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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.10 n.2 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A Fotolinguagem©: uma situação de referência para o trabalho de orientação psicanalítica com grupos que utilizam a mediação de objetos

 

The Fotolanguage©: a setting of reference for the psychoanalytically oriented work with groups which make use of mediating objects

 

La Fotolenguaje©: una situación de referencia para el trabajo de orientación psicoanalítica con grupos que utilizan la mediación de objetos

 

 

Pablo de Carvalho Godoy Castanho

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A visão psicanalítica dos grupos que utilizam objetos de mediação é de grande valor no contexto brasileiro. Muitos psicólogos que trabalham em instituições com esse tipo de grupo possuem bons conhecimentos de psicanálise, mas não sabem como relacioná-los ao seu exercício profissional. Para fundamentar o uso de conceitos de psicanálise nesses grupos, inicia-se uma discussão sobre a noção de dispositivo em psicanálise e procede-se a uma retomada de alguns aspectos metapsicológicos e técnicos importantes, implicados na prática desses grupos. A influência da psicanálise operativa em nosso meio conduz a sugerir a possibilidade da ampliação dos campos de atuação dos grupos de mediação de orientação psicanalítica no Brasil. Nesse contexto, propõe-se que a Fotolinguagem©, tal como apresentada por Claudine Vacheret, representa não só um dispositivo de trabalho pertinente ao cenário brasileiro, mas possui, sobretudo, valor como um dispositivo de referência para a prática profissional e a pesquisa.

Palavras-chave: Dispositivo, Grupo, Psicanálise, Objeto mediador, Imagem.


ABSTRACT

The psychoanalytically oriented view of groups that make use of mediating objects are of great value in Brazil. Many psychologists who work in institutions, where such groups are developed, do have knowledge of psychoanalysis theory but are unable to relate this knowledge to their work. In order to ground the application of psychoanalytical concepts to such groups, we discuss the notion of setting in Psychoanalysis and we go over some important metapsychological and technical aspects implied in mediation groups. The influence of what Bleger calls Operative Psychoanalysis in Brazil leads us to believe that mediation groups are likely to be applied in a broader variety of contexts in Brazil. Accordingly, we propose that Fotolanguage©, as presented by Claudine Vacheret, may represent not only a valuable new setting in this country, but, more importantly, it can work as a reference s etting for professional practice and research in different contexts.

Keywords: Setting, Group, Psychoanalysis, Mediating object, Image.


RESUMEN

La visión psicoanalítica de los grupos que utilizan objetos de mediación é de grande valor en el contexto brasileño. Muchos psicólogos que trabajan en instituciones, con este tipo de grupo, tienen buenos conocimientos del psicoanálisis, pero no saben como relacionarlos con su ejercicio profesional. Para fundamentar el uso de los conceptos del psicoanálisis en estos grupos se procede con una discusión sobre la noción de dispositivo en psicoanálisis y se sigue con una retomada de algunos aspectos metapsicológicos y técnicos importantes implicados en la práctica de estos grupos. La influencia del psicoanálisis operativo en nuestro país conduce a sugerir la posibilidad de la ampliación de los campos de actuación de los grupos de mediación de orientación psicoanalítica en Brasil. En este contexto, proponemos que la Fotolenguaje©, tal como presentada por Claudine Vacheret, representa no solo un dispositivo de trabajo pertinente al contexto brasileño y tiene, sobretodo, valor como un dispositivo de referencia para la práctica profesional y la investigación.

Palabras clave: Dispositivo, Grupo, Psicoanálisis, Objeto mediador, Imagen.


 

 

Introdução

Atualmente, em nosso país, encontramos com muita freqüência a utilização de objetos no trabalho com grupos em instituições. Essas práticas são comumente nomeadas como oficinas e encontradas nos mais variados contextos institucionais: empresas, serviços de saúde, ONG, estabelecimentos de ensino etc. Freqüentemente, há psicólogos nessas instituições que encontram dificuldades em transpor a formação que tiveram na graduação, e em cursos de especialização, para algo que possa orientá-los nesse trabalho.

