SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 issue2Quality of the relationship with significant persons: comparison between adolescent and adult pregnant womenBehavior analysis´s procedure to improve social interactions among young developmental disabled students and their peers author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.11 no.2 São Paulo Dec. 2009

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Interfaces entre psicologia social comunitária e psicodrama

 

Interfaces between community social psychology and psychodrama

 

Interfaces entre la psicología social comunitaria y el psicodrama

 

 

Eleonora PereiraI; Nara Maria Forte DiogoII

IUniversidade Federal do Ceará
IIUniversidade Federal do Piauí

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo apresenta a relação entre psicologia social comunitária e psicodrama. Examinaram-se os conceitos e visões de homem e de mundo, o compromisso social e as dimensões metodológicas de ambos os saberes, para sistematizar os elementos em comum encontrados. Dentre as interfaces de maior relevância encontradas, pode-se citar que a psicologia comunitária e o psicodrama construíram-se de forma pragmática; compreendem o homem como ser sócio-histórico e relacional; privilegiam o trabalho com grupos; trazem em seu bojo metodologias que promovem uma ação mobilizadora e facilitadora da apreensão de novos conhecimentos; trabalham com base em uma ética participativa, fomentando a corresponsabilidade das pessoas nas transformações sociais, entre outros aspectos. Espera-se, com este estudo, contribuir para o delineamento de novas pesquisas sobre o assunto, além de servir como referência para os psicólogos, para que ampliem suas atuações na esfera pública e no âmbito de trabalhos institucionais e comunitários.

Palavras-chave: Psicologia social, Ética, Psicologia comunitária, Psicodrama, Intervenção comunitária.


ABSTRACT

The article presents the relation between Community Social Psychology and Psychodrama. We examined concepts about men´s and world’s visions, social commitment and methodological dimensions from both fields of knowledge, systematizing common elements. Among the most relevant interfaces founded we can highlight some as: community psychology and psychodrama were built in a pragmatical way; they comprehend human beig in a historical and relational way; they focus group work; they use methodologies that promotes mobilizing action and facilitates the aprehension of foreground; work with a participative ethics; promotes co-responsability, among others. We hope to contribute with new researches and to serve as reference for psychologists to enlarge their works at publice sphere and at intitucional and community work.

Keywords: Social psychology, Ethics, Community psychology, Psychodrama, Community intervention.


RESUMEN

Este artículo presenta la relación entre la psicología social comunitaria y el psicodrama. Se ha examinado los conceptos y visiones del hombre y del mundo, el compromiso social y las dimensiones metodológicas de ambos los campos del conocimiento a fin de sistematizar los elementos encontrados en común. Entre los más relevantes interfaces encontrados, se puede citar que: la psicología comunitaria y el psicodrama fueron construidos de una manera pragmática; comprendan al hombre como ser histórico-social y relacional; prefieren el trabajo con grupos; utilizan metodologías que promuevan una acción estimulante y facilitan la aprehensión de nuevos conocimientos; trabajan com una ética participativa, promueve la co-responsabilidad de las personas en el cambio social, entre otros. Esperamos com este estudio contribuir con nuevas investigaciones sobre el tema, así como servir de referencia para los psicólogos, ampliar sus actuaciones en el ámbito público y dentro del marco institucional y de trabajo comunitario.

Palabras clave: Psicología social, Ética, Psicología comunitária, Psicodrama, Intervención comunitaria.


 

 

Introdução

O presente artigo, fruto de reflexões teóricas e práticas das autoras, investiga as interfaces existentes entre psicologia comunitária e psicodrama, no intuito de vislumbrar quais diálogos há entre esses dois campos de saber e se, por meio de suas interseções, é possível trazer algumas contribuições teórico-práticas para a atuação do psicólogo na comunidade.

Além disso, em 2007, o Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop), entidade criada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), lança o documento Referência técnica para atuação do(a) psicólogo(a) no Cras/Suas, que traz, em seu corpo, aspectos da dimensão ético-política da assistência social, a relação da psicologia com a assistência social, a atuação do psicólogo nos Centros de Referência em Assistência Social (Cras) e a gestão do trabalho no Sistema Único de Assistência Social (Suas).

O texto do Crepop ressalta que o foco de atuação do psicólogo nos Cras é a prevenção de situações de risco pessoal e social e a promoção da vida em locais de baixo IDH, buscando priorizar as potencialidades e os aspectos saudáveis presentes nos sujeitos, nas famílias e na comunidade. Além disso, ao intervir em situações de vulnerabilidade, dentro da assistência social, o psicólogo facilita a promoção do desenvolvimento da autonomia dos indivíduos, oportunizando, assim, a transformação destes em sujeitos de direitos e deveres. Compreender o papel ativo do indivíduo e a influência das relações sociais, dos valores e conhecimentos culturais sobre o desenvolvimento humano pode favorecer uma atuação profissional que seja transformadora das desigualdades sociais.

Ademais, o Crepop tem o intuito de oferecer, com tal documento, diretrizes para o psicólogo que trabalha em políticas públicas e tentar ampliar as suas ações nessa esfera, expandindo, desse modo, a contribuição profissional da psicologia para a sociedade brasileira e, consequentemente, colaborando para a promoção dos direitos humanos e o fortalecimento da cidadania no país.

Então, a pesquisa realizada surgiu, também, por vislumbrarmos que as diretrizes do psicodrama e da psicologia comunitária se ajustam às atuais propostas do Crepop e, ademais, poderiam contribuir na construção de uma práxis profissional ligada às diversas áreas da psicologia, em especial as que tangem às políticas públicas destinadas à assistência social, caso uma sistematização das contribuições mútuas entre elas fosse feita.

Porém, ao iniciarmos a procura por bibliografia que tratasse de possíveis contribuições mútuas entre essas duas áreas, percebemos a insuficiência de informações e pesquisas nesse campo. Tudo que encontramos limitava-se aos trabalhos de Marra (2004, 2006) e Góis (1993). Os primeiros abordam o uso do sociodrama, uma pequena parcela do que constitui o psicodrama, como proposta teórico-metodológica nos trabalhos na comunidade. O segundo faz alusão ao uso de dramatizações e do Teatro da Espontaneidade, outras vertentes da teoria psicodramática, como ferramentas da psicologia comunitária.

