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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.10 n.1 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGO ORIGINAL

 

A singularidade do papel do outro na aquisição de linguagem de crianças abrigadas 1

 

The singularity of the otherness's role in language acquisition by sheltered children

 

La singularidad del papel del otro en la adquisición del lenguaje de niños abrigados

 

 

Fernanda Rabelo de Carvalho Beltrão; Glória Carvalho

Universidade Federal de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A atividade interpretativa do outro tem papel essencial na aquisição de linguagem. Assim, com base no interacionismo de referencial estruturalista, o presente artigo objetiva discutir o papel de um outro específico – o cuidador – no percurso lingüístico de crianças abrigadas. Para atender a esse objetivo, realizou-se um estudo longitudinal, durante 11 meses, em uma instituição da Fundac/PE, tendo sido os diálogos de três crianças com a cuidadora responsável por elas registrados em áudio. Na análise de tais diálogos, destacaram-se os enunciados infantis que causaram estranhamento à cuidadora e/ou à investigadora e analisou-se a postura do outro/cuidador em relação a tais enunciados. Para realçar a singularidade do outro/cuidador, se fez uso de diálogos entre crianças e suas mães. Os resultados encontrados sugerem que o lugar de outro, assumido por um cuidador, apresenta marcas de singularidade que podem ser indicadas na forma como o outro/cuidador se relaciona com a fala infantil, como, por exemplo, na postura de indiferença que esse outro, muitas vezes, assume perante os enunciados insólitos das crianças.

Palavras- chave: Aquisição de linguagem, Papel do outro, Produções verbais estranhas, Crianças abrigadas.


ABSTRACT

The interpretative activity of the otherness has an essencial role in language acquisition. Thus, from a interacionism of structuralist basis, this article seeks to discuss the singular role of a specific otherness – the caretaker – in the linguistic evolution of sheltered children. To reach this objective, it was made a longitudinal investigation, for 11 months, in a sheltering institution from FUNDAC/PE, having been the dialogues of three children with their respective responsible caretakers audio recorded. In the analysis of these dialogues, it was selected children’s verbal production which provoked amazement to the caretaker and/or to the researcher and it was also analyzed also how the caretaker answered this kind of verbal production. To highlight the singularity of the otherness/caretaker, were used dialogues between children and their mothers. The reached results suggest that the place of otherness, when taken by a caretaker, presents singularity marks that might be indicated by the manner of the otherness/caretaker relates to the infantile speaking, as, for example, the indifference attitude which, many times, that otherness has towards the children’s uncommon verbal production.

Keywords: Language acquisition, Otherness role, Unusual verbal production, Sheltered children.


Resumen:

La actividad interpretativa del otro ocupa un papel esencial en la adquisición del lenguaje. Así, a partir del interaccionismo de referencial estructuralista, el presente artículo tiene como objetivo discutir el papel de un otro específico – el cuidador – en el camino lingüístico de niños abrigados. Para atender a este objetivo, se realizó un estudio longitudinal, durante 11 meses, en una institución de la FUNDAC/PE, en la cual fueron gravados en áudio los diálogos de tres niños con la cuidadora por responsable por ellos. En el análisis de tales diálogos, fueron destacados los enunciados infantiles que causaron extrañamiento a la cuidadora y/o a la investigadora, analizándose la postura del otro/cuidador frente a tales enunciados. Para realzar la singularidad del otro/cuidador, fueron usados diálogos entre niños y sus madres. Los resultados encontrados sugieren que el lugar del otro, asumido por un cuidador presenta marcas de singularidad que pueden ser indicadas en la forma como el otro/cuidador se relaciona con el habla infantil, como, por ejemplo, en la postura de indiferencia que ese otro, muchas veces, asume frente los otros los enunciados insólitos de los niños.

Palabras clave: Adquisición de lenguaje, Papel del otro, Producciones verbales extrañas, Niños abrigados.


 

 

Introdução

O presente estudo objetiva colocar em discussão o papel do chamado cuidador no processo de aquisição de linguagem de crianças que se encontram em instituição do tipo abrigo e não mantêm relação com seus familiares. Tal discussão será realizada por meio da análise da forma pela qual esse cuidador se relaciona com a fala infantil, ou melhor, por meio da postura que esse outro assume diante dos enunciados insólitos produzidos pelas crianças.

Ao estudarem a mudança de condição que ocorre na criança de não falante para condição de falante de sua língua, os teóricos da aquisição da linguagem costumam fazer referência ao papel desempenhado pela fala do adulto na trajetória lingüística infantil, pois, em sua maioria, concebem que é pela fala de um outro que determinada língua é apresentada à criança.

Pretende-se, portanto, aprofundar a compreensão do papel desempenhado pelo outro/ intérprete na trajetória lingüística da criança, procurando colocar em discussão o papel de um outro específico (o cuidador).

Para isso, fez-se necessário adotar como referencial teórico uma abordagem que não apenas enfatize as peculiaridades da relação outro-criança, mas que também possa realçar o papel desse outro como intérprete da fala infantil. Tal referencial, no presente trabalho, remete ao interacionismo de base estruturalista proposto por De Lemos(2002).

