SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12 issue2Young people raised by grandparents and parents or single parentsThe relationship between sporting goals and psychological confucts and their influence on the performance of a swimmer author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.12 no.2 São Paulo Feb. 2010

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Pais por adoção: a adoção na perspectiva dos casais em fila de espera

 

Parents by adoption: adoption in the perspective of couples in waiting line

 

Padres por adopción: la adopción en la perspectiva de los parejas en posición de espera

 

 

Manoela Ziegler Huber; Aline Cardoso Siqueira

Centro Universitário Franciscano

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A espera por uma criança no processo de adoção e permeada por sentimentos intensos e expectativas sobre o futuro. Este estudo objetivou conhecer a percepção dos adotantes acerca da adoção, investigando os aspectos do macrossistema dos casais adotantes, conforme o referencial teórico de Bronfenbrenner. Participaram quatro casais habilitados para adoção, com tempo de espera de seis meses a três anos. Entrevistas semiestruturadas e grupos focais foram realizados na coleta de dados. Os resultados indicaram uma preferência por bebês, preocupação com a bagagem genética, ansiedade no momento da revelação e a percepção de fracasso dos casais caso os filhos adotivos desejem procurar os pais biológicos. Os casais ainda identificaram a necessidade de apoio durante a espera pelo filho e após a adoção, para que essas angústias possam ser expressadas e que eles possam ser orientados. Assim, torna-se necessária a criação desses espaços, favorecendo o importante processo da adoção.

Palavras-chave: Adoção, Relações pais-filhos, Família, Preconceito, Apoio.


ABSTRACT

The wait for a child in the adoption process is permeated by intense feelings and expectations about the future. This study aimed to know the adoptive parents perception about adoption, verifying the macrosystem aspects of adoptive parents, regarding the Bronfenbrenner's theorical approach. Four couples enabled to adopt, who were waiting for adoption from six months to more than three years, participated on this study. Semi-structured interviews and focal groups were used in the collect data. Results revealed a preference for babies; concerns regarding genetic inheritance; and anxiety towards the disclosure and the perception of failure concerning parenting, if children desire to look for the biologic parents, confirming such failure. The couples identified a need for support during the waiting moment and after adoption, enabling the expression of their anxiety and orientation. Thus, there is a need to create such spaces, in order to favor the adoption process.

Keywords: Adoption, Parent-child relations, Family, Prejudice, Support.


RESUMEN

La espera por un nino en el proceso de adopción esta impregnada de sentimientos intensos y expectativas sobre el futuro. Este estudio tuvo como objetivo conocer la percepción de los adoptantes acerca de la adopción, mediante la investigación de los aspectos macrossistemicos de los adoptantes parejas. Participaron del estudio cuatro parejas habiles para la adopción, con un tiempo de espera de seis meses hasta más de tres anos. Se realizaron entrevistas semi-estructurada y grupos focales. Los resultados indicaron una preferencia por bebes, preocupación con la carga genética, ansiedad frente al momento de la revelación y la percepción de fracaso de las parejas en caso de que los hijos adoptivos quisieran buscar a sus padres biológicos, confirmándose la idea de que se habían equivocado. Las parejas también identificaron la necesidad de apoyo durante la espera y después de la adopción, para que estas angustias puedan ser expresadas y ellos puedan ser orientados. Así, se torna necesario la creación de estos espacios, favoreciendo el importante proceso de adopción.

Palabras clave: Adopción, Relaciones padres-hijo, Família, Prejuicio, Apoyo.


 

 

Introdução

A adoção e um tema tão especulado e repleto de sentidos e fantasias que muitas vezes se torna difícil recuar o suficiente para tomá-lo como objeto de analise. Esse tema estimula a imaginação das pessoas, suscitando ao mesmo tempo a imagem de bebês indo risonhos para os braços de algum casal repleto de bondade, e, no extremo oposto, imaginam-se pessoas vendendo crianças (FONSECA, 2002).

Os estudos referentes à adoção aumentam a cada ano, porém, no Brasil, as pesquisas ainda não são suficientes para sanar os diversos questionamentos que se inserem na compreensão dos aspectos psicológicos envolvidos no processo da adoção (BENTO, 2008; REPPOLD; HUTZ, 2002; SONEGO; LOPES, 2009). A carência de pesquisas que visam à adoção na perspectiva dos adotantes (COSTA; CAMPOS, 2003; PETTA; STEED, 2005; WEBER, 2004a) e o aumento da infertilidade na população mundial (FARINATI; RIGONI; MÜLLER, 2006; WEBER, 2008b), visto que as adoções tendem a aumentar com o aumento da infertilidade, reiteram a importância desta pesquisa.

O modo como a adoção é tratada nas diferentes culturas e nos diferentes momentos históricos varia de acordo com inúmeros aspectos sociais, como configuração familiar, sexualidade, nível socioeconômico, fertilidade e reprodução (PETTA; STEED, 2005). As investigações antropológicas relatam que, em algumas culturas, a adoção é considerada prática social comum e não está relacionada aos matrimônios sem filhos. Nessas sociedades, os laços familiares são ditados pela cultura e têm muito pouco a ver com os laços de sangue (PAIVA, 2004). Na cultura ocidental, o parentesco biológico é visto como superior e real, ao passo que o parentesco adotivo é considerado fictício e irreal (MODELL, 1997). Esse aspecto é refletido na leis, que privilegiavam os filhos biológicos em detrimento dos adotivos. No Brasil, somente com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (BRASIL, 1990), os filhos adotivos passaram a ter os mesmos direitos e deveres dos filhos biológicos (WEBER, 2004a).

A adoção constitui-se em uma das formas de colocação de crianças e/ou adolescentes em uma família substituta, pressupondo a perda do poder familiar pelos pais biológicos e a aquisição de um novo vínculo de filiação pela criança (MARIANO; ROSSETTI-FERREIRA, 2008). Alguns desses jovens estão em acolhimento institucional, por terem vivenciado ameaça ou violação de seus direitos fundamentais, outros são entregues para a adoção por suas mães sem que haja a presença de fatores de risco. Além disso, a adoção vem como uma das possibilidades de efetivar o direito fundamental a convivência familiar e comunitária de toda criança e adolescente, preconizado pelo capítulo III do ECA (BRASIL, 1990). Nesse sentido, observa-se um movimento social de busca pela proteção de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, reconhecendo-os como sujeitos de direitos em situação de desenvolvimento. Assim, o ECA (BRASIL, 1990) construiu uma maneira de promover a adoção na qual o interesse maior deve ser o da criança, visto que o foco e encontrar pais para crianças destituídas da convivência familiar (WEBER, 2008a).

