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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.10 no.2 São Paulo Dec. 2008

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Ato infracional e metáfora paterna

 

Infraccions and paternity

 

Acto de infracción y metáfora paterna

 

 

Ângela Vorcaro; Cristiana de Amorim Mazzini; Júnia Penido Monteiro

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Alguns conceitos psicanalíticos têm sido usados para explicar a origem do ato infracional na adolescência. A partir do debate teórico entre a psicanálise de orientação lacaniana e a psicologia social, este artigo sublinha a atribuição indiscriminada da falta de um pai concreto como causa de delitos de adolescentes, feita por inúmeros psicanalistas. Busca-se discutir a complexidade do fenômeno e clarificar conceitos envolvidos na questão. Considerar uma falha na inscrição do Nome-do-Pai como determinante da autoria de infrações individualiza o problema e desconsidera os fatores sociais, imprescindíveis para sua análise.

Palavras-chave: Psicanálise, Lei, Adolescência, Paternidade, Sociedade.


ABSTRACT

Various psychoanalytical concepts have been used to explain the origin of criminal acts during adolescence. The debate between social psychology and psychoanalysis presented in this article highlights the lack of understanding on the part of some psychoanalysts who attribute the absence of a parent as the lone cause for adolescent criminal behavior. Furthermore, the complexity of the phenomenon and related concepts are discussed in detail. The belief that the absence of a parent is the sole determinant of criminal behavior in adolescents oversimplifies the problem and disregards relevant social factors that are invaluable parts of a comprehensive analysis.

Keywords: Psychoanalysis, Law, Adolescence, Paternity, Society.


RESUMEN

Algunos conceptos psicoanalíticos vienen siendo usados para explicar el origen del acto de infracción en la adolescencia. El debate entre la psicología social e la psicoanálisis presentado en este artículo subraya la atribución indiscriminada de la falta de un padre concreto como causa de delitos de adolescentes, hecha por innumerables psicoanalistas. Se busca discutir la complejidad del fenómeno y poner en claro conceptos involucrados en la cuestión. El punto de vista considerado es que considerar una falla en la inscripción del Nombre-del-Padre como determinante de la autoría de infracciones individualiza el problema y desconsidera los factores sociales, imprescindibles para su análisis.

Palabras clave: Psicoanálisis, Ley, Adolescencia, Paternidad, Sociedad.


 

 

Introdução

O presente artigo é resultado das indagações despertadas a partir do trabalho com os adolescentes encaminhados à Vara Infracional da Infância e da Juventude de Belo Horizonte. Percebeu-se, nas discussões de psicanalistas com psicólogos sociais sobre o comportamento delinqüente dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa, que a ausência da figura concreta do pai, que ocorre na vida de muitos desses jovens, estava sendo enfatizada como a principal causa da infração juvenil. Salienta-se que essa medida socioeducativa é aplicada ao adolescente que comete ato infracional – a partir dos 12 até os 18 anos – pelo juiz. Pretende-se, no presente estudo, restabelecer essa discussão por meio do debate teórico entre a psicanálise de orientação lacaniana e a psicologia social.

Para a psicanálise, os acontecimentos na vida do sujeito são determinantes para sua estruturação. A relação dos indivíduos com os seus pais, durante a infância, fornece a estrutura das outras relações que serão estabelecidas ao longo da vida. Entretanto, conforme descreve Lacan (1995) em “As relações de objeto”, a construção das funções materna e paterna, bem como o efeito destas, não equivale às pessoas que as encarnam, mas refere-se ao que foi transmitido ao sujeito em constituição como ideais referenciais dessas funções. A ausência da figura concreta do pai certamente implicará uma especificidade para a vida dos sujeitos. Isso é sabido e inquestionável. A questão é saber se tal especificidade determinará o cometimento de atos infracionais durante fases posteriores da vida. A teoria psicanalítica discorre sobre a singularidade de cada caso. Por meio dela, sabe-se que as influências de determinado evento dependerá da forma como o sujeito, a partir de sua história, se apropriará dele. Sendo assim, a ausência da figura concreta do pai não pode ser tomada como determinante no comportamento delinqüente. Cada adolescente que não teve o pai presente em sua vida será influenciado por essa ausência de maneira singular. Isso não pode ser desconsiderado.

