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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.10 n.1 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGO ORIGINAL

 

A memória histórica do Regime Militar em três gerações: conteúdos factuais e juízos críticos1

 

Historical memory of Military Regime in three generations: factual contents and critical judgements

 

La memoria histórica del Régimen Militar en tres generaciones: contenidos de hechos y juicios críticos

 

 

Celso Pereira de SáI; Ricardo Vieiralves de CastroI; Renato Cesar MöllerI, II; Juliana Aieta PerezI; Fernando Cesar de Castro BezerraII

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro
IIFaculdade Salesiana Maria Auxiliadora

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

São apresentados e discutidos os resultados de uma pesquisa sobre a memória histórica do Regime Militar no Rio de Janeiro. Os dados foram obtidos por meio de questionário aplicado a 201 sujeitos adultos, 207 idosos e 434 jovens. A análise dos dados realizou- se com base nas freqüências, em termos percentuais, de distribuição das respostas dos sujeitos pertencentes aos diferentes grupos etários, e, em cada um destes, dos sujeitos pertencentes a conjuntos de distintos níveis de escolaridade e orientações políticas. Os resultados mostram que a amplitude e a precisão na lembrança dos fatos e circunstâncias do período em questão decresce dos idosos para os adultos e destes para os jovens. A consistência dos juízos críticos sobre o Regime Militar decresce dos jovens para os idosos e destes para os adultos. A discussão dos resultados leva em consideração as características dos processos psicossociais de construção da memória histórica nos três diferentes conjuntos geracionais.

Palavras-chave: Memória social, Memória histórica, Representações sociais, Regime militar, Gerações.


ABSTRACT

Results from a research on the historical memory of Brazilian Military Regime, in Rio de Janeiro, are presented and discussed. Data were obtained through a questionnaire applied to 201 adult subjects, 207 aged ones, and 434 young ones. Data were analyzed upon the frequencies of distribution of the responses from subjects belonging to the different age groups and, in each one of these, from subjects belonging to ensembles of different scholarship levels and political orientations. Results show that width and precision in remembering the facts and circumstances of the period decrease from aged subjects to adults and from these to youths. Consistency of critical judgements about the Military Regime decreases from young subjects to aged ones and from these to adults. Discussion of results takes into consideration the characteristics of the psychosocial construction processes of historical memory in the three different generational groups.

Keywords: Social memory, Historical memory, Social representations, Military regime, Generations.


 

RESUMEN

Son presentados y discutidos los resultados de una investigación sobre la memoria histórica del Régimen Militar en Río de Janeiro. Los datos fueron obtenidos a través de un cuestionario aplicado a 201 sujetos adultos, 207 ancianos y 434 jóvenes. Los datos fueron analizados a partir de las frecuencias, en términos porcentuales, de distribución de las respuestas de los sujetos pertenecientes a los diferentes grupos etarios y, en cada uno de estos, de los sujetos pertenecientes a conjuntos de distintos niveles de escolaridad y orientación política. Los resultados muestran que la amplitud y la precisión en el recuerdo de los hechos y circunstancias del período en cuestión disminuyen de los ancianos para los adultos e de estos últimos para los jóvenes. La consistencia de los jueces críticos sobre el Régimen Militar disminuye de los jóvenes para los ancianos y de estos para los adultos. La discusión de los resultados lleva en consideración las características de los procesos psico-sociales de construcción de la memoria histórica en los tres conjuntos diferentes de generaciones.

Palabras clave: Memoria social, Memoria histórica, Representaciones sociales, Régimen militar, Generaciones.


 

 

Introdução

Passadas já quatro décadas desde o seu início, em 1964, e duas desde o seu fim, em 1985, o Regime Militar tende, à medida que a sua memória no seio da população vai se desvanecendo, a se caracterizar exclusivamente como um capítulo da história do Brasil. Isto é o que afirmaria Halbwachs (1950/2004), pioneiro da sociologia da memória, para quem a produção da história passava a se fazer necessária justamente quando a memória coletiva começasse a se extinguir, tomando assim o seu lugar. Essa polarização entre história e memória, entretanto, não mais encontra abrigo nas proposições de autores contemporâneos – como Nora (1997) e Jodelet (1992), para citar um historiador e uma psicóloga social –, devido às transformações socioculturais ocorridas desde então – apoiadas, em boa parte, sobre avanços tecnológicos –, dentre as quais se incluem os esforços contínuos e insistentes para a preservação dos eventos do passado.