Apesar de a psicanálise ter inicialmente se desenvolvido fora da universidade (SILVEIRA, 2007, p. 63), no Brasil, como em alguns outros países, ela se fez e se faz fortemente presente nos currículos de graduação de Psicologia1. Somando-se a isso as conhecidas dificuldades para formados em Psicologia de iniciarem seu trabalho clínico em consultório, não nos surpreendemos em encontrar muitos psicólogos no Brasil com bons conhecimentos de psicanálise trabalhando em instituições onde grupos com objetos mediadores são realizados. Acreditamos que é nesse contexto que a proposta dos grupos de mediação, com destaque para o trabalho aprofundado de Claudine Vacheret sobre a Fotolinguagem©, adquire parte de seu valor.

Assim, a publicação do primeiro texto em português de Claudine Vacheret por esta revista é muito significativa por apresentar um modo de ligação entre a psicanálise e algo muito mais próximo do cotidiano de trabalho de muitos psicólogos e psicanalistas brasileiros do que o setting princeps proposto por Freud. Ao apresentar e discutir o método da Fotolinguagem©, Vacheret introduz conceitos metapsicológicos e propostas técnicas que consideramos valiosas referências para todos que trabalham com grupos com objetos mediadores. Com certeza a Fotolinguagem© possui atrativos para tornar-se uma opção clínica e formativa no Brasil, entretanto também defendemos a hipótese de que os estudos de Claudine Vacheret possuem enorme valor como referência para o trabalho e a pesquisa com grupos de mediação que utilizam diferentes objetos, com diferentes objetivos.

Sobre a criação de dispositivos de grupo como extensão da psicanálise

A proliferação de termos e conceitos psicanalíticos no trabalho de Fotolinguagem© de Vacheret pode causar estranheza em muitos psicanalistas brasileiros. A proposta da Fotolinguagem© como extensão da psicanálise repousa em algumas premissas que foram explicitadas e discutidas sobretudo em trabalhos desenvolvidos por René Kaës. Antes de seguirmos, parece-nos importante retomar alguns pontos desse percurso.

Assim, ao discutir a questão metodológica em psicanálise, Kaës (2005, p. 71) afirma:

O método psicanalítico construiu uma situação própria para conhecer e mobilizar os processos e as formações do inconsciente na psique de um sujeito considerado na singularidade de sua estrutura e de sua história. A teorização da psicanálise propôs modelos de inteligibilidade relativas a fenômenos psíquicos tornados conhecidos graças às propriedades da situação standard e dos arranjos que ela controla.

Nessa perspectiva:

O dispositivo é um aparelho de trabalho: ele é um artifício, construção. Ele se separa do senso comum, do hábito. Ele é o arranjo segundo o qual uma coisa foi estabelecida, de uma maneira apropriada a um objetivo ou a uma circunstância. Ele então não está inscrito no absoluto, mas na apropriação relativa de um objeto ou de um instrumento em um projeto e a um estado de coisas. Ele diz respeito, por um lado, a uma decisão e de outro à posição das próprias coisas. [...] O dispositivo não dispõe então de nada, a não ser ao se constituir em fetiche, ele é isto onde se dispõe e isto que dispõe o psicanalista para praticar a psicanálise: o artifício que instaura torna manifesta certa ordem da realidade psíquica de outro modo indiscernível e sobre a qual nenhuma operação de transformação seria possível. Para produzir este efeito, é necessário introduzir uma ruptura na ordem das coisas, é necessário operar uma redução daquilo que é difuso, neutralizar as ordens de realidade que interferem “naturalmente” com ela2 (KAËS, 1994, p. 55-56).

Nessa perspectiva, propostas de alteração na situação standard da psicanálise são possíveis, mas implicam grande complexidade ao envolverem ao mesmo tempo aspectos do método, da clínica e da teoria. Para Kaës, o conhecimento psicanalítico é correlativo às características do dispositivo utilizado e seu valor clínico. Assim, podemos encontrar, mesmo no campo da clínica individual, as transformações conjuntas de características de pacientes atendidos, dispositivos de atendimento e produção teórica. Como diz Kaës (2007, p. 42):

[...] de fato, quando o trabalho clínico confrontou psicanalistas com o tratamento de adultos psicóticos, borderlines, crianças e adolescentes que sofrem de sérios distúrbios, foram feitas modificações sobre nosso conhecimento do inconsciente e do dispositivo usado para tratar essas desordens.