Entende-se, dessa maneira, que a percepção dessa realidade deve ser analisada sob um enfoque que considere o fenômeno para além de questões individuais. Sabe-se que a precariedade do meio social dos jovens que cumprem medida socioeducativa é um outro fator que, além da ausência do pai, faz parte da vida da maioria dos adolescentes em questão. Sendo assim, a maneira como cada um desses adolescentes se apropriará subjetivamente do contexto social no qual está inserido é um fator primordial para discutir a questão. O presente trabalho visa discutir as influências sociais, relacionando-as ao conceito lacaniano de metáfora paterna.

 

Ato infracional, adolescência e metáfora paterna à luz da psicanálise

Passagem entre a infância e a idade adulta, a adolescência é marcada por profundas transformações. Segundo Barus-Michel (2005):

O adolescente é uma criação em que prevalece um culto da infância, acompanhado de um movimento de postergação da entrada na fase adulta, seja porque vigora a idéia de aproveitar ao máximo um período supostamente isento de preocupações, seja porque se tem em vista favorecer um desenvolvimento que possibilite um preparo para a assunção de tarefas adultas da vida.

Esse período é complexo tanto para os adultos que tentam entendê-lo quanto para os próprios adolescentes. Nele coabitam desejos ambivalentes de crescer e de regredir, de sentir-se ainda criança e já adulto, de autonomia e de dependência, de ligação ao passado e de projeção no futuro.

Na adolescência, há uma continuação da constituição do sujeito, com elementos distintos daqueles a que ele tinha acesso na infância, graças à maior possibilidade de realizar escolhas e à entrada mais efetiva no campo social. O sujeito passa a ter um contato mais livre e consciente com a realidade, que coincide com a queda das fantasias infantis. O fim da infância é marcado por uma segunda fase da sexualidade 1, na qual ela se torna realizável. Em contraposição à sexualidade infantil, a adolescência permite de fato um encontro com o sexo, em que o sujeito elege seus objetos de satisfação pulsional e a forma de lidar com eles.

Considerando tal fase da vida como um momento em que é imposta uma “moratória” ao sujeito, Calligaris (2000) observa que, submetido a essa moratória, o adolescente é impossibilitado de tornar-se adulto exatamente quando tem seu corpo amadurecido e já introjetou os principais valores da sociedade. Ele passou a infância se preparando e aprendendo que, para ser um adulto reconhecido e feliz, precisa se destacar nos campos amoroso e financeiro, ser desejável e invejável. Quando esse conhecimento está solidificado e seu corpo está preparado para realizar tais atividades, o adolescente recebe o comunicado: ainda não está na hora. É necessário ficar por aproximadamente mais dez anos sob a tutela dos adultos, ainda que a sociedade designe a independência como um ideal a ser alcançado.

De acordo com Barbirato (2001), o modelo de moratória é circular e contraditório. Circular porque o período de espera é imposto para que o adolescente amadureça. Contudo, se ele não pode experimentar, como poderá aprender e amadurecer? Contraditório porque prega a obediência à moratória como via para alcançar o mundo adulto; mundo definido culturalmente pelos valores de autonomia e de liberdade, pela capacidade de desobedecer.

Balaguer (2005) aponta que a idéia de adolescência como moratória pode não servir para analisar a experiência dos adolescentes pobres. A autora suspeita de que a idéia do adolescente como sujeito em desenvolvimento que deve esperar, não se sabe o quê, para se tornar adulto não encontra muito sentido entre as classes populares. Afinal, é muito comum que os adolescentes tornem-se responsáveis por cuidar da casa, dos irmãos mais novos ou, até mesmo, da família, trabalhando legal ou ilegalmente para trazerem renda e sustento, quando não tendo seus próprios filhos e realizando, assim, a passagem para a vida adulta: de ser filho para ser pai, de ser filha para ser mãe.

Entretanto, mesmo não vivenciando a moratória, os adolescentes de periferia são expostos, das mais diferentes maneiras, aos valores que os adolescentes das classes média e alta podem desfrutar, destacando-se, entre eles, o consumismo. Assim, o adolescente pobre constata a existência de uma outra adolescência, a qual não pode experimentar.