Assumir, portanto, esse fundamento teórico tornaria possível abarcar a fala infantil em sua heterogeneidade, colocando em foco tanto as suas produções singulares, como a forma pela qual essas produções serão revestidas de sentido por meio da interpretação do outro, que, como representante da língua como intérprete dos erros/enunciados insólitos presentes nessa fala, irá inserir a criança na linguagem. Nessa abordagem, o outro é concebido não como um indivíduo que atribui cognições e intenções à criança, mas como um sujeito que assume, conforme já foi dito, a posição de representante da língua, posição essa que poderá ser, então, ocupada de diversas maneiras por diferentes intérpretes. Tal perspectiva permitiria, portanto, uma maior aproximação do papel desempenhado pelo outro na aquisição de linguagem, quando esse outro estivesse revestido de especial singularidade, como no caso deste estudo.

Cabe explicar que, de acordo com a referida abordagem de referencial estruturalista,o processo de aquisição de linguagem envolve mudanças estruturais da posição do sujeito em relação à língua, sendo os erros concebidos como indicadores de tais mudanças, e, nesse sentido, concebidos como centrais para a compreensão do processo de aquisição (CARVALHO; AVELAR, 2002).

No entanto, vale notar que, na perspectiva de base estruturalista, apesar de se ter aberto um espaço para se destacar o estatuto singular do outro no percurso lingüístico da criança, a ênfase é colocada, predominantemente, sobre o papel do outro materno. Sob essa perspectiva, mesmo quando se investiga o papel de outros adultos na trajetória lingüística das crianças, como, por exemplo, o professor e o terapeuta, trata-se de crianças que mantêm relação próxima e direta com seus pais. Não se coloca em discussão a aquisição de linguagem de crianças que não vivem com a família nem mantêm uma relação com outros adultos que se poderia dizer semelhante à que acontece entre mãe e filhos, recortada em estudos na abordagem em foco.

Esse fato desencadeou a problemática do presente estudo pelo fato de não serem poucas as crianças brasileiras que mantêm modelos de relação com adultos que não ocupam o papel de outro materno, ou seja, crianças que não convivem com os pais nem com um adulto que possa lhes dar uma atenção mais exclusiva e freqüente. Esse modelo de relação pode ser encontrado, por exemplo, em instituições que servem de abrigo protetivo2 às crianças, nas quais se têm, geralmente, apenas um adulto responsável por dar atenção e cuidados diários a um grupo de crianças.

Assim, é possível questionar se haveria algo de singular na trajetória lingüística infantil quando não se faz presente o outro materno nem um substituto seu direto. Pode-se dizer, então, que tal questionamento deu origem ao objetivo do estudo em foco, no sentido de refletir, com base no interacionismo de referencial estruturalista, sobre o papel desempenhado pelo outro/cuidador na aquisição de linguagem de crianças que vivem em abrigos.

Mais especificamente, o presente estudo teve por objetivo investigar os efeitos que as produções estranhas da fala das crianças produzem sobre o outro/cuidador, por meio da postura que esse outro assume diante de tais produções.

Buscou-se, ainda, averiguar, uma vez que o outro materno é abordado pela teoria de referencial estruturalista como exercendo um papel determinante na linguagem da criança, ao ser este outro substituído, se haveria indicações de singularidade na trajetória lingüística da criança que vive em abrigo protetivo. Tal singularidade se realça a partir da referência a diálogos entre díades de mãe e filhos, citados e analisados em estudos de aquisição de linguagem que assumem a proposta de De Lemos (1995, 2002, 2006) como marco teórico.

Convém esclarecer, entretanto, que não se objetivou investigar as diferenças existentes entre cada conjunto de dados – relações dialógicas entre mãe e filho e entre cuidador e crianças – comparando-os entre si, mas se pretendeu apenas fazer uso do primeiro como recurso, como exemplo, em momentos nos quais se fez necessário tornar clara a singularidade do outro/intérprete/cuidador.

Para atender aos objetivos aqui propostos, realizou-se um estudo longitudinal com crianças que vivem em uma Unidade de Atendimento Protetivo da Fundação da Criança e do Adolescente (Fundac). No entanto, antes de iniciar uma descrição mais detalhada deste estudo, convém tecer algumas considerações acerca da proposta de De Lemos para explicar a passagem de infans a falante de determinada língua.

A proposta de referencial estruturalista desenvolvida por De Lemos (2002, 2006) volta-se para a relação entre a criança, o outro e a língua. Tal relação, apesar de sugerir uma dependência da fala inicial infantil quanto à fala do outro/adulto, sugere, também, que essa dependência não se constitui imitação ou reprodução dos enunciados do outro. Ou seja, apesar de fragmentos da fala do adulto retornarem no discurso infantil, eles podem ser recombinados e reinterpretados, trazendo à tona a heterogeneidade e a imprevisibilidade da fala da criança.

Exemplos dessa imprevisibilidade podem ser visualizados, principalmente, no que fora classificado por Carvalho (2006) como “erros de não saber”. Tais erros diferem dos “erros de saber”, caracterizados por responder a um padrão da língua, como o uso do fazi no lugar do fiz, por serem verbalizações imprevisíveis, que não corresponderiam a um padrão da língua, gerando, então, um efeito de estranhamento no adulto.