De fato, hoje, a história escrita do Regime Militar – presente, por exemplo, em manuais como Santos, Neves, Machado e Gonçalves (2002) e em livros como D’Araújo, Soares e Castro (1994) – coexiste com memórias espontâneas de cidadãos comuns e com aquelas cultivadas ou desencavadas por jornalistas, cronistas e analistas políticos, como Dreifuss (1981), Moreira Alves (1984), Ventura (1988), Gaspari (2002a, 2002b, 2004a, 2004b), entre outros. Além dessas histórias e crônicas escritas, contribuem para a preservação social do passado representado por aquele regime de exceção outros produtos culturais, como filmes cinematográficos – Pra frente, Brasil, de R. Farias (1982), Nunca fomos tão felizes, de M. Salles (1984), Lamarca, de S. Rezende (1994), O que é isso, companheiro?, de B. Barreto (1997), Zuzu Angel, de S. Rezende (2006), O ano em que meus pais saíram de férias, de C. Hamburger (2007) – e seriados de televisão, como Os anos rebeldes, de G. Braga (1992), produzido pela TV Globo. Não obstante, as fontes potenciais para a construção das memórias em um nível propriamente coletivo ainda são de produção bastante escassa ou não se encontram disponíveis em escala social condizente com o tamanho, a natureza diversificada e os recursos da população brasileira. Isso quer dizer que a efetiva existência de algo como uma “memória nacional” do Regime Militar – e, mais especificamente, os conteúdos factuais e valorativos dessa suposta memória – simplesmente não pode ser inferida apenas por meio de um exame daquelas fontes.

Essa dificuldade remete o problema à investigação característica da psicologia social, ou seja, é preciso verificar diretamente, com as pessoas, quanto elas lembram daquele período e do que em especial se lembram. E, considerando as diferentes circunstâncias de registro dos fatos históricos pela memória, é importante, ainda, comparar as memórias construídas por conjuntos sociais de diferentes idades, os quais, em função mesmo dessa diferença, tenham vivido durante o Regime Militar quando já adultos ou quando ainda jovens ou, ainda, tenham nascido somente depois do término daquele período.

Uma pesquisa desenvolvida nesses termos dedicou-se a descrever os conteúdos das memórias históricas construídas em cada um dos três grupos etários mencionados, a analisá-los comparativamente e a identificar as diferenças existentes no âmbito de cada grupo em função do nível de escolaridade e da orientação política dos seus membros. Numa primeira comunicação de resultados parciais (SÁ; OLIVEIRA; CASTRO; VETERE; CARVALHO, no prelo), apresentou-se o conteúdo e a estrutura das representações sociais que consubstanciam, em termos temáticos, as memórias dos três grupos etários. Os presentes resultados dão ênfase à comparação entre os três grupos quanto as suas respectivas lembranças e conhecimentos acerca de fatos específicos e circunstâncias do período, bem como de seus juízos críticos acerca do Regime.

Um recorte teórico-conceitual

Para a construção do objeto da presente pesquisa, a memória histórica do Regime Militar é equacionada basicamente em termos das representações sociais desse período pelos três conjuntos considerados. Esta opção conceitual é tomada de Jedlowski (2001, p. 33), que define a memória coletiva como “um conjunto de representações sociais acerca do passado que cada grupo produz, institucionaliza, guarda e transmite através da interação de seus membros”. A articulação entre os dois conceitos justifica-se pelo fato de a memória coletiva ser, por definição, a memória de um grupo social, da mesma forma como uma representação social (MOSCOVICI, 1976, 1984; JODELET, 1984, 1989) tem necessariamente um grupo como sujeito produtor e/ou usuário.

Não obstante, a “memória histórica”, como é aqui conceituada (SÁ, 2005, 2007), pode abarcar outras instâncias da memória social, além de poder, também, englobar as memórias coletivas dos grupos. Ela é tomada, nesta pesquisa, como uma instância da memória social que pode ser constituída por uma combinação de: 1. “memórias comuns” a um conjunto de pessoas que tenham sido expostas aos mesmos fatos ou informações envolvendo o Regime Militar; 2. “memórias coletivas” que resultem de elaborações discursivas desses fatos e informações feitas por grupos sociais mais restritos; 3. “memórias pessoais” de eventos da vida particular de cada um, mas que se imbriquem com os fatos mais propriamente políticos do Regime Militar. Cabe ressalvar que, consi- derando a extensão da população focalizada, as memórias pessoais e comuns acerca do Regime Militar podem ser muito mais numerosas do que as coletivas, embora estas constituam o principal componente das memórias históricas pela consensualidade reflexiva ou consciente que lhes proporcionam.

Ainda na perspectiva psicossocial privilegiada neste trabalho (SÁ, 2005, 2007), propõe- se chamar de “memória histórica” a memória social, que, além de alimentada pelo próprio testemunho dos fatos ou pelo relato de quem os tenha vivido, se constrói, adicional ou alternativamente, por meio de documentos e de outros tipos de registros do passado, bem como da transmissão oral corrente dos acontecimentos e práticas sociais do passado. Os produtos da história (escrita ou oral) configuram-se, assim como uma das fontes da memória histórica, sob as condições de que eles sejam efetivamente lidos ou ouvidos pelas pessoas e de que estas e os grupos a que pertencem sejam suficientemente impressionados pelos documentos ou pelos relatos orais a ponto de os incorporarem à sua memória.