Esperamos, assim, com este estudo, contribuir para o delineamento de novas pesquisas sobre o assunto, bem como gerar a produção de um conhecimento que possa servir como referência e diretriz para o psicólogo, tornando este profissional capaz de ampliar, por meio de uma nova perspectiva, as suas atuações na esfera pública e no âmbito de trabalhos institucionais e comunitários.

 

Método

O procedimento metodológico idealizado neste estudo foi executado de forma exploratória, com base em consultas bibliográficas, realizadas no ano de 2007. A pesquisa bibliográfica tomou por base a produção de conhecimento, tendo como fontes principais de consulta livros e artigos científicos sobre a psicologia comunitária (BRANDÃO; BOMFIM, 1999; CAMPOS, 2003; GÓIS, 1993, 2005; LANE; CODO, 1994; MONTERO, 2003, 2006; OLIVEIRA et al., 2008) – e o psicodrama – obras de Moreno (1974, 1992a, 1992b, 1994a, 1994b, 1997, 2003) e de alguns psicodramatistas brasileiros e argentinos. Este trabalho centralizou-se na revisão crítica da bibliografia editada sobre os dois saberes, para permitir uma reflexão por meio dos dizeres dos autores. Na escolha das obras, consideraram-se aquelas com definições, metodologias e instrumentais utilizados, abrangendo aspectos que necessitavam de investigação para efetivação do diálogo pretendido. Estes foram definidos a priori: visões de homem e de mundo, dimensões metodológicas e compromisso social.

A interface entre o psicodrama e a psicologia comunitária busca a ampliação dos alicerces epistemológicos de ambos. Tais tópicos são considerados como esteio primordial para o diálogo pretendido, posto que, para uma atuação consistente, é preciso, inicialmente, um posicionamento diante do ser humano e da realidade em que este vive, de modo que sejam possíveis o comprometimento e a busca de transformações.

 

Análise e discussão de resultados

Após breve revisão teórica de ambos os campos de saber, destacamos, a seguir, as principais interfaces surgidas e, ainda, avançamos no conhecimento mais aprofundado dos campos de saber ora apresentados.

Dimensões teóricas

A psicologia comunitária, de acordo com Góis (2005), encontra suas origens nos movimentos sociais comunitários, sobretudo nos de saúde mental, da Europa e dos Estados Unidos. Historicamente, a expressão "psicologia comunitária" teve sua configuração formal dentro da Conferência de Swampscott, em Boston, em 1965, que objetivava traçar as bases dos Centros de Saúde Mental Comunitária, proposto pelo presidente J. F. Kennedy, bem como debater a formação do psicólogo e ampliar a noção de saúde mental ao âmbito comunitário. Essa expressão surge porque tanto os profissionais de saúde quanto os dos movimentos comunitários desejavam construir processos diferenciados no campo da saúde mental, que passou a considerar, em sua concepção de saúde, a promoção, a prevenção e o potencial de participação da comunidade. Já na Europa, a for mação do campo teórico-conceitual da psicologia comunitária teve um alicerce comum ao modelo estadunidense, porém com certas variantes próprias, em virtude das influências do modelo do Estado do Bem-Estar Social, proposto por John Maynard Keynes, após a crise de 1929, buscando amenizar as tensões sociais vivenciadas pelos países capitalistas após essa crise.

Por sua vez, na América Latina, segundo Campos (2003) e Góis (1993, 2005), a psicologia comunitária passou a ser utilizada com o objetivo de fazer uma nova psicologia social, com base na preocupação de alguns psicólogos diante dos escassos resultados da psicologia social tradicional e da necessidade de construir uma proposta ancorada nos pilares de transformação social. Assim, sua construção está diretamente transversalizada pela realidade sociopolítica vivenciada pelos povos latino-americanos, fortemente marcados por processos colonizadores e, posteriormente, no transcurso da história, por regimes ditatoriais. Por isso, surge como proposta de atuação com intuito de colaborar com a superação da opressão vivida nos diversos países latino-americanos.

No Brasil, a psicologia comunitária teve sua ligação com a proposta metodológica de atuação emergente no contexto latino-americano. É dentro da conjuntura socioeconômica, na qual se inscrevia o país no período ditatorial, que a psicologia comunitária surge como uma prática inserida no contexto das classes populares, buscando uma leitura crítica da sociedade, de forma que a psicologia se tornasse uma ferramenta de transformação da realidade a serviço das classes oprimidas. Seu processo inicial de atuação ocorreu em Belo Horizonte, Minas Gerais, com enfoque na ecologia humana. Posteriormente, por volta dos anos 70 e seguintes do século passado, estudiosos como Silvia Lane e Alberto Andery fomentaram o enfoque sociopolítico de atuação e discussão teórica, tal como ressalta Góis (2005). Naquele momento, a proposta já era estudar o processo grupal em bases materialistas, históricas e dialéticas, por meio de trabalhos interdisciplinares em comunidades.

No Ceará, em especial, a psicologia comunitária, conforme Brandão e Bomfim (1999), teve suas origens no início dos anos 1980, quando Góis iniciou os primeiros trabalhos de intervenção no bairro Nossa Senhora das Graças do Pirambu, em Fortaleza. Tendo como norte uma postura ética de atuação, a psicologia comunitária no Ceará construiu (e constrói) sua caminhada como práxis dentro de um processo dialético de intervenção, ou seja, de ação-reflexão-ação. Nesse Estado, ela apresenta uma forte dimensão pragmática, pois a transposição da ciência psicológica para as comunidades rurais e bairros periféricos não ocorreu apenas como uma ampliação dos conhecimentos elaborados na academia, mas, inversamente, o caminho percorrido pelos seus construtores foi da prática à teoria.