Os erros imprevisíveis baseiam-se, portanto, em uma maneira singular de combinar significantes, sendo qualificados, por Lemos (2002), do ponto de vista da análise lingüística, como produções estranhas para um já falante. Essas produções, por sua vez, são consideradas fundamentais para a compreensão do processo de aquisição de linguagem, sendo concebidas como indícios de mudança estrutural da posição da criança em relação à língua, por sinalizarem a sua saída do estágio de total submissão à fala do outro.No que se refere a essas mudanças estruturais, no percurso que vai da condição de infans à de falante, De Lemos (2002) busca compreender o processo de constituição do sujeito como falante de uma língua.

Para tanto, a referida autora, tomando por base teóricos como Saussure e Jakobson, no campo da lingüística estrutural, e Lacan, na esfera da psicanálise, propôs uma abordagem estrutural do fenômeno da aquisição de linguagem. Nessa concepção, o percurso lingüístico da criança é compreendido como um processo de subjetivação, configurado por mudanças de posição da criança numa estrutura triádica composta pelos seguintes pólos: o outro (como instância representativa da língua), a língua (em seu funcionamento) e a própria criança (DE LEMOS, 2006).

Desse modo, delimitam-se, na trajetória lingüística infantil, três estágios diferentes pelos quais a criança passa, muito embora não se possa falar em superação de um estágio. De acordo com Lier-DeVitto e Faria (2007, p. 27), “a mudança não é pensada pelo viés da cronologia (nos moldes sugeridos pela psicologia), mas tratada a partir de um raciocínio estruturalista”.

Na primeira etapa, há uma dependência ou mesmo um espelhamento da fala da criança em relação à fala do outro adulto (dominância do pólo do outro). Já na segunda, é o funcionamento da língua que exerce domínio. Na terceira etapa, por fim, há o predomínio da relação do sujeito com a sua própria fala.

No que tange às produções insólitas da fala infantil, convém ressaltar, ainda, que elas se baseiam numa maneira singular de combinar significantes, isto é, de cruzar cadeias verbais. Esse cruzamento ocorre por meio de relações de contigüidade ou de aproximação entre cadeias (processos metonímicos) e de substituições (processos metafóricos), dando lugar a uma heterogeneidade na fala da criança.

Em síntese, pode-se dizer que as produções estranhas da fala infantil não possuem um sentido único e determinado. Em virtude do seu caráter equívoco, essa linguagem enigmática impõe a interpretação como necessidade, como uma tentativa de decisão sobre o seu significado, e, por isso, é formalmente dependente da fala do outro/adulto.

Interpretação é aqui compreendida, num sentido muito geral, como o ato de atribuir forma, significado e intenção aos enunciados infantis (LIER-DeVITTO; ARANTES, 1998).

Os efeitos dessa interpretação, isto é, das restrições e ressignificações, se fazem sentir, desde muito cedo, na fala da criança, uma vez que é por meio da interpretação que o outro atribui forma e significado à produção enigmática da fala infantil, estruturando a criança na linguagem.

Convém ressaltar, contudo, que os efeitos da interpretação, durante a interação 3, não se restringem ao imediato, podendo a fala do adulto retornar na fala da criança em qualquer momento da sua trajetória lingüística. O que a criança diz guarda, de certa forma, relação com algo já dito e dito de um modo específico.

Entretanto, segundo Lemos (2002), a mensagem interpretada pela mãe não será, simplesmente, incorporada à fala da criança e por ela reproduzida, mas sim deslocada e recombinada, o que faz com que a mãe a receba com estranheza e sinta-se, novamente, convocada a intervir.

É possível, então, falar em espelhamento recíproco (DE LEMOS, 2002) na medida em que a criança espelha a fala da mãe, que, por sua vez, por meio de suas interpretações, espelha a fala infantil. O outro funciona, portanto, como um espelho para a criança, isto é, como um lugar no qual ela pode ver a sua fala refletida.

É nesse contexto que a criança depende do outro para se escutar, pois o que ela diz encontra, no diálogo, uma significação que vai possibilitar, posteriormente, a fala. Por conta disso é que se explica a impossibilidade de analisar a fala da criança isoladamente; é no diálogo que o discurso vai ganhando sentido, tornando-se interpretável.

É, portanto, o diálogo que dá lugar ao outro. Esse outro não tem a função de fornecer a língua ou de acionar um conhecimento lingüístico interno da criança; não ensina a criança a falar, mas fala com/por ela. No diálogo, o outro, segundo Bakker Faria (2002, p. 37),

[...] repete a criança e, ao fazê-lo, interpreta-a, isto é, coloca a sua fala em um texto, tirando-a da indeterminação original ao dar-lhe sustentação gramatical, semântica e textual. Esta constatação aponta para um fato praticamente ignorado pelos pesquisadores, de que a mãe repete a criança e não simplesmente o contrário, a criança repetindo, imitando, a mãe.


No entanto, ao refletir sobre o papel fundamental da fala do outro como atividade interpretativa que, portanto, tem um papel central na trajetória lingüística infantil, traz-se à tona uma questão: que efeitos a ausência da interpretação provoca na fala da criança?