Percebe-se, portanto, que a adolescência é marcada por uma dificuldade de reconhecimento pelo mundo adulto. Em meio a isso, os adolescentes das classes pobres ainda precisam lidar com a falta de reconhecimento decorrente da precariedade da posição socioeconômica. A dificuldade do adolescente carente de ser reconhecido é exponenciada. Eles vivenciam o mal-estar na civilização 2 com muito mais virulência. Resta-lhes muito mais mal-estar. Esses adolescentes experimentam uma mistura de sentimentos que se expressa na tentativa de aniquilar o mundo para não ser aniquilado por ele. A lógica na qual eles funcionam é a do “ou eu ou o outro”. Balaguer (2005) afirma que, diante do desigual mal-estar na cultura, esse mal-estar que o adolescente pobre experimenta como ninguém, ele toma como saída a reafirmação incessante da força do eu sobre o outro.

 

Adolescência e ato infracional

A adolescência é um período marcado pela ampliação das relações interpessoais, que deixam de ser restritas ao âmbito familiar. No caso dos adolescentes de classe baixa, o processo ocorre de maneira diferente. Ao tentar encontrar um lugar na sociedade, eles deparam com uma realidade que os exclui. Diante dessa exclusão, muitos deles desenvolvem uma maneira peculiar de fazer laço social, por meio do ato infracional. Com isso, rompem com o pacto que rege as relações sociais. O ato infracional pode ser entendido como uma tentativa de inclusão nesse contexto social do qual ele é expulso: “O sujeito pode transgredir a lei como forma de inscrever-se nela” (GARCIA, 2000, p. 46). É a partir da transgressão que o código das leis passa, efetivamente, a ser cumprido na vida desses jovens. Se não fosse a exigência de responder por seu ato, esse adolescente nunca seria assistido. Eles estão fora do pacto social, não porque o desconhecem, tal como o psicótico, mas porque refletem simetricamente a exclusão que lhes é oferecida por meio de seus atos infracionais.

Calligaris (2000) também localiza a relação entre adolescência e delinqüência no fato de o adolescente, por não ser reconhecido na sociedade, tentar ser reconhecido “fora” dela, criando rupturas com as normas vigentes. O adolescente força sua integração opondo-se às regras da comunidade.

Os adolescentes questionam o que precisam fazer para conquistar o olhar dos mais maduros. Segundo Calligaris (2000, p. 27), “o adolescente acaba eventualmente atuando, realizando um ideal que é mesmo algum desejo reprimido do adulto”. Ele pode encontrar no ato infracional uma forma de metaforizar algum desejo parental, que não foi realizado ao longo da vida e que acabou sofrendo repressão. Como conseqüência da irrupção do conteúdo recalcado por meio do ato do adolescente, mantém-se o desencontro entre ele e o adulto, que prefere não se haver com os seus próprios conteúdos que estão reprimidos.

Se não é possível fazer circular a palavra, só o ato tem lugar. “A violência é muda [...], tem início onde termina a fala” (HANNA ARENDT apud ABRANCHES, 1993, p. 40). O ato de violência do adolescente deve ser visto sob o seu aspecto de sintoma.

Dessa maneira, é possível entender por que o jovem pobre – privado dos direitos essenciais – envolve-se tanto na criminalidade: além de não ser reconhecido no mundo dos adultos, ele é também invisível em decorrência da sua condição socioeconômica:

A violência é a maneira mais imediata e a mais freqüentemente usada para responder a uma outra violência, aquela da sociedade que priva grande parte dos seus membros das possibilidades de uma vida digna (CALLIGARIS, 2000, p. 40).

Portanto, pode-se entender o ato infracional como tentativa, mesmo que malograda, de fazer laço social.

Diante da ausência violenta de quase tudo que seria de direito, o crime aparece ao adolescente como meio instantâneo pelo qual ele constitui uma identidade entre os iguais, na sua comunidade, e também na sociedade de modo geral, ainda que seja uma identidade negativa: “A vida do crime [...] é severa, violenta e insegura; no entanto, oferece um sossego temporário e instável a todo aquele que desejar ser reconhecido” (GARCIA, 2000, p. 46).

