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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.10 n.2 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A força do legado transgeracional numa família

 

The force of the transgenerational legacy in a family

 

La fuerza del legado transgeracional en una família

 

 

Maria Emília Sousa Almeida

Centro de Investigação em Psicanálise e Psicossomática do Vale do Paraíba

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo trata da força da transmissão e manutenção do sofrimento psíquico ao longo de três gerações de uma família, com base no approach transgeracional. Um paciente atendido individualmente pela analista permite retraçar a herança trans-histórica que vigora em sua família. Sua análise revelou que seu sofrimento estava engatado à pré-história de seus familiares. O método psicanalítico de apreensão de elementos inconscientes fornece a base para o presente estudo de revisão teórica com ilustração de caso clínico. Algumas construções verbais dessa família servem como recurso para examinar o uso defensivo das representações e afetos, de modo a manter seu sofrimento psíquico. Este é relacionado às dificuldades do sistema das representações de representar situações traumáticas transgeracionais. Conceitos de vários autores têm fornecido importantes bases teóricas para as idéias da autora.

Palavras-chave: Herança transgeracional, Representações, Psicanálise.


ABSTRACT

This article is about the power of the transmission and maintenance of the psychic suffering through three generations of a family, based upon the transgenerational approach. A patient individually assisted by her analyst allow us to retrace the trans-historical heritage that takes effect in his family. His analysis revealed that his suffering was stuck in the pre-history of his family members. The psychoanalytical method of the inconscient elements apprehension provides the basis to the present study of a theory review illustrated by a clinical case. Some verbal constructions of his family serve as a resource to examine the defensive use of the representations and affections, in order to keep his mental suffering. This is related to the difficulty of representational system to represent traumatic transgenerational situations. Concepts of many authors have provided theory basis to ideas of the author.

Keywords: Trangenerational heritage, Representations, Psychoanalysis.


RESUMEN

Este artículo trata de la fuerza de la transmisión e manutención del sufrimiento psíquico a lo largo de tres generaciones de una família, con base em el approach transgeracional. Un paciente atendido individualmente por el analista permite entender la herencia trans-histórica de su família. Su sufrimiento psíquico era parte del sufrimiento prehistórico de su família. El método psicoanalítico de aprensión de elementos inconscientes es la base para este estudio de revisión teórica ilustrada por un caso clínico. Algunas construcciones verbales de esa família sirven como recurso para examinar el uso defensivo de las representaciones y afectos, de modo a preservar su sufrimiento psíquico. Este es relacionado a las dificultades del sistema de las representaciones de representar situaciones traumáticas transgeracionales. Conceptos de varios autores han fornecido importantes bases para las ideas de la autora.

Palabras clave: Herencia transgeracional, Representaciones, Psicoanalisis.


 

 

Introdução

“Torna-te quem tu és.”

(Nietzsche)

 

O presente artigo constitui um estudo de revisão teórica com ilustração de caso clínico. A análise de um paciente deixou evidente que o seu sofrimento estava engatado a uma cadeia trans-histórica de representações e afetos de grande magnitude em sua família. A partir dessa constatação, fez-se necessário examinar a complexidade da transmissão da vida psíquica entre as gerações de sua família, à luz da teoria psicanalítica vigente e de algumas idéias da autora. A relevância científica da temática decorre da demanda de pensar ”novos” fenômenos mentais e imbrica-se à modernidade dos achados teórico-clínicos da vertente transgeracional. Esta parece ser a mais recente em psicanálise, pois suas primeiras contribuições datam de cerca de 30 anos. O objetivo deste estudo é fazer uma revisão teórica com exemplificação de um caso clínico e apresentar algumas reflexões da autora sobre a problemática transgeracional.

A herança de elementos psíquicos é um tema capital na abordagem junguiana da psique. Segundo Jung (2003, p. 18), os arquétipos são elementos do inconsciente coletivo que carregam predisposições para a revivescência individual de experiências humanas e pré-humanas milenares. Portanto, ele enfatiza a herança de componentes de experiências longevas da humanidade e não a herança que se dissemina nas gerações da família.

Desde seus albores, a psicanálise tem examinado a herança de conteúdos inconscientes. Freud (2006a, p. 118) propõe um mito científico sobre a gênese da civilização humana, fundada na horda primitiva. Ele aborda a herança arcaica humana que abrange o legado do complexo de Édipo, a transmissão da culpa e dos interditos, bem como as conseqüências do crime contra o pai. Freud (2006b, p. 53) examina a transmissão ao infans dos sonhos de desejos insatisfeitos de seus pais, pois seu narcisismo se apóia sobre o que falta na realização do desejo dos pais. Posteriormente, Freud (2006d, p. 132) diz que o id é hereditário, o ego é derivado do id e que o superego é o herdeiro do complexo de Édipo e do superego dos pais.

A partir da abordagem transgeracional, o interesse psicanalítico pelo assunto se aprofunda. A transmissão de conteúdos psíquicos na família e outros grupos constitui seu objeto de estudo. Kaës (1998, p. 9) aborda a transmissão psíquica ou a produção intersubjetiva da psique, apontando a divisão do eu decorrente de sua alienação na psique de um outro, de mais de um outro. O sujeito da herança é dividido: entre ser um fim em si e ser o elo da cadeia intersubjetiva à qual está sujeito. Ele ainda afirma que se transmitem configurações de objetos psíquicos (representações, afetos e fantasias) munidos de seus vínculos, incluindo sistemas de relações de objeto. Certos membros do grupo que precede o sujeito mantêm-no numa matriz de investimentos, predispõem sinais de reconhecimento, designam lugares, apresentam objetos de satisfação, oferecem meios de proteção e ataque, traçam vias de realização e enunciam limites e interditos. Sustentam o recalcamento de representações, a supressão de afetos e a renúncia pulsional no herdeiro. O sujeito é nomeado, representado e situado segundo o desejo dos porta-vozes do desejo, interditos e ideais do grupo.

