SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número1Avaliação psicológica de depressão em pacientes internados em enfermaria de hospital geralTransferência e desfecho terapêutico em psicoterapia psicodinâmica breve índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.11 n.1 São Paulo jun. 2009

 

ARTIGO ORIGINAL

 

O técnico de enfermagem diante da morte: concepções de morte para técnicos de enfermagem em oncologia e suas implicações na rotina de trabalho e na vida cotidiana1

 

The practical nurse before death: conceptions of death to practical nurses of oncology and its implications in the work routine and everyday life

 

El técnico de enfermería frente la muerte: concepciones de morte para los técnicos de enfermería en oncología y sus consecuencias en la rutina de trabajo y en la vida cotidiana

 

 

Priscila Valverde Fernandes; Alexandra Iglesias; Luziane Zacché Avellar

Universidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho foi conhecer as concepções de morte para técnicos de enfermagem que lidam com pacientes terminais em um hospital público da Grande Vitória. Pretendeu-se apreender como esses profissionais lidavam com a morte e como isso interferia em suas vidas cotidianas e em suas rotinas de trabalho. Para atingir os objetivos propostos, realizaram-se observações participantes registradas em um diário de campo e entrevistas semiestruturadas que foram gravadas e transcritas na íntegra. Os dados foram submetidos à análise qualitativa que foi entendida como um processo de produção de sentido. Nessa análise, destacaram-se quatro grandes temas: a concepção de morte, o lidar/enfrentar a morte, os sentimentos ante o óbito e a interferência na vida cotidiana e no trabalho. Os dados indicaram que a concepção de morte mais encontrada no grupo pesquisado foi a de que a morte é um acontecimento normal que faz parte da rotina de trabalho, mas é um tema que deve ser evitado. Considera-se que isso acontece pelo fato de que pensar a morte e considerá-la em profundidade é algo doloroso para o homem, podendo trazer à tona lembranças de outras perdas. Para evitar o contato com a morte, o profissional se apropriava de uma rotina de trabalho acelerada.

Palavras-chave: Sofrimento psíquico, Ambiente hospitalar, Cotidiano de trabalho, Saúde, Saúde mental.


ABSTRACT

The objective with this work was to know the conceptions of death to practical nurses that deal with terminal patients in a public hospital in Greater Vitória/Brasil. It was hoped to understand how theses professionals dealt with death and how their conceptions interfered in their everyday life and work routine. To reach this objective it was registered a field diary during participative observations and were done semi-structured interviews that were recorded and fully transcripted. The data was submitted to a quantitative analysis that was understood as a process of production of meaning. In the analysis, were highlighted four greater themes: the conception of death, dealing/facing death, the feelings towards death and the interference in the everyday life and in the work. The data indicated that the conception of death found in the researched group was that death is a normal event which is part of the work routine, but it is a theme that should be avoided. It was considered that this is due to the fact that thinking in death, considering it in depth, is something painful to men, and it may bring to memory other losses. To avoid the contact with death the professional uses an accelerate routine.

Keywords: Psychic suffering, Hospital environment, Everyday work, Health, Mental health.


RESUMEN

El objetivo en este estudio fue conocer los conceptos de muerte para los técnicos de enfermería que se ocupan de los pacientes terminales en un hospital público en la Gran Vitória. Queríamos saber como estos profesionales tratan la muerte y la forma que eso interfiere en su vida diaria y en su rutina de trabajo. Para lograr los objetivos realizamos observaciones participantes registradas en un diario de campo y entrevistas semi-estructuradas que fueron grabadas y transcritas textualmente. Los datos fueron sometidos a análisis cualitativo que se entendieron como un proceso de producción de sentido. En essa análisis encontramos cuatro grandes temas de relieve: el concepto de la muerte, el trato/hacer frente a la muerte, los sentimientos frente la muerte y la injerencia en la vida cotidiana y en el trabajo. Los datos indicaron que el concepto de muerte en el grupo estudiado fue que la muerte es un evento que es parte de la rutina normal de trabajo, pero es un tema que debe ser evitado. Se cree que esto ocurre porque el acto de pensar en la muerte, de considerarla profundamente, es doloroso para el hombre y puede llevar al recuerdo de otras pérdidas. Para evitar el contacto con la muerte el profesional tomaba una rutina de trabajo más acelerada.

Palabras clave: Sufrimiento psíquico, Ambiente hospitalario, Trabajo diario, Salud, Salud mental.