Na sociedade capitalista, há um grande apelo à afirmação pessoal por meio da aquisição de bens de consumo. Para os adolescentes, que estão passando por um momento de intensa e complicada formação de identidade, o apelo consumista é ainda mais exacerbado. O interesse por um bem de consumo, como um tênis ou uma roupa de marca, corresponde a um esforço para ser diferente e para ser igual àqueles que merecem admiração da sociedade. Desse modo, muitos grupos de adolescentes são reconhecidos pela forma como se vestem, por seguirem determinado modismo. Os adolescentes pobres também querem ser reconhecidos, mas sua condição social não lhes dá condições para usufruir desses bens. O ato infracional traz a possibilidade de conquista desse lugar.

Soares (2004) aponta que as razões do tráfico e da arma podem ser compreendidas na medida em que, apesar de contrariar as leis, endossam um valor caro à sociedade: o primado do poder e do dinheiro, próprio do capitalismo. Para o autor, “a emergência de um modelo cultural depende de uma multiplicidade ilimitada de intervenções, de apropriações capilares que lhe dão sobrevida e o radicam no solo da vida social” (SOARES, 2004, p. 153). Nesse contexto, se um jovem recorre à arma para pedir socorro e conquistar visibilidade, é porque essa é uma hipótese que nossa sociedade colocou à sua disposição e a cultura sancionou.

Um pequeno exemplo pode ajudar a clarificar o ponto de vista exposto: um jovem pobre e negro é um ser socialmente invisível nas ruas brasileiras. Saltando para fora do escuro em que o jovem é esquecido, armado, adquire densidade antropológica, vira um homem de verdade. O mundo vira de ponta-cabeça: quem passava sem o ver obedece a ele: “Celebra-se um pacto fáustico: o jovem troca seu futuro, sua alma, seu destino, por um momento de glória, um momento fugaz de glória vã; seu futuro pelo acesso à superfície do planeta, onde se é visível” (SOARES, 2004, p. 142). Agindo assim, o adolescente recupera sua visibilidade por meio de duas vias: a da imposição de poder, em que o outro é completamente vulnerável diante de sua arma, e pela via material-simbólica da possibilidade de consumo, a partir da qual ele vai adquirir o tão desejado tênis de marca, com o dinheiro conseguido no assalto. É dessa maneira que o ato infracional traz a possibilidade de ele ser reconhecido.

 

A questão do Nome-do-Pai

É necessário muito cuidado para utilizar os conceitos psicanalíticos em interpretações do campo social. Equívocos de uma aplicação desavisada já foram constatados na defesa da educação sem repressão, na restrição da causalidade do fracasso escolar à psicopatologia da vida familiar, na atribuição de realidade a um abuso sexual fantasiado e ainda na negligência ao abuso sexual real em decorrência da universalização da fantasia infantil.

Tais exemplos mostram que a teoria pode ser eventualmente utilizada de forma a simplificar os fenômenos, atribuindo a eles causas restritas. A busca pela compreensão da infração entre os adolescentes tem apresentado problema análogo.

É possível encontrar formulações que atribuem a delinqüência juvenil a uma falha na inscrição do Nome-do-Pai no decorrer do desenvolvimento dos sujeitos. A partir desse ponto de vista, é atribuída aos jovens autores de atos infracionais uma psicopatologia que os localiza fora do laço social. Dessa maneira, uma questão que, na verdade, é determinada socialmente passa a ser individualizada.

Atribuir à falha na inscrição do Nome-do-Pai a função de causa da infração na adolescência é uma maneira restrita de abordar os múltiplos aspectos que estão envolvidos nessa problemática. A semelhança que vários desses adolescentes apresentam, no que se refere à condição socioeconômica, é um desses fatores que são imprescindíveis à análise dos atos infracionais na adolescência. Grande parte é de classe social baixa, possui pouca escolaridade, reside na região periférica da cidade, tem a cor da pele negra ou parda.