Essa questão é discutida, principalmente, nos estudos de Lier-DeVitto (1995, 1998) que investigam os monólogos infantis, ou seja, os momentos em que a criança encontra-se só, em que não acontece a interpretação do outro. Nos momentos de monólogo, Lier-DeVitto (1995, p. 53) observa que “na ausência da palavra estruturante do outro, daquele que aprisiona vocalizações e fragmentos da criança em redes de relações e de sentido, a criança fica ‘em descontrole’ do que diz”. O discurso infantil, quando na ausência do outro, fica instável, indeterminado e descontrolado, pois o sentido não se define, já que não há interpretação.

Pode-se dizer que o que se presencia, nesse discurso da criança, entre outras coisas, são pedaços/restos ou, até mesmo, fragmentos inteiros advindos da voz do outro e que se articulam de modo peculiar na voz da criança. Vê-se, então, que, embora não haja interpretação, não cessam os efeitos da fala do outro, provenientes de um funcionamento lingüístico com que a criança já entrou em contato. Em outras palavras, mesmo durante os momentos de monólogo infantil, o outro se faz presente na fala da criança como presença de corpo ausente (DE LEMOS apud LIER- DeVITTO, 1998).

A criança, de acordo com a abordagem teórica em foco, depende, então, do outro, pelo menos do ponto de vista da aquisição de linguagem, quer esse outro esteja presente na interação dialógica com a criança, quer esteja presente de corpo ausente (como nas situações de monólogo infantil).

 

Método

Como já fora dito, os estudos em aquisição de linguagem geralmente privilegiam o papel do outro/intérprete, sendo esse outro representado pela mãe. Eessa forma, tendo especificado como objetivo geral do presente estudo investigar a singularidade do papel do outro/cuidador no processo de aquisição de linguagem, as indicações acerca desta singularidade somente puderam ser feitas pelo fato de se terem tomado como referência investigações sobre o papel do outro na trajetória lingüística de crianças que mantêm relação de proximidade com suas mães.

Entretanto, é importante lembrar/ressaltar que, neste estudo, os diálogos investigados foram aqueles registrados entre crianças e a cuidadora por elas responsável. No que se refere aos fragmentos de diálogos entre mães e seus filhos, esses foram analisados em estudos que, com base no interacionismo de referencial estruturalista, investigam o percurso lingüístico de crianças que mantêm uma relação de proximidade com o outro/materno ou com um substituto direto desse outro. Tais fragmentos foram tomados, uma vez que são considerados representativos da relação do outro/intérprete/mãe com a fala infantil, sendo eles, muito freqüentemente, citados para ilustrar tal relação (DE LEMOS, 2002, 2006; CARVALHO, 2006; LEMOS, 2002).

Para atender ao objetivo deste trabalho, realizou-se, na cidade do Recife, um estudo longitudinal durante 11 meses, em que s e visitou, quinzenalmente, uma Unidade de Atendimento Protetivo da Fundação da Criança e do Adolescente de Pernambuco (Fundac/PE), registrando, em áudio, por cerca de 20 minutos, os diálogos de três crianças com a cuidadora por elas responsável. Tais registros foram realizados no turno da manhã; mais especificamente, nas primeiras horas do dia.

A cuidadora era funcionária da Fundac/PE e tinha, como grau de escolaridade, o Ensino Médio completo.

Dentre as três crianças que participaram do estudo, duas tinham 4 anos de idade e uma tinha 5. Todas estavam abrigadas desde os primeiros dias de vida e não tiveram contato com a família em momentos anteriores. Todos os cuidados e as interações foram vividos no abrigo, para que, desse modo, se privilegiasse a relação criança-cuidador. As três crianças eram do sexo masculino.

Convém esclarecer, que, como, no presente estudo, investigou-se a forma pela qual o outro/cuidador se relaciona com a fala infantil, foram utilizadas como amostra crianças com expressão verbal, ainda que fosse por meio de uma fala inicial. Assim, esse aspecto se sobrepôs à necessidade de escolher participantes pertencentes a uma faixa etária específica, fazendo parte do estudo, portanto, aquelas crianças que, além de estarem abrigadas desde o início de suas vidas, possuíam linguagem oral que lhes possibilitasse desenvolver uma interação dialógica com um outro.

Considerando-se, ainda, as características dos participantes deste estudo, cabe ressaltar que o fato de as três crianças serem do sexo masculino justifica-se porque a maior parte da população de crianças que está no abrigo pertence a este sexo.

No que se refere à situação de investigação, em uma sala do abrigo, solicitava-se à cuidadora que mantivesse um diálogo, o mais espontâneo possível, com as três crianças, sem haver determinação prévia de temática a ser abordada. Na maioria das sessões, nas quais a investigadora registrava os diálogos da cuidadora com as crianças durante 20 minutos, estavam presentes todos os participantes do estudo, havendo a ausência de alguma criança apenas quando, por algum motivo, esta não se encontrava na instituição. Cabe ressaltar que, antes de iniciar a situação de investigação, o presente estudo foi autorizado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), tendo como código de protocolo de pesquisa o registro 170/2003-CEP/CCS.

A análise dos diálogos realizou-se em etapas: primeiramente, as produções lingüísticas registradas foram minuciosamente transcritas pela própria investigadora. Em seguida, destacaram-se os enunciados insólitos produzidos pelas crianças, os quais causaram estranhamento à c uidadora e/ou à investigadora.