Dentre as diversas contribuições epistemológicas, ainda segundo Brandão e Bomfim (1999), é preciso ressaltar quatro interlocutores na construção da atuação do psicólogo comunitário cearense: a educação popular de Paulo Freire – que leva em consideração a relação dialógica no desenvolvimento da autonomia da comunidade e a utilização dos círculos de cultura como instrumento principal de intervenção; a psicologia social problematizadora (crítica) – cujo conceito fundamental de abordagem é o de identidade, entendido como processo ou metamorfose, e o trabalho com os mecanismos de coesão grupal e as possibilidades de construção do futuro; o materialismo histórico e dialético – que evidencia a crença no potencial do oprimido, pois, além da manifestação de uma postura crítica, busca uma atitude coletiva transformadora que permita intervir no real e modificá-lo; e a biodança – abordagem em favor da vida e que enfatiza o encontro humano, por meio do trabalho grupal.

Em suma, tomando como referência a psicologia comunitária latino-americana e, evidentemente, brasileira e cearense, pode-se, então, conceituá-la como uma área da psicologia social que estuda os aspectos referentes à vida em comunidade e visa ao desenvolvimento desta por meio dos sujeitos que a constroem. Caracteriza-se pela práxis compromissada com as classes populares, procurando debruçar-se sobre suas problemáticas singulares (CAMPOS, 2003). Assim, a psicologia comunitária:

[...] estuda os significados (coletivos) e sentidos (pessoais), assim como os sentimentos pessoais e coletivos do modo de vida na comunidade, [objetivando compreender] como esse sistema de significados, sentidos e sentimentos se encontra presente nas atividades comunitárias (GÓIS, 2005, p. 51).

Dentro da prática da psicologia comunitária, é preciso também:

Estudar as condições (internas e externas) ao homem que o impedem de ser um sujeito e as condições que o fazem sujeito numa comunidade, ao mesmo tempo em que, no ato de compreender, trabalha com esse homem a partir dessas condições, na construção de sua personalidade, de sua individualidade crítica, da consciência de si (identidade) e de uma nova realidade (GÓIS, 1990 apud LANE, 2003, p. 32).

Ou seja, a psicologia comunitária, além do estudo do sistema de relações e representações, níveis de consciência, identificação e pertinência dos indivíduos à comunidade, visa, também, ao desenvolvimento da consciência dos moradores como sujeitos históricos e comunitários, por meio de um esforço interdisciplinar que examina o desenvolvimento dos grupos, no intuito de transformar indivíduos em sujeitos de sua própria história.

Desse modo, a perspectiva da psicologia social comunitária enfatiza, de acordo com Campos (2003): 1. em termos teóricos, a problematização da relação entre produção teórica e aplicação do conhecimento: parte-se do pressuposto de que o conhecimento se produz na interação entre o profissional e os sujeitos da investigação; 2. em termos de metodologia, utilizam-se, sobretudo, as metodologias participativas, na qual o psicólogo e os sujeitos da ação trabalham juntos na busca de explicações para os problemas colocados e no planejamento e na execução de programas de transformação da realidade vivida; 3. em termos de valores, os trabalhos de psicologia comunitária enfatizam, especialmente, a ética da solidariedade, os direitos humanos fundamentais e a busca da melhoria da qualidade de vida da população. Ou seja, questiona-se a visão da ciência como atividade não valorativa e se assume ativamente o compromisso ético e político. Em termos éticos, busca-se trabalhar no sentido de estabelecer as condições apropriadas para o exercício pleno da cidadania, da democracia e da igualdade entre pares. Em termos políticos, questionam-se todas as formas de opressão e de dominação, e procura-se o desenvolvimento de práticas de autogestão cooperativa.

Destarte, o objeto da psicologia comunitária, conforme Montero (2003, p. 144), é tomado:

[...] como el desarrollo del control y el poder de los actores sociales comprometidos en un proceso de transformación social y psicosocial que los capacita para realizar cambios en su entorno y, a la larga, en la ES tructura social. Cabe igualmente agregar que o caráter político de la Psicología Social Comunitária reside en primer lugar, en su reconocimiento explícito del objetivo transformador; pero adémas, tan político ES callar y ocultar como hacer oír su voz. La diferencia reside en mantener el status quo o en buscar su transformación democrática.

Portanto, o que faz político um ato é sua capacidade de influenciar a estrutura social, as relações de poder e a ordem estabelecida, buscando refazê-las, modificá-las, subvertê-las.

[...] En este sentido decimos que toda Psicología Comunitaria es en su base una Psicología Política, puesto que trata con processos de organización, desarrollo y promoción de ciudadanos. Los procesos de fortalecimiento, problematización, desideologización y concientización son generadores de ciudadanía, robustecedores de la sociedad civil y, en la medida en que los proyectos y acciones comunitarias logran transformaciones en su entorno, en el modo de vida y en la capacidad de las personas que las integran, están influyendo em las relaciones de poder, en el orden y en el desorden social (MONTERO, 2003, p. 166).

Compreende-se, assim, que a psicologia comunitária coloca-se a serviço da transformação da estrutura social, como ferramenta na construção do processo de tomada de decisão coletiva dos diversos atores sociais. O desenvolvimento local e comunitário emerge, portanto, do fortalecimento dos grupos populares locais, por meio da arte e da cultura local, dos caminhos de resistência, da história da comunidade, do fortalecimento do sentimento de pertença com o lugar de moradia e pela construção de seu processo de autonomia e tomada de decisão coletiva.

Assim, Montero (2003, p. 161) ressalta que:

[...] El trabajo psicosocial comunitario, al tener como objetivo facilitar la producción de las condiciones psicosociales necesarias para la organización y el desarrollo de comunidades con capacidad para lograr su transfomación positiva, supone el control sobre aspectos del entorno y sobre condiciones de vida, a la vez que El estabelecimiento de relaciones de poder no asimétricas basadas en la negocioación. Se busca entonces que actores sociales usualmente privados de voz o no escuchados abandonen el papel de espectadores pasivos y silentes receptores de políticas públicas no necesariamente adecuados, a veces francamente erróneas, y que puedan influir en a planificación y dirección de aquellos aspectos de la vida pública que les conciernen. Esto debe provocar efectos sobre las personas involucradas, los grupos organizados dentro de las cominudades, las comunidades como conjunto de personas participantes y no participantes y la sociedad civil.

