestação, parto ou amamentação e pelo sangue.

Nessa perspectiva, deve-se salientar o papel que, desde o início, a sexualidade desempenhou na formação do imaginário social acerca da AIDS, sendo os primeiros casos identificados e divulgados nos meios médicos e na mídia em geral, de homossexuais, numa explicitação da ligação entre a doença e o comportamento sexual (GALVÃO, 2000). Dessa forma, a cognição prática sexual também parece reforçar a conotação trazida pela cognição homossexualidade, bem como relacionar a pessoa com HIV/AIDS aos seus comportamentos sexuais.

O elemento doença refere-se à patologia em si, sua gravidade e a concepção do portador do HIV/AIDS como doente, remetendo à lógica de um discurso mais funcional, com caráter biomédico.

No quadrante superior direito, foram identificados os termos discriminação, morte e piedade. O primeiro pode estar relacionado às cognições preconceito, medo e homossexualidade, bem como às evocações contaminação, contágio e prática sexual, consistindo em práticas sociais existentes na sociedade diante da AIDS e seus portadores.

A morte pode associar-se à discriminação, configurando o que Herbert Daniel denominou morte social (PARKER; AGGLETON, 2006), ou a uma conseqüência da doença percebida pelos sujeitos, remetendo à concepção da AIDS como doença mortal. No caso deste estudo, a pessoa com HIV/AIDS conviveria com a idéia presente da morte.

A piedade parece corresponder a uma cognição mais afetivamente carregada, também, com caráter que se pode considerar negativo, remetendo aos aspectos anteriormente destacados, como o medo de contaminação das pessoas e de contato, em razão do preconceito e da discriminação, a ligação com comportamentos desviantes e com a morte.

Na segunda periferia da representação, constataram-se os elementos afastamento, desinformação, isolamento, promiscuidade, rejeição, sofrimento e uso de drogas. Faz-se mister salientar que o afastamento e a rejeição envolvem um movimento de distanciamento da sociedade sofrido pelas pessoas com HIV/AIDS, enquanto alguns sujeitos expressaram um sentido inverso, o do isolamento, relacionado à indisposição daquelas para a interação social.

A promiscuidade parece intrinsecamente ligada às cognições prática sexual e homossexualidade, podendo constituir também mais uma faceta de explicitação do preconceito e da discriminação. Além disso, surgiu uma associação, ainda que com menor saliência, da pessoa com HIV/AIDS à desinformação e à drogadição, um elemento importante na trajetória de construção do imaginário social acerca da doença e dos seus atingidos (GALVÃO, 2000; MARQUES; OLIVEIRA; FRANCISCO, 2003; NASCIMENTO, 2005).

Inicialmente, pode-se dizer que os quadrantes superiores esquerdos dos dois Quadros de Quatro Casas mostraram-se, sobremaneira, distintos, com a presença, na situação normal, dos elementos cuidado-proteção- profissional, educação em saúde e tratamento e, na situação de substituição, com homossexualidade, medo e preconceito. Assim, a primeira condição é marcada pela descrição e funcionalidade e, a segunda, permeada pela normatividade.

Tal qual afirmam Abric (2003a) e Sá (2002), duas representações podem ser consideradas diferentes se os seus sistemas centrais assim se configurarem. Com base nesse pressuposto, os achados das duas situações parecem apontar para representações com significados diversos, sendo a primeira ligada à prática profissional de autoproteção e às pessoas com HIV/AIDS como sujeitos que necessitam de orientações em saúde e tratamento, e a segunda associada ao medo e ao preconceito em relação à doença e a seus portadores, relacionados, inclusive, com práticas sexuais definidas socialmente como desviantes.

Considerando a comparação estatística realizada pelo EVOC 2003, constatou-se como elementos mais associados à situação normativa, com seus respectivos valores de t: cuidado-precaução-profissional (t = 2,04), tratamento (t = 1,96), esperança (t = 1,88), medicações (t = 2,06), e sofrimento (t = 2,71). Para a situação de substituição, os termos mais relacionados foram: medo (t = 5,46), preconceito (t = 2,31), prática sexual (t = 1,80), morte (t = 3,64), piedade (t = 4,99) e desinformação (t = 2,41). É possível notar, portanto, como na distribuição pelos Quadros de Quatro Casas, uma vinculação de elementos com uma visão mais positiva ou biomédica sobre a convivência com HIV/AIDS na situação tradicional e a ligação de aspectos mais negativos e estereotipados à situação de substituição ou contranormativa.