A rigor, a noção de documento empregada nesta “psicologia social da memória” é mais ampla do que aquela dos historiadores, abrangendo tanto os documentos stricto sensu, como, por exemplo, os chamados “arquivos da ditadura” – ainda não abertos, de fato, à população brasileira – quanto as crônicas e os livros didáticos, as matérias veiculadas pela mídia, os monumentos, os eventos comemorativos e as produções culturais, como, por exemplo, os filmes cinematográficos. A “memória histórica” de que se quer aqui tratar é uma “memória da história” em um duplo sentido: é uma memória de fatos presenciados ou de que se teve notícia quando da sua ocorrência (ou seja, antes de se tornarem “fatos históricos”), mas é, também, uma memória do conhecimento que se adquiriu por meio da história produzida acerca desses fatos.

Em termos complementares, justificando a seleção de três diferentes estratos etários para comparar suas respectivas memórias históricas do Regime Militar, privilegia-se a proposição da existência de um “período crítico” de maior retenção das experiências vividas, que se situaria entre o início da adolescência e o fim da juventude ou início da vida adulta. Essa proposição é sustentada empiricamente por autores vinculados ao que se chamou, em outra parte (SÁ, no prelo), de “psicologia social cognitivo-naturalista” (CONWAY, 1995; PENNEBAKER; BASANICK, 1998; SCHUMAN; BELLI; BISCHOPING, 1998), que é derivada da análise de K. Mannheim (1952/1982) sobre o “problema sociológico das gerações”.

Nessa perspectiva, o conjunto etário que viveu sua juventude durante a vigência do Regime Militar teria se encontrado em uma “situação de geração” bem definida e diversa tanto daquela que o testemunhou depois de ter concluído o seu próprio processo de definição geracional, quanto da situação em que está se formando a geração dos que nasceram após o seu término. A distinção feita por Mannheim (1982) entre “memórias adquiridas” das experiências efetivamente vividas e “memórias apropriadas” de experiências relatadas por outrem, associada à noção de “período crítico” de aquisição de uma “memória geracional”, sugere que as lembranças acerca do mesmo período histórico possam apresentar importantes diferenças entre os sujeitos dos três estratos etários selecionados para o presente estudo.

 

Método

Sujeitos

Os sujeitos da pesquisa foram 842 habitantes do município do Rio de Janeiro, agrupados em três diferentes amostras, aqui chamadas de “adultos”, “jovens” e “idosos”. As amostras de adultos e de jovens estratificaram-se por gênero, escolaridade e local de moradia, com base no Censo IBGE 2000. A amostra dos idosos foi recrutada em locais de concentração dessas pessoas, como a Universidade Aberta da Terceira Idade, da UERJ, procurando-se manter a proporção de distribuição por gênero apontada pelo Censo.

A amostra de adultos, que corresponde à geração que viveu o Regime Militar durante o “período crítico” – cuja duração é aqui estreitada, para fins de adequação comparativa –, foi constituída por 201 pessoas que, no decorrer de 1964 a 1985, tinham entre 15 e 21 anos de idade, ou seja, que estavam na faixa de 34 a 60 anos na ocasião da coleta dos dados, em 2004.

A amostra de jovens foi constituída por 434 pessoas que tinham entre 15 e 21 anos de idade na ocasião da coleta dos dados, em 2003, e que, portanto, nasceram após o fim do Regime Militar ou eram ainda crianças quando ele já estava terminando. Alguns resultados relativos exclusivamente a essa amostra foram já publicados em Castro, Sá, Möller e Bezerra (2005) e em Sá, Castro, Oliveira e Möller (2005).

A amostra de idosos foi constituída por 207 pessoas que, para fins de outra pesquisa (NAIFF; SÁ; NAIFF, no prelo), viveram os dois governos Vargas quando tinham entre 15 e 21 anos de idade, e que, portanto, já haviam passado do período crítico de retenção de lembranças quando testemunharam o Regime Militar, estando, pois, com 65 anos ou mais na ocasião da coleta dos dados, em 2005.

Considerando que, além da comparação entre as gerações, é, também, objetivo do trabalho a comparação intragrupal, apresentam-se, nas Tabelas 1 e 2, as composições das três amostras em termos de nível de escolaridade – ensino fundamental, médio e superior, completos ou incompletos – e de orientação política – esquerda (incluindo centro-esquerda), direita (incluindo centro-direita) e sem orientação política definida.

Tabela 1. Distribuição dos sujeitos das três amostras geracionais em função do nível de escolaridade. Rio de Janeiro, 2003, 2004 e 2005

 

 

Tabela 2. Distribuição dos sujeitos das três amostras geracionais em função do nível de escolaridade. Rio de Janeiro, 2003, 2004 e 2005

 

 

Técnicas de coleta dos dados

O instrumento de coleta dos dados consistiu num questionário com 31 perguntas, dentre fechadas e abertas, que foi aplicado, individualmente, aos sujeitos, com seu pleno consentimento, e preenchido pelos pesquisadores.

Procedimento de coleta de dados

As respostas dadas às perguntas fechadas foram submetidas a um tratamento estatístico de levantamento de freqüências, em termos percentuais, para os diferentes grupos etários, bem como, no âmbito de cada um destes, para os subconjuntos definidos pelo nível de escolaridade e pela orientação política. As respostas dadas às perguntas abertas, depois de submetidas a um procedimento de categorização, receberam o mesmo tratamento estatístico descritivo que as perguntas fechadas. No presente relato, por carência de espaço, esses últimos resultados são apresentados apenas quando se fazem relevantes para a complementação de certos resultados das perguntas fechadas.

