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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.10 no.1 São Paulo June 2008

 

ARTIGO ORIGINAL

 

As drogas no âmbito familiar, sob a perspectiva do cinema

 

Drugs in the family environment, from the cinema perspective

 

Las drogas en el ámbito familiar, de la perspectiva del cine

 

 

Eroy Aparecida da Silva; Beatriz M. V. Camargo; Thiago Pavin; Ana Regina Noto; Delmara Buscatti; Vânia Sartori; Maria Lucia O. S. Formigoni

Universidade Federal de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Por meio da imagem, o cinema trouxe ao homem a possibilidade de reconstruir a realidade de forma que o envolvimento psíquico-afetivo do público seja intenso. O objetivo desta comunicação breve é descrever, sob a perspectiva do cinema, diversos tipos de relações familiares na presença do uso de drogas. Realizou-se uma seleção de cinco filmes produzidos entre 1995 e 2001 que trabalham a temática do uso de drogas e das relações familiares. Os filmes selecionados foram: Bicho de sete cabeças (nacional); Traffic, Réquiem para um sonho, Diário de um adolescente (americanos); e Trainspotting – sem limites (europeu). O estudo focalizou três aspectos: dinâmica familiar, tipos de drogas utilizadas e as reações das famílias diante do problema. Identificaram-se três dinâmicas familiares: a) rígida e autoritária; b) permissiva e sem limites; e c) distante e dependente. As reações familiares diante do uso de drogas variam entre raiva, insegurança, culpa, cumplicidade e medo. Este estudo possibilitou o reconhecimento da importância do uso da imagem como recurso didático e terapêutico seja no treinamento de profissionais, seja na clínica de tratamento familiar.

Palavras-chave: Drogas, Família, Cinema.


ABSTRACT

The post-modern culture is highly visual. The cinema has enabled men to rebuild what is real through images. This is done in such a way that the public psycho-affective involvement is intense. The objective of this study was to describe family dynamics in the presence of drugs according to the cinema perspective. We chose 5 movies produced between 1995 and 2000 which involved drug use and family relationship, as follows: Bicho de sete cabeças” (Brazilian); TrainspottingTraffic, Requiem for a dream, The basketball diaries (American movies); and Trainspotting (European). We focused on scenes related to the repercussion of drug use in the family relationship. In fact, this study focused strictly on three aspects of them: family dynamics, the kind of drugs used by the household members and the family reactions to the problem. The images show some family dynamics: rigid and authoritarian, permissive and without limits, distant and dependent. They also show all the family members reactions such as anger, guilt, psychological insecurity, complicity and fear. This study made it possible to recognize how important the use of images is as didactic and therapeutic resources, both while training professionals as well as when it comes to the family therapy area.

Keywords: Drugs, Family, Movie.


RESUMEN

El cine trajo al hombre a través de la imagen la posibilidad de reconstruir la realidad de forma tal que la implicación psíquica-afectiva del público fuese intensa. El objetivo de esta comunicación breve es describir, según la perspectiva del cine, diversos tipos de relaciones familiares en la presencia de uso de drogas. Se realizó una selección de cinco filmes producidos entre 1995 y 2001 que trabajan la temática de uso de drogas y de las relaciones familiares. Los filmes seleccionados fueron: Bicho de siete cabezas (nacional); Traffic, Réquien para un sueño, Diario de un adolescente (americanos); y Trainspotting (europeo). El estudio focalizó tres aspectos: dinámica familiar, tipos de drogas utilizadas y las reacciones de las familias frente al problema. Se identificaron tres dinámicas familiares: a) rígida y autoritaria; b) permisiva y sin límites; c) distante y dependiente. Las reaciones familiares frente al uso de drogas varian entre rabia, inseguridad, culpa, complicidad y miedo. Este estudio posibilitó el reconocimiento de la importancia del uso da imagen como recurso didáctico y terapéutico sea en el entrenamiento de profisionales, sea en la clínica de tratamiento familiar.

Palabras clave: Drogas, Familia, Cine.


 

 

Introdução

O uso de drogas acompanha o homem desde os primórdios da história e tem provocado diferentes impactos no decorrer do tempo (MATHEW, 1992). O uso de drogas na Antiguidade era ritualístico, e tinha, como finalidade principal, a transcendência. Entretanto, esse comportamento modificou-se com o passar dos anos e o consumo de substâncias psicoativas, no mundo contemporâneo, passou a ter várias funções, dentre elas a busca de prazer individual, de alívio imediato para desconforto físico ou psíquico etc. (BUCHER, 1988; VELHO, 1994).

