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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.12 no.3 São Paulo mar. 2010

 

ARTIGO ORIGINAL

 

A articulação de saberes teóricos e práticos na análise e no desenvolvimento da atividade de cuidado

 

The articulation of theoretical and practical knowledge in analysis and development of activity of care

 

La articulación de los saberes teóricos y prácticos en el análisis y desarrollo de la actividad del cuidado

 

 

Marianna Araujo da Silva; Lia Raposo de Assis Martins; Claudia Osorio

Universidade Federal Fluminense

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem por objetivo apresentar os recursos metodológicos adotados na pesquisa Processo de trabalho em saúde: análise e desenvolvimento dos modos de fazer e de viver nas relações de cuidado, trazendo a experiência vivida pelos pesquisadores no campo empírico. Os recursos metodológicos adotados têm suporte nos conceitos da Clínica da Atividade e da Vigilância em Saúde do Trabalhador. Propõe-se que as atividades de análise do trabalho sejam discutidas, coordenadas e realizadas por um grupo ampliado de pesquisa, do qual participam tanto pesquisadores do meio acadêmico quanto profissionais do serviço em análise, propiciando a articulação de diferentes saberes. O objeto da pesquisa é a atividade de enfermagem no ambulatório do Hospital Universitário Antonio Pedro, vinculado à Universidade Federal Fluminense. Os resultados obtidos a partir da caracterização da equipe e observação da atividade em três setores deverão orientar a escolha de caminhos para os processos futuros da pesquisa.

Palavras-chave: Trabalho; Hospital; Enfermagem; Cuidado; Método.


ABSTRACT


This paper presents the methodological procedure adopted in the research Process of work in health: analysis and development of ways of doing and living in care relations, bringing the lived experience of researchers in the empirical field. The methodological procedures have its foundations on the concepts of Clinical Activity and Occupational Health. It is proposed that the activities of work analysis are discussed, coordinated and carried out by an expanded research group, which involved researchers from academia, and professional service in focus, providing a combination of different knowledges. The object of research is the activity of nursing at the Hospital Universitario Antonio Pedro, linked to the Federal Fluminense University. The results obtained from the characterization of the team and observation the activity in three sectors shall guide the future paths of research.

Keywords: Work; Hospital; Nursing; Care; Method.


RESUMEN

El objetivo de este trabajo es presentar el procedimiento metodológico adoptado en el Proceso de la investigación de trabajo en la salud: el análisis y desarrollo de maneras de hacer y vivir en las relaciones del cuidado, mostrando la experiencia que los investigadores han vivenciado en el (trabajo de campo empírico). Los procedimientos metodológicos utilizados son basados en los conceptos de la Clínica de Actividad y la Vigilancia de Salud en la Labor. Se propone que las actividades de análisis de este trabajo sean discutidas, coordinados y llevados a cabo por un grupo de la investigación extendido que involucre a investigadores de la academia y profesionales analistas del servicio, proporcionando una combinación de diferentes conocimientos. El objeto de investigación es la actividad de enfermeros en el Hospital Universitario Antonio Pedro, vinculado al Universidad Federal Fluminense. Los resultados obtenidos de la caracterización del equipo y la observación de la actividad en tres sectores deben conducir la opción de caminos a los procesos futuros de investigación.

Palabras clave: Cuidado; Trabajo; Enfermería; Grupo; Hospital.


 

 

Introdução

No presente artigo, são discutidas algumas questões geradas em um projeto de pesquisa que tem como objetivo produzir conhecimento sobre metodologias participativas de análise do processo de trabalho em saúde, enfocando seus efeitos no desenvolvimento da cooperação na equipe de assistência ao paciente internado. Seu objeto é o coletivo de trabalho no hospital público brasileiro, com foco na equipe de enfermagem, e seu campo empírico, um hospital universitário situado no Estado do Rio de Janeiro.

Nesta pesquisa, propõe-se, como dispositivo metodológico central, que as atividades sejam definidas, acompanhadas e em parte realizadas por um grupo ampliado de pesquisa, de que participam tanto pesquisadores quanto profissionais do serviço de saúde em análise, propiciando a contribuição de múltiplos saberes. O objeto deste artigo é esse método de pesquisa e seus desafios para os pesquisadores, discutidos a partir de uma experiência específica.