O diferencial psicanalítico assenta-se na questão edípico-relacional, sob o prisma da família de origem do sujeito, interconectada inconscientemente às gerações anteriores e posteriores. Na família vigoram determinados mitos, segredos, maldições, lacunas de representação, defusão de pulsões, processos identificatórios eivados de sofrimento e traumas graves, entre outros. Eiguer (1997, p. 1856) propõe que a patologia do transgeracional liga-se à força da tragédia em indivíduos tomados por lutos muito difíceis, e os filhos vivem como seus os acidentes traumáticos que atingiram seus pais ou avós. O pai atribuiria ao filho um traço ou uma situação que ele não pode elaborar em si mesmo. Esse modelo de identificação, tão estruturante quanto desorganizador do eu, põe-se em ação nos processos alienantes da transgeracionalidade.

Propõe-se um diálogo entre esse enfoque do trauma de base transgeracional e um outro. Herrmann (2001, p. 151) aponta que o paciente sofre de imobilidade. Condições peculiares de seu desenvolvimento paralisaram sua história em torno de um sentido que se congelou. Os fatos e as relações emocionais que dão forma restritiva ao desejo, que lhe causam nós, constituem traumas. O trauma quase nunca é um evento terrível; é pior, é uma repetidíssima forma de relação emocional que age por meio de pequenos choques, não de golpes mortais. A partir de sua história, o sujeito sustenta com toda a força uma representação particular de sua vida, ainda que ela seja provisória e mutável sob análise. Esta permite um movimento psíquico decorrente das rupturas de campo de pressupostos que mantinham o paciente sob certa relação emocional. Ele permite trazer à sua consciência representações antes expulsas para a periferia representacional. A partir disso, o trânsito entre as representações e sua mudança psíquica podem ocorrer (HERRMANN,2003, p. 18).

A violência da efração causada por certo trauma, os desarranjos na capacidade do sujeito de elaborá-lo a posteriori e a conseqüente ruptura do tecido familiar inserem-se no campo dos conflitos individuais e familiares assaz severos, derivados de uma transmissão transgeracional. Por meio dela, conteúdos traumáticos de uma geração precedente são repassados para a vindoura. As representações, as proto-representações e os afetos herdados pelo sujeito - de seus objetos parentais e ancestrais - são os elementos constitutivos de seu sistema das representações. De natureza fundamentalmente inconsciente, essas representações e os afetos que as investem funcionam como determinantes dos lugares psíquicos ocupados pelos membros da família. Podem designar: o lugar do filho desastrado e incapaz, o do pai herói e o do tio irritadiço. As representações, as proto-representações e os afetos aparecem no discurso e nos padrões recursivos de relações emocionais da família, em seus intercâmbios cotidianos. Ultrapassam o sentido denotativo- consciente das frases e reações que embalam a criança em sua formação. Seu foco de incidência é o desejo do sujeito: sua forma de se relacionar consigo e com o mundo. Essa urdidura advinda de uma romaria de antepassados - marcos duma temporalidade longínqua - pode gerar uma fixação de seus conteúdos. Seu herdeiro é violentado em seu desejo, sua autonomia, sua capacidade crítico-intelectual, sua estabilidade emocional e sua ação no mundo. Seu aprisionamento no páthos ancestral demarca uma patologia de difícil elaboração analítica.

 

História clínica casuística

Para estudar tal questão, apresenta-se uma história condizente com o foco transgeracional. Uma análise individual permitiu a coleta de certas construções verbais veiculadas em sua família. Elas constituem os veios para se investigar a transmissão de determinados elementos patológicos, presentes em sua tessitura. Constituem recortes do espólio temporal longevo da família, numa escala trigeracional de disseminação do sofrimento psíquico.

O casal passou por situações traumáticas em sua infância, com alguns pontos em comum. O marido sofreu graves perdas com a guerra. Perdeu a prerrogativa de ser diplomata e viajar ao redor do mundo, garantida por uma companhia de navegação. Extrovertido, seu desejo de ser artista foi reprimido pelo pai. Alternativas decentes prescritas para ele: casamento e trabalho. A esposa passou por sérias perdas, devido à eclosão da guerra em seu país natal. Aos sete anos, o considerável patrimônio e a estabilidade financeiro-afetiva de sua família foram perdidos. Toda a família teve de se mudar para um outro país. Sua situação afetiva e financeira piorou ainda mais, pois lá seu pai arrumou uma segunda família. Segundo ela, sua mãe chorava lágrimas de sangue e gritava: ”Parentes, só meus dentes e ainda assim me doem”.

Nesse segundo país, a esposa trabalhou como costureira, mas ao imigrar para um terceiro, teve de trabalhar como empregada e passou fome. Casou-se. Com o marido-primo, trabalhou arduamente e construiu um bom patrimônio. Conquanto afirmem que trabalharam muito por causa dos filhos, fizeram-no à custa de um grande afastamento afetivo deles e um do outro. A relação distorcida com dinheiro é um dos fatores responsáveis por esse distanciamento. A despeito do patrimônio obtido, a esposa reserva roupas velhas para si e para a família, chamadas de trapos. Na casa, ainda utiliza louças quebradas e velhas, denominadas cacarecos, e armazena roupas e louças melhores, mas sem usá-las. Refere-se às suas casas e ao seu carro como calhambeques. Sua herança psíquica mantémna sob uma catástrofe de perda sempre iminente. Sua posição de filha, mãe e esposa foi atingida pela fórmula relacional ditada por sua mãe. A urgência de ela se afastar dos parentes desdobrou-se na relação desértica que fez imperar com seu marido e seus filhos: árida de amor e calor. Revelou-se na agressividade metafórica das dentadas distribuídas aos filhos, pois crivou-os de recriminações e críticas. Ambas ocuparam o lugar dos beijos, nunca dados a eles. Atualmente, dá alguns beijos na neta, mais distante de sua agressividade tosca. Diz que certa parente – solteira, rica e independente do poder masculino – é encalhada e dela quer distância. Perpetua a máxima de sua genitora, pois mamãe tinha razão. A contenção de prazeres e de gastos é a tônica dessa família, na qual o culto da religião é marcado por rituais e discursos vazios. Uma relação espontânea e fluida com prazer é impedida pelo forte temor de uma vida dissoluta. Tão-somente para sua neta, reserva um amor privilegiado. Diz-lhe: ”Ela é igual à avó, vê tudo, vigia tudo, apaga as luzes, vai cuidar dos negócios”. A catexia de amor investida na garota contamina-se pela demanda de continuidade narcísica avó-neta, pois sua relação com trabalho e economia de dinheiro deve ser perpetrada pela herdeira.