Em agosto de 2009, foi promulgada a Lei nº 12.010, conhecida como a “Nova Lei de Adoção”, a qual busca aperfeiçoar os mecanismos de promoção e garantia do direito fundamental à convivência familiar e comunitária, à medida que preconiza acompanhamento psicológico e acolhimento judicial das gestantes ou mães que manifestem o desejo de entregar seu filho para a adoção. Para as crianças que já se encontram afastadas das famílias de origem, em casas de acolhimento e instituições de abrigo, essa lei determina que avaliações periódicas (seis meses) devam ser realizadas para que seja verificada a possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta. Além disso, nenhuma criança ou adolecente deverá permanecer institucionalizado por mais de dois anos, salvo comprovada necessidade (BRASIL, 1990, art. 19). Essas determinações influenciarão e promoverão os processos de adoção, visto que objetivam promover a garantia do direito à convivência familiar e comunitária.

No que tange ao processo de candidatura a adoção, a legislação brasileira habilita qualquer pessoa maior de 21 anos, independentemente do estado civil, a adotar um filho, respeitando uma diferença mínima de 16 anos entre adotante e adotado e ausência de parentesco, devendo o candidato a adoção se submeter a um parecer técnico e/ou do juiz (BRASIL, 1990). Os candidatos passam inicialmente por uma triagem realizada por um assistente social, na qual recebem todas as informações e orientações necessárias ao cadastramento. Nessa ocasião, eles também preenchem uma ficha de inscrição tanto com seus dados de identificação, como nome, estado civil, nível de escolaridade, profissão, situação econômica, entre outros dados, quanto com as características da criança que desejam adotar, escolhendo sexo, faixa etária e características físicas (PAIVA, 2004; WEBER, 2004b). Após esse procedimento, inicia-se o processo de espera pela criança.

A espera pelo filho adotivo é longa e difícil em muitos casos. Ainda que os candidatos saibam que estão em uma lista oficial de espera e que serão chamados assim que a criança estiver disponível à adoção, a sensação de muitos candidatos é de que nada está acontecendo (REPPOLD et al., 2005). O relato dos candidatos à adoção revela fantasias e receio de serem passados para trás ou esquecidos. Esse aspecto ressalta a importância de disponibilizar acompanhamento e apoio durante a espera (REPPOLD et al., 2005).

Quanto às mães que entregam um filho para a adoção, o estudo de Mariano e Rossetti-Ferreira (2008) apontou que são advindas de classes populares, e o motivo mais frequente para a entrega do filho e a ausência de condições materiais para a sua criação. O estudo demonstra ainda que a falta de dados sobre as famílias biológicas nos processos judiciais impede uma melhor compreensão das características e da dinância dessas famílias (MARIANO; ROSSETTI-FERREIRA, 2008).

Já no que tange às famílias adotantes, a literatura brasileira tem sido incisiva ao destacar a carência de estudos que partam do ponto de vista dos casais adotantes, visto que as pesquisas ainda focalizam as percepções e os sentimentos dos filhos adotados (COSTA; CAMPOS, 2003; WEBER, 2004a; SONEGO; LOPES, 2009). Preparar-se para ter um filho, seja ele biológico ou adotivo, exige uma reflexão sobre os riscos, desejos, medos, motivações e expectativas. Necessita que os pais estejam cientes dos próprios limites e possibilidades (WEBER, 2004a). Nesse sentido, Scorsolin-Comin, Amato e Santos (2006) afirmam que, para ter sucesso como pais, tanto biológicos quanto adotivos, e necessário elaborar uma série de fantasias, crenças, valores, desejos e expectativas com relação à parentalidade.

A literatura indica a existência de um fenômeno chamado "gestação adotiva", vivenciado pelos pais adotantes durante o momento de espera pelo filho adotivo (REPPOLD et al., 2005). A "gestação adotiva" e singular, longa e sutil, por não ocorrer mudanças no corpo da mulher, não ser visível aos olhos dos outros, e por isso mais simbólica do que uma gravidez biológica, suscitando, em consequencia dessas peculiaridades, mais angústias e fragilidades. Muitas vezes, o percurso dos candidatos por diferentes comarcas e uma forma de enfrentar a ansiedade da espera, que e difícil de ser compreendida pelos parentes e amigos. E importante destacar que essa gestação não tem tempo determinado para se concretizar, podendo durar de meses a anos (REPPOLD et al., 2005). Dessa forma, o processo de construção da parentalidade, para os pais adotantes, reflete-se na maneira como irão encarar sua nova família: se reproduzirão o modelo de família biológica, por meio de um processo de identificação com a criança calçado na busca de semelhanças físicas e da negação da origem do filho adotivo, ou se outras soluções serão encontradas para inserir a criança no imaginário parental.

Os pais adotivos passam por um processo de construção e internalização da identidade de pais e do direito de exercer a parentalidade de seu filho adotivo (PETTA; STEED, 2005). Esse processo pode ser dificultado em decorrência de muitos fatores, como o sentimento de competição com os pais biológicos, sentimento de estar sob ameaça, de ser julgado por outras pessoas em seu papel de pais, como por outros pais e pelos pais biológicos do filho, e o sentimento de buscar incessantemente a conexão/vínculo afetivo com o filho adotivo. Essas observações demonstram a complexidade do fenômeno da adoção, o que confirma a necessidade do desenvolvimento de mais estudos que abordem esse tema, a fim de contribuir para seu melhor manejo tanto pelos pais adotivos quanto pelos filhos adotivos e pela sociedade. Com base na teoria bioecológica do desenvolvimento humano – TBDH (BRONFENBRENNER, 2004; BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998), o objetivo deste estudo foi conhecer a percepção dos adotantes, já habilitados para a adoção e que estão vivenciando o momento de espera pelo filho, acerca da adoção, por meio da investigação de aspectos do macrossistema dos casais adotantes, como as concepções sociais, expectativas e fantasias que permeiam a adoção. Para a TBDH, o mundo social de um indivíduo é composto tanto de sistemas ou contextos de relações diretas e indiretas quanto do macrossistema, que é o sistema mais amplo, abrangendo os valores, as ideologias, o estilo de vida e a organização das instituições sociais comuns a uma determinada cultura (BRONFENBRENNER, 1979).