A ludoterapia, os dispositivos face a face e o tempo lógico são todos exemplos de modificações do dispositivo tradicional correlativos às reformulações teóricas e freqüentemente aos quadros tratados pela psicanálise. Com essa premissa, mesmos as extensões da psicanálise para além do tratamento individual não se caracterizam como psicanálise aplicada, pois implicam mudanças no corpo teórico:

[...] cada dispositivo usado pelo método psicanalítico produz, a partir dos achados clínicos que ele gera e nos quais trabalha, campos específicos de teorização: isso significa que o conhecimento do inconsciente é modificado à medida que ocorrem mudanças na prática da psicanálise (KAËS, 2007, p. 43).

Se as extensões da psicanálise contribuem para a compreensão de novas dimensões da realidade psíquica, devem, no entanto, guardar alguns pontos em comum com a situação princeps da psicanálise. Ao comentar sobre o grupo, Kaës (1994, p. 93) afirma:

Quatro elementos constituem as condições de uma situação psicanalítica de grupo: as invariantes do enquadramento, a formação dos fenômenos de transferência, a constituição de um discurso associativo sob o efeito da regra fundamental de associação livre, o lugar e a função do psicanalista nessa situação; esses quatro elementos são os componentes constitutivos de toda situação psicanalítica. Eles permitem especificar a natureza da realidade psíquica que se constitui na situação e qualificar as modalidades e as formas do trabalho psíquico que nela se efetua.

Obviamente, esses quatro pilares constitutivos dos dispositivos psicanalíticos sofrerão enormes transformações em seu percurso desde o tratamento individual até a prática grupal. Kaës abordará em profundidade cada um desses pilares em diferentes momentos de sua obra.

 

Os grupos de mediação em psicanálise: elementos de referência

Kaës e os grupos de mediação

Kaës (2005, p. 46) assim apresenta os grupos de mediação:

Há muitos anos, os profissionais colocaram em funcionamento – no campo terapêutico e no da formação – dispositivos de trabalho psíquico que nomearam “grupos de mediação”. Esses dispositivos reúnem número restrito de pessoas, normalmente em contexto institucional: suas relações são mediatizadas seja por um meio sensorial (o sonoro, os objetos plásticos), seja por objetos culturais já pré-constituídos (o conto, a fotografia). Além dessa diferença, o objetivo perseguido por esses grupos é de ativar ou reanimar certos processos psíquicos não mobilizáveis ou modifi cáveis de outro modo, o que o sejam, com esse dispositivo, de modo mais eficaz.

Encontramos em Kaës alguns elementos fundamentais para a compreensão das formações e dos processos psíquicos solicitados e mobilizados pelos grupos de mediação. De fato, a compreensão de Kaës sobre a figuralidade, o pré-consciente e a cultura constitui importante referência para a compreensão metapsicológica dos grupos com objetos mediadores em psicanálise.

Seguindo os trabalhos de Kaës, compreendemos que, na ausência de figuras pertinentes, utilizáveis, o trabalho do pré-consciente não pode se desenvolver, e o adoecimento psíquico desdobra-se como conseqüência inevitável. Em nossa época, por causa das múltiplas transformações culturais e sociais, as patologias de funcionamento do pré-consciente são especialmente presentes. Não estão disponíveis nos contextos culturais e sociais as figuralidades utilizáveis pelo pré-consciente para a elaboração psíquica.

Ao comentar o pré-consciente, Kaës (1999, p. 92) afirma:

O pré-consciente é o sistema do aparelho psíquico no qual se efetuam os processos de transformação que sofrem certos conteúdos e processos psíquicos para retornar à consciência. É a esse sistema que se junta a capacidade associativa, tradutora e interpretativa da psique.

Para Kaës (1999, p. 92), o pré-consciente depende da intersubjetividade:

Com base em minhas pesquisas sobre os processos associativos nos grupos, coloquei em evidência como o trabalho da intersubjetividade é a condição do pré-consciente. Esse sistema se constrói à medida que se cumprem certas funções de continência, de hospedagem e de transformação dos pensamentos inconscientes de um outro ou de mais de um outro ao qual o sujeito está ligado.