Em um segundo momento, desenvolveu-se uma análise da postura do outro/cuidador diante de tais enunciados estranhos, ou seja, destacaram-se características que se sobressaíram nessa postura. Faz-se importante esclarecer, entretanto, que, em tal procedimento, não se teve o objetivo de formar categorias (já que foram definidas logicamente), mas visou-se, tão-somente, a um “agrupamento” de características dominantes para uma melhor visualização e análise destas.

Por fim, para ressaltar o papel singular do outro/cuidador na trajetória lingüística de crianças abrigadas, utilizaram-se, como exemplos, alguns fragmentos de diálogos entre crianças e suas mães, que foram analisados em estudos que se inserem na perspectiva de referencial estruturalista de aquisição de linguagem.

 

Discussão de resultados

Houve diferenças no que concerne à maneira pela qual o outro/cuidador se relaciona com a fala infantil, no sentido da postura que esse outro assume diante dos enunciados insólitos das crianças.

Nos estudos em que a relação do outro materno com a fala infantil é investigada, observa-se que são raros os momentos nos quais a mãe não busca interpretar os enunciados estranhos das crianças, ou seja, é constante a mãe assumir uma postura de intérprete dos enunciados infantis.

Considera-se que é por meio da interpretação da mãe, no diálogo com o outro materno, que os enunciados infantis ganham significado. A análise do episódio a seguir, realizada por De Lemos (1995, p. 24), permite ilustrar essa afirmação:

Criança (Ma. 1;8.6 4) se aproxima da televisão e sua mãe (M.) tenta afastá-la do aparelho.

Ma.: não/não/ (ou )

M.: Quebrô sim.

Ma.: a

M.: É, vai pó. Você sabe pôr.

Ma.: a

M.: O Pô vem aqui amanhã. Amanhã o Pô com a Titê, para levá a Mariana na praia.

Ma.: iáia/iáia

M.: Ai que gostoso que a Titê vai chegar, né, filhinha?

Ma.: igá, eva baldinho móia?

M.: Ã?

Ma.: eva baldinho móia?

M.: Ah, você vai levar o baldinho na praia? Vai levar o caminhãozinho... Que é que você vai pôr dentro do baldinho?

Ma.: aga

M.: Água. Hum, que gostoso! Vai brincar bastante na água, vai?

Nesse sentido, com base na referida autora, o primeiro aspecto a se destacar nesse episódio é a interpretação da mãe, isto é, suas tentativas de atribuir forma e sentido ao monossílabo . A indeterminação desse fragmento é um dos fatores que levam o outro materno a buscar significá-lo inicialmente como , forma reduzida de quebrô; possivelmente, em virtude do contexto discursivo de afastar Ma. da televisão.

Entretanto, ao repetir o mesmo fragmento precedido de a, a criança parece não aceitar a interpretação da mãe, que, numa segunda tentativa, supõe a relação entre e a forma verbal pôr, sendo novamente frustrada por mais uma repetição de .

Ma. só ancora sua fala no texto da mãe quando esta faz referência a algo que está ausente do campo perceptual de ambas – criança e mãe –, ou seja, aos tios da menina que farão uma visita. Nesse momento, o monossílabo ganha determinação semântica e formal, escapando da homonímia.

Assim sendo, pô é inserido pela mãe em uma cadeia textual, na qual a criança se inclui pelo enunciado eva baldinho móia. Vale ressaltar que a agramaticalidade desse enunciado não impede que ele seja identificado com o texto que o liga à praia.

Como se pode observar no diálogo entre mãe e filho, analisado por De Lemos (1995), o outro materno impõe uma restrição aos enunciados infantis, ou seja, atende ao ato dedar forma, significar e ressignificar tais enunciados.

Nesse ponto, para colocar em discussão a forma pela qual o outro/cuidador se relaciona com a fala das crianças abrigadas, cabe fazer uso de tal característica da relação entre o outro/materno e a fala infantil. Em diversos momentos da interação dialógica entre o outro/cuidador e a criança, o outro, de maneira geral, não interpretou os enunciados insólitos infantis, deixando-os indeterminados.

Pergunta-se, portanto, por que esse outro específico – o cuidador – não interpreta, de forma dominante, os enunciados estranhos da fala da criança? Ao que parece, em muitos momentos dos diálogos, a cuidadora estaria atribuindo à fala infantil um caráter de não-saber, ou seja, atribuindo a essa fala a característica de não querer dizer nada, de não ter intenção alguma, e, por isso, esse outro parece não escutar determinadas produções da fala das crianças, ou parece mesmo ignorá-las. Possivelmente, conforme a cuidadora, falta às crianças o conhecimento necessário para que elas possam se expressar adequadamente, e, assim, terem a sua fala considerada dotada de significado. O episódio a seguir ilustra um momento no qual a cuidadora expressa sua opinião sobre a fala da criança:

V. (4;11)

A.: Bora mais. Ó.

V.: É folim.

A.: Não fala nada direito para a gente escutar e entender, não é; ele? [se dirige para investigadora] Esse menino não fala nada direito. Vou ver se ele fala melhor. Isso é o quê, V.? Que bichinho é este?

V.: É o boi.

A.: Mas tá parecendo mesmo com um boi! Esse aqui. Não sabe o que é isso, não? É o sapo, V., S-A-P-O.

V.: Papo.

Vê-se, então, nesse episódio, que a cuidadora não apenas dá indícios de que ignora a produção insólita folim da fala infantil, como também explicita que a criança não fala nada direito, nada que possa ser escutado e entendido.