 

 

Introdução

A lógica de produção capitalista a que estamos submetidos determina aos trabalhadores, muitas vezes, a renúncia de questões singulares em detrimento de exigências de mercado, o que pode implicar agressões à vida e à sua saúde. O meio hospitalar igualmente exige de seus funcionários um posicionamento desconectado de suas vivências e de seus sentimentos. Segundo Angerami (1994), os hospitais são instituições despersonalizadas em que não é permitido a esses profissionais manifestar seus sentimentos. Devem, ao contrário, se manter firmes diante das adversidades da situação de trabalho.

A morte é conhecida somente mediante o processo de morrer de outros, cujas vivências nunca serão acessíveis em sua real dimensão. Mesmo constituindo um fenômeno da vida, sempre despertou medo no ser humano, e esse sentimento, muitas vezes, é expresso na dificuldade de ele lidar com a finitude e, com isso, torna-se presente nas crenças, nos valores e na visão de mundo que cada um traz consigo. A morte é considerada um acontecimento medonho, espantoso, mesmo tendo-se o conhecimento de que o homem é capaz de dominá- la em diversos níveis (KÜBLER-ROSS apud PALÚ, LABRONICI; ALBINI, 2004).

Antigamente, a morte era vivenciada por toda a comunidade, e essa convivência permitia que os indivíduos pensassem na possibilidade de sua própria morte, o que lhes caracterizava a sua finitude, que era expresso por meio de certos tipos de comportamentos, como quando participavam ativamente de todo o ritual fúnebre (MOREIRA; LISBOA, 2006).

Os hospitais, ao assumirem o papel de administrar o incômodo do adoecer, que antes era vivenciado nos lares, desenvolvem técnicas voltadas para o prolongamento da vida e o adiamento da morte. Para tanto, constrói-se histórica e socialmente um processo de trabalho em que o poder e a técnica tentam diluir o impacto e os mais variados sentimentos que emergem nesse ambiente (PITTA, 1990).

Um aspecto importante do trabalho no contexto hospitalar é a necessidade de lidar com a morte. Com os avanços da medicina, o tema da morte, de certa forma, afastou-se do cotidiano das pessoas, o que resultou numa mudança em relação ao modo de lidar com a morte, que antes era tratada com certa naturalidade. Mudou-se, então, a forma de conviver com a morte, com o morrer e com os pacientes prestes a morrer (KÜBLER-ROSS, 1998).

Kovács (1992) afirma que a diferença básica entre as pessoas em geral e os profissionais da área de saúde é que na vida destes a morte faz parte do cotidiano e pode se tornar sua companheira de trabalho diária. Isso porque a principal responsabilidade do exercício do cuidado hospitalar costuma recair com maior amplitude sobre a equipe médica, diretoria técnica e mais intensamente sobre o serviço de enfermagem que lida mais diretamente com o paciente.

Segundo Moreira e Lisboa (2006), o paciente terminal torna-se um referencial externo, e, por meio dessa relação, pode ocorrer uma identificação, dificultando uma aproximação do profissional com o paciente terminal. Dessa forma, o profissional poderia fazer uma possível relação com a própria morte, para o qual ainda pode não estar preparado. Assim, o cuidar desse tipo de paciente pode se tornar impessoal, fato este às vezes necessário para manter a saúde mental, pois acredita-se que tanto o profissional quanto o paciente não estão, culturalmente, preparados para esse tipo acontecimento.

Ribeiro, Baraldi e Silva (1998) destacam que o fato de o profissional de saúde deparar constantemente com situações estressantes e de “perda” de pacientes traz momentos de reflexões e capacidade de observação aguçada, mesmo que assistematizada. Reflexões que são realizadas rotineiramente acerca do processo de identificação e imagens simbólicas dos indivíduos “saudáveis” que assistem à morte do “outro” e participam dela. Os autores mencionam ainda que, apesar de a morte fazer parte da rotina dessas profissões, o desejo é de que sempre aconteça “no plantão do outro”, e surgem várias reações para negar ou anular tal acontecimento, pelo silêncio ou vazio no leito.

Segundo Palú, Labronici e Albini (2004), espera-se da equipe de enfermagem que, mediante o cuidado profissional, sejam desenvolvidas ações que objetivem não somente assistir e auxiliar o ser humano no momento sublime que é o nascimento, mas ainda comprometer- se com esse momento desconhecido, ou seja, o momento da morte.

