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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.12 no.1 São Paulo  2010

 

ARTIGO ORIGINAL

 

A infância sob a tutela do Estado: alguns apontamentos1

 

Childhood under state care: a few annotations

 

La infancia bajo la guardia del estado: algunos apuentes

 

 

Carolini Cássia Cunha; Maria Lucia Boarini

Universidade Estadual de Maringá

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo traduz o resultado de um estudo cujo objetivo foi investigar a presença ou não de influências do ideário da eugenia e higiene mental nas políticas públicas dirigidas à infância. Para alcançar este objetivo, tomamos, como fonte principal, parte da legislação federal que institui a forma de atendimento à infância no Brasil, a saber: o Código de Menores de 1927, primeira legislação que trata exclusivamente da infância, e o Código de Menores de 1979. Consultamos também periódicos e documentos da época, reveladores das contradições do período e a forma de enfrentamento das mesmas. A leitura atenta e rigorosa do material consultado indica pontos de convergência parcial entre o caminho proposto pelas legislações em tela e o ideário supracitado, com ênfase no uso de práticas de exclusão, individualização e personalização de problemas de caráter social.

Palavras–chave: Infância, Higiene mental, Eugenia, Código de Menores.


ABSTRACT

This article interprets the results of a study whose objective was to investigate the presence or absence of influences from eugenics and mental hygiene beliefs in public policies directed to childhood. To that end, we took as our main source the federal legislation that instituted the form of childhood assistance in Brazil, namely: the Minors Code of 1927, which was the first piece of legislation dealing exclusively with childhood and the Minors Code of 1979. We also checked periodicals and document from those periods, which revealed contractions and the manner in which they were confronted. A careful and rigorous reading of the consulted materials indicates a partial convergence between the path proposed by the legislation and the above-mentioned set of beliefs, with emphasis on the use of practices of exclusion, individualization and personalization of social problems.

Keywords: Childhood, Mental hygiene, Eugenics, Minors Code.


RESUMEN

Este artículo traduce el resultado de un estudio cuyo objetivo fue investigar la presencia, o no, de influencias del ideario de eugenía e higiene mental en las políticas públicas dirigidas a la infancia. Para lograr este objetivo tomamos como fuente principal, la legislación federal que instituyó la forma de atendimiento a la infancia en Brasil, a saber: el Código de Menores de 1927, primera legislación que trata exclusivamente de la infancia y el Código de Menores de 1979. Consultamos también los periódicos y documentos de la época, reveladores de las contradiciones del periodo y la forma de enfrentamiento de las niñas. La lectura atenta y rigurosa del material consultado indica puntos de convergencia, parcial, entre el camino propuesto por las legislaciones en tella y el ideario supracitado, con énfasis en el uso de prácticas de exclusión, individualización y personalización de problemas de carácter social.

Palabras clave: Infância, Higiene mental, Eugenía, Código de Menores.


 

 

Introdução

Os problemas ligados à infância, como a delinquência infantil ou juvenil e a violência ao qual esta é submetida, estão sendo constantemente divulgados pela mídia. Fato que, em geral, produz comoção social. Diante disto, o Estado, por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), tem criado unidades socioeducativas, unidades de internação para adolescentes autores de ato infracional, como solução para resolver estas questões ligadas à infância, instituições que têm a exclusão como forma de atuação. Ao se recuperar a história, é possível constatar que a prática da exclusão foi constante no que diz respeito à busca de solução para os males que afligiam a sociedade brasileira.

É preciso lembrar que, no alvorecer do século XX, graças à chegada de um grande contingente populacional às cidades e das péssimas condições de moradia e de vida da população, uma série de doenças foi sendo disseminada, assolando a população e causando a morte de muitos. Estes fatos desencadearam uma mobilização, sobretudo de médicos, na busca de prevenção para doenças. Os médicos entendiam que a sanidade física do povo seria alcançada se fossem incutidos hábitos de higiene na população e fosse retirada do convívio social (internação) a pessoa cometida de doenças contagiosas (tifo, tuberculose, lepra, etc.), configurando o movimento higienista. Tais encaminhamentos favoreceram resultados importantes, considerando que a farmacologia no Brasil vivia os seus primórdios. Apoiados na medida saneadora dos males físicos, os médicos higienistas propunham os mesmos encaminhamentos para solucionar ou evitar os males psíquicos (doenças mentais) e sociais, constituindo-se, dessa forma, o ideário da higiene mental. Vale lembrar que este ideário consistiu em "um conjunto de ações práticas, com o fim de criar condições que possam facilitar o desenvolvimento psíquico dos indivíduos humanos, adaptando esse desenvolvimento às exigências sociais e à felicidade pessoal" (RADECKI, 1925, p. 11). Acreditava-se que por essa via ajudava-se na prevenção de doenças mentais, da criminalidade e de outros males sociais. Por males sociais entendia-se um grande leque de situações, que cobria desde greves por melhores condições de vida até a criminalidade. Parte da intelectualidade brasileira acreditava que a raça era determinante de muitos dos problemas sociais existentes e procuravam "[...] identificar características supostamente ‘disgênicas’ do corpo ou do comportamento provocadas pela hereditariedade [...] e descobrir meios sociais de evitar que a má hereditariedade fosse transmitida" (STEPAN, 2005, p. 9) às gerações vindouras, caracterizando a adesão ao ideário da eugenia. Por conta dessa situação e das idéias vigentes na época, foram várias as intervenções nas políticas dos diferentes segmentos da sociedade brasileira. Um exemplo disso é o fato de que a primeira legislação voltada exclusivamente à questão da infância no Brasil data dessa época. Esta é, portanto, uma lei que nasce no momento de efervescência do movimento em prol da higiene mental e eugenia.