Uma característica que pode ser, muito freqüentemente, indicada na relação da fala do outro/cuidador com a fala da criança é a expectativa por enunciados considerados corretos. Tal característica também pode ser observada no momento em que a cuidadora substitui o significante usado por V. para nomear a figura do livro (boi por sapo). Essa substituição não se apresenta apenas como uma correção da fala da criança; novamente, a fala da cuidadora traz à tona suas considerações acerca do não-saber da fala infantil.

Tomando como referência a relação da mãe com a fala do filho, relação essa analisada em estudos de De Lemos (2002, 2006), Lier-DeVitto (1995, 1998), Lier-DeVitto e Arantes (1998) e Pereira de Castro (1998), a reflexão anterior permite indicar características no que se refere à forma pela qual o outro/cuidador se relaciona com a fala infantil.

O outro materno, de acordo com estudos citados, desempenha, predominantemente, o papel de intérprete da fala da criança, enquanto o outro/cuidador, constantemente, parece ignorar os enunciados infantis, incomuns para a língua constituída.

Produções estranhas como folim, por não manterem semelhanças com a fala do adulto, e, conseqüentemente, não poderem ser interpretadas com base em um sentido único, são comumente ignoradas pelo outro/cuidador.

Os fragmentos de diálogo a seguir também ilustram momentos nos quais, diante de enunciados infantis que se apresentam como produtos de relações entre cadeias que se cruzam, produzindo fragmentos imprevisíveis e indeterminados, a cuidadora parece ignorar tais enunciados, inserindo uma nova temática na conversa.

R. (5; 04), V. (4; 11)

R.: Cadê? Tilou roupa de tio maditula, Tilou roupa de tio maditula, Tilou roupa de tio maditula.

A.: Como é o nome da tua mãe?

V.: Mainha.

R. (5; 06)

A.: Já começaram as tuas aulas? Já?

R.: Fazetê de lá.

A.: Já começaram as tuas aulas? Tu é que série agora? Alfabetização, diga.

R.: Altetitão.

 

R. (5; 06)

A.: É? Qual o nome desse bicho?
R.: Missamini.

A.: Que fruta é essa?

R.: Mamana

Nesses exemplos, é possível observar que a cuidadora dá continuidade ao diálogo sem dar indícios de que estranha ou de que busca atribuir significado aos enunciados insólitos de R. (maditula, Fazetê de lá e Missamini).

Assim, destaca-se, como marca de singularidade, a postura que o outro/cuidador assume diante dos enunciados estranhos das crianças. Essa postura constitui-se, como já foi colocado, como não-interpretação dos enunciados infantis enigmáticos.

Convém ressaltar, entretanto, que, embora a cuidadora busque interpretar os enunciados infantis enigmáticos apenas em poucos momentos da interação dialógica, é possível observar, na fala das crianças, alguns fragmentos que vêm de outro lugar, isto é, que vêm da fala que o outro/cuidador produziu em momentos anteriores. Por meio de tais fragmentos, portanto, o outro/cuidador se faz presente na fala das crianças.

Muitos dos enunciados das crianças parecem constituir-se por meio do espelhamento da fala do outro, ou seja, em diversos momentos dos diálogos, a criança espelha, de maneira imediata ou diferida, a fala do outro/cuidador, como em:

S. (4; 06)

A.: Tu vai para escola?

S.: Para escola.

A.: Tu vai ganhar uma bolsa, caderno, lápis.

S.: Láipis.

A.: O que mais?

S.: É, é, é, R. vai para escola, vai para escola.

A.: R. é, ele vai para escola, vai levar lanche.

S.: Vai levar lanche.

Essa análise permite que se discuta sobre o lugar central que o outro/cuidador e sua relação com a fala infantil ocupam no processo de aquisição de linguagem das crianças abrigadas. Assim sendo, ainda que a cuidadora, diante dos enunciados insólitos das crianças, pouco se faça presente como intérprete de corpo presente da fala infantil, esse outro/cuidador é parte integrante do diálogo como instância de funcionamento lingüístico discursivo, o que lhe permite, de modo singular, estruturar a interação dialógica.

É possível indicar, então, que a referida postura que o outro/cuidador assume diante dos enunciados insólitos produzidos na fala infantil parece imprimir marcas de singularidade na fala das crianças, como também na própria estrutura da interação dialógica.

No que se refere à estrutura dos diálogos, destaca-se que tais diálogos parecem se estruturar em turnos de perguntas e respostas, nos quais, para cada pergunta, espera-se uma resposta específica, produzida de forma correta. Nesse contexto, são mais comumente realizadas, pela cuidadora, perguntas para as quais se espera que o interlocutor/criança saiba a resposta (Qual é o seu nome? Qual o meu nome? Qual o nome do teu irmão? Da professora? Que animal é este?).

Essa característica singular da estrutura dos diálogos entre cuidadora e crianças não está presente apenas nesse tipo de diálogo. O que possibilita falar em singularidade, no que se refere à estrutura dos diálogos entre cuidadora e crianças, é o fato de a cuidadora dar preferência a uma interação que se estrutura em turnos de perguntas e respostas.

Tentativas de manter o turno dialógico de perguntas e respostas adequadas podem ser indicadas no próximo episódio.