Diante disso, o presente trabalho teve como objetivo descrever as reações, os sentimentos e as concepções de morte para os técnicos de enfermagem, que trabalham com pacientes terminais em um setor de oncologia de um hospital do município de Vitória (ES). Objetivou-se apreender como isso interfere em suas vidas cotidianas e em suas práticas de trabalho, bem como a possível necessidade de expressão dos sentimentos ante o óbito. Tomou-se como hipótese o fato de que, dentre muitas circunstâncias produtoras de sofrimento psíquico em trabalhadores no contexto hospitalar, o lidar diariamente com a morte é uma das situações agravantes. Inferimos que o próprio cotidiano de trabalho e a significação de morte desses profissionais influenciam em suas práticas.

 

Método

Participantes

Elegeram-se os técnicos de enfermagem como sujeitos participantes por tratar-se dos profissionais que lidam mais de perto com os pacientes. A escolha do hospital foi presidida pela necessidade decorrente dos objetivos da pesquisa. A instituição escolhida foi um hospital de referência no tratamento oncológico na Grande Vitória (ES).

O critério para estabelecimento do número de participantes não foi definido previamente. Durante a realização das observações e das entrevistas, utilizou-se o critério de saturação das informações. Considerou-se que cinco entrevistas seriam suficientes para atingir os propósitos da pesquisa. A preocupação não era quantitativa; entende-se que cada técnico possui características da totalidade da categoria a que pertence de maneira singular.

Num primeiro momento, solicitou-se autorização da instituição para o desenvolvimento da pesquisa. Em seguida, explicou-se o objetivo e a importância do trabalho para os técnicos, de modo que estes foram convidados para participar da pesquisa. Da mesma forma, solicitou-se a autorização para que fosse possível acompanhá-los em suas atividades e, posteriormente, para entrevistá-los.

Atendendo às normas éticas de pesquisa com seres humanos, o projeto foi aprovado pela comissão de Ética em Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo.

Instrumentos e procedimentos de coleta de dados

Os dados foram coletados em dois momentos distintos: observação participante e entrevistas semiestruturadas. Com as observações participantes, tinha-se como objetivo conseguir uma aproximação com aquilo que se buscava conhecer e estudar, convivendo, presenciando o dia a dia no hospital, acompanhando os técnicos e observando a sua rotina de trabalho.

A observação do cotidiano de funcionamento do serviço ocorreu por meio de situações interativas entre as pesquisadoras e os profissionais da instituição, principalmente os técnicos de enfermagem. O diálogo com os técnicos foi constante, tanto para trocas de impressões como para obtenção de esclarecimentos quanto às rotinas e aos procedimentos utilizados.

Pretendia-se criar um diálogo com a realidade desses profissionais, para assim se elaborar o roteiro de entrevista. Durante essa etapa do trabalho, procurou-se estabelecer uma relação respeitosa, tentando apreender quais as concepções sobre a morte e de que forma estas interferiam na rotina de trabalho e na vida cotidiana dos participantes. Procurou-se ouvir quais os sentimentos que emergiam diante de uma situação de morte no plantão. Observaram-se as atividades realizadas, falou-se de seus sentimentos e foi questionado se havia queixas e estratégias pessoais para lidar com a rotina de trabalho. Em parceria, foi possível construir conhecimentos que contribuíssem para os propósitos da pesquisa (MINAYO, 1994).

Foram realizadas duas observações participantes durante dois plantões de 12 horas (das 7 às 19 horas) e dois de 5 horas (das 19 horas à meia-noite), nos quais acompanhouse toda a rotina de trabalho dos colaboradores da pesquisa, com os quais procurou-se interagir. Após cada observação, era redigido um diário de campo com o objetivo de relatar o mais fidedignamente possível o que foi vivenciado.

Após a leitura e releitura do diário de campo, foi elaborado o roteiro de entrevista. Com as entrevistas semiestruturadas, visou-se obter as informações, partindo da fala dos próprios profissionais, atentando para as suas expressões corporais, tonalidade de voz e ênfase na resposta. Ouvir o que sentiam, esperavam e, principalmente, o que pensavam sobre ter a morte presente em suas rotinas de trabalho. Tal técnica de coleta de dados se apresentou como mais flexível, visto que o entrevistador podia esclarecer o significado das perguntas e adaptar-se mais facilmente às pessoas e às circunstâncias em que se desenvolveu a entrevista (GIL, 1999).