O outro e a cultura se fazem presentes no sujeito no sistema do pré-consciente por meio do conceito de figuralidade. Para Kaës, o trabalho do pré-consciente se faz sobre uma figuralidade posta à disposição pelo outro e pela cultura. Essa figuralidade seria constituída de signos, mas não simplesmente signos, signos que se prestassem a uma ligação da representação de coisa ao afeto:

[…] o agir bruto é uma tentativa de ligar a representação e o afeto, mas o valor desse agir se refere ao que é interpretado por um outro como uma tentativa de ligação com elementos de simbolização predispostos pelo pensamento do outro e reinventáveis pelo próprio sujeito; quer dizer, na medida em que o agir não é mais mudo ou branco, mas que é acompanhado de palavras e de cores carregadas de sentido, ou seja, de “palavras sensoriais”, que propõem para a intensidade uma imagem e não uma explicação. O agir que se desdobra da evocação figurada dessa coisa que atravessa o corpo é então como uma imagem em ação que atravessa o espírito em meio ao pensamento (KAËS, 1999, p. 94).

O conceito de figuralidade nos remete a questões ontológicas. Vejamos o que Kaës (1999, p. 96) comenta sobre o conceito com base em Piera Aulagnier:

Trata-se então de produzir um efeito dinâmico, não especificamente de uma interpretação. P. Aulagnier nos mostra aqui a ordem da necessidade na qual se situa o figurado: uma ordem da necessidade (besoin), do fundamental, do sentimento de existência e do ser que constitui o espaço corporal no qual o pensamento poderá se desenvolver [...].

Começa a ficar clara a característica sui generis das figuralidades, que, tão pessoais e precisas no funcionamento psíquico individual (em sua dimensão ontológica), são, no entanto, postas à disposição pela cultura:

O mito, como o conto ou a lenda, forma uma reserva de já ditos que podem tornar possível o dizer ainda não formulado: o que é colocado em disponibilidade no pré-consciente – imagens, esquemas psicomotores, falas, cenas – fornece uma figuração de afetos e representações que então se tornam acessíveis ao pensamento (KAËS, 1999, p. 93).

Além dos dispositivos culturais, ou em razão de suas falhas atuais, podemos propor alguns dispositivos terapêuticos que, por meio da inclusão do jogo e de mediações, são encarados como formas de fornecer figuralidade. Kaës (2005, p. 50) faz o seguinte comentário sobre os grupos de mediação:

[...] eu diria que as mediações utilizadas nos processos terapêuticos de grupos de mediação são os herdeiros do sonho, elas são os meios de restaurar a capacidade de sonhar. Elas lhes propõem equivalentes. Quando a capacidade de sonhar e de brincar está falha, as mediações de próteses são necessárias, pois restauram essas capacidades. Sob este ângulo, as atividades dos grupos de mediação têm função essencial: a de tornar possível a criação de sintomas que poderão, então, ser situados, nomeados, re-apropriados e reconhecidos a partir do conflito que lhes organizam. Isso tudo sob a condição de que a fala acompanhe a experiência de mediação.

Assim, os objetos mediadores nos grupos de mediação fornecem e produzem elementos que podem ser apropriados pelo trabalho do pré-consciente. O pensamento em imagens deve poder se ligar ao pensamento em idéias, como Vacheret afirma em seu artigo. Para isso, é fundamental a presença da fala nos grupos de mediação. Sobre isso, Kaës (2005, p. 49-50) dirá ainda:

Nesses grupos de mediação, a fala cumpre função decisiva. Não devemos opor os grupos de mediação aos grupos verbais. Os grupos de mediação são grupos que puxam a fala, que a suscitam, que a solicitam e a acolhem. A fala é sempre apresentada como um horizonte, ela já está ativa na apresentação da situação pelo coordenador.