 

Método

Delineamento e participantes

Participaram desta pesquisa qualitativa quatro casais, com idades entre 31 e 50 anos, que se encontravam na lista de espera para adoção. Como critérios de inclusão, utilizaram-se a configuração familiar (família nuclear) e o fato de os casais estarem habilitados para a adoção, segundo avaliação e decisão deferida pelo Juizado da Infância e Juventude. Os casais participantes do estudo serão chamados de C1 (casal 1) e H1 (participante masculino do casal 1), por exemplo, a fim de preservar a identidades deles.

Instrumentos

Entrevistas semiestruturadas foram realizadas com os casais com objetivo de coletar dados biossociodemograficos, como idade, escolaridade, ocupação profissional, entre outros. Além disso, investigou-se o motivo da busca pela adoção. A coleta de dados também foi realizada por meio de grupos focais, denominados também grupos de discussão, cujos participantes, incentivados pelo moderador, conversam sobre o objeto de interesse, trocam experiências e expõem ideias, sentimentos, valores, dificuldades e soluções (MICHEL, 2005). A técnica de grupos focais possibilita que os participantes levem em consideração o ponto de vista dos outros na formulação de suas respostas e comentem suas próprias experiências e as dos outros (GASKELL, 2005). Dois temas conduziram os grupos focais: 1. as expectativas quanto a adoção e 2. as concepções sociais/preconceitos presentes. Com base nesses dois focos temáticos, os casais expuseram suas percepções e opiniões de forma livre, interagiram entre si e geraram outros temas espontaneamente.

Procedimentos e considerações éticas

Primeiramente, um contato com o Juizado da Infância e da Juventude foi realizado para a apresentação do projeto de pesquisa e obtenção da autorização prévia para ter acesso ao cadastro dos adotantes em fila de espera, o qual e sigiloso. Após a autorização do Juizado, o projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de ensino superior (IES) de origem dos pesquisadores. Um contato com profissionais responsáveis pelos casais já habilitados para a adoção, presentes na fila de espera dessa comarca, foi realizado, sendo liberada a lista para a equipe de pesquisa fazer o contato e o convite aos casais. Assim, fez-se um contato telefônico com cerca de 30 casais, de acordo com a ordem da lista, por meio do qual foi apresentado o projeto e averiguado o interesse e a disponibilidade de cada um para participar da pesquisa. Com o aceite de cinco casais, cessaram-se as ligações. Os casais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecimento após terem compreendido todas as informações sobre a pesquisa e ter sido garantido o direito à confidencialidade dos dados, ao sigilo de suas identidades e à possibilidade de retirar seu consentimento em qualquer momento, sem que houvesse qualquer prejuízo para o participante. Contudo, os três encontros de grupo ocorreram com quatro casais adotantes, em decorrência da desistência de um casal, que não compareceu aos grupos focais. A coleta de dados foi realizada em uma sala do laboratório de práticas psicológicas da IES, com duração média de 1 hora e 15 minutos. As entrevistas e os grupos focais foram gravados e posteriormente transcritos para análise dos dados.

Análise dos dados

Os dados da entrevista e dos grupos focais foram analisados qualitativamente, por meio de uma análise de conteúdo (BARDIN, 1977), com base na teoria bioecológica do desenvolvimento humano (BRONFENBRENNER, 2004; BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998). Após a conclusão das transcrições dos encontros, procedeu-se à pré-analise, na qual se fez uma primeira escuta das gravações dos grupos focais, a fim de organizar e sistematizar algumas ideias iniciais. A seguir, a exploração do material foi realizada para agrupar conteúdos, considerando tanto a recorrência do conteúdo quanto a intensidade. E por fim, a codificação dos dados permitiu o tratamento dos resultados, ou seja, a interpretação. E por meio dessa etapa que os resultados brutos tomam sentido e são validados (BARDIN, 1977). Assim, as falas foram elencadas e agrupadas em categorias de análise. Sem dúvida, os dados coletados refletem a situação atual dos casais, ou seja, o momento de espera pela criança adotiva. Esses dados possivelmente seriam diferentes caso os casais estivessem em avaliação para o cadastramento ou em estágio de convivência. Estabeleceram-se as seguintes categorias:

Características da criança: incluiu as ideias relacionadas às características da criança que possibilitariam à vinculação do casal.

Família biológica: contemplou a percepção dos adotantes sobre família biológica, herança genética e formas de lidar com os questionamentos ligados a família biológica e a possibilidade de o filho querer conhecê-la.

Revelação: incluiu informações sobre os sentimentos e as emoções negativos associados ao momento de contar para o filho sobre a adoção.

Apoio externo: incluiu dados sobre a necessidade de orientação e ajuda durante o processo de espera e para o manejo de situações como a da revelação.

 

Resultados e discussão

As características dos casais adotantes são apresentadas no Quadro 1.

 

 

É possível constatar a elevada escolaridade dos participantes do estudo, tendo completado, pelo menos, o ensino médio. Além disso, observa-se também um elevado tempo de espera, que variou de seis meses a mais de três anos. Esse dado pode estar relacionado ao fato de haver poucas crianças aptas para adoção, apesar de existirem mais de 20.000 crianças em acolhimentos institucionais (SILVA, 2004). Entretanto, sabe-se que algumas características desejadas pelos pais dificultam a adoção. Não são raros os casos em que os adotantes desejam um bebê saudável, de pele clara e olhos azuis, o que não condiz com a realidade das crianças que estão em condições de adoção, visto que não são mais bebês, em parte são de pele escura ou portadores de necessidades especiais ou do vírus HIV (NOAL; NEIVA.SILVA, 2007). Tais aspectos podem prolongar ainda mais a espera pela criança.

Características da criança

No momento do cadastramento, os candidatos à adoção devem manifestar as características da criança que desejam adotar. Segundo os casais, essas características possibilitam a vinculação entre os pais adotantes e a criança. Quanto ao processo de escolha das características do bebê, a participante do casal 3 disse:

Eu acho que uma criança de 0 a 1 ano, tu molda [...] e uma criança branca, porque, desde o início ela vai sabe que ela foi adotada, só que criança na escola, criança é muito cruel, ela sabe que ela é adotada e ainda chega um pra ela e diz: “Tu nem da cor do teu pai tu não é”, então mais um motivo pra ela se revoltá, pra ela sê apontada na rua, então pra que que eu vô expor essa criança a essa situação (M3).