A relação restritiva com dinheiro abrange igualmente o ramo paterno dessa família. Quando as crianças viajaram até uma cidade distante para dar um presente ao pai, ouviram: ”Não aceito este disco, não é presente, é meu dinheiro que vocês estão gastando mal, destruindo”. Numa ida delas a um parque de diversões, ele disse: ”Esse dinheiro não é dado, é emprestado, tem que devolver”. Seu desejo sádico de dominar os filhos fez do dinheiro um instrumento de manipulação e humilhação. Portanto, o esforço, o carinho e o tempo – despendidos pelos filhos ao procurar e dar o presente – são desvalorizados pelo pai, pois nele não há espaço mental para o deleite com os prazeres sutis proporcionados pelo dinheiro. Tampouco, o carinho e a doação espontânea fazem parte de seu mundo interno. Suas representações sobre carinho e doação estão reprimidas, constituindo uma espécie de ”impossível” no patrimônio de suas representações. Esse impossível da doação se revela na idéia de que é preciso devolver o dinheiro. Empréstimo estendido para um tempo ancestral do para sempre, visto que atualmente seus filhos adultos têm sérias dificuldades para ganhar seu próprio dinheiro e, ainda mais, de dele desfrutar. Hipoteca de identidade e de dinheiro ao desejo destrutivo do genitor, a quem tentaram amar e agradar em vão?

Aos 30 anos, o filho mais velho vai morar fora e começa sua análise. Em certa ocasião, ele recebe uma visita de seus pais que, sem avisá-lo, vêm passar uns dias com ele. Depois de dizerem que determinada garota é a namorada perfeita para ele, o pai acrescenta: ”Somos seus pais, sabemos o que é melhor para você”. O filho responde que quer fazer as coisas do seu jeito, que se vira sozinho há muito tempo e paga suas contas. Na briga, seu pai fica magoado e diz: ”Filhos trocados por m..., ainda saem caro”. Na primeira frase, o pai arvora-se como o porta-voz do casal, que falaria em uníssono, suprimindo a fala materna quanto à questão. A paternidade e a maternidade assegurariam a detenção de um saber maior e inquestionável. Em nome de ambos, o pai perpetua uma invasão, disfarçada como oferta de um bem para o filho: o melhor. O melhor é instituído de modo autoritário por essa onipotente figura paterna. Sua recusa posiciona o filho como ingrato, incapaz de reconhecimento e sem lugar para uma identidade diferenciada da de seus pais. A desavença que se segue fomenta a segunda frase, na qual o filho é comparado à m... Diante da diferença de idéias entre eles, o pai deseja trocar seu filho. Seu valor afetivo parece confundido com os gastos que ele deu. Por isso, o filho deve pagar um alto preço. Sua solidão e sua dificuldade de garantir seu poder econômico constituem o reverso de sua suposta autonomia.

Diante de outros desentendimentos, o pai choroso, desesperado e incompreendido pelos filhos rebeldes, sacode as mãos e diz: ”Eu dou tudo, faço tudo e olha o que eu recebo: nada”. A diferença de idéias torna-se rebeldia filial, prontamente impedida pelo pai: capaz de absoluta capacidade de doação e trabalho. A chantagem paradoxal impede o filho de reconhecer a contradição entre a frase emocionada do genitor e sua percepção de que sofre muito com ele. O tudo é estabelecido por esse pai, como um máximo inquestionável e onipotente. Disfarça sua impotência de reconhecer que não pode dar tudo para seu filho e que, ainda que isso lhe fosse possível, poderia não ser a medida de seu filho. Ao final, o pai afirma que nada recebe. Ele também diz para os filhos: ”Eu sou o melhor pai do mundo” e para a mulher: ”Se você desse a volta ao mundo, ainda assim não encontraria um homem como eu”. A representação superlativa de si diante dos filhos é um absoluto contestado pela péssima qualidade da relação com eles. Posiciona seu valor junto à sua esposa num tempo condicional – impossível de ser posto à prova. Essas frases paternas repetidas ao longo da relação familiar confirmam a radicalidade das posições, às quais os membros dessa família estão submetidos.

Atualmente, a filha casada busca superar algumas limitações vividas em sua infância. Veste sua filha com roupas boas, mas enfatiza que compra tudo baratinho. Em momentos de confronto com a filha, repete a fala paterna: ”Eu dou tudo, faço tudo e o que é que eu recebo? Nada”. Quando a garota não concorda com uma roupa escolhida por ela, diz-lhe: ”Se você não puser esta roupa, não vai sair”. Outras circunstâncias de discórdia deflagram frases como: ”Se você não comer esta fruta, não vai andar a cavalo”. A imposição da perda de bens preciosos para o desejo do sujeito disseminou-se da bisavó para a avó, sua filha e sua neta.

A relação de outros grupos da família com dinheiro e prazeres é marcada pela perda. Quando jovem, um irmão do pai ganhou muito dinheiro, mas dissipou-o com mulheres e outros deleites da carne. Atualmente, falta-lhe dinheiro para viajar com a irmã rica e sobra-lhe tristeza ante a realidade. Sua sobrinha-filha do casal diz a respeito: ”Não se pode ter tudo na vida, ele gastou tudo o que tinha e agora quer que os outros paguem”. Essa frase sugere um pagamento em dor para a ruptura de uma regra familiar há muito instituída: trabalhar arduamente, em detrimento do prazer do corpo, e economizar muito para um futuro, que prenuncia duras perdas.