Resultados e discussão

São apresentados e discutidos, a seguir, os resultados comparativos relativos a cada uma das perguntas fechadas, que foram agrupadas sob as duas seguintes questões gerais cuja memória se quis investigar: 1. o desenrolar histórico do Regime Militar, sua origem, justificativas, endurecimento, reações da sociedade e término; 2. a ideologia política do Regime Militar, e as “coisas boas” e as “coisas ruins” por ele ensejadas.

O desenrolar histórico do Regime Militar

A origem do Regime Militar

A Tabela 3 mostra que quase metade dos jovens e adultos e quase dois terços dos idosos atribuem a origem do Regime Militar a um “golpe de estado”, enquanto os demais sujeitos desses três grupos a atribuem, decrescentemente, a uma “revolução” e a um “movimento popular”, ou não se lembram do seu início. Aparentemente, esse resultado indica que, na construção das memórias das três gerações, teria prevalecido o julgamento crítico sustentado pelos opositores do Regime, ou seja, que ele teria resultado de um golpe de estado. Mas a soma das lembranças das outras duas alternativas, de cunho politicamente positivo – revolução e movimento popular –, não é desprezível no que se refere aos adultos e aos jovens.

Tabela 3. Distribuição percentual dos sujeitos das três amostras geracionais quanto à lembrança da origem do Regime Militar. Rio de Janeiro, 2003, 2004 e 2005

 

 

De fato, entre os adultos e os jovens, o percentual dos que denunciam um golpe de estado predomina. No entanto, isso não ocorre em relação ao percentual dos que, em conjunto, optam pelos rótulos preferidos pelos próprios defensores do Regime Militar e cultivados em seus instrumentos de propaganda: “a Revolução”, adjetivada, às vezes, de “redentora”, ou “o Movimento de 64”, ao qual se buscava conferir um caráter popular.

Um esclarecimento desses resultados é dado pela distribuição dos sujeitos em termos de nível de escolaridade e de orientação política. De fato, no que se refere aos adultos e aos jovens, embora os sujeitos com nível fundamental de escolaridade pouco se diferenciem quanto à atribuição da origem do Regime Militar a uma revolução, a um golpe de estado ou a um movimento popular, os sujeitos de nível superior e médio optam significativamente pelo “golpe de estado”, em detrimento das outras duas alternativas. Na clivagem relacionada à orientação política, o mesmo acontece, no caso dos sujeitos de esquerda em relação aos de direita e, um pouco menos, aos sem orientação política. No entanto, no grupo dos idosos, o privilégio dado ao “golpe de estado” é significativo em todos os níveis de escolaridade e em todas as alternativas de orientação política. A rigor, trata-se, aqui, mais de uma precisão na memória dos idosos, que se manifesta na maioria das questões, e menos de uma consistência crítica por parte deles, que não se sustenta em outras questões e merecerá uma consideração especial na conclusão do trabalho.

As justificativas para a instauração do Regime

Dentre as três justificativas mais comumente usadas pelos militares para a tomada do poder, a mais reconhecida pelos jovens (53,7%), adultos (71,6%) e idosos (78,7%) foi a de “acabar com a baderna”, o que, para o Regime Militar, significava dar um fim aos movimentos reivindicatórios sindicais e estudantis, com vistas à nova ordem política e social que pretendia impor. Um percentual um pouco superior de idosos (79,2%) lembrou-se da justificativa de “impedir o avanço do comunismo no Brasil” – formulada por meio do pressuposto de que o governo de João Goulart estava sendo utilizado pelos comunistas e sindicalistas –, e a lembrança dessa foi bem menor entre os adultos (59,2%) e entre os jovens (42,2%). Já a justificativa de “acabar com a corrupção” teve o reconhecimento de menos da metade dos sujeitos de cada um dos três grupos, com percentuais reduzindo-se à medida que baixava a faixa etária.

A distribuição das respostas, no que se refere à justificativa de “acabar com a baderna”, não encontra esclarecimento em função do nível de escolaridade dos sujeitos, pois apenas os jovens de nível fundamental lembram-se menos dela. Já a lembrança de “impedir o avanço do comunismo no Brasil” é endossada, em uma espécie de gradiente decrescente, pelos idosos em todos os níveis, pelos adultos de níveis médio e superior e pelos jovens de nível superior.

Quanto à orientação política, no que se refere a “acabar com a baderna”, os sujeitos adultos e idosos que a reconhecem como uma justificativa muito empregada são, em qualquer das orientações, muito mais numerosos do que aqueles que não se lembram disso. Já no que se refere aos jovens, esse predomínio se manifesta apenas entre os de esquerda. Da mesma forma, somente os jovens de esquerda reconhecem o “impedir o avanço do comunismo”, enquanto todos os sujeitos idosos e os adultos de esquerda ou sem orientação política o fazem.