É preciso reconhecer que essa concepção que aponta a falha na inscrição do Nome-do-Pai como causa da delinqüência engendra implicações de ordem política. A atribuição de uma falha ao sujeito desimplica a sociedade de sua responsabilidade. A individualização da questão exime os sujeitos de pensarem nas formas de exclusão que eles próprios – nós mesmos – têm constituído e consolidado. Além disso, essa formulação repete a lógica da exclusão na qual o adolescente autor de ato infracional está inserido: o problema é sempre dele ou com ele.

A falha na inscrição do Nome-do-Pai tratada pela psicanálise é, muitas vezes, tomada de forma simplista quando é generalizada como a ausência concreta do genitor. Essa lógica equivocada distancia-se do sentido metafórico do conceito, ligado à inscrição da lei no sujeito, e aproxima-se de uma valorização da época em que o homem da casa era uma figura autoritária e o único responsável pela manutenção da ordem.

Desde 1938, Lacan (1987) propôs a idéia de “declínio da imago paterna”, referindo-se à mudança na figura genérica do pai, que teve seu poder sobre os demais membros da família diluído em decorrência de inúmeros fatores históricos. Tal declínio gerou uma substituição dos referenciais culturais. Anteriormente, era a tradição que referenciava o lugar do sujeito no mundo. Agora, após as mudanças assistidas, verifica-se a disseminação da importância dos objetos. O desdobramento do capitalismo localiza o indivíduo no mundo a partir dos objetos que ele possui. Assim, o laço outrora estabelecido com a tradição é substituído pela aderência aos objetos.

Eis o pano de fundo – fortemente determinado pelo paradigma cultural que tem o consumismo como fundamento – sobre o qual se desenha o aumento da criminalidade entre os jovens de classe baixa. Sobre esse consumismo, por exemplo, o adolescente que não pode comprar o tênis que lhe conferiria um lugar entre “os bacanas” pode acabar cometendo uma infração para conseguir, entre outras coisas, o tão almejado reconhecimento.

A partir disso, verifica-se que a questão do “declínio da imago paterna” está muito mais relacionada às transformações culturais do que ao declínio do pai concreto. Fazer da falta do pai a principal causa do envolvimento de adolescentes com atos infracionais é reduzir o fenômeno – que é cultural – a uma causa individual.

Isso não significa que adolescentes provenientes de outras camadas da população não cometam atos infracionais. Embora se saiba que indivíduos de outras classes também infringem a lei, o contingente de adolescentes que cumprem medida socioeducativa é primordialmente composto por jovens que vivem em condições socioeconômicas precárias. Dessa maneira, o reconhecimento da relevância dos fatores contextuais, mais precisamente da segregação social, torna-se imprescindível para tratar dessa questão.

 

Da diferença entre pai concreto e função simbólica

Hélio Pellegrino (1987), em “Pacto edípico e pacto social”, discorre os processos psíquicos que, por meio da interdição que se dá pela passagem pelo complexo de Édipo, possibilitam a vida social. O menino aceita o interdito paterno ao seu desejo, adequando-se ao princípio da realidade. Em troca, recebe o amor do pai, identifica-se com ele e recebe um lugar na estrutura familiar. Dessa maneira, estabelece o pacto social. Posteriormente, quando é chegada a adolescência, o pacto social exige uma confirmação da renúncia pulsional que ocorreu nos primórdios do desenvolvimento do sujeito. Mas, para que ele confirme o pacto, a cultura deve lhe fornecer os subsídios mínimos. Uma sociedade excludente, que não garante os direitos básicos aos seus cidadãos, não oferece aquilo de que o sujeito precisa para a nova renúncia.

A ruptura com o pacto social, em virtude da sociopatia grave – como é o caso brasileiro –, pode implicar a ruptura, em nível inconsciente, com o pacto edípico. Não nos esqueçamos de que o pai é o primeiro e fundamental representante da lei da cultura. Se ocorre, por retroação, uma tal ruptura, fica destruído, no mundo interno, o significante paterno, o Nome-do-Pai e, em conseqüência, o lugar da lei. Um tal desastre psíquico vai implicar o rompimento da barreira que impedia em nome da lei – a emergência de impulsos delinqüentes pré-edípicos, predatórios, parricidas, homicidas e incestuosos (PELLEGRINO, 1987, p. 203).