Por sua vez, o psicodrama, teoria criada pelo psiquiatra romeno Jacob Levy Moreno, pelo estudo das leis naturais que regem os sistemas sociais de um modo geral, dos grupos humanos e do desenvolvimento humano, focaliza a formação psicológica do homem com base na dinâmica vincular resultante do jogo dialético do desempenho de papéis e contrapapéis. Traz, como proposta, um projeto de planificação e organização social com características auto-organizativas e autoafirmativas. Por meio de sua visão de homem como ser relacional e de sua vasta gama de recursos técnicos utilizada no trabalho com grupos, possibilita a transformação gradual dos indivíduos e dos grupos, pois atua sobre a vivência dos conflitos e sobre as potencialidades de resolução destes. Mostra-se, portanto, como um forte e eficaz instrumento pedagógico e de mobilização grupal.

Os fundamentos básicos da obra moreniana estão sedimentados, sobremaneira, no curso da sua própria vida. Cada momento vivido por Jacob Levy Moreno produziu dados que, posteriormente, deram origem a um acervo de conceitos científicos, que constitui vasto referencial teórico. Oferece, assim, campo à pesquisa e a aplicações, predominantemente, em algumas áreas das ciências humanas e da saúde.

Dessa forma é que Garrido Martín (1996, p. 38) nos diz que, "em Moreno, a teoria surgiu do contato com a realidade social; não é uma teoria a priori, porém indutiva, fundamentada em dados objetivos e em experiências vitais". Portanto, a construção do psicodrama se deu pela práxis de Moreno, que buscava sentidos e métodos que permitissem ao ser humano construir a si mesmo e o seu mundo, de forma livre e autônoma. Os trabalhos que realizou marcaram profundamente as suas preocupações sociais e despertaram o pesquisador para o fenômeno da força grupal.

Assim, na vida de Moreno, podem-se distinguir três referências que influenciaram em sua obra (COSTA, 1996; GONÇALVES, WOLFF; CASTELLO DE ALMEIDA, 1988): 1. Princípios religiosos, baseados no hassidismo (movimento religioso judaico do século XVIII) e no catolicismo, e filosóficos existenciais, cujas principais influências vêm de Henri Bergson e Sören Kierkegaard; tais princípios foram as determinantes na formulação de diversos conceitos em sua teoria; 2. o teatro, que definiu muito do seu estilo de trabalho e ensejou o surgimento de técnicas fundamentadas na ação; 3. ramos das ciências sociais, como a sociologia e o socialismo científico (marxista).

Com essas forças, Moreno passa a exercer diversas atividades com grupos, das quais podemos ressaltar duas: o trabalho com grupo de prostitutas e o de assistência aos refugiados após a Primeira Guerra Mundial, na Áustria. Nelas, fica evidente a importância da busca por soluções efetivas dos problemas sociais, levando sempre em conta a natureza das dificuldades, em termos das relações e integração com o contexto.

No caso das prosas valiadas numa escatitutas, o objetivo não era "recuperá-las" para reintegrá-las à sociedade que as excluía (e que provavelmente continuaria excluindo). Consistia em desenvolver, junto com elas, princípios básicos de organização que iriam conferir, ao grupo em questão, maior integração, organização e, conseqüentemente, melhoria das condições de vida (organização social) (RIQUET, 1998-1999, p. 185).

De acordo com Marineau (1992), na experiência no campo de refugiados, em Mittendorf, na Áustria, Moreno, formando em medicina e, posteriormente, médico, nos anos de 1915 e 1918, depois de observar as condições de vida das pessoas nos abrigos, percebeu que havia muitos problemas no campo, principalmente pela superlotação e porque nenhum esforço era feito para levar em consideração, entre os refugiados, afinidades de religião, estilo de vida, posição social etc. Diante disso, interveio nos grupos de modo que as semelhanças existentes entre as pessoas fossem levadas em conta na organização e distribuição delas nos abrigos, apresentando, inclusive, sugestões às autoridades do campo.

Nesse trabalho, ficou evidente a importância que as preferências e as afinidades das pessoas têm, e que precisam ser consideradas na resolução de conflitos, para que, mesmo em situações de dificuldades, elas possam ser mais felizes. Nesse episódio, ficou evidenciada a capacidade de se intervir em grandes grupos utilizando a força grupal para modificar configurações de problemas sociais. Aqui se faz presente a força grupal no processo auto-organizativo, que, quando respeitado, leva ao bem-estar social, pois reduz as tensões inter-relacionais (RIQUET, 1998-1999, p. 186).

Com suas atuações e seus estudos, ainda conforme Marineau (1992), Moreno já tinha em vista as pedras angulares para todo o trabalho com grupos: a autonomia do grupo; a existência de uma estrutura grupal e a necessidade de saber mais a respeito dela (o diagnóstico grupal é preliminar ao trabalho com o grupo); o problema da coletividade (por exemplo, a prostituição representa uma ordem coletiva com padrões de comportamento, papéis e hábitos que dão colorido à situação, independentemente dos participantes particulares e do grupo local); o problema do anonimato (no trabalho com grupos, há uma tendência ao anonimato dos membros, e o grupo como um todo torna-se a coisa importante).

Tendo em mãos esse conhecimento, passou a buscar métodos eficientes de intervenção grupal. E como vimos, uma de suas principais influências, na criação desses métodos, vem do teatro, uma das artes mais antigas e que é, também, instrumento de educação e mobilização popular. Moreno fala-nos que a força liberada pelo drama e pelo teatro está na plateia, e não no palco. Assim, os espectadores transformam-se na medida em que os conflitos passam a ser vivenciados por eles, e a transformação individual, gradual, é levada para o grupo social ao qual pertencem. Afirma, também, que, quando o indivíduo-plateia tem a possibilidade de assumir um papel no drama e, de maneira espontânea, criar e desenvolver esse papel, as possibilidades de soluções criativas para os desfechos das tramas são infinitas. Além disso, a dramatização permite um desenvolvimento incomum da capacidade de observação das pessoas envolvidas, assim como a capacidade diagnóstica.