Este tema tem sido freqüentemente abordado não só por pesquisadores, profissionais de saúde e educadores, mas também nas artes, com destaque especial ao cinema e à literatura, o que pode ser observado pela variedade e quantidade de obras sobre o assunto
(METZ, 1980; CANEVACCI, 1984; PACHECO E SILVA FILHO, 1988).

A forma de comunicação mais usual da humanidade é a verbal. No entanto, o homem sempre utilizou outras formas de comunicação, como a gestual e a musical, e, mais recentemente, passou a também utilizar a “visual imaginética”, ou seja, a da associação da imagem à imaginação (ANDRADE, 1993).

A cultura pós-moderna é predominantemente visual e as imagens são um poderoso veículo de comunicação de massa. O cinema, seguido pela televisão e pelo computador, modificou as formas de comunicação humana. Segundo Menezes (1998, p. 51), no mundo contemporâneo, as imagens ocupam um lugar social que não pode ser subestimado e são uma forma de expressão relacionada a como a sociedade se concebe visualmente.

A invenção do cinema trouxe ao homem o desafio de reconstruir o real por meio da imagem, de maneira que o envolvimento psíquico-afetivo do público seja intenso. Assim, o cinema transforma-se em um poderoso instrumento de interferência na consciência e no psiquismo da população (NOVOA, 2000; FIKS; SANTOS JR., 2006).

Na literatura sobre droga e cinema, é possível observar diferentes maneiras de tratar o tema. Elas variam de acordo com os interesses dos próprios realizadores das películas, da indústria cinematográfica e da opinião pública, assim como variam de acordo com a evolução dos costumes nas diferentes culturas (URIS, 1995; ANTÓNIO, 1996; SHAPIRO, 2002).

O cinema tenta mostrar, por meio da construção de imagens e roteiros, as várias formas de manifestação do uso de drogas na sociedade e na família: abordam-se, entre outros, o narcotráfico, a dependência, as internações, a desintoxicação, a violência, os conflitos, as crises familiares (CHARLES-NICOLAS, 1981; SOEIRO, 1990; BISKIND, 1999).

Um dos primeiros filmes a tratar do tema das “drogas” no cinema de Hollywood foi O lírio quebrado, de David W. Griffith (EUA, 1919). Ele narra a história de um chinês pobre que se torna dependente de ópio e alimentava um amor platônico pela filha martirizada de um alcoolista, lutador de boxe londrino.

Por volta da década de 1920, mortes de artistas de Hollywood, provocadas por overdose de drogas, causaram problemas para a imagem da indústria cinematográfica americana, o que levou produtores e distribuidores americanos a evitar a realização de filmes sobre o tema. Nessa época, foram criadas normas de conduta que regulavam os argumentos a serem rodados e também o comportamento das atrizes e atores que os interpretavam. Essas normas ficaram conhecidas como o Código de Hayes (nome do redator) e ficaram vigentes por algumas décadas nos estúdios norte-americanos. Atores e atrizes, descobertos como usuários de drogas, eram colocados em uma “lista negra” que os impedia de trabalhar. Por isso, até meados dos anos 1950, foram poucos os filmes sobre o tema (ANTÓNIO, 1996; SHAPIRO, 2002).

Dois filmes da década de 1930, entretanto, destacaram-se por focalizar, pela primeira vez, o problema do uso de drogas no sistema familiar. O primeiro foi Heroes for sale, de William A. Wellman (1933), com Richard Barthelmess, que interpretou o papel de um veterano da I Guerra Mundial que se tornou dependente de drogas depois de perder o emprego e a esposa. O segundo foi The mistery of Edwin Drood, de Stuart Walker (1935), com Claude Rains no papel de um padre dependente de ópio que assassina seu sobrinho.

Na década de 1950, desrespeitando o código de conduta, voltaram a ocupar espaço no cinema americano os filmes que mostravam o uso de drogas relacionado à juventude e ao ambiente familiar, bem como questões relativas ao narcotráfico e às rebeliões sociais.

O cinema europeu também produziu vários títulos que trazem importantes reflexões sobre a questão do uso de drogas e as repercussões na família. Entretanto, no Brasil, é relativamente recente a filmografia que diz respeito ao uso de drogas e às relações familiares. Um dos filmes pioneiros sobre o tema no Brasil foi O ébrio, de Gilda de Abreu, com Vicente Celestino (1946). Nele são retratadas as mudanças na vida de um personagem que busca, no álcool, o “alívio” para suas dores.