Esses recortes de uma trama familiar visam descrever o repasse do sofrimento psíquico. Seus desdobramentos na clínica psicanalítica suscitam a demanda de aprofundá-la teoricamente. Destaca-se um aspecto enigmático do processo pelo qual se representam as vivências subjetivas. Num nível consciente articulado à lógica da razão, o sujeito pode se perceber dotado, em maior ou menor grau, de uma série de potencialidades ou recursos para efetivar seu desejo no presente. Esse processo depende do uso de predicados como inteligência, capacidade de trabalho, capacidade de ganhar dinheiro, habilidade no trato social, entre outros. Caberia a ele representar-se como: inteligente, competente, bem-sucedido. Todavia, em momentos críticos e absurdos do trabalho analítico, ele não se representa como alguém que detém esses predicados. Ao contrário, representa-se de modo depreciativo: estúpido, incompetente, fracassado. Seu cabedal de representações está circunscrito a essas idéias que o desvalorizam, resultantes de sua herança. Seu sistema representacional está paralisado em sua representabilidade, que bloqueia seu desejo. Seus traumas - em sua infância - engendraram certos nós em seu desejo e, desse modo, o sujeito não consegue valer-se de seus atributos para atualizá-lo no mundo das relações e no presente.

Impõe-se um enigma: como é possível que o sujeito se represente - no nível consciente - como detentor de capacidades propícias à realização de seu desejo, mas que essa vivência seja tão tênue e tão fugaz, que não garanta a consistência ou a força de empreendimento ao seu desejo? Estaria seu desejo submetido às falhas na integração das representações dessas possibilidades de seu ser, originadas num nível inconsciente de funcionamento do sistema?

 

Discussão de caso

Este caso clínico suscita questionamentos relevantes do ponto de vista psicanalítico. A presente análise e revisão teórica inicia-se com idéias preliminares da autora sobre o processo representativo e suas alterações pelos traumas veiculados numa família, em especial, aqueles de natureza transgeracional. A seguir, discutem-se os usos defensivos das representações e afetos que dificultam a representação do trauma. Tais usos são articulados a adendos sobre o caso.

O sistema das representações constitui o aparato psíquico capaz de representar impulsos, relações de objeto e estados mentais do sujeito.1 Sua representabilidade consiste numa propriedade potencial, passível de ser alterada pela efração causada pelo trauma. As diversas intensidades dos eventos traumáticos e sua incidência sobre as diferentes organizações psíquicas fazem que o trauma adquira várias magnitudes. Por sua própria organização psíquica, psicóticos e borderlines apresentariam maior suscetibilidade aos traumas do que os neuróticos. Um trauma de guerra – capaz de deflagrar intenso ódio e exacerbar o conflito entre amor e ódio, sem permitir um controle mínimo sobre os fatos – pode ter maior impacto sobre uma organização obsessiva – dada a força daqueles elementos em sua psique – do que sobre a hipocondríaca. Dependendo da força do trauma, o sistema das representações sofre rateios maiores ou menores em sua capacidade representativa dos eventos. Dentre suas representações, há as consentâneas com a realização do desejo - ser inteligente, ser competente, ser persistente - e outras incongruentes com ele - ser estúpido, ser incompetente, ser inconstante em seus propósitos. Essas últimas e várias outras representações que depreciam o valor do sujeito – quando adulto – interligam-se ao impacto do trauma sobre esse sistema – quando criança (ALMEIDA, 2003).

Grande parte do acervo de representações do sujeito advém do espólio de representações de sua família, cujos elementos se estendem de seus ascendentes aos seus descendentes. Sua inserção nela faz que ele seja representado segundo parâmetros familiares mais ou menos fixos. Numa família de intelectuais, um membro com vocação para o comércio pode ser representado como mercantilista e bronco. Nesse encadeamento, o sujeito e a família funcionam a partir de um estatuto mais saudável ou mais patológico, em diversos graus. O estatuto de uma família é composto por representações e afetos que configuram sua especificidade no que se refere a valores, direcionamento da energia vital e do tempo de vida para determinadas atividades, prioridades no uso do dinheiro, espaço para a vida sexual, maior carga de amor ou de ódio, por exemplo. Um código familiar saudável garante aos seus componentes o direito à diferença entre os seres e as gerações. Um código nosológico assegura a manutenção do páthos familiar e demarca o lócus patológico a ser ocupado por seus membros. Esse lugar é exemplificado por certo indivíduo bastante inteligente, competente e com doutorado numa grande universidade. Porém, reiteradamente, ele faz comentários sobre si, em público, para se desvalorizar e gerar zombarias. Em suas relações familiares, o posto de inteligente e poderoso era ocupado por seu sádico pai. Assim sendo, o valor dado pelo sujeito aos seus atributos deriva de fontes inconscientes. Arraigado na psique do sujeito, esse legado obedece a uma datação histórica recuada no tempo. Nessa marcação, aspectos da afetividade e da sexualidade são submetidos a processos defensivos. Para exercê-los, investimentos de amor e ódio são associados a certas representações do desejo. As representações que atestam o valor do sujeito e são investidas por amor favorecem sua concretização; já aquelas que o desvalorizam e são investidas por ódio obstam esse processo. Destarte, o exercício fluido e potente do desejo do sujeito é bloqueado na infância, gera uma resistência à sua realização posterior mediante representações que se lhe opõem, impedindo o desejo de ser efetivado em sua vida adulta.

Ainda que a apreensão de representações passe pela filtragem inconsciente do sujeito, sua liberdade de escolha fica restrita às alternativas defensivas de sua família contra certos impulsos. Numa certa família, as representações de ser otário e burro ao amar alguém – estranho aos seus desígnios – confundem o sujeito em sua relação com o amor e com os outros seres humanos. As representações de ser decente, limpa e digna atribuídas a uma filha - que deve ser assexuada - opõem-se as de ela ser imoral, suja e indigna - se for sexuada. Então, a força de seu amor e sua sexualidade deve ser dirigida para a busca de poder, trabalho, aventura, arte, dinheiro ou saber. Na família estudada, trabalhar e economizar é estruturante na vida psíquica de seus componentes. O filho foi representado como preguiçoso, mole, gastador e destinado a ser um nada na vida, por não seguir o ideário de sua família.