Essa proposta metodológica tem suporte em uma caixa de ferramentas composta por conceitos desenvolvidos pela Clínica da Atividade, bem como pela Vigilância em Saúde do Trabalhador desenvolvida no Brasil. A abordagem busca contemplar a análise dos processos de produção de subjetividade, por meio da análise do caminho que se faz do trabalho prescrito ao trabalho realizado, ou seja, pela análise da atividade como processo de permanente recriação dos modos de fazer e dos sentidos atribuídos ao trabalho.

Na linha teórica adotada, considera-se o sofrimento psíquico como efeito da atividade impedida (CLOT, 2006) dos trabalhadores. Nesse sentido, o desenvolvimento da atividade e dos recursos coletivos para a ação poderá ter influência positiva na transformação das formas de gestão do trabalho, tornando-o mais eficiente e mais satisfatório para os trabalhadores. Assim, desenvolver métodos participativos de análise do trabalho hospitalar poderá contribuir para a adoção de dispositivos de formação que favorecerão o desenvolvimento dos diversos coletivos que nele se constituem, seja por categoria profissional, por pertencimento a um dado serviço ou especialidade. Esse objetivo é ainda mais importante se nele se desenvolvem as propostas que constituem o Sistem Único de Saúde (OLIVEIRA et al., 2007). Este trabalho enfoca uma das categorias envolvidas no trabalho em saúde: a enfermagem, em seus diferentes níveis de formação teórico-técnica.

O projeto de pesquisa, já apresentado em suas linhas gerais, encontra-se em andamento. Neste artigo, é apresentado um recorte da pesquisa mencionada, em que se discute um dos aspectos da metodologia adotada: a produção de caminhos participativos de pesquisa. Espera-se que esse tipo de relato possa contribuir para o debate entre pesquisadores, trazendo à luz a “cozinha” da pesquisa, o lugar da produção de condições de possibilidade para o alcance dos objetivos propostos.

Método

Discutir-se-á inicialmente o objeto de estudo: trabalho que se define como atividade de cuidar. A seguir, será apresentado o dispositivo construído com o objetivo de permitir que o trabalhador seja parte ativa na análise de seu próprio trabalho.

A atividade de cuidar como objeto de pesquisa

A atividade-fim do hospital pode ser definida como cuidar de pessoas doentes, incluindo a atividade de tratar/cuidar, diretamente relacionadas aos doentes, e as demais que compõem necessariamente a rede de cuidado.

O trabalho é aqui entendido como um objeto tecido a cada situação, construído e reconstruído na atividade. Mais do que o trabalho, interessa o trabalhar, a atividade com seu movimento e singularidade. Na aproximação do trabalho como atividade, uma referência indispensável é a distinção que os ergonomistas franceses fazem entre trabalho prescrito e trabalho real. A dimensão vivida do trabalho é sempre uma (re)criação, uma novidade, não pode ser facilmente apreendida em palavras ou descrita previamente, mesmo levando em consideração o depoimento daqueles que trabalham (SCHWARTZ, 1993, p. 124). Entre a prescrição, ou a norma, e o que é realizado, há sempre um deslocamento. Nesse movimento, há negociações entre trabalhadores, entre hierarquias, entre trabalhador(es) e hierarquia(s), entre o trabalhador e si mesmo, e entre o trabalhador e seus instrumentos e objetos de trabalho. Os trabalhadores, considerados coletiva e individualmente, são capazes de inovações, de produzir suas próprias regras, não se limitando jamais a se submeter às já existentes; a negociação permanente da atividade continua a existir mesmo em situações de “trabalho dominado” (SELIGMANN-SILVA, 1994). Se isso é verdade mesmo nas atividades mais repetitivas, no hospital, onde a variabilidade é enorme (MERHY, 2002), esta vem a ser uma marca importante do trabalho.

Esse desenvolvimento, coletivo e singular, é o que sustenta, segundo Clot (2006), o sentido do trabalho para o trabalhador; é o que o insere no mundo, possibilitando seu encontro consigo mesmo e com o outro. Quando os limites são tantos que o desenvolvimento fica impedido, os custos psicológicos desse impedimento são altos: entra em cena o sofrimento psíquico.

A atividade de qualquer profissional do hospital está fortemente conectada com as atividades de outros (OSORIO DA SILVA , 1994). A atividade das enfermeiras, objeto desta pesquisa, interfere na atividade dos médicos, fisioterapeutas, nutricionistas etc. e sofre interferências dessas atividades. Há um trabalho permanente de fazer com que essas interferências mútuas se constituam como uma colaboração para a efetiva realização do trabalho.