Logo, percebemos que o psicodrama está intimamente ligado ao trabalho com grupos, atuando, com seus membros, num processo contínuo de autoconhecimento emancipatório e propiciando, ao romper com a perspectiva de "transferência" de responsabilidade, a construção de uma ética de alteridade e de corresponsabilidade.

Interfaces e provocações

A psicologia tem se aberto, cada vez mais, a novas leituras e intervenções. Propõe-se a entender o mundo psicológico como constituído por meio de relações sociais, em que estão imbricadas questões políticas, econômicas e culturais de nossa sociedade. Busca, ainda, levar as contribuições do psicólogo às práticas sociais dentro das políticas públicas, valorizando a cidadania e os direitos humanos como instrumentos geradores de transformação social.

Nas discussões sobre cidadania, podemos identificar a tentativa de estender uma relação horizontalizada a todas as pessoas, para que assumam, em conjunto, a corresponsabilidade pelo seu destino comum. A noção de cidadania tem a ver, também, com a forma como as pessoas vivem nos espaços que as circundam, com a construção das relações, com a permanente contratação do estar junto, com a formação de subjetividades. Então, o conceito contemporâneo de cidadania pode ser definido como universalidade de direitos e deveres, inclusão social e responsabilidade mútua.

Assim, a perspectiva é transformar as questões grupais, comunitárias e sociais em práticas sociais e reconhecer que as resoluções estão presentes em todos esses locais, que o contexto dos acontecimentos constitui-se de complexidades organizadas, vividas intersubjetivamente e produtoras de conhecimento. Desse modo, Marra (2006) ressalta que as práticas sociais têm o objetivo de reinstalar o sujeito na organização social. Quem participa de um processo transformativo adquire competência, pois desenvolve sua capacidade de aprender acerca da própria aprendizagem. Além disso, as práticas sociais contribuem para a melhora da autoestima e o resgate da competência das pessoas ao usarem a criatividade para construir possibilidades de uma vida mais digna e cidadã. Abrangem, ademais, várias modalidades de intervenção preventiva, no sentido de facilitar tal competência humana para a autonomia, a cidadania e os valores éticos.

A cidadania, portanto, é o objetivo que encerra a maior das aprendizagens porque busca o sujeito emancipatório. Funde-se no manejo crítico e criativo do conhecimento. Assim, o conhecimento-emancipação traz novas formas de sociabilidade, para criar as condições para a experimentação social.

A psicologia comunitária tem isso muito bem fundamentado em sua prática e vem, mais e mais, construindo-se e fincando raízes nas ações das políticas públicas. Tanto é verdade que o Crepop, em seu documento de 2007, Referência técnica para atuação do(a) psicólogo(a) no Cras/Suas, traz esse campo de saber como forma de atuação do psicólogo nos Cras. E o psicodrama, onde se encontra atualmente? Por que, afinal, não tem seu reconhecimento no uso dessas práticas? Ou, por que, então, só aparece como mais uma técnica de grupos?

Percebemos que o psicodrama perdeu parte de sua virulência inicial, apresentando, atualmente, uma bibliografia que enfileira inúmeros tipos de estudos que valorizam a individualização da clínica, do mesmo modo como vemos em congressos e outras formas de encontros profissionais a presença maciça desses estudos abraçados por muitos de seus teóricos. A psicologia comunitária, por sua vez, ignora o psicodrama em seus fundamentos reduzindo-o a mera aplicação técnica, perdendo com isso a leitura de contexto e a compreensão da subjetividade que este poderia oferecer, enriquecendo seu cabedal teórico.

Assim, a sistematização das diversas interfaces surgidas entre esses dois campos de saber serve como uma mútua provocação, não tendo pretensões de fusão entre as propostas. Afinal, tanto a psicologia comunitária quanto o psicodrama têm a característica de se articularem com outros campos do saber e de se adaptarem às especificidades surgidas, uma vez que esses são princípios importantes das práticas sociais e que fazem parte, inclusive, da formação dessas duas teorias. As diversas demandas oriundas da comunidade trazem a necessidade de coabitarem diferentes teorias e conceitos que consigam ampliar e amparar a ação do profissional.

Visão de mundo e de homem

O homem na psicologia comunitária, como no psicodrama, é um ser histórico, inserido num contexto socioeconômico e cultural que direciona suas atividades e que contribui para a formação de sua subjetividade, produzida ao longo de suas experiências relacionais. Ao mesmo tempo, esse mesmo ser humano é, também, fazedor e transformador da história e de seu meio, mediante ações e relações que desenvolve.

Desse modo, ambos os saberes concebem o mundo como um complexo sistema de interações sociais e de mediatização entre o psiquismo humano e a realidade físico-social, entrelaçada pelas necessidades e pelos motivos individuais e coletivos com o objeto e o objetivo de suas próprias atividades e de suas vidas.

Portanto, estudar o homem onde este vive cotidianamente, construindo seu modo de vida por meio de suas relações de trabalho, laços afetivos e familiares, oferece, tanto ao psicólogo comunitário quanto ao psicodramatista, uma base firme para que sua ação surja no sentido de facilitar a construção de identidades humanas como expressão de vida social e comunitária, buscando uma melhor qualidade de vida, visto que foi o contexto coletivo que forjou o humano, e é a vida coletiva que proporciona um individualizar-se numa relação dialética entre o sujeito único e singular e o coletivo.

Ademais, as duas áreas confirmam os recursos internos e potenciais de cada ser humano, trabalhando-os, cada uma a seu modo, para o resgate da competência de cada membro, a fim de possibilitar a assunção da responsabilidade de suas escolhas, promovendo mudanças de ideias, atitudes e outros.