Este estudo teve por objetivo descrever relações familiares na presença do uso de drogas, situação retratada em alguns fragmentos de filmes, e realizar uma análise qualitativa com base em conceitos sistêmico-cognitivos das relações familiares e da dependência de drogas.

 

Método

Realizou-se, inicialmente, um levantamento dos filmes que envolviam o tema das drogas, utilizando-se um dicionário de filmes, catálogos de videolocadoras e alguns periódicos sobre produção cinematográfica. Com base nessa listagem, foi feita uma seleção de cinco filmes (um brasileiro, três americanos e um europeu) produzidos entre 1995 e 2000 que retrataram o uso de drogas no âmbito familiar. Priorizaram-se as cenas relacionadas às repercussões do uso de droga na dinâmica familiar. De cada filme, selecionaram-se dois minutos de cenas, que foram editados em uma cópia VHS. Os temas centrais dos filmes são descritos a seguir.

1. Bicho de sete cabeças (direção de Laís Bodanzky, Brasil, 2000) – Esta produção brasileira mostra a história de um adolescente que gosta de desafiar perigos. No seu dia-a-dia comete algumas rebeldias incompreendidas pelos pais, como fumar maconha (baseado), pichar muros da cidade e usar brincos. O drama familiar atinge seu ápice quando os pais, sentindo que estão perdendo o controle, tomam a atitude de interná-lo em um hospital psiquiátrico. No manicômio, o adolescente é tratado de maneira desumana, considerando os “males” que causara à sociedade.

2. Traffic (direção de Steven Soderbergh, EUA, 2000) – Este é um filme que retrata o mundo do tráfico de drogas em três histórias inter-relacionadas. Na primeira, um juiz conservador da Suprema Corte Americana é nomeado chefe do combate às drogas no país. Logo em seguida, descobre que sua filha adolescente é dependente de drogas. Na segunda trama paralela, um rico e influente barão das drogas é preso, fato que deixa sua esposa perplexa, já que desconhecia as atividades ilegais do marido. Na terceira história, um policial trabalha na fronteira do México com os Estados Unidos combatendo o tráfico e, apesar do baixo salário, resiste às tentações de dinheiro e poder.

3. Réquiem para um sonho (direção de Darren Aronofsky, EUA, 2000) – Este filme conta as histórias de personagens que se envolvem com seus sonhos e compulsões. Harry, o personagem principal, quer ser rico; sua mãe quer ser magra, vê-lo feliz e casado. Sua namorada quer ter uma grife de luxo. Em meio a esses sonhos estão as drogas, que se tornam uma via de prazer e de dinheiro para Harry e sua noiva e um “tratamento” de emagrecimento para a mãe. Este drama retrata, em forma de arte, a presença da droga em todas as pessoas da família, por razões hedônicas ou econômicas.

4. Trainspotting – sem limites (direção de Danny Boyle, Inglaterra, 1996) – Esta produção retrata um grupo de jovens, na Edimburgo dos anos 1990, tão desesperadamente realista que para eles o futuro é inconcebível. Ao contrário dos que procuram o dinheiro ou o êxito, os personagens deste filme freqüentam o “lado obscuro da vida”, buscam as sensações intensas e o prazer imediato na heroína, no sexo e no rock and roll. Mostra a áspera linguagem dos seus personagens, semelhante à que podemos encontrar em ruas de qualquer cidade. Por fim, trata-se de um filme sobre a falta de esperança, em que a instituição “família” é colocada em discussão.

5. Diário de um adolescente (direção de Scott Kalvert, EUA, 1995) – A história se passa em Nova York, no início da década de 1970, em que o protagonista, Jim Carrol, faz parte de um grupo de rapazes unidos em um time de basquete. Eles iniciam o uso de drogas como forma de melhorar o rendimento no esporte, e, com a progressão do uso, tornam-se dependentes. Finalmente, mergulham numa realidade de violência, roubo, muitas drogas e conflitos familiares, cujas lembranças são registradas no diário de Jim.

Cada filme foi analisado por um grupo de cinco pesquisadores, que efetuou uma análise de conteúdo das cenas selecionadas seguindo as recomendações de Bardin (1977) para esse tipo de análise. O estudo das relações familiares e do uso de drogas pressupõe a identificação da dinâmica familiar, dos efeitos das drogas e as reações dos membros da família diante do consumo dessas substâncias (STANTON; TODD, 1985; STEINGLASS et al., 1989). Sob essa perspectiva e de acordo com o objetivo do estudo, três categorias foram determinadas para analisar os filmes. São elas: tipos de dinâmica familiar, tipos de drogas usadas, e as reações das famílias diante do problema.