 

A preferência por recém-nascidos pode se dar pela necessidade de adotar uma criança que pode ser moldada, "sem história", para que essa história comece a partir do momento da adoção e exclusivamente a partir dos pais adotivos. Dessa forma, a criança ficaria o mais parecida possível com seus novos pais, não aparentando ser um filho por adoção, aliviando de certa maneira a frustração ante a impossibilidade de gerar um filho.

Outro motivo atribuído pelos casais a escolha por recém-nascidos estava relacionado ao desejo de vivenciar a etapa de desenvolvimento inicial da criança, na qual os pais podem fazer a higiene do bebê, trocar fraldas, alimentá-lo, acolhê-lo no meio da noite, entre outros momentos. Com base em diversas pesquisas, descobriu-se que os adultos consideram os traços dos rostos infantis mais bonitinhos que os de crianças de 2, 3 e 4 anos (SHAFFER, 2005). Assim, feições de bebê ajudam a adquirir atenção positiva, promovendo o apego social. Além das feições, muitas das respostas inatas como reflexos de sucção, de agarrar, de sorrir, de balbuciar e de rotação levam os pais a sentirem-se amados pelo bebê. Um bebê sorridente ou que balbucia reforça as atividades de seus cuidadores, aumentando a probabilidade de ganhar atenção e proporcionar a satisfação de seus cuidadores (SHAFFER, 2005).

A preferência por crianças com características físicas semelhantes às da família adotiva não foi encontrada na fala de alguns dos participantes. Um dos casais mencionou que não era necessário que a criança se parecesse com eles, não considerando esse aspecto relevante. Eles afirmaram que queriam um filho, uma criança para amar, para cuidar, para fazer parte da vida deles. Para eles, o amor independia das características físicas dessa criança, como pode ser visto a seguir:

Na hora de preencher aquela parte das características, nós deixamos tudo em branco [...] simplesmente decidimos não escolher, né?, a cor, o cabelo, os olhos, sexo, não era relevante, é relevante pra gente não se importar com isso, isso demonstra que a gente tá querendo amor, não tá querendo um corpo. Criança não é geladeira, nós não estamos comprando, pedi cor, marca, a única coisa pedida foi a idade, nenê, porque a gente gosta, quer curtir toda aquela fase, sabe? (H1).

 

Pode-se inferir dessa fala que o casal não buscava um perfil específico, estava disposto a aceitar as diferenças inerentes dessa forma de filiação. Pesquisas realizadas por Weber (2008a) apontam que muitas pessoas adotam crianças pelas mesmas razões que tem filhos biológicos, por quererem uma família, uma criança, a quem dar amor e carinho.

Família biológica

O primeiro aspecto trazido sobre a família biológica pelos pais adotantes foi a dificuldade de compreender como uma mãe pode entregar um filho para a adoção. Ficou evidente, nas falas dos participantes, a concepção social de que o amor materno é inato e incondicional, que a mulher que gera um filho o amará sem nenhum tipo de questionamento ou dúvida. Eles afirmaram não compreender como uma mãe abandona seu filho. As falas apresentadas a seguir ilustram tal aspecto:

Uma mãe ou os pais entregarem essa criança é uma situação difícil, sempre é difícil, ninguém em sã consciência entregaria uma pessoa gerada de si e ficaria bem com isso, haverá sempre um contexto que culminou naquele ato de entrega (H3).

Por ser entregue pra adoção já é um sinal. Já, é meio, parece que rejeitada, isso aí às vezes que eu me preocupo. A gente sabe que a partir dali a gente que vai, né?, vai tê que trabalhá em cima disso (M2).

 

Essa concepção está baseada na ideologia da maternidade nascida com base nos princípios da sociedade burguesa e patriarcal, ainda vivenciada nos dias atuais, conferindo a todas as mulheres a “faculdade de amar sem restrições e de cuidar da criança que concebeu sob quaisquer condições” (MOTTA, 2008, p. 63). As mães que não apresentam esse desejo ou necessidade são consideradas anormais e tratadas de maneira pejorativa por um social permeado desse mito do amor materno. Concepção que auxilia no sentido de ver a criança como rejeitada, visto que não se admite uma mãe não desejar e amar seu próprio filho.

Outro aspecto observado na fala dos participantes foi a preocupação com a bagagem genética que as crianças adotivas carregam, advinda dos pais biológicos. Por mais que esses casais demonstrassem desejar um filho, tenham contado a todos os amigos e familiares sobre a adoção, demonstraram receio quanto a carga genética trazida pelas crianças adotivas. Questionaram-se sobre o que essa criança já ira trazer (herdar) dos seus pais, quem são esses pais, que carga genética ela trará consigo, entre outras questões. Os depoimentos a seguir demonstram essa constatação:

O caso das pessoa que às vezes se prostitui, se droga, pessoas que às vezes por alguma doença, então essa criança de repente tem toda essa carga do que que ela vai trazer consigo, né?, na sua formação, na sua personalidade, o que ela traz no próprio DNA que ela carrega (H3).

Porque hoje o mundo tá muito sabe cheio de, é droga, é tudo que é coisa ruim, né?, então a gente sabe assim, que a gente vai pegá um, né?, a gente pede a Deus todos os dias, a gente reza junto pra que saísse de um ventre de uma mãe, que fosse uma preparação assim, mas claro que eu sei que não, né? (M2).

 

Essas falas demonstram os medos e as incertezas da carga genética trazida pelos filhos adotivos. Como a herança genética do filho adotivo é diferente da de seus pais, muitos ainda carregam o pressuposto de que o bom gene é sempre o seu e de que quanto ao dos outros caberiam suspeitas e dúvidas (SCHETTINI, AMAZONAS, DIAS, 2006).

A preocupação com a herança genética, além disso, poderia levar a dificuldades no processo de criação e educação dos filhos. Os casais apresentaram preocupação quanto ao passado da criança, sobre como isso irá se refletir, como irá aparecer nessa criança, mas se demonstraram disponíveis a aprender a lidar com essas questões, mesmo dizendo que esse era “o ônus extra”, como se de fato fosse um peso com que eles terão que conviver. Relacionamentos são processos delicados e repletos de pequenos entraves. Relacionamentos entre pais e filhos, tanto biológicos quanto adotivos, não fogem dessa regra. A ideia de que a perda inicial dos pais vivenciada pela criança é irreparável, o que é constantemente divulgado pela mídia e acatado pelo senso comum, constrói representações errôneas e limitadas sobre adoção (WEBER, 2008a).