O maior sofrimento psíquico entre enfermeiras advém não do contato constante com a angústia de pessoas doentes, ou mesmo com a morte, mas da falta de autonomia e poder e da desvalorização do trabalho de enfermagem que caracterizam as relações de trabalho no hospital (OSORIO DA SILVA , 1994; PITTA, 1990). Estryn-Behart e Poinsignon (1989) descrevem, do ponto de vista da ergonomia, as cargas de trabalho e suas consequências para esse grupo de trabalhadoras. Destacam que as mais difíceis de suportar são as provenientes das relações interprofissionais e da organização do trabalho.

Um aspecto importante do trabalho em saúde é a elevada proporção de mulheres, principalmente quando enfocamos a enfermagem. Embora a proporção de mulheres na categoria médica venha aumentando, ainda há, na linguagem comum do hospital, o hábito de referir-se aos médicos no masculino, e às enfermeiras, no feminino. Esse hábito faz referência não apenas à quantidade relativa de mulheres, mas também ao imaginário das profissões. O tratar – atividade qualificada – é reservado aos homens, e o cuidar, às mulheres. A enfermagem não é composta por mulheres por acaso. Há uma hierarquização
das relações (FONSECA, 1996; LOPES; LEAL, 2005).

Além do diálogo entre vários profissionais, na atividade de cuidar há também a participação daquele que é cuidado. O trabalho de cuidar de alguém envolve uma dimensão técnica, dos recursos e das habilidades necessários para a cura, mas envolve também uma dimensão relacional, de como lidar com cada paciente em suas singularidades (VIEIRA; SELIGMANN-SILVA ; ATHAYDE, 2004). A atividade da enfermagem também dialoga com a atividade dos usuários do serviço que, comparando o paciente do ambulatório ao paciente internado, escapam mais facilmente ao controle exercido pelo projeto terapêutico proposto pelo hospital.

A exigência de autonomia e flexibilidade que se observa atualmente no processo de trabalho hospitalar entra em choque com tradições de centralização e a hierarquização das decisões. Diante desse quadro, a reação que se observa predominantemente nas equipes de trabalho é de apatia (OSORIO DA SILVA, 2002; BARROS; BASTOS; MORI, 2006). Diversas pesquisas descrevem altas incidências de burnout nesse ambiente de trabalho (BORGES; ARGOLO; BAKER, 2006; MUROFUSE; ABRANCHES; NAPOLEÃO, 2005).

Nesta pesquisa, os sujeitos são os membros da equipe de enfermagem que atua no ambulatório do hospital. Suas tarefas não são as mesmas das enfermarias, mas também aí suas atividades estão fortemente conectadas com as atividades de outros grupos profissionais.

O dispositivo adotado na análise do trabalho como atividade: o grupo ampliado de pesquisa

Na aproximação do trabalho como experiência, a distinção entre trabalho prescrito e trabalho real é indispensável. O trabalho, entendido como enigma, desvela-se em seu processo de criação e recriação. Faz-se necessário, então, transformá-lo para compreendê-lo. Necessitamos, para sua análise, de instrumentos que tornem visíveis certos aspectos do trabalho no processo de mudança e reflexão que esses mesmos dispositivos deflagram. Foram então adotados dispositivos de participação e de autoconfrontação (Vieira, 2004) que se desenvolveram a partir da proposta de Oddone, Re e Briante (1981), que preconizam a formação de comunidades científicas ampliadas.

Esses autores, em trabalho realizado com operários da Fiat, voltaram-se para a pesquisa dos recursos (até então insuspeitados) dos próprios trabalhadores, de que estes poderiam lançar mão para a promoção e proteção de sua própria saúde. A comunidade científica ampliada, proposta por Oddone, Re e Briante (1981), tem como objetivo estabelecer um espaço de debates, de confrontos entre saberes advindos das ciências e da experiência prática dos(as) trabalhadores(as) (BRITO, 2004).