Vacheret e os grupos de mediação em psicanálise de modo geral

Ao organizar o livro Pratiquer les médiations en groupes thérapeutiques (VACHERET et al., 2002), a autora cria a possibilidade de comparação entre diferentes técnicas de mediação com orientação psicanalítica. Ao redigir o último capítulo, “Groupes à médiation et processus de liaison”, Vacheret (2002) identifica e propõe características comuns a todos esses diferentes grupos. Em larga medida, trata-se de identificar as características generalizáveis dos grupos de mediação. Aqui destacamos:

  • A indicação aos grupos de mediação para os “[...] pacientes para quem a regra da associação livre não leva a uma tomada da fala, em virtude da pobreza de seu pré-consciente e da falha de sua capacidade associativa“ (VACHERET, 2002, p. 150);
  • A importância e as especificidades dos processos grupais;
  • O caráter sensorial do objeto mediador e sua potência de despertar as “memórias do corpo”;
  • A questão da violência originária e a utilidade do grupo de mediação nesse contexto;
  • Especificidades em relação à transferência;
  • Abstinência da interpretação.
  • Ao revisar os diversos trabalhos com grupos de mediação apresentados nesse livro, Vacheret (2002, p. 151) irá refletir sobre a escolha do objeto mediador pelos animadores do grupo e então observará:

    Não há uma via régia neste domínio, cada um tateia, hesita e se lança a propor uma mediação que lhe agrade mais. Pois, sem dúvida, o prazer dos cuidadores em utilizar uma mediação mais do que a outra não é anódino para os pacientes que se sentem então mais inclinados a se identificar com aqueles que parecem obter prazer ao pensar, associar, trocar, graças a tal mediação.

     

    Geral e particular: a Fotolinguagem© como situação de referência para a criação de outros grupos de mediação

    Ao lermos a obra de Kaës sobre as condições de possibilidade de criação do grupo como dispositivo psicanalítico, vemos como o autor se apóia sobre a situação princeps da psicanálise, do tratamento individual proposto por Freud, para poder constituir o grupo como dispositivo. Este, na visão de Kaës, foi também o percurso de outras inovações técnicas. Comenta o autor sobre a situação standard: “Essa situação funcionou como um sistema de referência quando se tratou de estabelecer o protocolo de base para tornar possível outras formas de trabalho psicanalítico” (KAËS, 2005, p. 71).

    Kaës entende que seria útil criar para o grupo também um dispositivo de referência, porém esse projeto torna-se extremamente complexo, tendo em vista a grande variação existente no campo: grupos breves ou longos, abertos ou fechados, com famílias, com crianças, com adolescentes etc.

    Além desse esforço de Kaës, encontramos diferentes modalidades de grupos perseguindo a caracterização de uma situação de referência própria. Em 1986, André Ruffiot já se preocupava em estabelecer uma situação de referência (cure-type/ cure de référence) para a terapia familiar psicanalítica3. Para Ruffiot (1986, p. 37-38), a “cura-tipo” é:

    [...] a pedra de toque, a figura de referência para todo analista, independentemente de suas atividades serem psicoterápicas ou institucionais. Ela é uma referência que nos guia a fim de que possamos evitar de passar de ajustes (requeridos pelos nossos pacientes graves, não somente neuróticos) a desvios que desnaturam o enquadre e o processo analíticos. [...] ela é também um ideal, uma representação mental necessária ao nosso funcionamento.

    Ruffiot (1986, p. 38) entende que algo semelhante, de caráter de referência e ideal, deva ser criado para servir à terapia familiar psicanalítica:

    É a mesma coisa, penso, no domínio novo da psicanálise do grupo familiar. Sabemos todas as variantes que nos são impostas pela gravidade dos casos familiares que tratamos. Mas [...] ainda não chegou o momento em que possamos representar um “enquadramento idealmente normal” para nossos tratamentos de família?

    Tanto Kaës como Ruffiot nos apresentam a situação princeps da psicanálise como uma referência útil para a construção de novos dispositivos. Kaës defende também o estabelecimento de uma situação de referência para todos os grupos. Ruffiot advoga algo semelhante para a terapia familiar psicanalítica. Consideramos que o trabalho com grupos de mediação pode se beneficiar também da existência de um ou mais modelos de referência e propomos que a Fotolinguagem© seja um deles, talvez o único em condição de assumir esse papel na atualidade.