O endurecimento do Regime Militar

O Ato Institucional No 5 (AI-5), cuja promulgação, em 1968, marcou o endurecimento do Regime Militar, foi lembrado maciçamente pelos idosos (90,9%), mas apenas por uma escassa maioria dos jovens (63,2%) e por pouco mais da metade dos adultos (56,8%). Assim, os sujeitos que incorporaram, à sua memória, de forma menos consensual esse fato histórico do Regime foram aqueles cuja formação da própria identidade geracional deu-se sob o impacto de medidas crescentemente repressivas, e que, por isso mesmo, segundo a hipótese do “período crítico”, deveriam dele ter retido uma nítida lembrança.

Deixando de lado o grupo dos idosos, que, independentemente do nível de escolaridade e da orientação política, se lembra bem dessa guinada dramática nos rumos do Regime, somente os adultos com nível superior incorporaram, de modo significativo, o AI-5 à sua memória do período, sendo que os jovens de níveis superior e médio também o fizeram. Quanto à orientação política, são os adultos e os jovens de esquerda, acompanhados por diferenças mais modestas em relação àqueles sem orientação definida, que guardam essa lembrança, enquanto os que se declaram de direita não a mantém.

Uma interpretação possível, no caso dos adultos, é a de que a decretação do AI-5 não teria se incorporado plenamente à sua memória por conta do caráter traumático de sua ocorrência, ou seja, numa fase da vida em que a imposição de tal medida política autoritária parecia frustrar, de forma aparentemente definitiva, os anseios de toda uma geração em relação à realização da cidadania e da participação democrática na construção do país. Uma boa parte desses sujeitos, por exemplo, além de só ter obtido o direito de votar para presidente da República quando já adultos plenos, passou toda a juventude “falando de lado e olhando pr’o chão”, como bem descreveu Chico Buarque em uma de suas canções de protesto contra o Regime Militar.

As reações da sociedade civil ao Regime Militar

A interpretação aventada quanto a um possível esquecimento dos eventos traumáticos recebe apoio, embora apenas indireto, dos resultados apresentados pelos sujeitos adultos no que se refere às reações que emergiram da sociedade brasileira contra o Regime Militar. Na medida em que muitos deles, quando jovens, possam ter participado de algumas dessas reações, a sua lembrança lhes seria talvez mais grata, e, por isso, mais cultivada – no sentido de uma elaboração propriamente coletiva – do que a do endurecimento do Regime que as teria provocado. De fato, embora os idosos se lembrem das reações do tipo “manifestações populares e estudantis” em um percentual superior (85%), mas próximo ao dos adultos (81,1%), a lembrança destes quanto à ocorrência de “greves e movimentos de trabalhadores” (71,6%) supera a dos idosos (58%). A lembrança dos idosos, cuja amostra é privilegiada por um nível mais elevado de escolaridade, volta a se mostrar um pouco superior (50%) à dos adultos (43,3%) no que se refere à “luta armada urbana e à guerrilha”, mas as duas se mantêm equiparadas no que diz respeito aos “protestos de instituições da sociedade civil”. Quanto aos jovens, embora os percentuais dos que se lembram das diversas formas de reação sejam inferiores aos dos adultos e idosos, não chegam a discrepar muito deles.

O término do Regime Militar

A “forma lenta e gradual” de término do Regime Militar – programada no governo Geisel, que se impôs contra os militares da “linha dura” e que seria concluída somente ao final do governo seguinte – foi a que contou com um reconhecimento significativamente maior por parte dos três grupos etários, segundo percentuais decrescentes – idosos (70,5%), adultos (63,2%), jovens (58,1%) –, como é característico das respostas à maioria das questões.

Os percentuais da lembrança equivocada – “de forma repentina” – e da não-lembrança mostram-se equivalentes nos casos dos idosos e dos jovens, mas, nos adultos, a segunda (22,9%) supera a primeira (13,9%). Aqui, cabe, por conta da relevância da questão para os estudos de memória social, examinar a diferença entre o “lembrar errado” e o “não lembrar”. Os resultados mostram que, no que se refere ao nível de escolaridade, o “não lembrar” pouco se distingue do “lembrar errado” no caso dos jovens, bem como no dos adultos de níveis médio e superior e no dos idosos de nível médio, mas o “não lembrar” é superior ao “lembrar errado” entre os adultos e os idosos de nível fundamental. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que esses sujeitos não se lembram de como o Regime Militar terminou porque, pela carência de acesso a informações críticas, talvez sequer tenham chegado a saber, na ocasião, que ele estava terminando. Quanto à clivagem pela orientação política, os que não sabem o que aconteceu são predominantemente os sujeitos sem orientação definida.