Então, a possibilidade de recuperação desses fatores vitais, para os dois campos de saber, dar-se-ia pela renovação das relações afetivas e da ação transformadora sobre o meio. Assim, o homem teria seus recursos internos potencializados, o que o faria capaz de criar novamente, de ser corresponsável pelos outros e pelo seu meio e, dessa forma, de poder evoluir.

Dimensões metodológicas

Tanto o psicodrama como a psicologia comunitária se construíram de forma pragmática. Isso significa dizer que ambas apresentam, em sua base, o estreito vínculo entre pesquisa, ação e reflexão, algo ainda presente e constituinte em suas intervenções. O interesse maior, dos dois saberes, é o estudo do homem em situações cotidianas, nos seus grupos de origem, em suas organizações e comunidades. A partir de então, é que os problemas e a identificação dos recursos necessários para suas soluções surgem, e, após, faz-se a planificação das atividades que facilitarão o alcance dos objetivos desejados.

Assim sendo, para contribuírem com uma vida psicológica mais saudável, o psicodrama e a psicologia comunitária trabalham para ultrapassar a esfera do individual e do particular em direção ao social, ao mesmo tempo que adquirem uma perspectiva de apreensão da realidade, tanto em sua totalidade como em sua concretude sócio-histórico-cultural, compreendendo, dessa forma, a vida real das pessoas. Fazer isso, na especificidade do trabalho das práticas sociais psicológicas, significa atuar junto às relações que são travadas cotidianamente, eliminando-se posturas reducionistas, psicologizantes e a históricas sobre os processos psicossociais.

Marra (2004) ressalta que, assim como a pesquisa-ação, o psicodrama, por meio de seus métodos e técnicas, privilegia o estudo das interações entre os membros do grupo, chamando a atenção para a imbricação dos processos individuais e sociais em toda e qualquer situação. A mudança social ocorre por intermédio do indivíduo com implicações éticas no que diz respeito à responsabilidade de cada um, dado que as pessoas relacionam-se via papéis desempenhados com seus pares ou complementares, definindo o lugar de cada um na relação. É dessa interação via papéis que os sujeitos constroem o conhecimento, distinguem a realidade perante certa concepção do que ela seja, organizam-se e, ao mesmo tempo, ordenam e articulam sua realidade.

Desse modo, segundo Aguiar (2005), o que o psicodrama pretende é identificar os sentidos dados pelas pessoas e que podem ser encontrados no "aqui e agora", ou seja, no presente momento, por meio das cenas desenvolvidas por seus métodos dramáticos. Não se trata de um único e verdadeiro sentido. São "sentidos" no plural, mesmo. E o objetivo do trabalho é ampliar essa pluralidade, encontrando e confrontando novos e variados sentidos, novas e variadas possibilidades, matéria-prima da espontaneidade e da criatividade.

Temos, aqui, pois, mais uma consonância com os princípios teórico-operacionais da psicologia comunitária, uma vez que um de seus objetivos é, de acordo com Góis (2005), estudar e compreender como os significados, sentidos e sentimentos pessoais e coletivos do modo de vida encontram-se presentes nas atividades comunitárias.

Portanto, em ambos os saberes, todos são participantes do processo de transformação. E se os membros dos grupos assim não se sentem, pelas dificuldades inter-relacionais ou pela própria estrutura social, cabe ao facilitador problematizar esse estado mediante o uso da ação-reflexão-ação.

Verificamos, então, que as duas teorias ancoram a pesquisa-ação-participante. Valorizam, ainda, a inserção do pesquisador integrante do grupo e consideram que ele deve se incorporar a esse grupo e propor maneiras de descrição, em primeiro lugar, e de transformação, num segundo momento, numa dimensão reflexiva, educativa e expressiva, propondo a ação no contexto do qual surgem as necessidades. Destarte, o referencial teórico-prático de investigação e intervenção que tais campos de saber utilizam propõe um conhecimento em movimento, uma pedagogia revolucionária, estimulando tanto a participação como a criatividade e a responsabilidade ética, do mesmo modo que trabalham para o resgate dos potenciais de cada membro.

Tanto na psicologia comunitária como no psicodrama, a preocupação vai além da aplicação técnica. Procuram, ao contrário, criar um contexto de desenvolvimento e aprendizagem de novas e mais adequadas respostas sociais, por meio da emergência das demandas e práticas sociais, políticas e culturais de qualquer segmento da população, quando, então, os atores sociais começam um processo de conscientização na compreensão de seus papéis.

Lane (1992 apud NEVES; BERNARDES, 1998) acentua que o grupo é condição fundamental para o desenvolvimento da consciência, na qual um membro se descobre no outro, espelhando-se conjuntamente. Nessa atitude reflexa e reflexiva, descobrir-se não resulta apenas de um discurso, mas de uma prática conjunta. E esse é um dos motivos que fazem a psicologia comunitária privilegiar o trabalho com grupos, atuando na prevenção, buscando colaborar para a formação da consciência crítica e para a construção de uma identidade social e individual orientada por preceitos eticamente humanos.

Semelhantemente, o enfoque grupal dado pelo psicodrama favorece a relação das pessoas entre si, dos grupos e instituições, trazendo à cena a experiência comunitária, no intuito de alcançar o reconhecimento da alteridade por meio do respeito à diferença do outro. Oportuniza, ainda, o desempenho de papéis e funções que se interligam, almejando a tomada de consciência destes por meiio da ação, de modo que auxilie as pessoas a tomar uma nova posição e se tornarem sujeitos mais autônomos. Parte-se, portanto, da convicção de que a mudança na qualidade dos vínculos, dentro e fora do contexto grupal, favorece a alteração de sua autoimagem e modifica o átomo social do indivíduo.

Compromisso social

Outro fator a considerar é que os dois campos de saber têm seus alicerces no fortalecimento e na resiliência dos grupos, ampliando suas possibilidades existenciais e reforçando as vivências dos desafios, reinserindo cada membro numa relação intersubjetiva em direção às comunidades e rumo ao pertencimento. Pertencer, para ambos os saberes, é sentir-se confirmado na sua identidade e competente no seu papel e na sua função, estando mais preparado para negociar regras, respeitar as diferenças e tolerar as frustrações na direção de uma mudança social.