O processo representativo do indivíduo é submetido a outros fatores em sua família. Devido à repressão de suas vivências infantis, os pais desconsideram os desejos próprios ao filho, bem como a diferença entre as gerações e as épocas. Dada uma ordem, demarcada uma proibição e estabelecido um limite pelos pais, alguns proferem um ”bem-feito” caso o filho os ignore. O bem-feito parental revela sua ironia e sua insensibilidade à dor psíquica ou física, experimentada pelo filho. Ele é visto como mau e desobediente e seu ato é considerado mau e malfeito, por se desviar do ”bem-feito” parental. Nessa toada, a ruptura de padrões familiares tem seu custo para aquele que o faz em busca de sua identidade. A ruptura das normas acaba sendo combatida pelo mesmo genitor submetido à sua imposição, quando criança. Papai e mamãe têm sempre razão. Cumpre aos filhos preservar o código familiar patológico. Se for quebrado, a punição é mais que merecida. Desse modo, a ”razão” parental é autoconfirmada, mediante a transmissão de conteúdos que não devem ser trazidos ao exame crítico da razão. Razão circular, pura desrazão. Ela gera um circuito fechado que perpetua o sofrimento psíquico, sendo capaz de imbricar a procissão dos antepassados aos pósteros.

Dentre suas formas de transmissão, encontram-se as comunicações paradoxais na família. Racamier (1983, p. 145) define o paradoxo como uma formação psíquica que liga e remete uma à outra, duas proposições inconciliáveis. Procedimento esquizofrenogênico, submete um indivíduo a duas injunções incompatíveis, sendo a ele impossível obedecer a uma, sem desobedecer à outra. Sua incompatibilidade é secreta e não percebida, de modo que sua vítima não possa se livrar dele. A criança, cuja percepção é desqualificada, deve crer em seus sentidos ou no objeto, confiar em seu eu ou no amor do objeto. O paradoxo é uma agressão ao eu, suscitando um ódio intenso. O ódio não é discernido pelo eu, pois o paradoxo provoca confusão da mente e dos sentimentos.

Em razão de todos esses fatores que permeiam a estrutura familiar, o espaço de liberdade do sujeito - para se tornar quem ele efetivamente pode ser - tende a se tornar deveras limitado. Demanda uma investigação a respeito dos processos defensivos mediados pelas representações.

Certos fatos do cascatear de gerações da família eternizam um circuito fechado de idéias. O uso defensivo das representações e dos afetos para perpetuar o sofrimento psíquico dispõe de algumas modalidades de difusão: o recurso às pragas, os disfarces dos significados destrutivos das representações, a circularidade do pensamento, as representações contrárias ao amor, o deslocamento a partir das representações investidas por ódio e, por fim, o sobreinvestimento de ódio em certas representações. Cada uma delas serve para preservar o cerne familiar neurótico.

O ponto de vista econômico contribui para pensar o uso defensivo de idéias e afetos. Para Freud (2006c, p. 125), no inconsciente há conteúdos catexizados com maior ou menor força. As intensidades catexiais no inconsciente são móveis. Pelo deslocamento uma idéia pode ceder a outra sua quota de catexia; pela condensação pode apropriar de toda a catexia de outras idéias. Laplanche e Pontalis (2001, p. 167) dizem que o enfoque econômico qualifica a hipótese de que os processos psíquicos consistem na circulação e repartição de uma energia quantificável: energia pulsional passível de aumento, diminuição e equivalências. Considera os investimentos na sua mobilidade, as variações de sua intensidade, as oposições entre eles (contra-investimentos) etc.

A clínica dos processos transgeracionais revela que as representações podem ser investidas por dois afetos basilares - amor e ódio - segundo diferentes gradientes. As representações associam-se umas às outras, acarretando uma espécie de somatório, atenuação e contraposição entre elas que atuam sobre a pujança do desejo. Ser autoconfiante, ser determinado, ser capaz e ser empreendedor – em associação – favorecem a realização do desejo. Ser autoconfiante, ser determinado e ser empreendedor atenuam a força traumática de ser desastrado e se contrapõem à sua tendência de interditar a satisfação atual do desejo do adulto. As representações e os afetos – que as investem – imbricam-se a processos como repressão, deslocamento, identificação, investimentos, sobreinvestimentos, contrainvestimentos, por exemplo. A localização das representações nos estratos conscientes e inconscientes do sistema das representações toma parte no movimento psíquico de inibição ou de atualização do desejo.

Dentre os recursos defensivos que difundem a trama representacional e afetiva da família, há os não-ditos ou segredos familiares, bem como os mal-ditos ou as pragas endereçadas ao filho. Segundo Eiguer (1997, p. 1857), o trauma transgeracional envia a algumas situações reconhecidas por três palavras-chave:

  • o “não-dito” faz alusão a um segredo, à cripta, ao fantasma e à clivagem.
  • o “mal-dito” evoca a maldição proferida por um avô, a palavra extraviada, mal-dita, que não encontra um estatuto de palavra, mas que atua nos bastidores da psique.
  • no “excessivamente-dito” da genealogia, o ancestral excessivamente presente não deixa o recalcamento desempenhar seu papel organizador na psique e entrava a ação do sujeito na vida.
  • Na família pesquisada, as pragas propagam maldições ante as diferenças de idéias e posicionamentos de seus membros. Nessas situações, o filho é chamado direta ou indiretamente de rebelde, débil e doente mental e sua punição deve ser estendida para o futuro, como nas frases: ”Tudo corre às mil maravilhas até você chegar. Aí vem você, e sua mãe e eu não temos sossego. Você é um débil mental, um doente mental, nem no hospício vão te querer. Você vai se arrepender do que tá fazendo comigo. Quando você tiver seus filhos, vai sofrer como seu pai”. As supostas ”mil maravilhas” fazem parte da contra-reação onipotente e persecutória desse pai diante das opiniões de seu filho crescido, que desestabilizam suas regras rígidas e destrutivas. Se obedecidas pelo filho adulto, que deveria continuar sendo criança, tudo iria bem. Tudo? Desobedecidas, o filho deve ser banido da família. Nessa proscrição, seu pai atribui-lhe um grau rebaixado de inteligência e uma alteração grave de personalidade. Portanto, esse pária deve ser recolhido num local para loucos. Todavia, é o pai que quase enlouquece perante sua perda do poder sobre o filho. Ademais, o ódio de seu filho deflagra mais ódio nesse pai. Então, ele lança ao filho o veredicto-praga, cuja penalidade vai ser cobrada na próxima geração da família.