R. (5; 04)

A.: E de manhã? Fez o quê?

R.: Fui pá etola.

A.: Muito bem! E chegando na escola, fez o quê, R.?

R.: Ela todatolaiala.

A.: Sim, mas ela disse o quê? Disse o quê para a turma?

R.: Pá tuma.

A.: A professora disse o quê? Brincaram de quê?

R.: Todelê, todelê.

A.: Teve tarefa?

R.: Talefa não, talefa na bolsa não.

Nesse episódio, a cuidadora faz uma série de perguntas (Chegando na escola, fez o quê? Ela disse o quê? Disse o quê para a turma? A professora disse o quê? Brincaram de quê? Teve tarefa?) sobre o contexto escolar.

Quanto à fala infantil, é importante destacar que, com essa interlocução singular da cuidadora, durante a interação dialógica, ocorreria um movimento no qual as crianças passariam continuamente de uma posição em que estão ancoradas na fala do outro para uma posição em que falta esse suporte. Dito de outro modo, em alguns momentos dos diálogos, as crianças parecem produzir enunciados estruturados pela presença do outro/cuidador, ou seja, respondem às perguntas da cuidadora, que, por sua vez, faz a réplica de maneira bastante previsível, e as crianças modificam/reformulam, a partir da fala desse outro, as respostas dadas. Em outros momentos, quando as crianças produzem enunciados estranhos, o outro, comumente, parece não se fazer presente, isto é, parece não interpretar tais enunciados, deixando-os indeterminados.

Portanto, faz sentido perguntar, quando o lugar de outro (como representante da língua) é ocupado de uma forma tão singular pelo cuidador, se isso não estaria produzindo efeitos sobre a constituição das crianças abrigadas como sujeitos falantes de uma língua.

 

Considerações finais

Nos estudos realizados acerca do percurso de aquisição de linguagem, que possuem a abordagem de base estruturalista como suporte teórico, o outro é considerado essencial.

Assim, em muitos dos momentos de interação dialógica com seus filhos, o outro materno assume esse papel de intérprete da fala infantil, isto é, tenta atribuir forma e sentido aos enunciados insólitos produzidos pelas crianças

No entanto, quando se analisa o papel que o cuidador assume ao ocupar o lugar de outro na relação com as crianças que vivem no abrigo, é possível indicar, com base nos casos estudados, que a postura desse outro, diante dos enunciados infantis estranhos, comporta características específicas, havendo, com mais predominância, uma postura de indiferença por parte da cuidadora, ou seja, uma postura que não dá indícios de sentimentos de estranheza ou indícios relacionados a tentativas de interpretação dos enunciados insólitos infantis.

Nesse contexto, pode-se discutir, então, a interpretação por meio dos efeitos que a sua ausência provoca na fala infantil, isto é, em momentos em que não há a interpretação do outro diante dos enunciados insólitos, seria possível refletir sobre a importância dessa interpretação no percurso lingüístico da criança.

Portanto, sobre o estatuto do outro/intérprete, enquanto exercendo um papel determinante para a linguagem da criança, é possível questionar: no momento em que o lugar de outro é ocupado de modo singular por um cuidador, isso indicaria também marcas de singularidade no processo de aquisição de linguagem das crianças que vivem em abrigos?

Antes de dar início a essa discussão, convém ressaltar que as crianças abrigadas, de um modo geral, constituem-se como sujeitos falantes de uma língua, ou seja, estão adquirindo a linguagem. Sugere-se, entretanto, que a trajetória lingüística desses sujeitos abre espaço para conceber uma trajetória que teria marcas de singularidade, uma vez que, num momento inicial do processo de aquisição de linguagem, as crianças estariam se relacionando com um interlocutor (o cuidador) que assume uma postura singular diante da sua fala.

Nesse ponto, é importante considerar que outras variáveis ou fatores poderiam contribuir para tais marcas de singularidade no percurso lingüístico das referidas crianças. A própria Instituição constitui um ambiente singular que, provavelmente, produz efeitos constitutivos nas crianças, considerando o contexto no qual as mães de classe média que geralmente participam dos estudos em aquisição de linguagem vivem com seus filhos. No entanto, como não foi objetivo do presente estudo discutir tais efeitos, refletiu-se apenas sobre os efeitos do papel do outro/cuidador em sua relação com a fala infantil.

Retomando essa reflexão, sugere-se que o cuidador, como alguém que ocupa, num momento inicial da trajetória lingüística infantil, o lugar de outro/interlocutor da fala das crianças, estaria, de um modo singular, participando de uma aquisição também singular da linguagem.

É possível, portanto, indicar algumas características que parecem tornar diferente/singular o percurso das crianças abrigadas de infans a sujeito falante, tomando, como referência, os estudos em aquisição de linguagem que se baseiam na mesma perspectiva de base estruturalista.

Inicialmente, importa destacar a idade com que as crianças que vivem no abrigo se tornam falantes de uma língua. O grupo infantil participante do estudo em questão tinha entre 4 e 5 anos de idade, o que, em virtude de algumas das características de sua fala, como a presença de erros e a pouca freqüência com que reformulavam a sua própria fala para aproximá-la da fala do outro, poderia indicar um atraso no processo de aquisição de linguagem dessas crianças.