Destarte, o psicólogo comunitário e o psicodramatista buscam o desenvolvimento dos potenciais individuais e grupais para promover o amadurecimento dessas pessoas e a conquista da autonomia, e possibilitar o despertar do ser ético pela valorização e confirmação da autorreferência de cada membro e da qualificação dos trabalhos que são resultados dos movimentos nas comunidades. Moreno (1992b), como os teóricos da psicologia comunitária abordados neste estudo, propõe vivenciar valores sociais, relacionais e éticos, para permitir ao sujeito traçar seu projeto existencial e um sentido de vida. É dessa relação de compromisso e responsabilidade que o homem consciente e que age livremente emerge e assume a autoria de seus atos, reconhecendo-os como seus e respondendo pelas consequências. Nesse sentido, fala-se de uma ética que está a cargo da transformação do homem e da realidade social.

Os trabalhos do psicodrama e da psicologia comunitária visam, nesse caso, aos conteúdos dinâmicos e sociais, elementos da educação como um meio de continuidade social e de transformação. Por isso, são atividades que se constituem, também, em uma ação terapêutica, na qual estão incluídos o relacional e o fazer, vistos como ação que gera aprendizagem de atos e conteúdos. Nesse sentido, o objetivo dessa pedagogia terapêutica é permitir um ambiente propício para a expressão pessoal e corporal, trazendo à tona sentimentos, sensações, impressões e pensamentos para que tal aprendizagem seja plena. Essa atuação espontânea do grupo por meio da ação promove, conforme Moreno (1994b), efeito catártico ou curativo.

Além do mais, tanto a psicologia comunitária quanto o psicodrama trazem, ainda, para a discussão, os contextos micro e macrossociais em que o conhecimento se constrói. Nas duas áreas abordadas, tem-se uma aproximação da ciência ao senso comum, pois o conhecimento, sendo alcançado socialmente, é produzido e se renova a cada momento da interação, conduzindo a reflexões e novas criações.

Chegamos, neste momento, a outra interseção encontrada: a que diz respeito à postura que o profissional deve assumir diante do conhecimento. O facilitador, inserido no grupo, coloca-se ao lado deste para ajudá-lo a encontrar formas de concretização de seu projeto político-social. Então, por meio do movimento próprio dessa confluência de saberes, a realidade passa a ter um papel ativo, e o saber popular aproxima-se do saber científico e vice-versa. Todos os envolvidos ganham, assim, um espaço para dialogar com o real de modo processual, aberto e flexível. Afinal, o conhecimento científico, do mesmo modo que o conhecimento do senso comum, modifica a vida das pessoas quando estas se apropriam dele e lidam com os resultados produzidos pelo grupo.

 

Considerações finais

Numa relação dialógica que se estabelece entre esses dois campos, a influência do psicodrama sobre a psicologia comunitária emergiria em dois sentidos: como instrumento de trabalho de campo e também como base teórica de ação prática nas comunidades. Possibilita e contribui, ainda, a mediação emocional. Desse modo, permitiria um avanço, na psicologia comunitária, no lidar com os variados aspectos emocionais que surgem na interação grupal.

Ademais, com o psicodrama, surge a possibilidade de apreender teoricamente a tessitura da realidade e enxergar os potenciais daqueles sujeitos, já que concebe o homem como ser cósmico e ressalta seus aspectos positivos, trabalhando-o com o que tem de potencial. E ainda se constitui como uma abordagem que utiliza uma linguagem prazerosa e de fácil compreensão, ou seja, a dramatização.

Por meio do psicodrama, é factível a investigação sociológica dos sujeitos e de suas redes inter-relacionais, ensejando-os a se tornarem verdadeiros autores e atores de transformações dos sistemas sociais e os principais agentes de suas próprias evoluções e de seus grupos e organizações. Ao construírem, na ação dramática, cenas que expressam seus sentimentos e pensamentos, os protagonistas estão representando ou contando suas histórias no presente. Pretende-se, assim, dar um passo à frente em relação ao relato verbal, uma vez que, em tese, a cena revivida, com a ajuda paciente, firme e acolhedora do diretor e dos egos-auxiliares (sejam eles profissionais, membros do grupo ou atores ad hoc), permitiria uma maior aproximação da "verdade". Isso ocorre pelo uso de técnicas que levam o sujeito a ficar "fora de si", o que possibilita a expressão das verdadeiras fantasias e emoções, inibindo, inclusive, qualquer tipo de manipulação.

O que constitui a força artística, educativa e terapêutica do drama, como criação coletiva, é exatamente o potencial de "costura" que ele proporciona. Dessa forma, o próprio grupo vai elaborando uma síntese interpretativa de sua experiência, veiculada analogicamente pela história criada e encenada. Além do mais, a construção do cenário, uma das ferramentas indispensáveis ao psicodrama, possibilita o relato do lócus da trama, ao trazer implicadas várias dimensões articuladas entre si: o espaço, o tempo e o socius. Assim, o habitat, extensão do corpo de um indivíduo, é compartilhado por outros indivíduos e inclui a forma como se estruturam as relações entre eles. A semântica teatral ocupa-se, portanto, das múltiplas linguagens convergentes associadas a cada um desses elementos presentes no cenário e, consequentemente, na cena. Essa perspectiva transforma, então, o drama em investigação, desencadeando uma ação conscientizadora, uma prática reflexiva. Desenvolve simultaneamente, com a consciência da ação, a consciência do pensar sobre o que se faz.

Abordar o psicodrama em termos da promoção da saúde e da participação social pode ser um modo de redescobri-lo e de gestar novas abordagens psicossocioeducacionais, contribuindo para a mobilização, a organização e o desenvolvimento dos grupos, bem como para o planejamento e a concepção de novas políticas sociais, apontando alternativas concretas de resolutividade.