    Na subversão dos sentidos dos conteúdos herdados pelo filho, as representações sofrem um esvaziamento semântico e são preenchidas com as insígnias da família, com seus significados inconscientes distorcidos. Esse processo do sistema faz que o teor destrutivo de certas representações receba um verniz cultural, que visa disfarçar a transmissão do páthos familiar. Na família em questão, ser bonzinho e comportado – como o papai do céu gosta – e ser obediente – para merecer os presentes do Papai Noel – são representações atribuídas à criança, quando faz o que é esperado dela. Escamoteiam o desejo de seus pais de uma obediência filial sem contestação e, em sua forma mais patológica, seu desejo de uma ausência de identidade própria ao filho. Uma representação antagônica àquelas - ser encrenqueiro - ratifica o desejo de seus pais quanto a uma concordância quase absoluta do filho com relação à ordem familiar e um não-lugar para a diferença entre os seres e as gerações da família.

    Uma outra modalidade de defesa perpetrada pelas representações engendra uma circularidade do pensamento. A forte concentração de afetos em algumas representações faz que o pensamento passe constantemente de uma representação à outra e volte à anterior. O sujeito se debate entre idéias contraditórias que prendem seu raciocínio numa rede circular. Esse pensamento recorrente forma um circuito obstrutivo, que inviabiliza o curso das demais representações. Deve-se aos traumas dos predecessores que configuraram uma estática mental, de modo que conteúdos intrafamiliares alienam seus sucessores quanto à assunção de seu desejo. Na família em pauta, o entrejogo entre o risco e a segurança é impeditivo da mudança psíquica. O desejo do filho de viajar por lugares exóticos e requintados é submetido a embates paradoxais. Ele tem dificuldades de ganhar seu próprio dinheiro. Viajar é representado como gastar dinheiro e ficar sujeito a depender do seu pai. Ele abomina tal possibilidade, pois o pai sempre usou o dinheiro para subjugá-lo e manter seu poder sádico. Ademais, o desejo de seu pai de viajar foi abortado por várias situações de sua vida, inclusive pela interdição de seu pai ao seu desejo de ser diplomata ou artista e correr o mundo. Induziu-o ao casamento como direção possível para gente de bem. O nascimento de seu filho foi mais uma das ocasiões que abortaram seu desejo. A sucessão de perdas sofridas por seus avós e pais fez do dinheiro um fator de segurança máxima nessa família. Dada a progressão traumática dessas vivências familiares, a mera possibilidade de esse filho desfrutar o prazer de viajar ameaça sua segurança pessoal. Viajar por lugares exóticos e refinados é ainda mais perigoso para seu eu. Então, ele tem de se haver com esse emaranhado longevo de representações e afetos, para individuar-se de seu legado.

    A transmissão da neurose na família associa-se ainda a um afeto primordial da experiência humana, que adquire conotação negativa e mobiliza uma reação defensiva em seus membros. Numa certa família, o amor ao objeto pode ser visto como uma vivência que fragiliza o sujeito. Então, o amor não pode ser expresso de forma clara, coerente e livre de paradoxos, tampouco por meio do contato físico entre pais e filhos. Dada a confusão mental entre amor e ódio e entre sujeito e objeto, certas representações servem como defesa contra o amor: considerado um afeto desorganizador do eu. Assim, a associação entre as representações de ser pai e ser provedor e de ser mãe e ser nutriz institui: ser o pai provedor de dinheiro e ser a mãe nutriz de alimentos, tão-somente. Elas acabam se contrapondo à representação de ser amoroso(a) para com os filhos. Num diapasão saudável, os pais expressam seu amor pelos filhos de forma clara e construtiva, inclusive nas cizânias, como em: ”Eu amo você, mas não gosto disso que você tá fazendo agora”. Na família ora abordada, a mãe expressava indiretamente sua afeição pelo filho, entulhando-o de comida e chamando-o de roliço e rechonchudo, depois. A comida que alimenta, mas que ataca seu bem-estar denuncia o investimento do filho com parcelas de ódio maiores que as de amor. O pai provedor de dinheiro e a mãe nutriz de comida se opõem a eles serem amorosos com filhos. Rosenfeld (1968, p. 58) afirma que os estados confusionais são comuns no desenvolvimento normal e em condições patológicas. Quando predominam os impulsos de destruição, não se diferenciam os impulsos de amor dos de ódio nem os objetos bons dos maus, que são percebidos como misturados ou confusos. Tais estados infantis de confusão se relacionam com os estados esquizofrênicos e confusionais do adulto.

    Além disso, a preocupação de certos pais com o patrimônio financeiro deixado ao filho esconde uma mescla de investimento amoroso e agressivo sobre ele. Sua agressividade aparece na ênfase dada por eles ao valor daquele que deixa a herança, em detrimento do valor do herdeiro. Na família enfocada, os pais diziam: ”Mais vale pedir aos bons do que deixar aos ruins”. Frisavam que nada herdaram, mas que iriam deixar muito para seus filhos. Assim, os bons são os pais provedores da herança monetária e os ruins são seus filhos. Porém, a herança psíquica é péssima. Paradoxalmente, em suas entrelinhas, encontra-se: ”mais vale pedir do que deixar” para outrem. Com isso, revela-se uma forma relacional empobrecedora e fixa: tanto os bons/pais quanto os maus/filhos ficam pobres em meio à herança financeira e afetiva. Esse mesmo pai, reiteradamente, contava para os filhos a história do chupim que põe seus ovos no ninho de outro pássaro, que passa a cuidar de seus filhotes. Também instigante é sua frase ”Avô rico, pai nobre, neto pobre”, que se refere a uma seqüência de herdeiros que destroem a herança financeira oriunda da família. Em seu filho e herdeiro desse paradigma relacional, certas auto-representações foram investidas por ódio: ser o herdeiro fraco e impotente de bens materiais que merecem ser dilapidados. Fixam-se em seu psiquismo e funcionam desinvestindo outras representações alternativas - ser o herdeiro bem-sucedido, empreendedor e vigoroso que luta para obter o que deseja na vida. Portanto, o legado psicológico do sujeito pode colocá-lo num conflito, no qual certas representações atuam como anteparo defensivo contra aquelas coerentes com seu desejo. Para superá-lo, cabe a esse legatário descumprir a delegação herdada, que torna fixas certas representações depreciativas de si, das figuras parentais e do mandato familiar. Em oposição às representações fixas investidas por ódio, as representações alternativas permitem a mobilidade associativa, a elaboração das dores d’alma e a potência do desejo para buscar seus objetos.