Análise e discussão dos filmes

Este estudo está embasado nos modelos teóricos sistêmico e cognitivo da dependência de drogas. Do ponto de vista cognitivo, a dependência é considerada um complexo fenômeno biopsicossocial e um comportamento aprendido. A habituação ao uso de droga é circular, repetitiva e reforçada pela expectativa quanto aos efeitos imediatos da substância. A visão sistêmica da família pressupõe que o indivíduo, apesar de sua complexidade, não esteja isolado do contexto sociofamiliar. Pelo contrário, está conectado e interage em um processo circular. É na família que as experiências são construídas, transformadas ou repetidas. Refletir sobre a droga no contexto individual implica considerar o sistema familiar no qual o usuário está inserido (SILVA et al., 2006; SILVA, 2001; STANTON; TODD, 1985; MARLATT; GORDON, 1993).

Tipos de dinâmica familiar

Foram identificados quatro tipos de dinâmica familiar:

a) Rígida e autoritária: presente em Bicho de sete cabeças e Diário de um adolescente;

b) Permissiva e sem limites: presente em Réquiem para um sonho;

c) Oscilação entre independência e dependência: presente em Trainspotting e Réquiem para um sonho; e

d) Distanciamento afetivo: presente em Traffic.

Tipos de drogas utilizadas

Os cinco filmes focalizaram tanto o uso das drogas lícitas quanto das ilícitas. A droga mais comumente utilizada por personagens foi o álcool, presente em quatro dos cinco filmes:

Bicho de sete cabeças: maconha, tabaco, álcool;

Trainspotting: heroína, álcool, tabaco;

Traffic: álcool, anfetaminas, cocaína;

Diário de um adolescente: maconha, cocaína, álcool, anfetaminas;

Réquiem para um sonho: cocaína e anfetaminas.

Reações familiares

As imagens mostram várias reações familiares diante do uso de drogas:

• Raiva, insegurança, sofrimento, frustração, impotência: presentes em Bicho de sete cabeças;

• Raiva, desespero, insegurança, frustração, agressividade, impotência: presentes em Diário de um adolescente;

• Cumplicidade, passividade: presentes em Réquiem para um sonho;

• Raiva, insegurança, desesperança, agressividade, desinformação: presentes em Trainspotting;

• Indiferença, raiva, culpa, agressividade, desinformação: presentes em Traffic.

Este estudo está embasado nos modelos teórico- sistêmicos e teórico-cognitivos da dependência de drogas. Do ponto de vista cognitivo, a dependência é considerada um complexo fenômeno biopsicossocial e um comportamento aprendido. A habituação ao uso de droga é circular, repetitiva e reforçada pela expectativa quanto aos efeitos imediatos da substância. A visão sistêmica da família pressupõe que o indivíduo, apesar de sua complexidade, não esteja isolado do contexto sociofamiliar, mas está conectado e interage em um processo circular. É na família que as experiências são construídas, transformadas ou repetidas. Refletir sobre a droga no contexto individual implica considerar o sistema familiar no qual o usuário está inserido (SILVA, 2001; STANTON; TODD, 1985; MARLATT; GORDON, 1993).

As temáticas dos filmes propiciam uma discussão sobre a importância do uso da imagem para a compreensão dos conceitos sistêmico e cognitivo da dependência. Os cinco filmes ilustram os diferentes tipos de dinâmica familiar e o impacto que o uso de drogas traz para todo o sistema.

É possível observar, em Bicho de sete cabeças e em Diário de um adolescente, dinâmicas familiares caracterizadas pela rigidez e pelo autoritarismo. Ambos os filmes focalizam o ciclo vital da adolescência e a dificuldade familiar em lidar com os comportamentos característicos dessa fase. As imagens evidenciam o despreparo e a desinformação dos pais em relação ao tema e às reais necessidades dos filhos, assim como o comportamento de delegar aos outros a solução do problema. Isso pode ser visto especialmente em Bicho de sete cabeças, quando o pai interna o filho em um manicômio sem haver indicação clínica para isso.

Em Réquiem para um sonho, a dinâmica familiar é permissiva, sem limites e permeada pela cumplicidade da mãe ao uso de drogas do filho. Ela é dependente de anfetaminas e “conivente” com o comportamento de dependência de cocaína do filho. Essa atitude protetora é justificada pelo medo de ser rejeitada e abandonada pelo filho.