O psicodrama subsidia o conhecimento de aspectos da subjetividade, os quais não haviam sido acessados pela percepção, o que amplia a leitura da dinâmica da comunidade por meio do entendimento da relação dessa subjetividade com outras. Além disso, o protagonista (grupo ou indivíduo) desenvolve os mais variados papéis, inverte-os com seus pares e amplia, desse modo, o aprendizado de novas atitudes, novos valores e conceitos.

O compromisso da psicologia com a transformação social não pode ser, de acordo com Martín-Baró (1985), um ato passivo, mas uma práxis-ação e reflexão sobre a realidade, ou seja, um processo de conscientização. Ao fazermos este trabalho, atuamos atendendo à proposta psicodramática de colocar a psique em ação (MORENO, 2003) e trazer a verdade por meio da prática reflexiva, desencadeando uma ação mobilizadora para descobertas e mudanças.

Que os métodos e as técnicas psicodramáticos potencializam as ações da psicologia comunitária já foi apontado por Góis (1993). É preciso reconhecer dentro do campo da psicologia comunitária os modos pelos quais a obra moreniana desenvolve conceitos sobre a formação e a dinâmica dos vínculos, a medida das relações sociais e o tratamento dos grupos e das relações, e como tal compreensão pode colaborar sobremaneira para o entendimento da realidade comunitária, conforme demonstrado.

 

Referências

AGUIAR, M. A cidadania nas histórias do psicodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 139-147. 2005.         [ Links ]

BRANDÃO, I. R; BOMFIM, Z. Á. C. (Org.). Os jardins da psicologia comunitária: escritos sobre a trajetória de um modelo teórico vivencial. Fortaleza: Pró-Reitoria de Extensão da UFC, Abrapso, 1999.         [ Links ]

CAMPOS, R. H. de F. (Org.). Psicologia social comunitária: da solidariedade à autonomia. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.         [ Links ]

CENTRO DE REFERÊNCIA TÉCNICA EM PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS (CREPOP). Referência técnica para atuação do(a) psicólogo(a) no Cras/Suas. Brasília: Conselho Federal de Psicologia (CFP), 2007.         [ Links ]

COSTA, W. G. Socionomia como expressão de vida: um modelo de sistematização da teoria de Moreno. Fortaleza: Fundação de Estudos e Pesquisas Socioeconômicas do Brasil, 1996.         [ Links ]

GARRIDO MARTÍN, E. Psicologia do encontro: J. L. Moreno. 2. ed. São Paulo: Ágora, 1996.         [ Links ]

GÓIS, C. W. Noções de psicologia comunitária. 2. ed. Fortaleza: UFC, 1993.         [ Links ]

______. Psicologia comunitária: atividade e consciência. Fortaleza: Instituto Paulo Freire de Estudos Psicossociais, 2005.         [ Links ]

GONÇALVES, C. S.; WOLFF, J. R.; CASTELLO DE ALMEIDA, W. Lições de psicodrama: introdução ao pensamento de J. L. Moreno. São Paulo: Ágora, 1988.         [ Links ]

LANE, S. T. M. Histórico e fundamentos da psicologia comunitária no Brasil. In: CAMPOS, R. H. de F. (Org.). Psicologia social comunitária: da solidariedade à autonomia. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.         [ Links ]

LANE, S. T. M; CODO, W. (Org.). Psicologia social: o homem em movimento. 13. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.         [ Links ]

MARINEAU, R. F. Jacob Levy Moreno, 1889-1974: o pai do psicodrama, da sociometria e da psicoterapia de grupo. São Paulo: Ágora, 1992.         [ Links ]

MARRA, M. M. O agente social que transforma: o sociodrama na organização de grupos. São Paulo: Ágora, 2004.         [ Links ]

______. Práticas comunitárias: a natureza sociocultural e política do sociodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 91-103, 2006.         [ Links ]

MARTÍN-BARÓ, I. O papel do psicólogo. Boletim de Psicologia da Universidad Centroamericana José Simeón Cañas (UCA), El Salvador, v. 3, n. 17, p. 99-112, 1985.         [ Links ]

MONTERO, M. Teoría y práctica de la psicología comunitária: la tension entre comunidad y sociedad. Buenos Aires: Paidós, 2003.         [ Links ]

______. Hacer para transformar: el método en la psicología comunitaria. Buenos Aires: Paidós, 2006.         [ Links ]

MORENO, J. L. Psicoterapia de grupo e psicodrama: introdução à teoria e à prática. São Paulo: Mestre Jou, 1974.         [ Links ]

______. As palavras do pai. Campinas: Editorial PSY, 1992a.         [ Links ]

______. Quem sobreviverá: fundamentos da sociometria, psicoterapia de grupo e sociodrama. Goiânia: Dimensão, 1992b. v. 1.         [ Links ]

______. Quem sobreviverá: fundamentos da sociometria, psicoterapia de grupo e sociodrama. Goiânia: Dimensão, 1994a. v. 2.         [ Links ]

______. Quem sobreviverá: fundamentos da sociometria, psicoterapia de grupo e sociodrama. Goiânia: Dimensão, 1994b. v. 3.         [ Links ]

______. Moreno: autobiografia. São Paulo: Saraiva, 1997.         [ Links ]

______. Psicodrama. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 2003.         [ Links ]

NEVES, S. M.; BERNARDES, N. M. G. Psicologia social e comunidade. In: STREY, M. N. et al. Psicologia social contemporânea: livro-texto. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.         [ Links ]

OLIVEIRA, F. P. de et al. Psicologia comunitária e educação libertadora. Psicologia: Teoria e Prática, v. 10, n. 2, p. 147-161, 2008.         [ Links ]

RIQUET S. H. de S. O lugar científico do psicodrama. Linhas Críticas, Brasília, v. 4, n. 7-8, p. 181-192. 1998-1999.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Eleonora Pereira
Av. Mister Hull, 2.992 – bloco 5, ap. 302
Alagadiço – Fortaleza – CE
CEP 60356-000
e-mail: eleonorapsi@gmail.com

Tramitação
Recebido em setembro de 2008
Aceito em agosto de 2009

 

 

Creative Commons License