As entrevistas foram realizadas no próprio hospital e tiveram duração média de 45 minutos, foram gravadas em áudio, seguindo o protocolo de aceitação e posteriormente transcritas, a fim de garantir o registro do maior número de associações trazidas pelos colaboradores.

Procedimentos de análise de dados

Os dados foram submetidos à análise qualitativa. A análise foi entendida como um processo de produção de sentido (SPINK, 2000), de tal forma que, durante toda a pesquisa, se manteve o envolvimento com a interpretação, desde o levantamento dos dados até a sua conclusão. A análise emergiu como elemento intrínseco do processo de pesquisa.

Com as leituras do diário de campo e da transcrição das entrevistas, iniciou-se um diálogo com as informações, objetivando a identificação dos temas mais relevantes.

Diante das informações coletadas, do contato contínuo com o material pelas repetidas leituras e discussão sobre o material obtido, procurou-se deixar aflorar os sentidos, sem encapsular os dados em categorias determinadas a priori. Os temas que mais se repetiram foram organizados em uma tabela com quatro colunas, na qual se acomodaram as informações para que fosse possível ter uma maior visibilidade dos dados que se passou a descrever.

 

Resultados e discussão

As quatro colunas fazem referência aos temas mais recorrentes nas entrevistas, que foram: concepção de morte, da qual foram retirados da entrevista trechos em que se podiam acessar as ideias e opiniões sobre a morte; lidar/enfrentar, em que se agrupou de que forma os técnicos agiam diante de situações de morte; sentimentos ante o óbito, visou-se apreender que sentimentos emergiam diante da morte, bem como no contato diário com a iminência de morte constante; e interferência na vida cotidiana e no trabalho, que teve por objetivo perceber se havia e como se dava a influência da morte na vida do técnico tanto no trabalho quanto na vida particular.

Os dados indicaram que a concepção de morte que predomina no grupo pesquisado é de que a morte é algo normal que faz parte da rotina. Em vários casos, foi entendida como um descanso e alívio para a dor. O sofrimento do paciente foi destacado como um incômodo no processo de morrer.

Para o nosso grupo de colaboradores, a concepção de morte esteve intrinsecamente ligada à maneira de lidar com a morte e enfrentá-la. Elias (1987) fala da existência de basicamente três formas de enfrentar a morte: a primeira, na qual muitas religiões interpretam a morte como passagem para outra vida; a segunda forma seria considerar nossa finitude um dado essencial da existência humana; a terceira possibilidade deduz-se por exclusão das anteriores. Consiste em evitar todo pensamento sobre a morte, ocultando e reprimindo a presença do fenômeno da morte quanto seja possível.

Compreende-se com isso que o ritual para tentar ocultar a morte no hospital reflete uma ideologia da instituição hospitalar como local para a cura, para a saúde, não havendo espaço para o morrer. A presença da morte – aquela que, segundo concepção vigente, precisa ser enfrentada pelo técnico – instaura no exercício profissional um alto grau de compromisso do técnico para com o enfermo, pois é nessa hora que este depara fortemente com os dois possíveis resultados de seu trabalho, que seriam a restituição da saúde ou a morte do paciente (MACHADO, 1997).

O cotidiano de trabalho dos técnicos impõe uma rotina acelerada que pode estar associada com a necessidade de negação da morte. Esse mesmo ritmo foi observado nas atividades funerárias. O “ocultamento” e “desaparecimento” das pessoas que acabaram de morrer não pode esperar. Parece difícil suportar a concretude da morte. Nesses momentos, observou-se que havia, por um lado, os profissionais sufocados por um sentimento de fracasso, por terem “perdido o paciente”; por outro, todas as pessoas próximas, inclusive os profissionais, ameaçadas pela angústia de um processo de identificação (HOFFMANN, 1993).

A morte era considerada normal e parte do cotidiano, mas ao mesmo tempo havia uma dificuldade em presenciá-la. Tentava-se acostumar com a morte, mas, mesmo entre os técnicos experientes, o medo da morte de outrem remetia ao medo da própria morte, sem que se pudessem desprezar as marcas culturais da negação da morte que caracterizam o homem ocidental deste século. Talvez essa tentativa de se acostumar seja uma estratégia para lidar com esse difícil tema, como se pode observar na fala de um dos entrevistados: “Infelizmente a gente tem que se adaptar, porque o nosso dia a dia aqui normalmente são 3, 4 óbitos por mês”.