Estas são algumas das questões que serviram de estímulo a este estudo, cujo objetivo é investigar a presença ou não de pressupostos do ideário higienista e eugenista nas políticas públicas voltadas à infância. Muitos são os caminhos possíveis para atingir tal objetivo. Neste estudo, optamos pela análise da legislação federal – Código de Menores de 1927 e 1979 – que instituiu a forma de atendimento à infância, além de periódicos e documentos da época que revelam os enfrentamentos das contradições sociais.

Empreender uma análise histórica das duas legislações que ditaram as diretrizes para o atendimento à infância no período de 1927 a 1990 – ano da promulgação de uma nova legislação, o Estatuto da Criança e do Adolescente – pode contribuir para a compreensão dos encaminhamentos adotados na atualidade, no que tange a atenção à infância e à adolescência. Isto é, partindo do princípio de que os fenômenos não são entes a-históricos que tenham uma essência desvinculada da forma de organização humana, mas cônscios de que a legislação que trata da infância atualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, é fruto de um processo histórico que não se iniciou com a sua promulgação em julho de 1990. A análise de um fato situado no passado traz algumas vantagens, por oferecer uma maior clareza, visto que os acontecimentos e seus resultados já aconteceram, permitindo a quem olhe para a história entender os retrocessos e avanços de uma época. Tarefa que se torna mais difícil quando o objeto de estudo é a atualidade, quando os resultados de posturas adotadas se configuram em hipóteses e os acontecimentos ainda estão em processo.

Diante dessas considerações, o presente artigo é fruto de uma análise do Código de Menores de 1927 e do Código de Menores de 1979, assim como alguns apontamentos gerais sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Higiene mental e eugenia, o caminho para o progresso

Para Basbaum (1981), um novo cenário surgia no Brasil no final do século XIX e início do século XX. A abolição da escravatura, o grande contingente de imigrantes que chegava para o Brasil, a falta de estrutura das cidades para acolher este crescimento populacional, assim como a falta de postos de trabalho, foram algumas das condições que colocaram em evidência diversos problemas sociais, tais como a proliferação de doenças, acarretando uma alta mortalidade infantil, a presença de adultos e crianças vagando nas ruas e o aumento da criminalidade. Esses problemas não se coadunavam com a idéia vigente da ascensão do Brasil ao patamar das grandes potências europeias. O Brasil, que, em 1889, tornou-se uma República, tinha naquele momento a missão de se modernizar. Havia um país a se construir.

Este movimento de busca de identidade nacional, de tentativa de equiparação do Brasil às nações europeias, abriu caminho para a disseminação das idéias higienistas e eugenistas. Havia a certeza de que, por meio da aplicação das propostas advindas desse ideário, resolver-se-iam os problemas geradores dos obstáculos que mantinham a recente República longe do sonho de se tornar uma potência.

Considerando as condições materiais postas, as necessidades da época, a insustentável proliferação de doenças e a necessidade de assegurar mão de obra, abriu-se espaço para a medicina e sua intervenção no social. Há uma ampliação de seu habitual campo de trabalho, o corpo. Esposel (1925, p. 102), membro da Liga Brasileira de Higiene Mental, afirmou que "fazer higiene é evitar as doenças; para evitar as doenças, o combate mais eficaz é impedir as causas". Para os higienistas, estava aí imposta a necessidade de uma intervenção nos hábitos dos indivíduos.

Entretanto, o momento pedia mais que o tratamento dos males físicos. Os males humanos não se restringiam às doenças físicas, nem os problemas da nação se resumiam às epidemias que assolavam a população. Logo, "não apenas as doenças físicas tinham como receituário a higiene, mas as doenças psíquicas, os bons costumes e a moral passaram a ser um problema da higiene" (BOARINI, 2003, p. 36), constituindo a higiene mental. Esta se baseava na crença de que a conservação da moral e dos bons costumes seria o caminho para uma vida saudável, física e psiquicamente.

É necessário lembrar que do ideário da Liga Brasileira de Higiene Mental faziam parte os pressupostos da eugenia, "um movimento pelo aprimoramento da raça humana" (STEPAN, 2005, p. 18), ou, nas palavras dos eugenistas, uma "ciência da boa geração" (KHEL, 1925) que "visa a melhoria da espécie" (FARANI, 1925). As características capazes de tornar alguém mais ou menos adaptado, sejam elas de ordem psicológica, física ou moral, seriam passadas hereditariamente, teriam uma determinação biológica. Portanto, orientando-se por esse ideário, produzia-se o ideal de homem para aquele tempo, aquele que caberia em uma nação civilizada e moderna.

A infância sob a tutela do Estado

Em virtude do aumento da criminalidade infantil e do número de crianças vagando pelas ruas, as questões relativas à infância foram ganhando visibilidade e consequente autonomia no meio jurídico, desvinculando-se do trato com a criminalidade adulta. Autonomia que culminou na criação do Código de Menores em 1927. Esta legislação substituiu o Código Penal de 1890 no que tange à criminalidade infantil, visto que o mesmo também versava sobre a questão. A mortalidade infantil alcançou, no início do século XX, números preocupantes, atingindo mais de um terço dos nascimentos que ocorriam em solo brasileiro, de acordo com estudos apresentados por Moncorvo Filho (1922). O número de crianças vagando pelas ruas também era acentuado e a criminalidade infantil igualava-se, estatisticamente, à adulta (MOTTA, 2000). Essas condições contrariavam a necessidade da época de um grande contingente populacional para abastecer a procura de mão de obra para o trabalho nas indústrias.