Cabe salientar que outros termos não apontados na comparação estatística apresentaram diferenças significativas de aparição entre as duas situações. As enunciações homossexualidade, contaminação, promiscuidade, afastamento e isolamento foram evocadas, respectivamente, na condição de substituição, 30, 25, 27, 24 e 17 vezes, enquanto na tradicional, apenas, 4 vezes para os três primeiros e 2 para os demais. Do mesmo modo, as cognições educação em saúde e efeitos da AIDS tiveram freqüência de 25 e 24, na situação habitual de coleta e de 1 e 4, na mesma ordem, na situação contranormativa. Assim, observa-se o mesmo padrão de distribuição evidenciado pelo teste estatístico t de Student, com aspectos mais positivos ou descritivos na situação normal e aqueles mais negativos ou ligados aos julgamentos, valores e estereótipos na situação de substituição.

Em relação à avaliação das atitudes, constatou-se que os sujeitos consideraram, predominantemente, as cognições com características centrais para a situação normal como positivas e aquelas da situação de substituição como negativas. Na zona de contraste, que pode representar a centralidade para subgrupos também se evidenciou distribuição semelhante, com atitudes positivas na condição habitual de coleta e negativas na substituição, tendo sido, com exceção de prática sexual, nesta última situação, a avaliação inferida pelos pesquisadores. A primeira e a segunda periferia, com menor importância na representação, demonstraram caráter negativo em ambas as situações, com apenas o elemento carinho como positivo na coleta normal.

Como ocorrera nos estudos de Guimelli e Deschamps (2000), em estudo sobre a representação social acerca dos ciganos, foi possível identificar, na presente pesquisa, que o número total de evocações nas duas situações de coleta foi semelhante. Além disso, como descrito anteriormente, a maior parte dos termos encontrava-se presente nas duas situações, porém aqueles com conotação mais negativa ou contranormativa em relação ao objeto emergiram com maiores freqüências e importância quando os sujeitos falavam em nome das “pessoas em geral”, como medo, preconceito, homossexualidade, prática sexual, contaminação, contágio, promiscuidade, afastamento, rejeição, isolamento, uso de drogas e morte.

Assim, encontra-se semelhança, também, com os resultados de Deschamps e Guimelli (2004), sobre a representação social da insegurança entre franceses, em que se evidenciou, em situação normal, uma representação com caráter mais descritivo, voltada para emoções e sentimentos e, no contexto de substituição, com uma configuração estigmatizante, relacionada às suas causas (desemprego, drogas e periferia) e grupos percebidos como responsáveis por aquele problema (como estrangeiros e jovens).

Nesta pesquisa, em condição normativa, pôde-se identificar a configuração de uma representação, igualmente, com caráter mais descritivo, focalizando atividades profissionais e atitudes mais positivas em um subgrupo, como ajuda, família, solidariedade e esperança. Na condição de substituição, há o apontamento de possíveis causas para o contágio ou a contaminação, como a prática sexual, a promiscuidade e a desinformação, alguns “culpados”, como homossexuais, de modo mais destacado, e os usuários de drogas, com menor ênfase, bem como conseqüências, como o afastamento, rejeição, isolamento e discriminação, em razão do medo e preconceito, podendo gerar um sentimento de piedade.

A explicação para esses resultados pode residir, como afirmam Guimelli e Deschamps (2000) e Abric (2005), na desiderabilidade social, a qual consistiria na tentativa consciente de uma apresentação mais positiva de si por parte dos depoentes, levando-os ao velamento de julgamentos negativos ou contranormativos em relação ao objeto em tela.

Outra possibilidade interpretativa relaciona-se a um efeito de transparência representacional, o qual consiste, segundo Abric (2005), em uma limitação da técnica de substituição. Tal efeito corresponderia à expressão, na substituição, de elementos que, de fato, os sujeitos pensam ser integrantes do pensamento de outro grupo, não a faceta escondida de suas representações. Entretanto, pensa-se, tal qual Guimelli e Deschamps (2000), em seu estudo sobre as representações sociais sobre ciganos, que a hipótese de ocorrência de uma zona muda é mais provável, considerando o conjunto dos dados, bem como as pressões normativas em jogo no contexto de coleta de dados.

Neste sentido, conforme Flament, Guimelli e Abric (2006), diversos autores têm verificado, em um quadro de influência social, a ação de uma norma de “não-discriminação”, conduzindo à autocensura de discursos de caráter xenófobo, racista, homofóbico, sexista e outros igualmente estigmatizantes, como nesta pesquisa, em relação ao HIV/AIDS.