Contrapondo essa concepção, há ainda, na fala de alguns dos casais, a conscientização de que essa criança tem um passado e que isso precisa ser trabalhado e não esquecido, até mesmo agradecendo a essa mãe que deu seu filho para adoção, pois sem ela não haveria a possibilidade de eles terem adotado. Há uma conscientização de que não há um lado sem o outro, e que por isso ambos merecem reflexão por parte deles e mesmo um certo respeito por essa atitude tomada.

Eu assim, na minha intimidade, sempre rezo pra mãe biológia dele, que Deus cuide dela [...] e agradeço também por ela ter dado ele, porque, se não houvesse isso, aí nós não teríamos ele, e a gente ama tanto ele, né? [...] ela fez isso, mas é em função disso que eu tenho ele (M1).

 

Segundo Weber (2008a), na adoção, é essencial não esquecer a condição peculiar da criança, nem negar ao adotado a história de suas origens. A família adotiva possui uma essência igual à família biológica, mas suas características são distintas e não devem ser perdidas. Ter o mesmo sangue não garante o amor e a boa relação entre os indivíduos de uma mesma família, esses laços são construídos na relação, na convivência e na disposição de todos os envolvidos.

Quanto ao desejo de conhecer a família biológica, ficou evidente, na fala dos participantes, toda a insegurança ante a possibilidade de seus filhos decidirem conhecer a sua família de origem, salientando a insegurança perante os laços com esse filho.

Ela vai ter todo o direito de saber e depois de uma certa idade não tem quem segure, né? É que nem um passarinho preso na gaiola, solta, se ele voltá, é porque é seu, se não, é porque nunca foi [...]. Tenho certeza que todos aqueles anos, todo aquele afeto, todo aquele amor que ela recebeu, aquilo ali com certeza ela vai saber retribuir aquilo ali, e colocar as coisas no devido lugar (H3).

 

A literatura afirma que talvez o maior medo que os pais adotivos tenham em relação à família de origem é perder o filho para os pais biológicos e que o filho pense que eles não o amam de verdade (PETTA; STEED, 2005; WEBER, 2008a). Tendo em vista que geralmente a família de origem é de classe econômica inferior, podendo estar inserida em uma situação de vulnerabilidade social, os pais adotantes preferem desconhecer a história dos filhos, pois as origens da criança lhes tirariam o domínio completo sobre a construção de identidade do filho.

Na fala dos participantes, ficou ainda clara a fantasia de que se os filhos adotivos desejam conhecer os pais biológicos é porque eles cometeram algo de errado ou mesmo agiram com a criança de maneira não tão satisfatória, deixando “a desejar” na sua criação. Tal aspecto pode ser verificado na fala da participante feminina do casal 3:

Eu acho que a sensação que vai dá [...] a sensação que eu ia sentir no momento, de será que faltô alguma coisa, será que eu não fiz tudo, será que não tá bom assim. Essa é a sensação que eu vô senti na hora [...] o impacto inicial é esse [...] eu vou pensa assim: “Meu Deus, por que será?. Ela não tá feliz aqui, não gosta de mim?”, eu me sentiria fracassada (M3).

 

A possibilidade de o filho adotivo querer conhecer a família biológica representa para os casais o fracasso no papel de pais. De acordo com a literatura especializada, a adoção e muitas vezes encarada como algo errado, como se os adotantes tivessem cometido um crime, o que gera sentimentos de culpa e medo de represálias, como o medo de perder a criança ou de que esta resolva abandoná-los e queira ficar com os pais biológicos (PASSMORE; CHIPUER, 2009; PETTA; STEED, 2005; SCORSOLIN-COMIN; AMATO; SANTOS, 2006; TIEMAN; VAN DER ENDE; VERHULST, 2008). No entanto, mesmo que esteja por dentro sofrendo com o medo de perder o filho e com as fantasias de que falhou, a família adotiva acompanha e apóia o processo de busca de seus filhos pelos pais biológicos (MODELL, 1997; PASSMORE; CHIPUER, 2009).

A fala dos casais participantes apontou ainda a fantasia de que as relações de sangue são mais fortes e melhores do que a relação construída na convivência e a impotência desta ante o vínculo de sangue. Os adotantes demonstraram saber que chegará um momento em que eles terão que enfrentar esse aspecto da revelação e demonstraram insegurança diante do vínculo que irão estabelecer com o filho, relatando a crença da fragilidade deste ante as relações de sangue.

Isso aí vai ser um julgamento, né?, um gesto pode representar um julgamento de uma vida [...] será que eu fui bom pai? Será que eu fui boa mãe? Dei uma boa família? E a gente não sabe o que vai acontecer [...] Essa avaliação, é vou querer conhecer ou não, não quero, fiz bem; quero, quero demais, bem onde eu errei. Como eu vou estar lá, eu não sei, mas na verdade ninguém gosta de ser avaliado (H1).

 

A curiosidade de seus filhos pela família de origem foi percebida como uma avaliação, na qual se a criança quiser conhecer esses, estará dizendo que seus pais adotivos não foram suficientemente bons, que foram falhos. Essa concepção está alicerçada na ideia de que os laços de sangue são fortes, poderosos, indissolúveis e “verdadeiros” (MODELL, 1997; PETTA; STEED, 2005; SCHETTINI; AMAZONAS; DIAS, 2006). É comum os pais adotivos alimentarem a fantasia de que seus filhos adotados, impulsionados pela força dos laços sanguíneos, os abandonarão e partirão em busca dos seus pais verdadeiros, temendo que os laços de sangue irão determinar a preferência pelos pais biológicos (SCHETTINI; AMAZONAS; DIAS, 2006).

Revelação

Os casais mencionaram o quanto será difícil o momento da revelação, ou seja, o momento em que contarão para o filho que ele e adotado. Não contar não e mais uma opção para esses casais, visto que acreditam que esconder essa informação e pior do que revelar, que a mentira torna tudo mais difícil, tanto para os casais quanto para a criança. No entanto, a tarefa da revelação causa angústia e medo, trazendo questionamentos sobre a melhor maneira de fazê-lo, com que idade a criança deve estar, se há uma idade certa ou melhor para a revelação, entre outros.