Tal cenário fomentou a construção de uma noção de infância como futuro da nação. Conforme pode ser notado no discurso do senador Lopes Trovão em 1896: "Por isso, senhores, como recurso supremo, eu me volto para a infância – os pequeninos de hoje serão os grandes de amanhã; é nela que ponho as esperanças da grandeza do atual regime pela regeneração da pátria" (MONCORVO FILHO, 1922, p. 131). Esta convicção não era somente de Lopes Trovão, caracterizou um período e figurou como uma das questões que ocupou os higienistas.

Os higienistas, assim como Lopes Trovão, viam na criança um ser que poderia ser moldado, portanto, o alvo mais adequado para a prevenção dos males sociais. Além das intervenções no físico, para evitar a mortalidade, a intervenção era no sentido de moldá-la, controlá-la. Pretendia-se atingir um ideal representado por aquele que mantivesse a ordem social vigente sem apresentar "paixões, crimes, idéias extremistas, reivindicadoras ou revolucionárias" (ESPOSEL, 1925, p. 105). Os que não condiziam com este modelo, sob a tutela do Estado, passariam por um processo de "reeducação" e "regeneração" conforme os termos utilizados no texto legal do Código de Menores de 1927: "os remeterá a um estabelecimento [...] onde permanecerá até que se verifique sua regeneração, sem que, todavia a duração da pena possa exceder o seu máximo legal".

A infância assumiu uma importância capaz de impulsionar a criação de uma legislação própria e de todo um aparato jurídico. Tal relevância no mundo jurídico daquele período não representou uma situação exclusiva do Brasil. Em outros países, o aumento da preocupação do Estado com a infância também estava ocorrendo. Em 1899, é criado o primeiro Tribunal de Menores em Illinois, nos Estados Unidos. Outras legislações específicas para a infância foram implantadas nos países latino- americanos, por exemplo, na Argentina em 1919 e na Venezuela em 1939 (MENDES; COSTA, 1994).

O Código de Menores de 1927, promulgado através do Decreto n. 17.943-A, possuía como "objeto e fim da lei" regular medidas de assistência e proteção ao menor abandonado ou delinquente. Em nível jurídico, essa legislação federal representou uma separação no próprio segmento da infância, já que não contemplava todas as crianças, mas uma parcela destas, as consideradas abandonadas ou delinquentes, aquelas denominadas "menores". Para as demais, havia o Código Civil, que fora promulgado em 1916 e legislava sobre "os direitos e obrigações de ordem privada, concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações".

Os abandonados, segundo o Código de Menores, eram aquelas crianças que, dentre outras características,

Não [...] [tinham] habitação certa, nem meios de subsistência [...] que tenham pai, mãe ou tutor ou encarregado de sua guarda reconhecidamente impossibilitado ou incapaz de cumprir seus deveres para com o filho ou pupilo ou protegido [...] que vivam em companhia de pai, mãe, tutor ou pessoa que se entregue à prática de atos contrários à moral e aos bons costumes; [...] que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou libertinagem; [...] vítimas de maus tratos físicos habituais ou castigos imoderados (BRASIL, 1927).

Essas condições remetem à família do "menor", ou àqueles que se encarregam de alguma forma da educação do mesmo, legitimando uma intervenção do Estado no âmbito privado familiar. Dessa forma, a autoridade sem limites que o pai de família tinha sobre os seus filhos foi destituída legalmente. Sendo preciso

[...] mostrar que a família era passível de punição e que, ao cometer atrocidades contra as crianças, comprometia a moralidade de seus filhos e, consequentemente, o futuro do país. Portanto, o filho não era propriedade exclusiva da família; a paternidade era um direito que poderia ser suspenso ou cassado (RIZZINI, 2008, p. 121).

Foi importante essa reformulação da legislação brasileira, uma vez que retirou, ao menos no campo jurídico, a condição do filho como propriedade da família e, portanto, sujeito a todo tipo de conduta dos pais, seja de maus tratos ou violência. No entanto, essa autoridade, antes destinada à família, agora passou a ser atribuída ao juiz de menores. É este quem vai determinar a classificação do menor (abandonado, delinquente, vadio, libertino, mendigo, pervertido), a medida de "assistência e proteção" destinada ao mesmo, o tempo de internação, a manutenção do menor sob a tutela mesmo diante de absolvição e a internação daquele que, apesar de nada ter feito, juiz o vê como potencialmente perigoso, ou, nos termos do Código de Menores de 1927, "em perigo de o ser": "se o menor for abandonado, pervertido, ou estiver em perigo de o ser, autoridade o internará em escola de reforma por todo o tempo necessário a sua educação, [...] três anos, no mínimo, e de sete, no máximo". Assim como decidir pela prisão antes mesmo que se iniciasse o processo, e ainda que sem flagrante.

O destino do menor abandonado e delinquente passou às mãos do juiz, que deveria basear a sua decisão nas características expressas no artigo 68, e repetidas em outros momentos no mesmo Código: "tomará somente as informações precisas, registrando-as sobre o fato punível e seus agentes, o estado físico mental e moral do menor, e a situação social, moral e econômica dos pais". Seriam estes os indicadores da capacidade de pais educarem seus filhos. A família que não se mostrasse capaz de criar um bom cidadão perderia o direito da guarda dos filhos, o Estado assumindo sua "guarda, educação e vigilância". Dessa forma, o Código de Menores assumia o que acreditava que a família não era capaz de fazer: educar e vigiar. A noção de abandono ultrapassa o significado comum. Não se trata apenas de abandono material, mas também de abandono moral em referência à educação dada à criança. Estava implícito o entendimento de uma relação causal entre o abandono moral e a produção de vadios e libertinos.