Essa formulação de Pellegrino, que foi amplamente disseminada por sua consistência teórica, refere-se ao pai como representante primeiro da lei na cultura. Ela serviu, muitas vezes, para justificar a individualização das causas da infração na adolescência, já que muitos adolescentes não foram criados pelos seus pais. Ora, o pai ao qual o texto se refere não é um homem concreto. Pode-se afirmar, com Lacan (1982, p. 46), que “Os homens, as mulheres e as crianças não são mais que significantes”. Portanto, o pai não é um homem, é uma função significante específica, na qual se localiza um ordenador simbólico do discurso: “Cada realidade se funda e se define por um discurso” (LACAN, 1982, p. 45).

É preciso reconhecer que a ausência do genitor do sexo masculino traz conseqüências para o desenvolvimento dos sujeitos. Mas ela não pode ser usada para justificar um fenômeno que tem raízes sociais profundas. A falta da figura concreta do pai não desencadeia uma falha na inscrição do Nome-do-Pai, uma vez que este conceito se relaciona a um ordenador simbólico do discurso, e não à concretude do genitor.

A metáfora paterna é uma simbolização: substituição por um significante da consistência em que o desejo materno definia a criança. Essa substituição é o que permite à criança diferenciar-se do lugar que lhe era conferido pela mãe, inserindo-se numa posição no campo simbólico e permitindo que a criança possa transitar para além do empuxo imaginário do saber materno infinito e misterioso. A simbolização dos efeitos do significante no sujeito suporta evidentemente a falta que o significante introduz: “uma imensa amplitude, portanto, é deixada aos meios e modos como isto pode se realizar” (LACAN, 1999, p. 202). Dito de outra maneira, a própria definição de metáfora implica substituição com acréscimo de sentido. Tal acréscimo, possibilidade de o sujeito imprimir uma marca singular, só poderá ser configurado porque há uma falha. Decorrente da dissolução do complexo de Édipo, tal falha é condição de diferenciação e de singularização de qualquer sujeito. Não pode ser tomada, portanto, como uma deficiência ou como causa de patologia.

Enquanto inicialmente a relação da criança com o saber foi demarcada pelo exílio do saber misterioso que a determinava (POMMIER, 1992, p. 86), a experiência edípica situa uma organização do que até então era o de um enigma infinito. A potência paterna, que delimita e vetorializa esse saber, estanca o saber materno até então infinito. Enfim, o sujeito sai da posição objetal indeterminada da demanda do Outro materno, pelo recurso àquele que supostamente sabe determinar o que isso quer, que pode ter o domínio do querer materno (CALLIGARIS, 1986, p. 27-28). A criança toma a referência paterna, colocando-se no seu lugar, portando seu nome: assina seus atos com tal nome. O pai simbólico tem, portanto, duas funções, a despeito de o pai concreto jamais estar plenamente à altura da operação que ele implica ou de, até mesmo, ele não estar presente. Como potência fálica, é o imbatível com que a criança rivaliza. Enquanto transmite o nome, permite à criança que o porta pretender possuir sua potência (POMMIER, 1992, p. 96).

Embora o significante “pai” sirva como o referencial que barra o sujeito na tríade edípica, insere-o na cultura e demarca a lei, a função paterna é muitas vezes exercida com êxito por figuras que não o genitor, e que se tornam referências para a criança. Como expressou Mena (2004, p. 124):

Uma coisa é a interdição, processo fundamental para que a criança sobreviva. Outra coisa é creditarmos essa tarefa ao pai. Poderíamos pensar nos casos em que a criança é abandonada em tenra infância e encontra-se em famílias substitutas, em instituições de cuidado, e mesmo em instituições de tratamento. Essas crianças podem construir sua neurose normalmente, mesmo nesses casos em que não temos o pai por perto para desempenhar esta função de interdição.

 

O esgotamento do Grande Outro: um convite à ampliação de referencial à luz de Lacan

É inevitável considerar o deslocamento cultural que a modernidade força a constatar. São muitos os autores que a ele se referem como uma verdadeira mutação cultural, que, modificando a relação à instância paterna, reorganiza o laço social. Melman (2003) equaciona essa posição de uma maneira que consideramos interessante seguir.