Eu penso muito sobre esse detalhe, sobre a hora de contar, quando? Porque pra mim é uma coisa que não existe a possibilidade de não contar [...] então tem que ser uma coisa trabalhada. Então, isso eu me preocupo, no momento de contar a verdade, eu acredito que pessoas que têm filho adotivo e pensam em não contar têm medo assim da rejeição da criança [...] sou a favor de contar bem cedo sabe, começa aos pouquinhos (M3).

 

Contar à criança sobre a adoção talvez possa ser o tema mais sensível e perturbador para alguns pais adotivos. Enquanto alguns buscam por orientação para lidar com essa questão, outros a temem como se representasse um grande fantasma, por meio do qual conflitos reprimidos vêm à tona com efeitos desastrosos (LEVINZON, 2004).

Outra questão apontada por esses casais foi a concepção de que o sentimento da criança por eles irá mudar após a revelação, que a criança terá que elaborar que a pessoa que ela pensava ser seu pai não é, “é pai, mas pai diferente”. Para eles, essa revelação causa um trauma em seus filhos, sendo muito difícil para a criança entender que não é filho de sangue, mas que eles o veem como filho de verdade. A criança sofrerá com a revelação, como pode ser observar na fala do participante masculino do casal 3:

A criança já vai crescendo com aquela ideia de pai, mãe, filha [...] aí de repente toda aquela situação que foi criada, ela tem que colocar numa nova situação [...] o momento e a forma de tu fazê uma criança entende isso [...] tem que ter uma sensibilidade muito grande pra que não cause um mal maior pra criança, um trauma (H3).

 

Evidenciam-se, no trecho, os conflitos internos que podem ser a questão da infertilidade, a existência dos pais biológicos, os temores quanto a solidez dos vínculos, entre outros (PETTA; STEED, 2005). Os casais que ainda não elaboraram essas fantasias sentem que falar da origem de seu filho retoma sentimentos dolorosos e também coloca em dúvida seu lugar de pais, a identidade da criança e seus próprios pápeis como pais. Tanta angústia e ansiedade podem ser pelo fato de que acreditam que quando a criança souber da adoção deixará de gostar deles. Na medida em que esses casais elaboram essas questões, a adoção pode passar a ser contada como qualquer história, não sendo mais encarada como uma revelação, mas como uma história vivida, que é construída no dia a dia à medida que acontece (SCHETTINI; AMAZONAS; DIAS, 2006).

Outra questão que ficou clara na fala dos participantes é a tarefa de explicar que os pais adotivos não têm culpa pela separação da criança de sua família biológica e, consequentemente, pela adoção. Parece existir um medo de que a criança adotada irá culpar os pais adotivos por essa separação, e certamente eles sofrerão com tal situação.

E aí um dia é o papai, aí tu chega um dia e diz: “Olha o papai, não é o papai, o papai é um outro tipo de papai”, e aí vai sofre, então sofre junto [...] a gente sofre junto de repente pelo fato de ter uma frustação, de algo que ninguém tem culpa, mas a gente não explica que não tem culpa pra uma criança, a gente sofre (H1).

 

Esse sentimento de culpa pode estar relacionado à “fantasia de roubo”, que frequentemente é encontrada em pais adotivos, que sentem como se estivessem furtado a criança e que a qualquer momento alguém virá reclamar a sua posse. Essa sensação de parentalidade ilícita influenciará todas as relações familiares, e esses pais podem desenvolver um medo extremo de perder a criança (LEVINZON, 2004).

Esse sentimento, constatado no discurso dos casais adotantes, faz-se presente pela concepção de a adoção para a sociedade ocidental ainda hoje estar atrelada a ideia de não ser algo natural, real. Esse sentimento aumenta a dificuldade em contar para a criança sobre a adoção, pois os pais estarão admitindo algo que não é certo, e, por isso, a criança deixara de amá-los, revivendo o medo de que os pais biológicos venham tomá-la para si.

Apoio externo

Os participantes do estudo mencionaram a importância e a necessidade de os pais adotantes receberem apoio e orientação durante a espera pelo filho e após a adoção. Eles reiteraram a necessidade de ajuda para enfrentarem as diversas situações relacionadas à adoção, como a ansiedade pela espera do filho e a tarefa da revelação. Demonstraram que o grupo é a melhor opção, sendo de responsabilidade dos Juizados da Infância e Juventude realizar grupos com os pais adotantes. Os encontros proporcionados por esta pesquisa serviram para eles confirmarem a necessidade de momentos em que possam expressar suas angústias e dúvidas, trocar ideias e perceber que não estão sozinhos nessa trajetória, como pode ser visto a seguir:

Eu acho, como tava comentando com vocês, que é papel do Fórum fazê grupos, não obrigatórios, mas assim como tu fez, ligar convidando, e aí fazê grupos pequenos, também porque se junta muita gente não vai dá, eu acho que faz bem, e seria papel do Fórum em ajuda os casais que estão na fila (H3).

A troca de ideias é muito boa pra gente, é uma experiência muito rica [...] aqui é uma vivência que nem a nossa, uma coisa que a gente tá se preparando, né?, diminui mesmo essa ansiedade [...] essa troca que nós estamos fazendo aqui pra mim foi fantástica, chegava em casa e ficava pensando: aquela ideia... bem legal (M2).

 

Outro beneficio apontado pelos casais da participação em grupos com outros casais adotantes e a possibilidade de dividir sentimentos negativos e tristeza, vivenciados antes da decisão pela adoção. A maioria dos casais foi submetida a variados tipos de intervenções medicas para gerar um filho e passou por grandes expectativas pela gravidez e por sucessivos fracassos, levando a um desgaste emocional. O momento da fila de espera reaviva esses acontecimentos, pois novamente se criam expectativas. Contudo, compartilhar as experiências malsucedidas e a expectiva pela chegada do filho em grupo traz conforto psicológico, como pode-se observar neste depoimento:

A gente vem de anos e anos de pesquisa na parte médica e faz cirurgias, tratamentos e não resolve, isso aí tudo vai criando uma carga [...] A gente começa a conversa aqui e vem surgindo os assuntos e as impressões que cada um tem, as situações que cada um vive e isso de alguma forma nos faz sentir bem e pensar “não é só nós que estamos vivendo isso e não é motivo pra ninguém se desesperar”. Cria um certo alívio de toda essa carga que a gente já traz (H3).