A categoria de infância que não podia ser classificada como vadia, abandonada ou delinquente, mas estava "em perigo de o ser", também ficaria sob a tutela do Estado que, ao retirar os menores de um meio capaz de gerar criminosos, estaria cumprindo a sua função de defesa da sociedade. Merece destaque o fato de que essa legislação trata da mesma forma o delinquente, o vadio, o abandonado e o que está "em perigo de o ser"; melhor dizendo, as medidas empregadas a estes eram essencialmente as mesmas. Dessa forma, o Estado criminalizava os abandonados e propunha medidas que não tocavam nas causas que haviam condicionado sua situação.

Quanto ao trabalho infantil, o Código de Menores de 1927 impunha uma série de condições que o cerceavam, a saber, a criança deveria ter no mínimo 12 anos de idade, comprovar que se encontrava estudando, atestar capacidade para o trabalho por meio de exames médicos, além de provar que seu trabalho era fundamental para o sustento da família. Entretanto, apesar dessas restrições ao trabalho infantil, a mesma legislação considerava as crianças que fossem encontradas sem "trabalho sério e útil", vadia, e, portanto, passíveis de intervenção do Estado. A estas, assim como aos mendigos e capoeiras, estaria destinado um período maior de internação, e a pena poderia ser cumprida em uma Colônia Correcional, local onde ficavam os presos adultos.

Diante disso, nos locais de internação, o trabalho era entendido como recurso terapêutico. Acreditava-se que, por esta via, manter-se-ia ocupada a mente das crianças, reabilitando- as e incutindo regras e submissão. Assim, era possível "preparar o futuro trabalhador para uma sociedade moderna ao qual se integrasse, afastando-se dos perigos do vício, de um lado, e do radicalismo de classe, de outro" (LIMA, 1985, p. 95). Era assim que se acreditava ser possível forjar um bom cidadão.

Ao recuperar a história, observamos que as relações de produção estavam sendo alteradas no Brasil, passando do regime escravagista para o regime assalariado, produzindo novas condições materiais, e, com base nestas, novas concepções de valor nessa nova ordem social. O trabalho, que até pouco tempo era considerado humilhante, já que era função do escravo negro, passou a ser altamente valorizado no Brasil República, por ser necessário ao desenvolvimento do sistema fabril. Adquire importância à formação de indivíduos aptos para a vida em sociedade. Não era difícil encontrar crianças trabalhando em fábricas ou outros locais. Crianças que, devido a essa condição de trabalho, levavam uma vida bem diferente das demais, exercendo, muitas vezes, funções perigosas e com cargas horárias estafantes (MOURA, 2000). O trabalho infantil foi condicionado não só pelas necessidades do mercado como também pelos proprietários das fábricas, por constituir uma mão de obra mais barata para o sustento das famílias. Sob tal perspectiva, já em 1890 por volta de 15% da mão de obra era composta por crianças e adolescentes em estabelecimentos industriais (MOURA, 2000).

A produção do delinquente

O Código Penal de 1890, que até 1927 legislou a questão da infância criminosa, considerava imputável a criança a partir dos nove anos que tivesse discernimento, ou seja, que entendesse o significado do ato cometido. Por sua vez, o Código de Menores de 1927 alterou a imputabilidade, que passou a ser considerada a partir dos 14 anos de idade. Entretanto, as crianças ou jovens cuja idade fosse inferior e cometessem delito poderiam ser submetidos às seguintes ações do Estado:

Art. 79. O menor de idade inferior a 14 anos, indigitado autor ou crime de fato qualificado crime ou contravenção, se das circunstâncias da infração e das condições pessoais ou de seus pais, tutor ou guarda tornar- se perigoso deixá-lo a cargo destes, o juiz ou tribunal ordenará a sua colocação em asilo, casa de educação, escola de preservação, ou o confiará a pessoa idônea ate os 18 anos de idade. A restituição aos pais, tutor ou guarda poderá antecipar-se mediante resolução judiciária, e bom comportamento do menor e daqueles (BRASIL, 1927).

Quanto às medidas destinadas ao maior de 14 anos, estas tinham como possibilidade de "Se o menor for abandonado, pervertido ou em perigo de o ser, a autoridade competente ordenará a colocação em asilo, casa de educação, escola de preservação, ou o confiará a pessoa idônea [...]". Pelo exposto subentende-se que não havia diferença entre crianças maiores ou menores de 14 anos de idade. A relevância não estava na idade que o menor possuía, nem no delito cometido. O que deveria nortear a decisão do juiz seriam as características da família e do próprio delinquente, ou seja, "o estado físico, mental e moral do menor, e a situação social, moral e econômica dos pais". Tais características, de acordo com a legislação, indicavam ao juiz de menores a periculosidade do menor. Quanto ao período de internação para as crianças consideradas vadias, libertinas, delinquentes ou "em perigo de o ser", duraria "todo o tempo necessário a sua educação, contanto que não ultrapasse os 21 anos". Para os menores de 16 a 18 anos, considerados "individuo perigoso pelo seu estado de perversão moral", seriam internados "até que se verifique sua regeneração, sem que, todavia, a duração da pena possa exceder o seu máximo legal", isto é, até os 21 anos. Dessa forma, a pena assume um papel curativo; logo, não teria tempo determinado, sendo mantida até que provada a recuperação do indivíduo. Para auxiliar o processo de "regeneração", a medicina é convocada para identificar, estudar e transformar a personalidade do criminoso. Numa perspectiva higienista, Heitor Carrilho (1925, p. 132), diretor do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, afirma que

[...] a delinqüência [...] fere a sociedade na própria essência da sua finalidade, reclamando, por isso, a ação decisiva e forte da profilaxia salvadora. Para isso, é necessário que se reconheça que o crime é, de fato, na maioria dos casos, a expressão de anormalidades psíquicas momentâneas ou permanentes que merecem ser estudadas em todos os íntimos aspectos de sua determinação.