Para a psicanálise lacaniana, o sujeito tem sua fala organizada por um duplo eixo: um eixo horizontal na relação com seu semelhante e um eixo vertical na relação com um Outro.

Grande parte do diálogo interior do sujeito remete-se a um Outro que não é um semelhante. É uma autoridade, uma potência com a qual se dialoga até imaginando suas respostas. Esse lugar é chamado de Grande Outro; lugar do saber organizado pela cultura, ou seja, o tecido linguageiro que comanda as proposições do sujeito e a que o sujeito sempre supõe não estar suficientemente à altura. O sujeito só pode se fazer semelhante a esse Grande Outro se esse lugar for imaginado como um lugar habitado por um pai. Entretanto, atualmente as relações estão marcadas pela prevalência do diálogo horizontal com o semelhante, sem interesse nas referências que poderiam vir do Grande Outro. A fala, desinvestida do saber do grande Outro, deixa de ser mediada e referida a esse eixo e reduz-se à referência ao semelhante, interlocutor imediato.

A razão desse esgotamento do Grande Outro pode ser localizada:

  •   na queda da ideologia comunista, que desmentiu o saber transformar a sociedade;
  •   no desenvolvimento da economia liberal, cuja ideologia convida os parceiros sociais a transporem todas as restrições ao gozo, aceitando todos      os excessos;
  •   no progresso tecnológico da internet, que permite a comunicação horizontal estendida a toda a superfície do planeta, onde uma comunidade      mundial está sendo constituída ao preço da renúncia às particularidades das culturas;
  •   na dissolução de relações ternárias nos acordos comerciais que o Estado testemunhava e assegurava, em proveito de uma relação dual que      veio substituir a lei;
  •   nos avanços da tecnologia que domina o processo de fecundação e reprodução;
  •   no desligamento em relação à complexidade da linguagem, agora substituída por sistemas de comunicação simples e diretos, em que a imagem      tem lugar essencial.
  • O apagamento do lugar do Grande Outro é acompanhado do declínio da função dita paterna, em que o nome próprio tornou-se anacrônico. Trata-se do Nome que remete cada um de nós a uma unidade referencial, que reenvia ao ancestral fundador de cada linhagem, filia cada sujeito a uma instância que garante a legitimidade da sexualidade ao mesmo tempo que localiza cada sujeito em relação a um limite ao gozo desmesurado.

    Essa figura tornou-se suspeita, incapaz de garantir qualquer coisa. A dificuldade neurótica de conviver com a indeterminação subjetiva, com a necessidade interpretativa infinita das significações próprias, encontrou uma saída numa resposta que se pode chamar de objetal. Tal perspectiva é apontada por Calligaris (1992-1993, p. 11-12) ao afirmar que o modo de realização singular da humanidade, do valor e da significação subjetiva é tão indeterminado que ela pode ser anestesiada pelos objetos. Ser um homem seria, nesse caso, comprar um Nike no shopping. Assim, o sujeito saberia quem ele é. A perspectiva que se abre hoje é a de que a função do ideal do sujeito pode ser ocupada pelo catálogo dos objetos.

    O que se quer hoje são as técnicas, os instrumentos que ignoram os limites, que permitem agir diretamente e dominar completamente o Real. Enfim, espera-se dos objetos que eles constituam os sujeitos. Aparecem no campo da realidade como normais os objetos que antes eram rejeitados por serem nocivos à vida. Há um novo modo de relação com a vida graças à economia liberal que força os sujeitos ao gozo. A manutenção da vida sempre constituiu um limite à consumação do gozo. A vida era considerada sagrada, um bem do qual o sujeito detinha o usufruto, mas não era seu proprietário: só podia gozar a vida, mas não dispor dela. No novo dispositivo cultural, a vida pode tornar-se valor negativo: se ela for um obstáculo ao gozo, perderá seu valor. A vida do Outro ou a minha vida podem tornar-se um valor mercantil. Enquanto anteriormente a vida só era sacrificada em função de um amor ou de um ideal, hoje a vida própria ou a do semelhante podem ser sacrificadas para assegurar o gozo.