Neste ponto, parece pertinente estabelecer um paralelo com o pensamento de Flament (2001), quando este discute sobre a influência dos aspectos normativos na expressão de uma representação social. Para o referido autor, a palavra “norma” é freqüentemente utilizada em psicologia social sem uma definição precisa e, sobretudo, sem que se prove ser aquilo declarado como “normativo” efetivamente “normativo”. Afirma, então, que encontrou uma pista para fazê-lo nos trabalhos de Jellison e Green, os quais buscavam relacionar a norma da internalidade às normas sociais. Para tanto, pedia-se aos sujeitos que respondessem a um questionário de modo tradicional, como se fossem “bem-vistos” e “malvistos”, obtendo um resultado de oposição entre as respostas, de acordo com a intenção de ser aprovado (bem-visto) ou reprovado (malvisto) por uma autoridade pertinente.

Assim, a hipótese sobre a ocorrência de efeito de zona muda nesta pesquisa é corroborada, também, pela avaliação realizada pelos sujeitos sobre as atitudes ensejadas nos termos evocados, presentes na zona do núcleo central das duas situações normativas. Os resultados desse procedimento mostraram que a maior parte dos sujeitos expressou a consciência de um efeito positivo produzido pelos elementos proteção do profissional, educação em saúde e tratamento e da geração de um efeito negativo em homossexualidade, medo e preconceito, além da associação da pessoa com HIV/AIDS ao seu comportamento ou prática sexual. Ou seja, com a possibilidade da existência de uma modulação ou racionalização das respostas para um gerenciamento positivo da imagem de si, sobretudo no caso de enfermeiros, cuja normatividade profissional aponta para a assistência, sem nenhuma forma de julgamento moral ou discriminação, a todas as pessoas.

Pensa-se, outrossim, que possam ter contribuído para a ocorrência de um efeito de zona muda na representação social estudada: o compartilhamento de valores profissionais entre o pesquisador, que se apresentou como enfermeiro, e os depoentes, como discute Abric (2005), com base em resultados de estudo sobre a representação social de magrebinos, na França; a vinculação destes últimos com uma instituição universitária, que valoriza ensino, pesquisa e assistência, nas dependências da qual, inclusive, se deu a coleta dos dados; e a apresentação do pesquisador como aluno de mestrado em enfermagem da mesma universidade de pertencimento do hospital cenário da investigação, com o desenvolvimento de um estudo de cunho psicossocial acerca da temática do HIV/AIDS.

Acredita-se, então, que as prováveis pressões sociais exercidas pelo conjunto de aspectos elencados sobre os sujeitos da pesquisa possam ter sido minoradas com a diminuição da implicação destes, propiciada pela técnica de substituição, conforme sugere Abric (2003b, 2005). Os elementos com caráter negativo ou contranormativo na representação em questão foram aqueles que denotaram associação das pessoas com HIV/AIDS: à homossexualidade; ao sentimento de medo; à atitude de preconceito; à possibilidade de contaminação e contágio pela pessoa infectada; à prática sexual, de um modo mais destacado; e à promiscuidade; à atitude de afastamento e rejeição; à morte; e ao fato de serem usuários de drogas, com a geração de sentimentos de piedade.

 

Conclusão

Foram contemplados alguns aspectos da representação social do HIV/AIDS, sobretudo no que parece ser um dos seus cruciais problemas atualmente: a estigmatização e a discriminação em relação às pessoas soropositivas ao HIV ou com AIDS, as quais contribuem, além do aumento do sofrimento dessas pessoas, para o aumento da vulnerabilidade da população ao HIV, que tende a pensar: “eu não”, “o meu grupo não”.

Vislumbramos, também, que a noção de zona muda mostra-se profícua para o desenvolvimento de pesquisas em representações sociais em relação ao HIV/AIDS, propiciando o entendimento de uma série de defasagens oriundas de determinados estudos que abordaram objetos sociais mais sensíveis, tal qual assinala Abric (2005). No caso do HIV/AIDS, poderíamos citar alguns desses objetos como sexo, sexualidade, drogas, relações de gênero e religião.

Somado a isso, observa-se, igualmente, a potencialidade de desenvolvimento da noção de zona muda para a enfermagem e suas relações com o HIV/AIDS, considerando: as práticas profissionais voltadas à prevenção da disseminação do vírus; assistência a pessoas com HIV/AIDS; e, mesmo, as implicações na vida privada (família, parceiros e amigos).

Para finalizar, é importante lembrar, tal qual o faz Abric (2005), que, se a existência de uma zona muda para determinados objetos parece indiscutível, permanece um problema essencial: o de descobrir e de colocar em funcionamento novos instrumentos de coleta de dados das representações sociais que permitam a demarcação e a evidenciação daquela.

 

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Endereço para correspondência
Denize Cristina de Oliveira
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Tramitação
Recebido em outubro de 2007
Aceito em novembro de 2007