    O núcleo neurótico de uma família é composto ainda por algumas experiências que engendram uma faixa de representações, cujos limites extremos são investidos por ódio. O espectro das representações do sujeito com relação a qualquer vivência mental se estende entre certos limites representacionais. Seus extremos são destrutivos, por bloquearem a integração de uma qualidade compatível com seu desejo. Nesse caso, uma característica não é investida de amor de forma consistente, para que seu desejo e o ato - que permite satisfazê-lo - sejam integrados. Com relação ao manejo do dinheiro, a faixa das representações vai de ser perdulário a ser avarento, passando pela de ser um bom administrador. Essa idéia intermediária entre as outras duas refere-se à integração desse “dom”, como algo próprio ao sujeito e bem utilizado por ele. No cuidado para com o outro, o sujeito pode se representar segundo uma faixa que se estende de ser benevolente até ser cruel para com ele. O paciente entende que, ao manter uma delas, resguarda-se de um sofrimento psíquico muito maior. Apesar de elas impedirem seu crescimento psíquico, o terror mobilizado pelo trabalho analítico com essas representações pode ser intenso. Seu sistema representacional fica submetido ao pânico, à paralisação e à agitação paradoxais, dados os embates entre essas representações. Sua possibilidade de mudança psíquica fica restrita. Na família analisada, o filho desejava ser benevolente e ser humilde ao extremo para com seus amigos para não ser cruel e ser prepotente como seu pai, durante um longo tempo de sua análise. Apesar de ser lesado por seus supostos amigos, ele ficava paralisado, angustiado e apavorado com a possível mudança dessas representações.

    A letalidade do rescaldo neurótico da família viabiliza-se ainda por meio de um deslocamento a partir de certas representações investidas de ódio. Várias representações do trauma se tornam inconscientes e são submetidas a deslocamentos. Aquelas que se tornam conscientes são adversas à realização do desejo e funcionam como contraponto defensivo que impede que as representações favoráveis ao desejo sejam trazidas para a consciência. Tais representações estão reprimidas nos estratos inconscientes do sistema das representações. A catexia de ódio numa representação historicamente anterior à outra pode revelar-se ainda como um vazio sem emoção, ou seja, pode se apresentar sob o disfarce de uma ausência de emoção. Disso resulta uma incapacidade de usar seus recursos psíquicos, numa crise de improdutividade. Na família ora examinada, o filho exasperava-se com sua improdutividade diante de um trabalho determinante para sua vida profissional. A metáfora utilizada por ele para seu bloqueio reportava a uma porta fechada impossível de ser aberta. Essa representação de uma barreira mental inexpugnável associa-se ao ódio a si, ao seu pai e aos elos amorosos. Os furos no rosto da namorada - que o amava - causavam-lhe horror. Remetiam às catexias de ódio nas representações de amar e ser amado, seu ódio aos aspectos bons da relação com ela e seu paradoxal fechamento e abertura para apreciá-los. Seu ódio era um afeto bloqueador do eu: contra o amor nos vínculos. Ser improdutivo no trabalho e ser resistente ao amor – mediante o investimento de ódio nas idéias de amar e ser amado – remetiam - por deslocamento - a odiar, ser odiado e ser odiável.

    Outra classe de elementos associados à inércia do desejo é a das representações do absoluto sobreinvestidas por ódio: abandonado, desamparado, fracassado, não amado. Essa inércia constitui a contraposição mental à possibilidade de mudança psíquica numa análise. O superinvestimento de ódio designa um gradiente energético-afetivo maior que do investimento. A intensa magnitude do ódio dirigida às representações do absoluto - incompatíveis com o desejo do ser - faz com que a circulação das demais representações fique bloqueada. Assim, a amplitude potencial do acervo de representações do sujeito fica restrita, em fragmentos do tempo mental. Partícipes dos duelos do desejo no sujeito, as representações do absoluto enclausuram-no numa posição familiar arcaica, ligada a um tempo e espaço bastante longínquos. Quando a representação absolutizada aparece em sua consciência, ele se angustia por estar preso a um estado mental carregado de sofrimento, do qual lhe parece impossível escapar. O absoluto precisa ser substituído por representações condizentes com o desejo do sujeito, com a retomada da atividade representacional do sistema. Ao desinvestir a forte carga de ódio do absoluto, representa-se o trauma carreado nas engrenagens absurdas do tempo transgeracional. Num outro caso clínico, o pai reitera sua desvalorização dos filhos, para os quais deixará um bom patrimônio. Diz-lhes: ”Vocês ainda vão comer os tijolos das casas que eu vou deixar para vocês”. Por meio dessa frase, exalta sua capacidade como self made man, bem como a incapacidade de seus filhos de ganhar dinheiro, de manter o patrimônio herdado e sua capacidade de destruí-lo. Em uma sessão posterior, abre uma cápsula defensiva e fala de seu amor por eles. Noutra sessão, a edificação do patrimônio financeiro ora se presta a cuidar dos filhos, ora para atacá-los. Seu próprio pai deixou-o e à família pendurados em dívidas. Ele trabalhou muito para saldálas e ter uma vida estável. Anteriores no tempo geracional, as auto-representações de ser abandonado e ser desamparado por seu pai foram sobreinvestidas de ódio e tornaram-se inconscientes. Tais representações contrárias ao seu desejo podem dar lugar às consoantes com ele - ser um bom pai e ser amoroso com seus filhos. Estas favorecem a consolidação desse seu desejo no presente.