A ideologia, as “coisas boas” e as “coisas ruins” do Regime Militar

A memória histórica não se esgota na lembrança de fatos e circunstâncias, mas envolve sempre (alguns diriam, primordialmente) uma atitude ou uma apreciação valorativa. Essas são, em grande parte, uma contribuição do presente à construção da memória, já que são aplicadas hoje em dia sobre fatos buscados no passado. Associações opostas feitas por dois sujeitos em relação ao Regime Militar na primeira parte desta pesquisa – “eu era feliz e não sabia” e “deixou cicatrizes no Brasil” – ilustram bem esse processo de avaliação retrospectiva. O reconhecimento ou a lembrança da ideologia política que teria presidido o Regime Militar, bem como o reconhecimento ou a lembrança das “coisas boas” e das “coisas ruins” pelas quais ele foi diretamente responsável ou simplesmente ensejou, dá conta dessa dimensão valorativa no processo de construção da memória histórica.

A ideologia política do Regime Militar

Nacionalismo e anticomunismo foram tomados pela ideologia do Regime Militar como mutuamente implicativos, segundo a lógica de que a natureza internacionalista do credo comunista faria com que os interesses nacionais fossem necessariamente subordinados aos desígnios das potências nas quais um socialismo real encontrava-se implantado..

Nesta pesquisa, a natureza política do Regime Militar revela percentuais decrescentes de lembrança ou reconhecimento à medida que a idade dos sujeitos diminui. Dentre aqueles que se lembram do tema nacionalismo, tal proporção decrescente evidencia-se quanto ao julgamento por 87% dos idosos, 76,9% dos adultos e 65,6% dos jovens, de que o Regime era efetivamente nacionalista.

Quanto ao comunismo, dentre os sujeitos que se lembram de que o tema ocupou uma posição de destaque nos debates ideológicos daquele período, o reconhecimento de que a posição adotada pelo Regime era contra o comunismo, e não a seu favor, apresenta percentuais ainda mais elevados entre os idosos (95,7%) e os adultos (92,3%), decrescendo em muito no caso dos jovens (66,9%).

Em termos da orientação política dos sujeitos, a posição do Regime Militar em relação ao nacionalismo é nitidamente lembrada apenas por aqueles de esquerda, entre os jovens e os adultos, enquanto, entre os idosos, o fato é lembrado tanto pelos de esquerda quanto pelos de direita. Já a propósito do comunismo, a proporção dos que dizem lembrar-se da posição do Regime é significativamente superior, em todas as categorias de orientação política dos sujeitos das três faixas etárias, à dos que não se lembram, embora, em relação aos jovens e aos adultos, as diferenças sejam menores entre aqueles sem orientação política definida.

“Mais coisas boas” ou “mais coisas ruins”

Uma rememoração avaliativa global foi solicitada aos sujeitos nos seguintes termos: “Os militares no governo fizeram mais ’coisas boas’ ou mais ’coisas ruins’”. A Tabela 4 mostra que os jovens, que não vivenciaram o Regime Militar, apresentam uma “memória apropriada” bem definida e maciçamente condenatória das ações dos governos militares. Enquanto isso, embora quase a metade dos idosos igualmente os condene, uma terça parte deles admite que foram feitas coisas boas também. Já os adultos se mostram divididos na avaliação que hoje fazem das coisas que vivenciaram quando eram jovens.

Tabela 4. Distribuição percentual dos sujeitos das três amostras geracionais quanto à lembrança de os militares, no governo, terem feito mais “coisas boas” ou mais “coisas ruins”. Rio de Janeiro, 2003, 2004 e 2005

 

 

A proporção dos jovens que consideram que os militares fizeram mais “coisas ruins” é significativamente superior, em todos os níveis de escolaridade e em todas as orientações políticas, à dos que julgam o oposto. Já entre os adultos e os idosos, isso só acontece entre aqueles com nível superior ou médio e aqueles com orientação política de esquerda.

Em seqüência a essa avaliação global, apresentaram-se, aos sujeitos, 16 acontecimentos de diversas naturezas, devendo eles indicar se reconheciam cada um deles, e, no caso de uma resposta afirmativa, explicitar se, na sua lembrança, tal fato ocorreu durante o Regime Militar ou não. Embora os sujeitos não tenham classificado tais acontecimentos como “coisas boas” ou “ruins”, esses são assim separados nas duas seções que se seguem (para uma apresentação mais clara dos resultados), em função de critérios aproximativos estabelecidos pelos próprios pesquisadores, mas acompanhados de ressalvas quando parecerem apresentar implicações ambíguas.

As “coisas boas” do Regime Militar

Dentre as sete “coisas boas” apresentadas, as duas que mais foram lembradas como tendo ocorrido no período – em percentuais semelhantes nos idosos (em torno de 60%), nos adultos (pouco acima de 50%) e nos jovens (pouco abaixo de 40%) – são as que menos se caracterizam como reais produtos do Regime Militar. Uma foi a “Campanha das Diretas Já”, que propugnava pelo fim imediato do próprio Regime. A outra foi o “Tricampeonato Mundial de Futebol”, conquistado nos plenos “anos de chumbo” do governo Médici e que a propaganda oficial tentou associar ao Regime, mas com escasso sucesso.