Verifica-se uma maior sensibilização quanto à morte de pacientes mais jovens. Segundo um dos técnicos, isso se justificava pelo fato de uma pessoa nova ainda não ter completado o ciclo normal da vida, e o morrer significaria a interrupção desse ciclo. Tal concepção pode ser decorrente do próprio sentido que, em nossa cultura, se dá à vida do homem. Sendo visto como um meio de produção e consumo, um jovem que morre estaria sendo frustrado no sentido de sua vida. Pode-se observar essa ideia no fragmento a seguir: “[...] os pacientes mais novos você tem uma expectativa de vida maior, as pessoas mais idosas que a doença já avançou, já é esperado”.

Também se observa a dificuldade em lidar com a dor no processo de morte. Como se pode observar na fala de um dos técnicos: “É horrível você ver o paciente morrendo com dor”.

Foi dito que acompanhar o sofrimento dos pacientes abalava mais que a morte. Diante disso, pode-se considerar que o exercício profissional dos técnicos de enfermagem é uma das práticas humanas que colocam o profissional diante de seus mais íntimos conflitos, ou seja, em poucas atividades o indivíduo encontra-se tão incisivamente sujeito às pressões, de várias ordens, e ao desgaste profissional como na atividade desenvolvida pelo técnico de enfermagem.

Esslinger (2004) associa essa relação conflituosa com o processo de formação desses profissionais. O preparo mais adequado para a experiência com o paciente terminal poderia influenciar positivamente na maneira de encarar o assunto e melhorar o relacionamento enfermeiro-paciente terminal. Na formação dos profissionais da enfermagem, são aprendidas diversas técnicas a serem executadas para prevenção, promoção, cura ou reabilitação do paciente, com protocolos específicos, sinalizando passo a passo os procedimentos.

Entretanto, Moreira e Lisboa (2006) afirmam que, em relação ao paciente no processo de morrer, não destituindo as técnicas que propiciarão o seu bem-estar, como analgesia e higiene, não há uma discussão sobre como o profissional deve agir diante dos questionamentos feitos por pacientes e familiares.

Bernieri e Hirdes (2007) realizaram um estudo que evidenciou que os acadêmicos de enfermagem não estão preparados para vivenciar o processo morte-morrer de seus futuros clientes, por causa das poucas oportunidades de discutir tal tema na graduação. As entrevistas que foram realizadas nessa pesquisa demonstraram que os graduandos querem proporcionar um cuidado humanizado aos pacientes terminais, bem como às famílias que acompanham esse processo; contudo, a maioria dos entrevistados sente dificuldades em passar por tal situação, não sabendo como entrar em contato com os familiares e menos ainda como lidar com os próprios sentimentos.

O problema existencial do homem diante da morte e do morrer não será resolvido facilmente; porém, a educação formal a respeito do assunto nas escolas de enfermagem, desde o início do curso de graduação, bem como a permanente atenção dispensada ao tema por parte dos profissionais, poderia modificar o comportamento do estudante e do enfermeiro, tornando-os mais aptos a lidar com a morte e com o paciente terminal (VIANNA; PICCELLI, 1998).

Na coluna “Sentimentos ante o óbito”, observa-se que a maioria dos profissionais falou de uma tristeza perante o óbito, mesmo que esse sentimento tenha acontecido apenas por alguns instantes. Esse parece ter sido um dos únicos momentos em que o técnico deixou escapar algum sentimento relacionado à morte e à forma de lidar com ela, porém esse instante não durava muito. Percebeu-se, então, que há um momento em que surge a tristeza, mas ela não pode ter uma longa duração, foi rapidamente suprimida e de forma alguma podia fazer parte da rotina.

Ao relatarem o momento da preparação do corpo pós-morte, os técnicos informaram que a preparação vai muito além da técnica; foi descrito como um momento de grande concentração. Entretanto, na prática outro aspecto pode ser analisado, como se observa na fala de uma técnica de enfermagem: “Insensível, dura, às vezes tenho que ficar me controlando para não ficar falando de assuntos nada a ver, ou até rir perto do acompanhante, porque, afinal, você tem que respeitar a dor do outro”.