Outra característica que merece ser discutida, no que concerne aos efeitos que seriam produzidos sobre a fala das crianças abrigadas quando o lugar de outro é ocupado pelo cuidador, refere-se à marcante relação de dependência que a fala infantil parece manter com a fala da cuidadora durante a interação dialógica. Em outras palavras, a cuidadora comumente iniciava e finalizava os diálogos, mudava a temática das conversas e oferecia as respostas que deveriam ser produzidas pelas crianças.

Em muitos momentos dos diálogos entre as crianças e a cuidadora, esta manteve uma relação com as crianças na qual se faziam determinadas perguntas com respostas específicas esperadas. Quando tais respostas não eram produzidas pelas crianças, a cuidadora corrigia a fala infantil, oferecendo a resposta (supostamente) correta para aquele contexto discursivo.

É por essas situações, portanto, que se pode indicar que, mesmo nos momentos em que a interpretação do outro/cuidador não se faz presente, as produções verbais infantis estariam sendo estruturadas pela presença do interlocutor, por meio da referida relação de perguntas e respostas que direcionariam e restringiriam a interação dialógica.

Interessa notar, pelo que foi colocado anteriormente, que a relação de dependência à fala do adulto/cuidador vai além das etapas de início e término dos turnos dialógicos, isto é, além da estruturação do diálogo, na medida em que a fala desse outro teria sido manifestada na fala infantil, mesmo na ausência da interpretação.

Explicando melhor, em muitos momentos dos diálogos entre cuidadora e crianças, fragmentos da fala do outro/cuidador ou da sua interpretação estariam retornando na fala das crianças. Na perspectiva teórica assumida, tal presença/retorno poderia ser concebida como um espelhamento imediato ou diferido de enunciados do adulto/cuidador, ou seja, tanto a criança estaria espelhando, em sua fala, enunciados imediatamente anteriores a essa fala, como também aqueles produzidos pela cuidadora em outros momentos, em outros contextos discursivos. Tendo em vista que as crianças estariam espelhando enunciados/interpretações anteriores, pode-se notar que a interpretação do adulto estaria, ainda que de forma singular, atuando sobre as crianças, mesmo na sua ausência.

É possível indicar que o fato de o outro/cuidador assumir um papel singular no processo de aquisição de linguagem da criança, ainda que seja predominante, por parte desse adulto, uma postura de não-intérprete em relação a muitos dos enunciados insólitos da fala infantil, não significa que esse outro não se faça presente como instância de funcionamento lingüístico à que a criança é submetida.

Ao que parece, portanto, o papel do outro, no processo de aquisição de linguagem das crianças, pode ser assumido por diversos outros de formas singulares. Mas a importância desse papel não estaria sendo colocada em questão, ou seja, mesmo quando tal papel é exercido de maneira diferente/singular, vê-se que é por meio deste outro que a criança se estrutura como sujeito falante de uma língua.

Assim sendo, sobre o estatuto do outro na aquisição de linguagem, convém ressaltar que o papel singular de cuidador na trajetória lingüística infantil possibilita colocar em discussão as mais diferentes presenças, isto é, os mais diferentes sujeitos, ocupando, de maneiras diversas, essa posição de outro e produzindo efeitos singulares na fala da criança.

Não parece demais lembrar que não se está questionando, aqui, o papel fundamental do outro na constituição da criança como sujeito falante, ou mesmo o papel que esse outro assume como intérprete da fala enigmática e indeterminada das crianças. No entanto, quando se fala em diferentes sujeitos (mãe, cuidador, professora, terapeuta etc.), que assumem o lugar de outro na trajetória lingüística infantil, abre-se caminho para se colocar, também, em discussão, a forma como esse papel é desempenhado, ou seja, a forma como esse outro se relaciona com a fala infantil e a interpreta, e a singularidade que esses papéis imprimiriam ao próprio processo de aquisição de linguagem das crianças.

Acredita-se, portanto, que essa investigação constituiu-se um caminho aberto para que se possam aprofundar discussões sobre o papel desempenhado por diferentes outros na aquisição de linguagem, reiterando-se, então, que ainda se faz necessário um maior número de estudos que abarquem a relação desses outros com a fala das crianças.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Fernanda Rabelo de Carvalho Beltrão
QRSW 3, bloco A-05, ap. 201
Brasília – DF
CEP 70675-305
E-mail: fernandarc@gmail.com

Tramitação
Recebido em fevereiro de 2007
Aceito em fevereiro de 2008

 

 

1 O estudo apresentado neste artigo foi realizado como parte da dissertação de mestrado da primeira autora sob orientação da segunda autora. Dissertação defendida na Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva, Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, em março de 2005. Recebeu apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) por meio de bolsa de mestrado.
2 Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, são instituições que se destinam a abrigar crianças que passaram por situação de falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis, ou, ainda, que estavam em situação de abandono. “O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade” (BRASIL, 2000, p. 32).
3 Manter-se-ão os termos interação, diálogo e interação dialógica independentemente dos questionamentos relacionados à pertinência do seu uso.
4 Para manter a identidade dos participantes em sigilo, as crianças serão identificadas apenas pela inicial de seus nomes e a cuidadora pela letra A. Os números entre parênteses significam a idade da criança, indicada em anos e em meses, no dia em que o diálogo foi registrado.