     

    Considerações sobre o contexto brasileiro

    Um elemento importante da psicanálise no Brasil é certamente a influência do pensamento argentino no País e mais especialmente das idéias de Pichon-Rivière e Bleger, que, com as propostas dos grupos operativos e da psicanálise operativa, expandiram o campo de atuação da psicanálise para, virtualmente, qualquer situação do cotidiano. Em um trabalho anterior (CASTANHO, 2007), procuramos deixar claro como o pensamento desses autores aproxima preocupações sociais e psicanálise não só do ponto de vista teórico, mas oferecendo (fundamentalmente por meio do conceito de Tarefa) um meio técnico de intervenção psicanalítica sobre diferentes contextos.

    Marcelo Ribeiro (1998) nos oferece um elemento importante para avaliar o impacto dessas idéias no País ao nos apresentar um pouco do contexto no qual elas se fortaleceram. O autor aponta que na década de 1970 a reflexão sobre a prática do psicólogo no Brasil estava muito relacionada ao contexto social e político da época. Em um ambiente político estudantil fortemente marcado por idéias marxistas, a profissão de psicólogo sofria críticas extremamente severas. Perante a forte repressão do regime militar, o movimento estudantil em psicologia em São Paulo encontrou na organização de semanas de psicologia uma estratégia para organizar-se, o que seria depois expandido para o país todo, por meio dos Encontros Nacionais de Estudantes de Psicologia. Nesse formato das semanas de psicologia, a discussão política fez pontes com a discussão acadêmica. Nesse contexto de interface entre política, teoria e formação de psicólogos, foi possível encontrar uma resposta que propunha uma reformulação no papel social da profissão. Nas palavras exatas do autor:

    A solução foi sair das teias da clínica e visualizar soluções em outras áreas de atuação e a primeira que surge era a Psicologia Comunitária, atuação dos psicólogos junto às comunidades, voltado à problemática da atenção primária, da Psicologia Preventiva, influência direta das idéias de Bleger (RIBEIRO, 1998, p. 147).

    Assim, a psicanálise operativa parece ter encontrado um campo significativo no Brasil. Trabalhos como o de Jorge Broide (2006) com grupos operativos em prisões, com crianças e adolescentes em situação de rua, com caminhoneiros em seu meio e mais recentemente com a violência, ou ainda a proposta dos Centros de Convivência e Cooperativa (Cecco) em São Paulo (SÃO PAULO, 1992) nos parecem exemplares da influência e diversidade desse campo em nosso país4. O uso muito freqüente da expressão “grupo operativo” em contextos institucionais é também bastante revelador do impacto das idéias e práticas desses psicanalistas argentinos no Brasil, ainda que, amiúde, haja uma apreensão superficial e mesmo conflitante com o texto pichoniano.

    A importância que o pensamento winnicottiano vem assumindo na psicanálise brasileira, sobretudo por meio de autores como Gilberto Safra, Zeljko Loparic e Tânia Aiello-Vaisberg, parece-nos também algo muito relevante no diálogo com a proposta de Vacheret. Ainda que não diretamente citado no artigo de Vacheret publicado nesta revista, Winnicott é referência importante no pensamento dos grupos de mediação tanto para Vacheret quanto para Kaës. O trabalho de Aiello-Vaisberg e colaboradores de atendimento em grupo com o uso de materialidades por meio das oficinas “Ser e Fazer”5 poderá certamente influenciar muito o diálogo que se estabelecerá com a proposta de Vacheret no Brasil.