    Afinal, o Grande Outro foi substituído pelo consenso social, em que prevalece a dimensão horizontal das relações. A mensagem que vem do consenso social é direta, sem necessidade de interpretação, e o sujeito não mais se divide em relação a ela. A mensagem da opinião é totalitária, não há como refletir e dizer não. Ela designa imediatamente o objeto concreto capaz de nos satisfazer. O que torna esse objeto desejável é que ele tenha propriedades estimulantes, excitantes, que ele se exiba.

    Outrora se vivia uma vida. Mas hoje é magnífi co! Podem-se levar várias vidas sucessivas, com vocações profi ssionais diferentes, com cônjuges evidentemente diferentes e mesmo com identidades sexuais diferentes. [...] Isso explica porque nossos fi lhos têm a tendência de não buscar mais nos pais a sabedoria que os prepararia para organizar o seu lugar na existência, porque os pais, no melhor dos casos, não podem lhes responder senão tentando impor-lhes esse limite que poderia vir a dar uma base para sua subjetividade e seu desejo. Mas eles, os fi lhos, as crianças, sabem que a partilha desse limite não os preparará para a existência que os espera. Por isso, eles têm apenas uma única idéia: a de participar, o mais rapidamente possível, de um mundo que é aquele dos gozos consumados (MELMAN, 2003, p. 155).

     

    Considerações finais

    A modernização da família introduz o ideal da igualdade, que lhe permitiria um funcionamento democrático. Todos se tornam fraternos, e a medida de liberdade a oferecer aos filhos torna-se incomensurável. Em vez do saber parental, da referência à linhagem geracional, recorre-se agora à assepsia da ciência e dos especialistas: neutros, assexuados e anônimos.

    Constata-se, entretanto, algo além da mera alienação à ciência. Segundo Castro (2002, p. 119), a posição estruturante e ativa do jovem pode ser reconhecida nos processos sociais, seja gerando saber sobre si mesmo, seja concorrendo para se autodeterminar e se autoconstruir, ou ainda engrossando as perspectivas sobre o mundo social, co-atuando com seus parceiros de gerações antecedentes. É o que nos indica que talvez se possa levar a sério a hipótese de que o adolescente transite num mundo que é enigmático para a geração que o precede.

    Calligaris (1996) lembra que hoje somos imigrantes recém-chegados ao estrangeiro, no mesmo território que é a pátria das crianças. Elas sabem a língua, os hábitos e códigos do novo mundo, e podem conduzir-nos na exploração do que é, para nós, terra incógnita.

    A infância e a juventude não são efeitos do mundo adulto, mas partes integrantes do processo social do trabalho, mesmo que obscurecidas pela idéia de serem um custo social.

    Como diz Castro (2002), uma outra juventude é configurada. Por força do desenclausuramento que a modernidade lhe impôs, subtraindo-a da família, ela pode resgatar a cultura e a vida em comum. O ato infracional, que reflete uma condição imposta pelo capitalismo, pode também se tornar alvo de uma interrogação sobre as nossas práticas.

    A atenção à juventude não como mero efeito, mas como lugar privilegiado de produção de um saber sobre a sua cultura e a sua época, poderia permitir uma melhor orientação quanto à nossa responsabilidade para com ela.

    Em consonância a Lacan (1987, p. 58), interroga-se: “como ele [o psicanalista] pode pretender curá-lo [o sujeito] de suas fraquezas psíquicas sem compreendê-lo na cultura que lhe impõe as mais elevadas exigências?”.

     

    Referências

    ABRANCHES, A. (Org.). A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.        [ Links ]

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    Endereço para correspondência
    Cristiana de Amorim Mazzini
    Rua Paul Bouthilier, 353
    CEP 30315-010 Belo Horizonte – MG
    E-mail: crismazzini@yahoo.com.br

    Tramitação
    Recebido em setembro de 2008
    Aceito em novembro de 2008

     

     

    1 Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, 1974), a sexualidade do sujeito é bifásica, diferentemente dos animais. Sua primeira fase ocorre na infância e a segunda na adolescência, mediadas por um período de latência.
    2 Definição dada por Freud (1974) sobre a relação do homem com a civilização.