Esse dado foi corroborado pelo estudo de Ribeiro, Baraldi e Silva (1998) ao entrevistarem uma equipe de enfermagem sobre os procedimentos do preparo do corpo pós-morte, a qual mencionou ter sido tocada por sentimentos e emoções variados, em que o vínculo com o paciente e o tempo de atuação profissional foram indicados como elementos mediadores das emoções vivenciadas. Alguns identificaram a utilização de mecanismos de defesa para suportar esses momentos: faziam piadas e aparentavam frieza.

Segundo Bendassolli (2001), a consciência de cada um parece estar designada pela responsabilidade de afastar o tabu da morte, de fazê-lo uma quimera distante, uma miragem ou um fantasma que só aparece se não convenientemente vigiado. O indivíduo reproduz uma ordem simbólica que faz da vida um bem que deve ser defendido tão intensamente proporcional ao abafamento da morte, à sua expulsão do cenário contemporâneo. Isso se torna uma defesa para o técnico que precisa terminar de realizar todos os procedimentos necessários e que não pode se abater com a morte.

Vivencia-se uma rapidez, racionalidade, eficácia a serviço da lógica do consumo dos outros e de si mesmo. O importante é não entrar em luto, já que fazê-lo significaria estar diante de um grande sofrimento de perda e de uma longa e penosa elaboração, que não afasta em definitivo o ser perdido. Vivemos atualmente em um momento de fuga desesperada de um vazio, e o fato de aceitar esse vazio é perceber que as coisas acabam e os seres humanos morrem. Isso quer dizer que as coisas acabam porque já cumpriram seu papel e podem ser descartadas ou trocadas por novas (SOARES; DANTAS, 2006).

Na definição de Cooper (apud STACCIARINI; TROCCOLI, 2001), o estresse é resultado da inabilidade de enfrentar as fontes de pressão no trabalho que levam, entre outros, a problemas de saúde física e mental. Dessa forma, percebe-se que pode haver alguma consequência negativa para esse profissional quando ele age ou reage dessa forma, dado que essa atitude pode ser uma defesa do profissional, já que o fato de pensar a morte e considerá-la em profundidade é algo doloroso para o homem e traz à tona lembranças de perdas antigas, a dor do luto, o sentimento de finitude e o medo de um futuro completamente desconhecido e incerto.

Em “Interferência na vida cotidiana e no trabalho”, os entrevistados relataram que trabalhar muito próximo da iminência da morte não afetou a vida pessoal e a rotina de trabalho. No entanto, ao longo da entrevista, mencionaram um sentimento de tristeza quando se criava um vínculo maior com o paciente e esse ia a óbito, como podemos observar na fala de um técnico que selecionamos:

Logo quando eu entrei, eu sentia muito, aí eu falei assim, que eu não ia me apegar mais, porque eu tava me apegando e não tava fazendo bem para mim. Porque eu tava sonhando muito com esses pacientes. Chegava em casa ... Tem paciente que me marcou muito. [...] Você tem que ser fria. Você não pode ser muito sensível, não. Se você for sensível, você não consegue exercer a profissão. Porque, se você se apegar muito, você acaba caindo com eles. Você não consegue trabalhar.

Vale destacar que o maior envolvimento com o paciente era evitado como forma de proteção de um futuro sofrimento em caso de óbito. O que se observou foi uma negação de tal interferência e o permanente esforço que esses trabalhadores faziam para não entrar em contato com o paciente. Para Pitta (1990), com a supressão do luto pela sociedade capitalista, os hospitais passaram a ser o esconderijo da morte e do sofrimento. Todavia, esse mesmo profissional, inserido nessa instituição, apesar de fazer parte de uma sociedade que não aceita o sofrimento, tem que conviver com ele. Isso resulta no aparecimento de sentimentos fortes e contraditórios. Sentimentos e ansiedades profundas que são enfrentados por esse trabalhador que tem que assumir as tarefas de cuidado desse paciente.

 

Considerações finais

Neste trabalho, o objetivo foi descrever as reações, os sentimentos e as concepções de morte para os técnicos de enfermagem que trabalhavam com pacientes terminais em um setor de oncologia de um hospital do município de Vitória (ES). As observações do cotidiano de trabalho desses profissionais e as entrevistas realizadas permitem afirmar que, dentre muitas circunstâncias produtoras de sofrimento psíquico para os trabalhadores no contexto hospitalar pesquisado, o lidar diariamente com a morte é uma das situações agravantes. Constatou-se que o cotidiano de trabalho e a significação de morte desses profissionais influenciavam suas práticas, especialmente pelo fato de não haver espaço onde pudessem expressar os sentimentos que surgiam durante o trabalho, sobretudo nos momentos muito próximos à ocorrência do óbito e ou do preparo do corpo pós-morte.