     

    Considerações finais

    A primeira publicação em português das idéias de Claudine Vacheret deve encontrar no Brasil um terreno fértil formado por psicólogos com conhecimentos de psicanálise que trabalham em diferentes contextos institucionais, onde grupos com objetos mediadores são realizados. A influência da psicanálise operativa no Brasil nos sugere a apropriação das idéias de Vacheret para além dos grupos reunidos para tratamento psicoterápico e formação. Nesse contexto, entendemos que a Fotolinguagem© pode assumir o lugar de um dispositivo de referência. Como tal, não se trata somente da instauração e ampliação de grupos de Fotolinguagem©, mas também de sua utilização como algo que de algum modo sugira caminhos e norteie aspectos da atuação de psicanalistas e psicólogos em grupos com objetos mediadores em diversos contextos. Mas o que significa tomar a Fotolinguagem© como um dispositivo de referência? Uma primeira distinção se faz necessária: no campo clínico e da formação, tomar a Fotolinguagem© como um dispositivo de referência implica uma grande aproximação das premissas e dos meios propostos nele. Já para pensarmos os grupos com objetos mediadores com outros objetivos, consideramos ser necessário um movimento de retomada da psicanálise operativa e do diálogo desta com a proposta da Fotolinguagem©. Desenham-se, nessas duas vertentes, projetos de pesquisa que certamente exigirão tempo e muitos ajustes. No campo profissional, pensamos que a consideração da Fotolinguagem© como um dispositivo de referência permite, já hoje, um suporte significativo para a prática de todos aqueles que realizam grupos com objetos mediadores com finalidade terapêutica ou de formação.

     

    Referências

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    CASTANHO, P. de C. G. O momento da tarefa no grupo: aspectos psicanalíticos e psicossociais. Rev. Spagesp, v. 8, n. 2, dez. 2007. Disponível em: <http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702007000200003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 16 nov. 2008.

    HUR, D. U. Políticas da psicologia de São Paulo: as entidades de classe durante o período do regime militar à redemocratização do país. 2005. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social)–Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.        [ Links ]

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    RIBEIRO, M. A. ENEP (Encontro Nacional dos Estudantes de Psicologia): história e memória de um movimento. 1998. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social)–Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.        [ Links ]

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    SBPSP. O início da institucionalização psicanalítica. Disponível em: <http://www.sbpsp.org.br/1024x768/default.asp?link=hist3>. Acesso em: 16 nov. 2008.        [ Links ]

    SILVEIRA, F. O grupo e o movimento analítico brasileiro: 1967 a 1976. 2007. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social)–Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.        [ Links ]

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    Endereço para correspondência
    Pablo de Carvalho Godoy Castanho
    Rua da Consolação, 896, Prédio 38, térreo – Centro
    CEP 01302-907 São Paulo – SP
    E-mail: pablocgc@terra.com.br

    Tramitação
    Recebido em setembro de 2008
    Aceito em novembro de 2008

     

    1 É interessante observar a estratégia de Durval Marcondes, figura decisiva na introdução da Psicanálise no Brasil, de aproximar a Universidade da Psicanálise. Destacamos a importância dada à universidade em seu projeto de criar um instituto de formação em psicanálise nos moldes internacionais no Brasil a partir de 1930 (SBPSP, 2008). E posteriormente salientamos que: “Mesmo após a criação da SBPSP, Marcondes manteve seu projeto de difundir a psicanálise entre outras instituições. Foi um dos fundadores do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, IPUSP, e um dos responsáveis pela institucionalização da Psicologia em São Paulo. Segundo Oliveira (2006), fez uma espécie de feudo da SBPSP no IPUSP, no que diz respeito à formação de psicólogos clínicos” (SILVEIRA, 2007, p. 119). Lembramos, ainda, que o curso de Psicologia da USP foi o primeiro do Brasil (MIRANDA apud HUR, 2005, p. 245).
    2 Essa e as demais citações provenientes de obras que figuram em língua estrangeira nas referências bibliográficas foram traduzidas pelo autor deste artigo.
    3 A escola francesa contemporânea de terapia familiar psicanalítica desenvolveu-se com base nos estudos franceses sobre grupo.
    4 Como vice-presidente da Federação Latina das Associações de Psicanálise de Grupo (FLAPAG, gestão 2007-2009), entidade latino-americana, tive já algumas vezes a oportunidade de ouvir de colegas estrangeiros e brasileiros a idéia de que o campo das abordagens psicanalíticas de grupo no Brasil se distingue pela pluralidade de suas formas e contextos de aplicação. Ainda que este seja apenas um dado do imaginário dessa instituição, ele nos parece significativo.
    5 Uma visão geral desse trabalho pode ser obtida no endereço: <http://www.serefazer.com.br/>.