Há aí uma concepção de crime como expressão da presença de anomalias no indivíduo. Nessa visão, não são considerados os aspectos políticos, econômicos e sociais que podem contribuir para a existência do crime. Ao contrário, é o indivíduo anormal que rompe a harmonia social.

O estado perigoso e a consequente temibilidade dos delinquentes, examinados à luz de um rigoroso critério cientifico antropopsicológico, serão os fundamentos sobre os quais se orientará toda a legislação repressiva. Como ela assentará em indagações que tendem, em ultima análise, a estudar toda a personalidade do indivíduo, exumando-lhe as anomalias morais e as diferentes taras, fácil é de se imaginar o admirável programa de estudos daí resultante, alargando o campo da higiene mental em toda a complexidade dos seus fins (CARRILHO, 1925, p. 133).

Por conta dessa perspectiva, o psiquiatra se torna integrante obrigatório na equipe do Juizado de Menores. A este caberia examinar e observar os menores, visitar a família do mesmo para investigar "antecedentes hereditários e pessoais" e oferecer as bases para a determinação judicial (BRASIL, 1927). Nestes termos, o Código de Menores de 1927 materializa a associação entre medicina e direito.

Enfim, o Código de Menores traz aspectos positivos no trato com a infância ao impor limites à autoridade dos pais ou dos responsáveis sobre os filhos e cercear o trabalho infantil. Este último aspecto era levado a cabo parcialmente, em virtude das contradições que a sociedade vivia no momento. A infância passou a ser submetida à tutela do Estado, e este se comprometia a colocá-la sob sua guarda no intuito de evitar e solucionar alguns males sociais a ela relacionados. Nessa missão, apropria-se de elementos do discurso da higiene mental e da eugenia, ideário corrente no período referido.

A intervenção na personalidade para o bem-estar do menor

tempo passou e as medidas instituídas pelo Código de Menores de 1927 não foram suficientes para a resolução dos problemas ao qual se propôs atender. Além disso, as mudanças políticas, econômicas e sociais pelas quais o país passou indicavam a necessidade de reformulação da legislação, adequando-a aos novos tempos. Em virtude disto, um novo capítulo na história do "menor" foi escrito em 1o de dezembro de 1964, data da aprovação da lei que autorizou a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem). Esta instituição, voltada para o atendimento ao menor e criada pelo Estado, tinha como objetivo remodelar o atendimento e centralizar as políticas adotadas para esse segmento da sociedade.

Para levar tal atribuição a cabo, deveria haver a criação de estabelecimentos de triagem, ou Centros de Estudo, Diagnóstico e Indicação de Tratamento (Cedit), e instituições de internação para os menores, o Centro de Reeducação (FUNDAÇÃO, 1974). Assim, o trabalho dirigido ao menor, enquanto o mesmo estivesse internado, direcionar-se-ia pelo diagnóstico dado pelos profissionais da psicologia, pedagogia, assistência social e psiquiatria por meio da observação. O êxito do tratamento posterior seria garantido pela observação, descrição e posterior diagnóstico do menor por esses profissionais (FUNDAÇÃO, 1974).

Os caminhos trilhados para a intervenção na infância naquele momento não alteraram o curso seguido pelo Código de Menores de 1927. O "menor" permaneceu objeto de estudo e diagnóstico, e o isolamento que se materializava por meio da internação continuava sendo o tratamento privilegiado para a "readaptação".

Semelhante orientação era dada por médicos higienistas no trato com os delinquentes. Carrilho (1925, p. 134), por exemplo, afirma que "se deveria fazer a seriação médico-psicológica dos delinquentes, no intuito de melhor conduzi-los a readaptação de que tanto carecem em beneficio do próprio e no da coletividade", e assim proceder a "individualização da pena".

A transgressão da lei, de acordo com o manual de orientação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, era vista como "um concurso de fatores bio-psico-sociais que convergem para o juízo de que, somente o conhecimento e a análise destes possibilitam qualquer atuação de natureza profilática ou reeducativa que se pretenda exercer" (FUNDAÇÃO, 1974, p. 37). No entanto, apesar de entender o menor em suas facetas bio-psico-sociais, as práticas na instituição deveriam ter o intuito de "atingir a própria estrutura da personalidade" deste que passa a ser denominado "menor com conduta antissocial" (FUNDAÇÃO, 1974, p. 3).

Essa inadaptação ou conduta antissocial, assim como o comportamento humano, eram definidos como "o ponto de encontro de uma ‘personalidade’ e de uma ‘situação’, ou melhor, é a resultante da maneira de reagir de uma ‘personalidade’ em determinada situação" (FUNDAÇÃO, 1974, p. 31). Compreensão que não possuía divergência significativa com o entendimento do médico higienista Fontenelle (1925, p. 2) em relação ao indivíduo.

[...] os dois elementos que se relacionam: a estrutura psíquica do individuo, não raramente deficiente e imperfeita, dependendo em grande parte da hereditariedade; e o meio físico e social, criando, às vezes, condições adversas, que podem perturbar e, em grão extremo, até esmagar as mentalidades mais firmemente equilibradas.