É importante enfocar a saúde desses profissionais que lidam diretamente com esses eventos, tendo em vista que eles também sofrem exigências advindas do âmbito hospitalar, onde lidam com dor, sofrimento, morte e perdas, aliadas às condições desfavoráveis de trabalho e à baixa remuneração, que em conjunto propiciam a emergência de estresse e burnout, termo criado para descrever o desgaste físico e psíquico de profissionais que lidam, no exercício de suas funções, com altos níveis de envolvimento emocional. Diversas pesquisas estudaram vários desses aspectos e corroboram essa ideia: Silva, Argolo e Borges (2005), Moura, Borges e Argolo (2005), Martins (2003), Murofuse, Abranches e Napoleão (2005), Esslinger (2004), Araújo et al. (2003), Gomes, Oliveira e Marques (2004), Tamoyo, Argolo e Borges (2005) e Kovács (2003).

Pela natureza de seu trabalho, a equipe de técnicos de enfermagem, submetida a múltiplas exigências, tem sido objeto de alguns estudos, sobretudo pela necessidade de pensar a dinâmica da oferta de serviços de cuidados àqueles que cuidam de pacientes graves.

Essas ponderações são apenas alguns pontos capazes de explicitar as agudas indagações abordadas pelo exercício da prática de trabalhadores de enfermagem diante da relevante questão do binômio vida e morte. Além do que foi abordado, há ainda inúmeras questões acerca das relações de poder no cotidiano de trabalho, a influência da hierarquia no trabalho do técnico, dentre outros aspectos a serem discutidos, que ainda poderão auxiliar o trabalho desses profissionais.

Como conclusão deste trabalho, deseja-se apontar a necessidade de criar espaços no âmbito hospitalar, onde seja possível veicular mais livremente ideias, percepções e sentimentos sobre as dificuldades enfrentadas no cotidiano de trabalho de técnicos de enfermagem, com o objetivo de minimizar o sofrimento psíquico e manter boas condições de saúde mental para esses trabalhadores.

 

Referências

ANGERAMI, V. A. (CAMON) (Org.). Psicologia hospitalar: teoria e prática. São Paulo: Pioneira Psicologia, 1994.        [ Links ]

ARAÚJO, T. M. et al. Aspectos psicossociais do trabalho e distúrbios psíquicos entre trabalhadoras de enfermagem. Revista de Saúde Pública, v. 4, n. 37, p. 424-433, 2003.        [ Links ]

BENDASSOLLI, P. F. Percepção do corpo, medo da morte, religião e doação de órgãos. Psicologia: Reflexão e Crítica, n. 14, p. 225-240, 2001.        [ Links ]

BERNIERI, J.; HIRDES, A. O preparo dos acadêmicos de enfermagem brasileiros para vivenciarem o processo morte-morrer. Texto Contexto – Enfermagem, Florianópolis, v.16, n. 1, p. 89-96, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tce/v16n1/a11v16n1.pdf>. Acesso em: 23 out. 2007.        [ Links ]

ELIAS, N. La soledad de los moribundos. México: FCE, 1987.        [ Links ]

ESSLINGER, I. De quem é a vida afinal? São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.        [ Links ]

GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5. ed. São Paulo: Atlas 1999.        [ Links ]

GOMES, A. M. T., OLIVEIRA, D. C.; MARQUES, S. C. A representação social do trabalho do enfermeiro na programação em saúde. Psicologia: Teoria e Prática, v. 6, p. 79-90, 2004. Disponível em: <http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-36872004000300006&lng=pt&nrm=iso>.