Buscando transformar e conhecer o trabalho no ambulatório, foi proposto às enfermeiras do ambulatório constituir o que chamamos de grupo ampliado de pesquisa (GAP), instalando um dispositivo de análise participativa da atividade. Optou-se por usar a palavra grupo, ao invés de comunidade, usada pelos autores citados, em virtude do significado que esta última adquiriu entre os brasileiros, de bairro pobre, precário. Já o vocábulo grupo suscita a ideia de bom encontro, encontro de pessoas que têm valores e objetivos comuns e trabalham cooperativamente em prol desses objetivos.

O GAP é proposto como um espaço de mútua interferência entre o conhecimento acadêmico e o conhecimento da experiência, provocador da ampliação da reflexão, propiciando a ampliação dos sentidos do trabalho e do entendimento do funcionamento da atividade em análise. Objetiva-se também que esse seja um espaço de construção de saídas para as situações indesejadas, possibilitando a superação dos impedimentos à atividade.

Instalar um dispositivo como esse não é algo simples. A aceitação formal do grupo de trabalhadores e de sua gerência é um passo indispensável, mas não é garantia de efetivo funcionamento participativo.

Em pesquisas anteriores (OSORIO DA SILVA, 1994, 2002), foi verificado que a enorme variabilidade do trabalho em hospital dificulta a manutenção de reuniões de pesquisa com horários fixos, que podem ser vistas como trabalho extra. Optou-se, então, por estabelecer um diálogo permanente, mas nem sempre muito formalizado como reunião, com hora e local previamente marcados.

Como estratégia inicial de aproximação, abordou-se cada enfermeira(o) e técnica(o) de enfermagem individualmente, apresentando oralmente os objetivos da pesquisa e indagando sobre seu trabalho no ambulatório e sua saúde. O propósito foi estabelecer uma conversa em que o pesquisador e o trabalhador de saúde poderiam se apresentar mutuamente. Nessa abordagem inicial, fez-se uma caracterização da equipe, apoiada por um roteiro, registrando faixa etária, escolaridade, estado civil, se tinham filhos e outros vínculos empregatícios. Foram levantadas as principais atividades de cada profissional entrevistada(o) e solicitado que cada um(a) indicasse três palavras que, em sua opinião, pudessem caracterizar seu trabalho cotidiano. Foram também pesquisados problemas de saúde que, no ponto de vista da(o) entrevistada(o), poderiam estar relacionados ao trabalho. Indagou-se ainda se esses profissionais tinham interesse em participar da pesquisa.

Essa etapa foi precedida de contatos com a direção-geral de enfermagem e com a gerência de enfermagem do ambulatório, bem como pela aprovação pelo Comitê de Ética de Pesquisa. A cada profissional abordada(o) na aproximação inicial, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, deixando claro que sua participação seria desejada, mas que ela/ele estaria livre para participar ou não. Foi explicado que as formas de participação seriam combinadas passo a passo, em reuniões do GAP, e divulgadas a todas(os).

No enfoque da clínica da atividade (Clot, 2006), o método deve possibilitar uma abordagem dialógica da situação de trabalho. Os trabalhadores são deslocados, pelo dispositivo metodológico, da posição de observados para a posição de observadores do próprio trabalho. Para explorar ao máximo a reflexão provocada pelo método, são propostas várias etapas de debate sobre a atividade em análise.

Resultados e discussão

A caracterização construída com base nas entrevistas foi discutida em duas reuniões de restituição, visando a atingir a totalidade da equipe, que é organizada em dois plantões.

Ao final de cada uma, foi proposto pelas pesquisadoras que as reuniões passassem a ter frequência e horário regulares, facilitando a participação. Os profissionais de enfermagem indicaram como melhor dia a sexta-feira, ao final da manhã.

Caracterização da equipe

A equipe de enfermagem é formada em sua maioria por mulheres de idades entre 50 e 60 anos, casadas, a maior parte com dois filhos. A profissional mais jovem tem 24 anos, e a mais velha, 68. Grande parte do grupo entrou no serviço público há mais de 20 anos. A equipe é composta por cerca de 70 profissionais1, sendo apenas 11 homens. Abordaram-se 66 profissionais que aceitaram ser entrevistados nessa primeira fase, e 57 responderam afirmativamente a uma pergunta genérica sobre seu desejo de participar do estudo.

No ambulatório, os usuários são atendidos nas seguintes especialidades: ginecologia, obstetrícia, pediatria, puericultura, neurologia, endocrinologia, grupo educativo de diabéticos, otorrinolaringologia, ortopedia, urologia, sala de curativos, pequenas cirurgias e dermatologia.