     

    Considerações finais

    No exame de determinadas representações e de seus usos defensivos numa família, surpreendem a riqueza, a complexidade e a perpetuação desses processos na esteira geracional. Boa parte do montante representacional e afetivo da família é introjetado no psiquismo de seus componentes a partir das relações parental e ancestral, com sua carga construtiva e destrutiva. A partir desse aporte, a representação de um atributo do sujeito - que permite atualizar seu desejo no presente - pode funcionar como mera virtualidade psíquica. Nesse caso, uma representação pró-desejo – atingida pelo trauma – demanda contínuas tentativas de integração numa análise. Em cada uma dessas tentativas, seu acesso - ao estrato consciente do sistema - pode funcionar como mero contorno formal, sem força para gerar uma ação que vise à realização de seu desejo. Porquanto, um tipo de estofo - que fornece consistência à representação em termos de eficácia para a ação - está reprimido nos estratos inconscientes do sistema. Esse estofo afetivo é fornecido pelas catexias de amor nas representações do desejo. Em contraposição a isso, os diversos usos defensivos das representações e os processos mentais neurotizantes - associados a eles - revelam déficits na capacidade do sistema de representar certas vivências traumáticas transgeracionais. Elas mobilizam várias cargas de ódio no sistema das representações, com graduação inequívoca: quanto maior for a carga de ódio gerada por um trauma, tanto mais esse sistema se desorganizará e tanto mais a eficácia do desejo – como movimento em direção ao seu objeto – se inviabilizará.

    Referencial-mor da severidade dos traumas de crivo ancestral, a representação do absoluto tem relação com a falência funcional do sistema representacional. Seu break deve-se às falhas em sua representabilidade, devidas à primazia do ódio sobre o amor em seus estratos inconscientes. O predomínio do ódio em suas camadas inconscientes tem como reverso o sobreinvestimento de ódio nas representações do estrato consciente. Tais representações do absoluto – antagônicas ao desejo – adquiriram forte poder de fixação nesse estrato, em razão de suas intensas catexias. A força do ódio engendra as contínuas dificuldades de integração consistente de representações solidárias ao desejo - ser inteligente, bem-sucedido, organizado. Sua integração consistente ao acervo do sujeito depende de seu investimento por amor. Seu subinvestimento por amor faz que essas representações concordes ao desejo sejam destituídas de sua força para efetivá-lo. Em contrapartida, as representações antidesejo incluem aquelas do absoluto – ser abandonado, desamparado, rejeitado, fracassado, não amado – e as representações autodepreciativas – ser estúpido, ser incompetente, ser inconstante. Elas consistem na forma preferencial, praticamente exclusiva e muito restritiva de o sujeito se auto-representar. Impõem um desafio clínico, no qual o analista precisa trabalhar esse reduzido montante representacional do paciente, para que ele se represente de uma forma mais abrangente e mais congruente com suas reais possibilidades de ser.

    As heranças da família e a da cultura são parte da problemática da transmissão atávica. A cultura familiar – com seu dispositivo de representações, afetos, fantasias e relações de objeto – e o imaginário cultural – com seus valores, ideais, crenças e preconceitos – orientam o homem em seu modo de ser e de estar no mundo. Nesse aspecto, exercem funções aparentadas entre si. Em si, a família filtra, transforma e restitui à cultura os vários elementos que recebe dela. Por sua vez, o imaginário cultural tem nutrido a formação da família, num intercâmbio contínuo. A possibilidade de mudança – contida nesse movimento – esbarra em elementos familiares e culturais bastante arraigados que têm feito o ser humano repassar seu sofrimento ao outro: domínio, prepotência, sadismo, poder destrutivo, autoritarismo, insensibilidade. Seu status quo na cultura tem sido confrontado por movimentos - como a contracultura – que propõem o respeito às diferenças, a liberdade sexual, a igualdade entre os seres e novas relações de ”poder”. A despeito das mudanças na família e na cultura, a transmissão familiar tende a perpetuar material psíquico arcaico, inclusive em seus aspectos mais destrutivos e mais mortíferos. A horizontalidade das gerações vivas da família - atravessadas pela verticalidade dos despojos psíquicos daquela morta - mantém essa cadeia de transmissão de matéria psíquica letal ao desejo. Por meio dessa transmissão, o algoz e a vítima se revezam em seus postos na família e na cultura. Eles compõem uma parceria, na qual o sadismo, o masoquismo, a dominação, a submissão e o poder destrutivo atestam a primazia das catexias do ódio a si e ao outro. Cada um deles tende a manter e transmitir seu ódio a outrem.

    Noutra clave de relação eu-outro, a geração de uma progênie com autonomia do desejo depende de elaborar a extrusão da matéria psíquica ”viva”, mas mortífera vinda dos antecessores. A autonomia do desejo designa os princípios e as leis próprias a esse movimento primordial do sujeito em direção aos seus objetos de amor, atração e vitalidade. Para que essa autonomia se torne possível, faz-se necessário romper a rede de coartação das possibilidades de ser constituída pelo estatuto nosológico da família: mantenedor de seu páthos. A busca de ”saúde” psíquica pelo sujeito implica desvelar essa tessitura caótica e enlouquecedora, que subjuga os psiquismos de sua família. O ser humano pode ser saudável no sentido de consolidar seu desejo na atualidade, desde que a força do amor investido nas representações solidárias ao desejo supere a do ódio, anteriormente investido naquelas contrárias a ele.

     

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    Endereço para correspondência

    Maria Emília Sousa Almeida
    Praça Comendador Marcelino Monteiro, 111
    Taubaté – SP
    CEP 12030-010
    E-mail: maealmeida@yahoo.com.br

    Tramitação
    Recebido em agosto de 2008
    Aceito em novembro de 2008

     

     

    Notas

    O termo sistema representacional faz parte da obra de Herrmann (2001). Articula-se a outros conceitos do autor como superfície das representações, exceções identitárias, vórtice, entre outros.

    Em Almeida (2003) apresentam-se as situações de minha clínica que suscitaram a demanda de propor minha concepção sobre esse sistema, num contexto transgeracional.

    1 A expressão ”sistema representacional” faz parte da obra de Herrmann (2001). Articula-se a outros conceitos do autor, como superfície das representações, exceções identitárias, vórtice, entre outros. Em Almeida (2003), apresentam-se as situações de minha clínica que suscitaram a demanda de propor minha concepção sobre esse sistema num contexto transgeracional.