Apesar de levar em conta o aspecto social, tanto os higienistas quanto as orientações da Funabem privilegiavam a hereditariedade ou "a personalidade". Assim sendo, a responsabilidade de qualquer ato atribuía-se ao indivíduo ou à sua genética, bem a gosto dos eugenistas. Portanto, a intervenção era, via de regra, sobre o indivíduo. Necessitava-se reeducá-lo, objetivando "propiciar ao jovem a busca de uma nova identidade [...] dois aspectos devem ser abordados: a tomada de consciência de sua inadaptação social e a descoberta de novas dimensões do seu ’eu’"2 (FUNDAÇÃO, 1974, p. 44). As orientações teóricas pautadas em autores do campo da psicologia indicam o privilégio da atenção ao indivíduo. Em última instância, o problema era o sujeito, que deveria mudar a essência do seu "eu"; para tal, havia a internação, medida que, para os higienistas, permitia

[...] aos indivíduos o afastamento dos hábitos mentais nocivos, aprimorando-lhes o caráter e traçando-lhes a personalidade íntegra. É então, que se faz a educação dos instintos, dosando as reações que eles determinam e que tanto pesam na gênese dos delitos, influindo sobre essa "agressividade latente" (CARRILHO, 1925, p. 138).

Sem perceberem as determinações históricas e sociais da criminalidade e de outras questões sociais, os higienistas atribuíram a responsabilidade ao indivíduo e buscaram a sua mudança para, assim, alcançar o fim dos problemas que afligiam a sociedade. Ideia que oferece justificativa ao contraste de condições materiais para as diferentes classes sociais. A proximidade do ideário da higiene mental e da eugenia com as ações do Estado, no período de referência, aponta para o fato de que a organização social segue a mesma lógica. Assim, décadas transcorridas continuaram indicando familiaridade com o discurso higienista e eugenista que sustentou as idéias contidas no Código de Menores de 1927.

De abandonado à situação irregular

Apesar da criação da Funabem, o governo militar ainda não possuía uma legislação que substituísse o Código de Menores de 1927; portanto, permanecia sem uma legislação à altura do Código de Menores que coadunasse com a política levada a cabo pela ditadura militar. Em 1979, o governo alterou esta situação ao promulgar um segundo Código de Menores.

Este novo Código de Menores, assim como o anterior, dispunha apenas sobre os "abandonados e delinquentes", agora denominados menores em situação irregular: "Este Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a menores: I- até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular; II- entre dezoito e vinte e um anos nos casos expressos em lei".

Menor em situação irregular é entendido como aquele

I- privado de condições essenciais à sua existência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de:
a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;
b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;
II- vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;
III- em perigo moral devido a:
a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;
b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;
IV- privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável;
V- Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;
VI- autor de infração penal (BRASIL, 1979).

Nota-se uma mudança de nomenclatura apenas. O Código de Menores de 1979 se destinava ao mesmo segmento da infância, ou seja, eram os mesmos que ficavam, mais uma vez, sob a observação atenta do Estado.

O termo "menor em situação irregular" já estava presente no discurso dos organismos latinos. Para estes, menor em situação irregular seriam os "menores de rua, órfãos e mendigos", os que apresentassem alguma "patologia mental ou física", "menores em conflito com a justiça", "menores de família de baixa renda cujas necessidades básicas não podem ser satisfeitas", e os que possuíssem "condicionantes negativos ao nível familiar, que ameaçam suas possibilidades de adaptação social" (FUNDAÇÃO, 1974, p. 9-10). Vale ressaltar que a definição de "situação irregular", adotada pelos organismos latinos não foi legalmente assumida pelo Brasil, mas ilustra a busca do padrão de "normalidade" presente no pensamento vigente na época nos países ocidentais. As características assinaladas anteriormente serviriam (e ainda servem) como parâmetros sociais e eram consideradas (ou ainda são) obstáculos à "adaptação social". Historicamente, tais parâmetros vêm definindo o padrão de normalidade da infância e, dessa forma, retirando a "normalidade" de muitas crianças brasileiras.

Nesse sentido, recuperando a história, Boarini (2007, p. 10) afirma:

O que a história nos permite afirmar é que a busca incessante pela definição do padrão de normalidade e mensuração de enquadramentos e desvios dos parâmetros normais [...] almejou a promoção de uma espécie de saneamento social e, na seqüência, selecionou uma legião de desviantes ou diferentes do padrão estabelecido para neles aplicar as práticas higienistas e eugênicas.

Estar em "situação irregular", ou, em outras palavras, estar excluído do padrão almejado se constituiu em circunstância a se prevenir. Para tanto, o juiz tinha em suas mãos a possibilidade de proceder a retirada do pátrio poder de qualquer criança ou jovem que porventura ele entendesse que poderia entrar no grupo dos "menores em situação irregular" (BRASIL, 1979). Logo, a responsabilidade de produção de um menor estaria apenas na família, e o juiz tinha como seu dever identificar pais que tornariam seus filhos menores em "situação irregular" e destituí-los do pátrio poder: "A autoridade judiciária poderá decretar a perda ou suspensão do pátrio poder e a destituição da tutela dos pais ou tutor que: derem causa a situação irregular do menor" (BRASIL, 1927). Com essa prerrogativa, tal legislação reitera não somente a atribuição de responsabilidade da produção do menor à família "irregular", como ratifica, uma vez mais, a pessoa do juiz como apta para identificar a existência da capacidade de educar os filhos. A prevenção da existência dos "desviantes do padrão" seria colocar o menor sob a tutela do Estado.