Seguem-se, na lembrança dos sujeitos, três grandes obras de engenharia: a “Ponte Rio-Niterói”, a “Hidrelétrica Itaipu Binacional” e a “Rodovia Transamazônica”. Mas, aqui, os jovens começam a discrepar dos adultos e principalmente dos idosos, com um percentual de lembrança de que elas ocorreram durante o Regime sempre inferior ao de que não ocorreram. A construção da Transamazônica, em especial, além de pouco reconhecida, é um dos casos de classificação problemática como “coisa boa”, diante dos escassos benefícios sociais e econômicos que terminou por engendrar.

Os dois últimos fatos, de que os jovens pouco se lembram – e, quando o fazem, afirmam, em sua maioria, que não ocorreu durante o Regime – e em relação aos quais os adultos e idosos também se mostram bastante divididos, são, nesta ordem, o “milagre econômico brasileiro” e o “PIS/Pasep”. Pode-se convir que o “milagre” foi passageiro e que não favoreceu a maioria da população brasileira, advindo daí sua reduzida lembrança, enquanto o “PIS/Pasep” mantém-se e seus dividendos são regular e amplamente distribuídos entre os trabalhadores. Aqui, ou se trata de negar, ao Regime Militar, a produção de alguma coisa efetivamente boa ou, então, essa coisa, pelo reduzido impacto que tem na melhoria das condições de vida dos brasileiros, não é vista como tão boa assim.

As “coisas ruins” do Regime Militar

Dentre as nove “coisas ruins” apresentadas, duas destacam-se pelo reconhecimento de terem ocorrido durante o Regime Militar: uma por ser a mais lembrada pelos três grupos etários, a “tortura e morte de presos políticos”; a outra por ser a menos lembrada pelos três grupos, a “guerrilha do Araguaia”. Embora a ocorrência da primeira tenha sido sistematicamente negada pelos militares (mediante declarações de que tais ou quais pessoas jamais haviam sido presas, mas que teriam “desaparecido” por desígnio próprio) ou falseada (mediante o forjar de cenários de suicídio ou a alegação de que as pessoas estavam mentindo ao denunciarem torturas), ela passou a fazer parte da memória histórica do Regime Militar de uma forma amplamente compartilhada na população brasileira. Por outro lado, o Regime foi razoavelmente bem-sucedido em impedir, por meio da censura da imprensa, que a existência da guerrilha do Araguaia chegasse, na ocasião mesmo do seu desenrolar, ao conhecimento da maioria da população, fazendo com que o fato não viesse a ensejar uma memória.

Para todas as “coisas ruins”, o mesmo gradiente decrescente de lembrança (dos idosos, passando pelos adultos, até os jovens) mantém-se. As duas “coisas ruins” que se seguem à “tortura e morte de presos políticos”, como mais lembradas de forma comum aos três grupos, são a “censura da imprensa e das artes” e a “cassação de mandatos e direitos civis”. Delas lembram-se mais de 50% dos jovens, mais de 60% dos adultos e mais de 75% dos idosos, o que assegura que essas práticas antidemocráticas constituamse em conteúdos não escamoteáveis da memória histórica do Regime Militar.

A partir desse patamar comum e ainda privilegiado de reconhecimento, não apenas não há mais uma ordem comum de lembrança dos fatos, mas também os seus percentuais decrescem de forma mais acentuada à medida que a faixa etária se reduz. Enquanto a maior lembrança, por parte dos idosos, privilegia o “cerceamento de liberdades pessoais” e o “fechamento do Congresso Nacional”, esse último fato, em especial, conta com o reconhecimento de pouco mais de um terço dos adultos e dos jovens.

Por outro lado, os jovens privilegiam, quase como os adultos e um pouco menos que os idosos, a lembrança do “seqüestro de diplomatas estrangeiros” e a “guerrilha urbana e assaltos a bancos”. Trata-se de iniciativas típicas da parcela da juventude de então que optou pela reação armada contra o Regime, com a qual os jovens de hoje possivelmente se identificam, o que responderia pelo grau elevado de lembrança por eles manifestado.

Finalmente, o “atentado do Riocentro” tem sua lembrança priorizada pelos adultos, mas está pouco presente na memória dos jovens e dos idosos.

 

Conclusão

Uma primeira conclusão importante, do ponto de vista psicossocial, a se extrair da presente pesquisa empírica é a de que não existe, no Rio de Janeiro, uma memória histórica única do Regime Militar, mas sim um conjunto de memórias, que apresentam diferenças em termos de amplitude e fidedignidade factuais e também de juízos críticos. Tais diferenças correspondem, primariamente, às condições distintas de construção de memórias geracionais por parte da população contemporânea. Além disso, no âmbito de cada geração, há uma nítida heterogeneidade determinada pelas diferenças de escolaridade e orientação política entre os seus membros individuais.

Nesse sentido, para a maioria dos fatos e circunstâncias focalizados, os idosos exibem uma lembrança superior à dos adultos, que, por sua vez, apresentam uma lembrança superior à dos jovens, como num gradiente decrescente de riqueza e precisão das memórias históricas. Vale a pena examinar cada uma dessas memórias geracionais para buscar inferir fatores de ordem psicossocial que possam responder pelas suas características.