As tarefas mais frequentemente citadas foram: consulta de enfermagem, promoção de educação e da saúde, supervisão (pelas enfermeiras) das técnicas de enfermagem, arrumação das salas de atendimento, auxílio aos médicos, atendimento ao público, orientação aos pacientes2, controle e distribuição de carteiras de usuários, busca de prontuários, chamado para a consulta de pacientes que aguardam atendimento, administração de medicamentos. Observe-se que as três primeiras atividades mencionadas só são desenvolvidas por enfermeiras (profissionais com curso superior de enfermagem).

As palavras mais frequentes na caracterização do trabalho foram: prazer, paciência, amor, dedicação, atenção, responsabilidade, organização e atendimento.

Discussão nas reuniões de restituição

Nessas reuniões de restituição, um dos temas enfocados foi o da relação da enfermagem com o restante da equipe multiprofissional. Nessa relação, tudo o que é considerado “atribuição de ninguém” é considerado como tarefa da enfermagem. Isso é sentido pela equipe de enfermagem como uma forma de desvalorização de seu trabalho.

Além disso, os demais setores do hospital parecem não ter conhecimento do que é realizado no ambulatório. Os membros da equipe do ambulatório pensam que os colegas de outros setores desvalorizam esse trabalho, achando-o “simples, fácil, calmo e tranquilo de ser executado”. Dessa forma, justificar-se-ia que o contingente que atua no ambulatório fosse formado, em grande parte, por profissionais deslocados para lá já com problemas de saúde. Esses sentidos, que outros setores do hospital parecem atribuir à atividade do ambulatório, transformam o sentido que a equipe do ambulatório atribui à sua própria atividade, produzindo sentimentos de desvalorização e desqualificação.

Uma das estratégias usadas para pôr esses resultados em debate foi espalhar as palavras ditas para caracterizar o trabalho, escritas em retângulos de cartolina, em cima de uma mesa, pedindo que as juntassem por algum tipo de semelhança que tivessem entre si. Para isso, seria necessário discutir o(s) sentido(s) dado(s) a cada uma. Entre as palavras mencionadas com alguma frequência, tínhamos “calmo” e “tranquilo” como palavras que caracterizariam o trabalho no ambulatório. Mas, nesse debate, os presentes falaram que essas palavras não caracterizam o trabalho no ambulatório, mas sim a atitude necessária aos profissionais da enfermagem.

Uma das profissionais comentou que os pacientes chegam muito nervosos ao hospital porque já cansaram de circular por diversos hospitais e postos de saúde ou por diversos setores do hospital. Quando os pacientes chegam ao profissional de enfermagem, querem ter seus problemas resolvidos. Algumas pessoas chegam “com um papel velho, amassado, de algum antigo encaminhamento, ou com um cartão de muito tempo atrás; como estão precisando, pensam que podem ser atendidos imediatamente”. Os profissionais da enfermagem têm que se ocupar em explicar a dinâmica do hospital. Eles falaram que “realmente é preciso muita calma”. Mas, em relação a outros setores, como a emergência, “o ambulatório é de fato mais tranquilo”. Explicam que “o peso do trabalho” no setor de emergência ou nas enfermarias é “mobilizar pacientes ou caixas de material”, e, no ambulatório, há uma carga de “estresse” enorme.

Com o objetivo de ampliar gradativamente a discussão, sugerimos a observação da atividade em três setores distintos. Os profissionais sugeriram a sala de curativos, por mostrar uma prática importante da enfermagem; e a neurologia, por ser um setor “agitado, por causa dos comprometimentos neurológicos dos pacientes”, além de ser um setor em que, segundo alguns, as técnicas de enfermagem acabam por realizar um trabalho administrativo. Sugerimos o Grupo Educativo de Diabetes, em que a consulta de enfermagem é a atividade central, sempre realizada por enfermeiras.

Desafios de um método participativo de análise do trabalho

As duas reuniões, com objetivo de restituição dos resultados da caracterização da equipe de enfermagem, anteriormente descritas, foram realizadas em novembro e dezembro de 2008.