HOFFMANN, L. A morte na infância e sua representação para o médico: reflexões sobre a prática pediátrica em diferentes contextos. Cadernos de Saúde Pública, n. 3, v. 9, p. 364-374, 1993. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ csp/v9n3/23.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2007.        [ Links ]

KOVÁCS, M. J. Morte e desenvolvimento humano. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.        [ Links ]

_________. Educação para a morte: desafio na formação de profissionais de saúde e educação. São Paulo: Casa do Psicólogo; Fapesp, 2003.        [ Links ]

KÜBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes terminais têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e aos seus próprios parentes. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.        [ Links ]

MACHADO, M. H. Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997.        [ Links ]

MARTINS, L. A. N. A saúde do profissional de saúde. In: MARCO, M. A. (Org.). A face humana da medicina: do modelo médico ao modelo biopsicossocial. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. p. 93-99.        [ Links ]

MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1994.        [ Links ]

MOREIRA, A. C.; LISBOA, M. T. L. A morte entre o público e o privado: reflexões para a prática profissional de enfermagem. Rev. Enfermagem Uerj, n. 3 v. 14, p. 447-454, 2006. Disponível em: <http://www.portalbvsenf.e_erp.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010435522006000300019&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 23 out. 2007.

MOURA, H. B. O.; BORGES, L. O.; ARGOLO, J. C. T. Saúde mental dos que lidam com a saúde: os indicadores de Goldberg. In: BORGES, L. O. (Org.). Os profissionais de saúde e seu trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. p. 247-258.        [ Links ]

MUROFUSE, N. T., ABRANCHES, S. S.; NAPOLEÃO, A. A. Reflexões sobre estresse e bournout e a relação com a enfermagem. Revista Latino-Americana de Enfermagem, n. 2, v. 13, p. 255-261, 2005.        [ Links ]

PALÚ, L. A.; LABRONICI, L. M.; ALBINI, L. A morte no cotidiano dos profissionais de enfermagem de uma unidade de terapia intensiva. Cogitare em Enfermagem, Curitiba, v. 9, n. 1, p. 33-41, 2004.        [ Links ]

PITTA, A. Hospital: dor e morte como ofício. São Paulo: Hucitec, 1990.        [ Links ]

RIBEIRO, M. C.; BARALDI, S. M.; SILVA, J. P. da. A percepção da equipe de enfermagem em situação de morte: ritual do preparo do corpo “pós-morte”. Rev. Esc. Enf. USP, n. 32, p. 117-123, 1998.        [ Links ]

SILVA, V. F.; ARGOLO, J. C. T.; BORGES, L. O. Exaustão emocional nos profissionais de saúde da rede hospitalar pública de Natal. In: BORGES, L. O. (Org.). Os profissionais de saúde e seu trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. p. 259-280.        [ Links ]

SOARES, J. C.; DANTAS, M. A. Considerações sobre a morte e o morrer na hipermodernidade. Rev. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 6, n. 2, p. 89-104, 2006. Disponível em: <http://pepsic.bvs-psi.org.br/pdf/epp/v6n2/v6n2a08.pdf>. Acesso em: 22 out. 2007.        [ Links ]

SPINK, M. J. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentido no cotidiano: aproximação teórica e metodológica. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000.        [ Links ]

STACCIARINI, J. M. R.; TROCCOLI, B. T. O estresse na atividade ocupacional do enfermeiro. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 9, n. 2, p. 17-25, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692001000200003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 28 jul. 2005.

TAMOYO, M. R.; ARGOLO, J. C. T.; BORGES, L. O. Burnout em profissionais de saúde: um estudo com trabalhadores do município de Natal. In: BORGES, L. O. (Org.). Os profissionais de saúde e seu trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. p. 223-246.        [ Links ]

VIANNA, A.; PICCELLI, H. O estudante, o médico e o professor de medicina perante a morte e o paciente terminal. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 44, n. 1, p. 21-27, 1998. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/ramb/v44n1/2004.pdf>. Acesso em: 24 jan. 2005.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luziane Zacché Avellar
Av. Antonio Gil Veloso, 2556/901
Praia da Costa – Vila Velha – ES
CEP 29101-010
e-mail: luzianeavellar@yahoo.com.br

Tramitação
Recebido em agosto de 2008
Aceito em fevereiro de 2009

 

 

1 No período de julho de 2004 a julho de 2005, realizou-se o projeto de pesquisa intitulado “Sofrimento psíquico de trabalhadores da saúde”, composto por dois subprojetos diferentes: 1. “A influência do cotidiano hospitalar como produtor de sofrimento psíquico em trabalhadores de enfermagem” e 2. “Representação de morte para profissionais da área de enfermagem”. Nos dois subprojetos, utilizou-se a mesma metodologia de pesquisa. O presente artigo é fruto dos dados obtidos no segundo subprojeto de pesquisa, o qual teve o apoio do Fundo de Apoio à Ciência e Tecnologia (Facitec) do Espírito Santo.