 

A fala desse participante demonstrou que todos os procedimentos médicos, pelos quais eles passaram, geraram muito sofrimento. O grupo pode proporcionar a tomada de consciência de que mais pessoas têm problemas e conflitos como os que eles vivenciam. O grupo rompe com a sensação de ser o único, de estar sozinho nessas experiências tão geradoras de sofrimento. A sensação provocada e de alívio, melhora da autoestima e redução dos estigmas, um movimento muito relevante em grupos que os participantes compartilham das mesmas experiências (SCORSOLIN-COMIN; AMATO; SANTOS, 2006).

O grupo se coloca como um lugar de preparo, de diálogo, de alívio das tensões típicas desse momento de espera, questionando muitas de suas concepções. Os casais permitiram-se pensar em ideias novas, podendo a partir disso se conscientizar dos desafios específicos da adoção, e dos próprios desafios do ser pai e ser mãe. O que pode auxiliar para diminuir a idealização dessa criança, colocando-a em um lugar mais real, concreto, sentindo-se assim mais preparado e seguro para a chegada desse filho, diminuindo fantasias e expectativas que podem ser inapropriadas para a vinculação (LEVINZON, 2004). Dessa forma, e imprescindível que os futuros pais possam trabalhar essas questões e assimilar as especificidades do processo adotivo em espaços adequados, em que as diferenças possam ser elaboradas e, assim, integradas na constituição de sua identidade parental (SCHETTINI; AMAZONAS; DIAS, 2006).

 

Considerações finais

O presente estudo apresentou diversos aspectos relevantes do processo da adoção, do ponto de vista dos casais adotantes em fila de espera. Foram encontradas concepções sobre a escolha das características da criança, a família biológica, medo da herança genética, crença de que o laço de sangue é superior ao laço afetivo construído na adoção e medo do momento da revelação, entre outros aspectos. Todas essas concepções pertencem à dimensão macrossistema das famílias adotantes, pois a forma como eles pensam sobre a adoção e seus impasses refletem a forma de pensamento da sociedade, influenciando fortemente a vida tanto das crianças adotivas quanto dos pais biológicos e adotivos.

A espera pelo filho adotivo, que já e bastante desgastante, transforma-se em sofrimento para os casais, aumenta as fantasias referentes a adoção e a demora, e gera inúmeros questionamentos. Esse período de espera e uma fase de transição para a parentalidade, na qual os indivíduos ainda não são pais, mas também não são pais em espera como ocorre na gravidez. Nesse período, os candidatos podem ficar imaginando a criança, com base nas características que foram escolhidas no momento de seu cadastro no Fórum (WEBER, 2004b). O momento de idealização do filho e da relação que se dará com ele desencadeia sentimentos ambivalentes e ansiogênicos.

Apesar de a legislação (BRASIL, 1990, 2009) prever um trabalho de preparação, orientação e acompanhamento para as crianças e os adotantes durante todo o processo de adoção, constata-se que esse procedimento não ocorre efetivamente e que os casais, após passarem pela avaliação, ficam na fila de espera ate a chegada da criança, às vezes por muitos anos, sem nenhum tipo de acompanhamento. Este estudo demonstrou a necessidade de efetivar a legislação e criar espaços de acolhida dos sentimentos advindos do desgastante processo de adoção, para que os adotantes em fila de espera possam manifestar suas opiniões, trocar experiências e ouvir uns aos outros.

A experiência do grupo focal, por mais que tenha objetivado a realização da pesquisa, serviu como um espaço dessa natureza, possibilitando uma sensação de alívio das ansiedades decorrentes do momento que viviam os pais adotantes, o de fila de espera. Durante a realização dos grupos, existiram muitas trocas, muitas perguntas, muitas respostas e ainda muita compreensão, e muitos laços de amizade e apoio entre os participantes foram criados. O grupo e um lugar privilegiado para abordar importantes temas, como o da família biológica, auxiliando-os para o manejo desses aspectos junto aos filhos adotivos.

Além de grupos direcionados aos pais em fila de espera e pais adotantes, sugere-se a realização de um trabalho voltado à conscientização sobre a adoção junto a escolas, igrejas, hospitais, empresas, acolhimentos institucionais e Juizados da Infância e Juventude. As concepções errôneas presentes na sociedade sobre a adoção e as crianças adotivas somente geram mais fantasmas e preconceitos, e, por isso, precisam ser combatidas. Esse movimento social deve ser objetivo de todos os profissionais que trabalham com qualidade de vida e bem-estar, ou seja, todos os indivíduos sociais, podendo a psicologia estar inserida de forma ativa na construção de uma nova maneira de considerar a adoção. Somente por meio da desmistificação da adoção, as famílias poderão viver e conviver sem os impasses e os "fantasmas" da família biológica, da revelação, entre outros aspetos. Para tanto, devem-se trabalhar as concepções pessimistas, pejorativas e negativas, presentes no macrossistema.

Entre as limitações do estudo, podem-se citar o tamanho da amostra e o reduzido número de grupos focais. Pesquisas com pais adotantes são fundamentais para que aspectos relevantes sejam compreendidos, e, dessa forma, sugere-se que sejam realizadas pesquisas com amostras maiores. Além disso, um número maior de encontros poderia ter possibilitado a emergência de outras questões. Também são fundamentais pesquisas que focalizem o microssistema, mesossistema e o exossistema das famílias envolvidas no processo da adoção, abrangendo todo ambiente ecológico proposto pela TBDH (BRONFENBRENNER, 1979, 2004; BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998). Essas pesquisas podem dar um suporte maior aos sujeitos que vivenciam o processo de adoção, possibilitar mudanças no macrossistema e desmistificar as ideias preconcebidas que circundam esse tema. Ainda, torna-se necessário focalizar o impacto da "Nova Lei da Adoção" (BRASIL, 2009), que deve influenciar os processos de adoção, seja apoiando e acompanhando a gestante que deseja entregar sua criança para adoção, seja promovendo reavaliação periódica das crianças e dos adolescentes que já se encontram em situação de acolhimento institucional, e limitando o tempo de afastamento familiar para dois anos. Muito ainda deve ser estudado e compreendido no fenômeno da adoção, especialmente no atual contexto da legislação brasileira.