Trainspotting mostra a dificuldade da família no processo de autonomia. A dependência de heroína do filho, apesar de trazer sofrimento, é uma forma de manter a família unida. Após várias tentativas de tratamento, a família decide cuidar sozinha do problema, internando-o em casa. Dessa forma, fica expressa a dificuldade do dependente em abandonar a família, que, por sua vez, fica imobilizada: não pode devolver ao filho a autonomia por considerá-lo incapaz e não vive o ciclo da meia-idade por necessitar ainda cuidar do filho.

A literatura (STANTON; TODD, 1985) chama a atenção para a aparente independência dos dependentes de drogas, que, apesar de manter relações frágeis com seus familiares, permanecem junto deles, evidenciando uma pseudo-autonomia: de um lado a ligação com a cultura da droga, que os faz se sentirem independentes, e de outro a necessidade da atenção familiar.

Em Traffic, a dinâmica familiar modifica-se depois do conhecimento do uso problemático de drogas pela filha. Antes disso, o pai, um juiz renomado, que abusa do álcool, e a mãe, usuária de “tranqüilizantes”, permaneciam distantes da vida da filha (das festas, dos namorados) e mantinham um relacionamento conjugal indiferente. Após a constatação do uso de cocaína pela filha, o pai se torna agressivo, raivoso e autoritário, na tentativa de controlar o problema, sentindo-se “culpado” ao final.

De maneira geral, observa-se que os filmes retratam muitos sentimentos e reações ao uso de drogas semelhantes aos observados na prática clínica, em famílias em que há dependentes. Destacam-se a insegurança, a raiva, a agressividade, a impotência, a indiferença, o medo, a frustração e a culpa, evidenciando a angústia e a dificuldade das famílias para lidar com o problema do uso de drogas.

Observa-se, também, tanto o uso de drogas lícitas quanto de ilícitas, porém a abordagem é diferente. As drogas lícitas são usadas, em geral, pelos pais, que não percebem que são drogas e que também causam prejuízos (Traffic, Bicho de sete cabeças e Réquiem para um sonho). Apesar dessas drogas já estarem presentes no sistema familiar e ser comum sua utilização como recurso para lidar com situações de estresse, o fenômeno não é reconhecido como fonte de aprendizado para os filhos. A descoberta do uso das drogas ilícitas pelos adolescentes causa forte impacto familiar e expõe os conflitos, muitas vezes preexistentes, porém mascarados pela acomodação, indiferença ou descaso no sistema familiar.

 

Considerações finais

De maneira geral, a temática das drogas é tratada de forma moralista, conservadora e até mesmo preconceituosa, embora, nestes filmes, se observe, também, a intenção de denúncia por meio da crítica aos sistemas sociais e da demonstração da falência das políticas públicas de combate às drogas. No filme Traffic, a falta de propostas alternativas para discussão sugere pouca informação e distanciamento de um tema tão complexo.

O estudo sugere ser possível a utilização de filmes para analisar as relações familiares na presença do uso de drogas. Esse tipo de abordagem pode ter uso didático na formação
de terapeutas familiares e especialistas em dependência de drogas. É possível, também, que se utilizem filmes como ferramenta em terapias individuais ou de famílias de dependentes de drogas, para facilitar e tornar mais objetiva a abordagem do tema.

Além disso, os conteúdos desses filmes podem ser úteis em análises sociológicas relacionadas ao tema das drogas, uma vez que retratam valores sociais relacionados ao consumo de drogas vigentes em diferentes épocas e culturas. Isso permite a comparação entre as diversas abordagens em momentos e locais diferentes. O cinema, por meio da imagem, propicia a reflexão de atitudes, valores e normas sociais que estão incorporados nos hábitos das pessoas.

Em resumo, o estudo do conteúdo da produção cinematográfica sobre uso de drogas no âmbito familiar pode fornecer elementos importantes aos profissionais envolvidos tanto na prevenção quanto no tratamento de abuso e dependência de drogas, no sentido de ampliar suas estratégias de ação.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Eroy Aparecida da Silva
Unidade de Dependência de Drogas - UDED
Rua Napoleão de Barros, 1.038
São Paulo – SP
CEP 04023-002
E-mail: eroy@psicobio.epm.br
E-mail: eroy_silva@hotmail.com.br

Tramitação
Recebido em novembro de 2007
Aceito em abril de 2008