No caso dos idosos, o fato de que a sua amostra seja mais escolarizada do que as demais não explica, por si só, a maior amplitude e fidedignidade de sua memória, pois isso se mostra significativo em todos os níveis de escolaridade. Parece, pois, que a construção da memória, por parte dos idosos, tem basicamente a sua origem na fase do registro original dos fatos presenciados ou das notícias deles. Como eles eram adultos durante aquele período, provavelmente não apenas tinham mais interesse pelas questões políticas, como também dispunham de maiores recursos de acesso à informação.

Por outro lado, é preciso também explicar os resultados que mostram que quase a metade dos idosos julga que os militares fizeram mais “coisas ruins” do que “coisas boas”, mas que uma terça parte deles acha o contrário. Isso quer dizer que, na memória histórica, amplitude e precisão descritivas não se acompanham, necessariamente, de uma consistência valorativa. Embora pese o fato de que, entre os idosos, os juízos favoráveis ao Regime provieram mais dos sujeitos de nível fundamental e de direita ou sem orientação política, parece, também, plausível a explicação de que, como adultos que eram na ocasião, com necessidades e responsabilidades relacionadas à sobrevivência familiar, esses sujeitos tenham sido mais sensíveis ao que, de uma forma ou de outra, teria havido de bom no Regime Militar. A polarização de juízos favoráveis e desfavoráveis indica, ainda, que uma memória coletiva hegemônica não chegou a prevalecer na construção da memória histórica dos idosos.

Num sentido contrário, são os jovens que não viveram aquele período, que, de forma maciça, e independentemente do nível de escolaridade e da orientação política, se mostram mais incisivamente condenatórios das práticas do Regime Militar. Não obstante, a memória que puderam construir acerca dos fatos específicos que então ocorreram é, nitidamente, precária e lacunar. Portanto, estando de todo ausentes, nesta geração, as memórias pessoais, há de se convir que as memórias comuns desses jovens, bem como as memórias coletivas construídas em alguns grupos, têm sido alimentadas por práticas educativas, por retrospectivas midiáticas, por transmissões intergeracionais diretas e por certas produções culturais (o cinema, por exemplo), as quais têm sido, em termos globais, sistematicamente críticas ao Regime.

A propósito do cinema, o conteúdo de um filme recente – O ano em que meus pais saíram de férias, de C. Hamburger – ilustra uma interpretação possível de certos resultados problemáticos da pesquisa referentes à memória construída pelos adultos, que, como o personagem do filme, eram muito jovens na ocasião do Regime Militar. O que aqui se encontra em questão é a hipótese do “período crítico” de melhor retenção das experiências vividas, que presidiu a definição da amostra dos adultos. Os resultados apresentados por esta amostra apontam para uma construção muito precária da memória factual do Regime Militar, a ponto de os adultos serem o grupo etário que menos se lembra do endurecimento do Regime por meio do AI-5. O que ocorre é que a hipótese do “período crítico” aplica-se às experiências vividas de fato, mas um bom número dos sujeitos adultos pode ter passado toda a adolescência ou a juventude sem ter tido experiências significativas a propósito do Regime Militar. Isso pode ter acontecido mesmo com adolescentes que tinham ligações mais estreitas com adultos que apoiavam ou que se opunham ao Regime, como acontece no caso ilustrado pelo filme. Diversas razões, como o interesse não despertado para as questões político-sociais, o acesso escasso à informação e/ou a preservação do jovem, pela própria família, do contato com a realidade, podem ter contribuído para que eles tenham se mantido relativamente alheios aos fatos específicos do período.

Concluindo, o presente estudo revela que, embora pesem as diferenças apontadas entre as gerações, uma memória histórica do Regime Militar (a rigor, mais de uma) de fato existe na população do Rio de Janeiro. Em outras palavras, o que permaneceu não foi apenas uma história daquele período, consubstanciada em documentos históricos variados – alguns dos quais, até hoje, inacessíveis –, em manuais de história, em crônicas e na literatura ensaística – via de regra, crítica –, em artigos e reportagens da mídia, em monumentos e comemorações – notoriamente escassos – e em produções artísticas, como os filmes. O acesso a tais “documentos” (em sentido amplo) associou-se a experiências pessoais e grupais diversas na construção de uma memória que, como um fenômeno psicossocial vivo, presente, ativo, parece ser a melhor garantia de resistência popular a eventuais tentativas de fazer com que a história em questão se repita.

 

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Endereço para correspondência
Celso Pereira de Sá
Rua General Ribeiro da Costa, 178 – bl. 1, ap. 1.201
Rio de Janeiro – RJ
CEP 22010-050
E-mail: sa.celson@gmail.com

Tramitação
Recebido em abril de 2008
Aceito em junho de 2008

 

 

1 O trabalho integra o projeto “Análise psicossocial da memória histórica de regimes políticos brasileiros”, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ, com apoio do CNPq (Proc. 303021/2004-7) e da FAPERJ (Proc. 171.075/2005). Teve ainda a colaboração de Renata Vetere e de Rafael Vera Cruz de Carvalho, bolsistas de Iniciação Científica /CNPq.