É preciso lidar com a adoção de forma acolhedora e livre de prejulgamentos e preconceitos, assumindo as peculiaridades desse processo de filiação, o que não representa ilegitimidade e problemas. Os desafios da parentalidade estão presentes na educação de filhos adotivos e biológicos, e a forma de enfrentamento é fundamental para a criança e sua família, exigindo muitas vezes a disponibilidade de apoio externo. Assim, a sociedade deve tomar ciência de que toda criança tem o direito de pertencer a um núcleo familiar, ser acolhida, amada, confortada e educada por uma família, independentemente dos laços de sangue e de sua herança genética. Somente assim, será possível garantir às crianças e aos adolescentes sem famílias o direito à convivência familiar e comunitária.

 

Referências

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.         [ Links ]

BENTO, R. Família substituta: uma proposta de intervenção clínica na adoção tardia. Psicologia: teoria e prática, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 202-214, dez. 2008.         [ Links ]

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: Ministério da Saúde, 1990.         [ Links ]

______. Lei n. 12.010, de 3 de agosto. 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007.2010/2009/Lei/L12010.htm>. Acesso em: 9 mar. 2010.         [ Links ]

BRONFENBRENNER, U. A ecologia do desenvolvimento humano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1979.         [ Links ]

______. Making human beings human: biecological perspectives on human development. London: Sage, 2004.         [ Links ]

BRONFENBRENNER, U.; MORRIS, P. The ecology of developmental processes. In: DAMON, W. (Ed.). Handbook of child psychology. New York: John Wiley & Sons, 1998. p. 993-1027.         [ Links ]

COSTA, L. F.; CAMPOS, N. M. V. A avaliação psicossocial no contexto da adoção: vivência das famílias adotantes. Psicologia: teoria e pesquisa, Brasília, v. 19, n. 3, p. 221-230, 2003.         [ Links ]

FARINATI, D. M.; RIGONI, M. S.; MULLER, M. C. Infertilidade: um novo campo da psicologia da saúde. Estudos de Psicologia, Campinas, v. 23, n. 4, p. 433-439, 2006.         [ Links ]

FONSECA, C. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 2002.         [ Links ]

GASKELL, G. Entrevistas individuais e grupais. In BAUER M. W.; GASKELL, G. (Eds.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Editora Vozes. 2005.         [ Links ]

LEVINZON, G. K. Adoção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.         [ Links ]

MARIANO, F. N.; ROSSETTI-FERREIRA, M. C. Que perfil da família biológica e adotante, e da criança adotada revelam os processos judiciais? Psicologia: reflexão e crítica, Porto Alegre, v. 21, n. 1, p. 11-19, 2008.         [ Links ]

MICHEL, M. H. Metodologia e pesquisa científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 2005.         [ Links ]

MODELL, J. Where do we go next? Long-term reunion relationships between adoptees and birth parents. Marriage & Family Review, Kansas, v. 25, n. 1, p. 43-66, 1997.         [ Links ]

MOTTA, M. A. P. Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção. São Paulo: Cortez, 2008.         [ Links ]

NOAL, J.; NEIVA-SILVA, L. Adoção, adoção tardia e apadrinhamento afetivo: intervenções em relação a crianças e adolescentes. In: HUTZ, C. S. (Org.). Prevenção e intervenção em situações de risco e vulnerabilidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. p. 7-48.         [ Links ]

PAIVA, L. D. de. Adoção: significados e possibilidades. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.         [ Links ]

PASSMORE, N. L.; CHIPUER, H. M. Female adoptees' perceptions of contact with their birth fathers: satisfactions and dissatisfactions with the process. American Journal of Orthopsychiatry, New York, v. 79, n. 1, p. 93-102, 2009.         [ Links ]

PETTA, G. A.; STEED, L. The experience of adoptive parents and adoption reunion relationships: a qualitative study. American Journal of Orthopsychiatry, New York, v. 75, n. 2, p. 230-241, 2005.         [ Links ]

REPPOLD, C. T.; HUTZ, C. S. Adoção: fatores de risco e proteção a adaptação psicológica. In: HUTZ, C. S. (Org.). Situações de risco e vulnerabilidade na infância e na adolescência: aspectos teóricos e estratégias de intervenção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. p. 89-130.         [ Links ]

REPPOLD, C. T. et al. Aspectos práticos e teóricos da avaliação psicossocial para habilitação a adoção. In: HUTZ, C. S. (Org.). Violência e risco na infância e adolescência: pesquisa e intervenção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. p. 43-70.         [ Links ]

ROSA, D. B. da. A narratividade da experiência adotiva: fantasias que envolvem a adoção. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 97-110, 2008.         [ Links ]

SCHETTINI, S. S. M.; AMAZONAS, M. C. L. de; DIAS, C. M. S. B. Famílias adotivas: identidade e diferença. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 2, p. 285-293, 2006.         [ Links ]

SCORSOLIN-COMIN, F.; AMATO, L. M.; SANTOS, M. A. dos. Grupo de apoio para casais pretendentes a adoção: a espera compartilhada do futuro. Revista Spagesp, Ribeirão Preto, v. 7, n. 2, p. 40-50, 2006.         [ Links ]

SHAFFER, D. R. Psicologia do desenvolvimento: infância e adolescência. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.         [ Links ]

SILVA, E. R. O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. Brasília: Ipea, Conanda, 2004.         [ Links ]

SONEGO, J. C.; LOPES, R. C. S. A experiência da maternidade em mães adotivas. Aletheia: revista de psicologia, n. 29, p. 16-26, jan./jun. 2009.         [ Links ]

TIEMAN, W.; VAN DER ENDE, J.; VERHULST, F. Young adult international adoptees’ search for birth parents. Journal of Family Psychology, Washington, v. 22, n. 5, p. 678- 687, 2008.         [ Links ]

WEBER, L. N. D. Aspectos psicológicos da adoção. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2004a.         [ Links ]

______. O psicólogo e as práticas de adoção. In: BRANDÃO, E. P.; GONÇALVES, H. S. Psicologia jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: Nau, 2004b. p. 99-140.         [ Links ]

______. Laços de ternura: pesquisas e histórias de adoção. Curitiba: Juruá, 2008a.         [ Links ]

______. Pais e filhos por adoção no Brasil. Curitiba: Juruá, 2008b.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

Aline Cardoso Siqueira
Curso de Psicologia
Rua Silva Jardim, 1175, Rosário, conj. III, prédio 17,
7o andar (Secretaria das Ciências Humanas)
Santa Maria – RS
CEP 97010-491
e-mail: alinecsiq@gmail.com

Tramitação
Recebido em janeiro de 2009
Aceito em abril de 2010