A vigilância instituída

O novo Código de Menores tinha por finalidade dispor "sobre assistência, proteção e vigilância a menores" (BRASIL, 1979). Este enunciado se assemelha à finalidade do Código de Menores de 1927, exceto por uma palavra, acrescentando uma nova função do Estado para com estes menores, a "vigilância". A adição da função de "vigilância" ao Estado não se constitui característica digna de surpresa se não se perder de vista o cenário das relações e produções humanas em que tal legislação foi forjada. Nessa época, o Brasil vivia os "anos de chumbo" de uma difícil ditadura militar. Nesse sentido, o Estado militar se manteve atento a qualquer expressão de atitudes contrárias ao regime; em virtude disso, a sociedade estava vivendo momentos de repressão materializada em censuras a manifestações artísticas, à mídia e às manifestações políticas. Isto ilustra o retrocesso representado por essa postura na história do atendimento estatal à infância. Retrocesso presente não só nessa medida específica, mas permeando todo o Código.

De maneira geral, essa legislação pode ser caracterizada pela manutenção de diversos aspectos já presentes na legislação anterior e por alterações que representaram uma maior intransigência em relação aos menores. A medida de internação, por exemplo, a partir de 1927, deveria ser revista periodicamente, e teria como prazo máximo o menor atingir 21 anos. Em 1979, a medida de internação continuaria sendo revista periodicamente por profissionais, porém não cessaria com a maioridade do internado. Ao atingir a maioridade, o indivíduo seria apenas transferido de local, tornando-se um interno de penitenciárias: "Se o menor completar vinte e um anos sem que tenha sido declarada a cessação da medida, passará à jurisdição do Juízo incumbido das Execuções Penais". As garantias de um processo diferenciado pela menoridade e de um local diferenciado de internação seriam extintas, e a privação de liberdade não teria limite, sequer de idade. O papel do juiz permaneceu tendo importância fundamental no processo. Além das funções já destinadas a este desde 1927, ficaram sob sua responsabilidade a fiscalização do cumprimento das decisões judiciais e, por meio de portarias ou provimentos, a determinação de outras que, ao "seu prudente arbítrio, se demonstrarem necessárias à assistência, proteção e vigilância ao menor".

O resultado dessas práticas mantidas pelo Estado, que não tangenciam as causas da questão que se impõem como problema, pode ser expresso em números. Machado (2003) afirma que aproximadamente 80 a 90% dos internos da Febem se constituía de jovens que não haviam cometido crime algum e eram, em sua maioria, "carentes". Calsing, Schimidt e Costa (1986) expõem números alarmantes de 1985: cerca de metade da população era constituída por indivíduos com idade inferior a 18 anos, o correspondente a aproximadamente 60 milhões de pessoas; destes, em torno de 41 milhões (60%) compunham famílias que viviam com no máximo meio salário mínimo, ou seja, em situação de pobreza; mais da metade das crianças de 0 a 6 anos se encontravam desnutridas; mais da metade das crianças de 0 a 14 anos não viviam em casa com água encanada e um terço viviam em locais sem nenhum tipo de escoadouro; 20% das famílias brasileiras dependiam de seus jovens para a sobrevivência, e se encontravam em pobreza extrema; cerca de um quinto dos jovens abandonaram a escola naquele período pela necessidade de trabalhar. Aproximadamente 7 milhões de crianças abandonadas faziam da rua sua moradia, e apenas uma pequena parcela destas eram abrigadas em instituições.

Dessa forma, o Código de Menores de 1979 se altera, porém reitera a lógica anterior. A coerção do Estado se volta mais uma vez para os menores considerados "em situação irregular", as práticas permanecem semelhantes e alguns princípios do ideário higienista são revividos, como, por exemplo, a manutenção da lógica de internação/exclusão dos menores "em situação irregular".

Os mecanismos de coerção do Estado passaram pela exclusão do menor, dantes "degenerado", pervertido, delinquente, agora "em situação irregular", e pela individualização de questões produzidas socialmente, tais como a eventual ou frequente falta de subsistência ou moradia, atribuindo-as unicamente ao indivíduo e à sua família.

A higiene mental e a eugenia forneceram suporte a essas práticas, legitimando-as por meio do "empréstimo" de termos e soluções apontadas. A vigência dessa lógica teve como consequência apenas a estigmatização social de crianças e adolescentes internados e a provável marginalização.

A história nos permite afirmar que a legislação, criada oficialmente com o objetivo de equacionar a questão da infância criminosa e abandonada, acabou por acentuar a exclusão/ marginalização desses meninos e meninas.

 

Considerações finais

Na análise empreendida sobre as legislações que definiram as políticas públicas, tivemos como referência o contexto histórico, econômico e social no qual foram forjadas, entendendo-as, portanto, como produção de uma época. Dessa forma, a letra da lei também revela as contradições pertinentes ao período e que tentamos, na medida do possível, desvelar. Uma tentativa que não se esgota com esta discussão, mas que representa apenas alguns apontamentos que podem estimular outras e novas interpretações sobre o assunto.

Na articulação entre as legislações e o ideário eugenista e da higiene mental, e ao percorrer o caminho traçado para o atendimento à infância até a década de 1990 no Brasil, pudemos notar alguns pressupostos da eugenia e da higiene mental permeando não só o discurso, mas também a prática do Estado em relação às crianças e adolescentes, ou "menores", como eram conhecidos. Tais pressupostos estão expressos no Código de Menores de 1927 de forma explícita, quando este afirma a necessidade de um psiquiatra no Juizado de Menores, cuja função era investigar antecedentes hereditários e buscar a regeneração dos ditos menores. De forma mais sutil, pressupostos deste ideário estiveram presentes na intervenção da Funabem, onde o objeto privilegiado de intervenção era a personalidade do menor, objetivo alcançado pela internação, ou seja, por meio da exclusão. Ficou implícita a convicção de que o problema está encarnado no indivíduo e, portanto, a solução vem com o isolamento desse "degenerado", "inadaptado". Assim, o ideário da higiene mental e da eugenia, que privilegiava o indivíduo, traçando suas medidas físicas e sua hereditariedade, refletindo sobre os seus hábitos "degenerados", "imorais", ou pensando a sua personalidade, permaneceu presente nas medidas e nas práticas instituídas ao longo do século XX.

Diante destas informações, entendemos que este exercício de revisão de práticas legitimadas no passado, atualmente pouco privilegiado, pode contribuir na discussão sobre a redução da maioridade penal no Brasil. A idade mínima imputável era, no Código Penal de 1890, nove anos de idade, e 14 anos de idade em ambos os Código de Menores. O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece a imputabilidade aos 18 anos. A nosso juízo, caso a solução para a delinquência infantil ou juvenil estivesse na redução da idade imputável, este problema já deveria ter sido sanado pelos Códigos de Menores citados anteriormente.

O Estatuto da Criança e do Adolescente nasce no bojo do processo de redemocratização política no Brasil da década de 1980. É, portanto, expressão desse movimento e carrega em si direitos nunca antes reconhecidos às crianças e adolescentes brasileiros. As medidas que, no Código de Menores de 1927, eram essencialmente as mesmas para abandonados e delinquentes e que, no Código de Menores de 1979, eram exatamente as mesmas, são nesse momento diferenciadas.O caráter repressivo em relação aos delinquentes e potencialmente perigosos, presente nas legislações anteriores, é sucedido pela compreensão da necessidade de um sistema de garantia de direitos à infância. Responsabilidade partilhada entre Estado, sociedade civil e família (BRASIL, 1990). Está instituída a "doutrina da proteção integral", que propõe a prioridade absoluta do atendimento aos direitos da infância, em detrimento da "doutrina da situação irregular" vigente até então.

Apesar disso, "diversos estudos têm demonstrado que a internação ainda continua sendo a medida preferida pelos juízes e promotores [...] presente em 80% das sentenças proferidas" (PASSETTI, 2000, p. 371). Alguns autores sustentam que, na prática, o Estatuto da Criança e do Adolescente não é respeitado e as práticas não se alteraram significativamente (COSTA, ASSIS, 2006; SILVA, MELLO, s.d.; KRAMMER, BAZILIO, 2003). Prada, Willians e Weber (2007) afirmam que os abrigos para crianças e adolescentes exibem características similares aos anteriores, exercendo controles disciplinares coercitivos e promovendo massificação. Há aqueles que afirmam também que os agentes que atuam no sistema de garantia de direitos para a infância têm sua atuação, em muitos momentos, movida por suas próprias convicções, "nem sempre coincidentes com os objetivos e os princípios do LOAS3 e do ECA" (SILVA, MELLO, s.d.). O número de crianças abrigadas alcança cerca de 20 mil, sendo estas em sua maioria negras e pobres, com sua parcela mais significativa abrigada num período compreendido entre dois a cinco anos, apesar da recomendação do Estatuto da Criança e do Adolescente de que a medida de abrigo deve ser excepcional e provisória. A pobreza ainda é a causa de abrigamento citada pela maioria dos dirigentes de abrigos, e permanece sendo entendida, para os mesmos, como o principal motivo da demora do retorno da criança à família (LEVANTAMENTO, 2007).

Portanto, estudos que tentam retratar a atual situação das crianças e adolescentes brasileiros apontam para a permanência do paradigma do isolamento e da exclusão, perpetuando uma prática baseada em uma lógica coercitiva que relembra o ideário higienista e eugenista.

Enfim, a título de finalização, recorremos à afirmação de Boarini e Borges (1998, p. 103):

[...] inserida no bojo das contradições inerentes a uma sociedade de classes, a infância, enquanto produção dessa sociedade, é reconhecida teoricamente para todas as crianças e, explicitamente reivindicada – no discurso – e implicitamente negada – na prática –, para a grande maioria das crianças pertencentes às classes populares. Dito de outro modo: percebe-se uma grande lacuna entre o discurso e a prática e, à medida que ocorrem formas de preencher tal lacuna (com núcleos de proteção, estatutos, denúncias, declaração de direitos etc.), mais lacunas vão se formando.

E para preencher essas lacunas, a considerar os estudos citados anteriormente, a higienização social no sentido de isolamento mantém-se, apesar da legislação.

 

Referências

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Endereço para correspondência

Carolini Cássia Cunha
Maria Lucia Boarini
e–mail: carol_ccunha@yahoo.com.br ; mlboarini@wnet.com.br

Tramitação
Recebido em novembro de 2009
Aceito em março de 2010

 

 

1 Pesquisa realizada pelo programa institucional de bolsas de iniciação científica – PIBIC/UEM/CNPq.

2 A forma de se conseguir a descoberta do "eu" dos menores é descrita como sendo pela via de uma vivência de amor e respeito. Este, no entanto, era o discurso teórico que sustentava as ações da Funabem; na prática, autores denunciam os maus-tratos e a violência no tratamento com os internados (RODRIGUES, 2001; PASSETTI, 2000).

3 LOAS é a sigla pela qual é conhecida a Lei Orgânica da Assistência Social, promulgada pela lei n. 8.742, em 7 de dezembro de 1993.

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