Houve, a seguir, um período de interrupção, relacionado às férias escolares3. Com o retorno às atividades acadêmicas em março, o GAP foi convocado, momento em que se discutiu como seriam feitas as análises dos setores. Durante o período de observação desses três setores, de abril a junho de 2009, tornou-se difícil manter as reuniões semanais, acordadas nas primeiras reuniões. A frequência se reduziu quase a zero: nem mesmo os profissionais dos setores em observação estavam presentes. Ao mesmo tempo, essas observações seguiam seu curso, havendo interesse dos profissionais em trabalhar em conjunto com as pesquisadoras.

As observações foram feitas em permanente diálogo com as profissionais dos setores observados e finalizadas com um texto validado por elas. O texto escrito dessa forma foi, a seguir, apresentado ao conjunto da equipe de enfermagem do ambulatório.

Na primeira reunião destinada ao debate do resultado das observações, para a qual havia sido reservada uma boa sala, mas distante do ambulatório, compareceram apenas três profissionais. Na segunda reunião, realizada em uma sala pequena, improvisada, anexa ao setor de curativos, compareceram mais de dez profissionais da equipe de enfermagem. Pela primeira vez, compareceu uma representante da associação de funcionários da universidade, que é técnica de enfermagem lotada no ambulatório. Nessa segunda reunião, ganhou corpo um tema que já vinha sendo anunciado em outros encontros: a equipe de enfermagem gostaria de contar com um psicólogo para participar do atendimento aos usuários, uma vez que “mais da metade” de seu tempo de atendimento é ocupado em ouvir o que chamaram de “catarse do paciente”.

Ora, se o trabalho de enfermagem exige o trabalho dito relacional, o que estaria havendo para que a equipe se sentisse sobrecarregada com a atividade de ouvir o paciente? O debate mostrou uma insuficiência dos recursos das profissionais de enfermagem para essa ação, que merece ser analisada.

Foi retomado o tema do reconhecimento. Constatou-se um esgotamento dos funcionários do ambulatório que não é visto. Sentem-se cansados e pouco reconhecidos. O ambulatório “é o cartão de visita do hospital”, mas para lá são deslocados profissionais com muitos anos de trabalho, já com limitações: “Só tem pessoas doentes e de licença”. Essa desvalorização é percebida também no “comentário de pessoas que não trabalham no ambulatório” de que “o ambulatório é moleza porque todo mundo sai às 17 horas”.

O reconhecimento que se pede é o reconhecimento pelo outro: as gerências, os colegas de outros setores, as demais categorias profissionais da equipe de saúde. Mas o reconhecimento mais importante, que abre para o desenvolvimento do ofício, é aquele que o próprio trabalhador se dá e que está relacionado à construção de sentidos para o seu trabalho (CLOT, 2006).

Foram propostos os seguintes encaminhamentos: produzir conjuntamente um relatório das observações dirigido à direção-geral de enfermagem; ampliar o debate sobre o trabalho no ambulatório, usando como recurso a exposição de banners a serem afixados na “sala do café”, local de grande circulação da equipe; criar um espaço para o debate sobre o trabalho e suas repercussões na saúde do profissional de enfermagem.

 

Considerações finais

Neste artigo, discutiu-se a implantação de um método participativo de pesquisa, situado no enfoque teórico metodológico da clínica da atividade: o grupo ampliado de pesquisa (GAP).

Uma primeira questão, considerada importante pelo grupo de pesquisadores, refere-se à dificuldade em manter encontros regulares, justificada pelas enfermeiras e técnicas pela grande demanda de trabalho. Grande parte dos diálogos entre as pesquisadoras e as profissionais de enfermagem se deu em encontros menores, nem sempre previamente agendados. Tem sido necessário um esforço permanente das pesquisadoras para fazer circular os temas de maior importância discutidos em momentos tão variados e imprevisíveis.

A constituição de um GAP não se caracterizou, até o momento, por reuniões formais regulares, agendadas, ou por discussões em que os presentes tomam decisões que possam constar em ata, mas por um processo em que os caminhos se constituem em um diálogo, em que ambas as partes têm voz, caminhos cujos destinos e percurso são afetados pelos diversos coletivos que compõem esse grupo.

Seguindo esse raciocínio, considera-se válido afirmar que há um GAP em ação. Nesse grupo de contornos pouco nítidos, ocorrem debates a respeito do trabalho, da saúde, das condições de trabalho, das possibilidades de desenvolvimento do ofício. Esses debates têm tido boa participação das profissionais.

No processo de caracterização inicial, o objetivo era a mútua apresentação, e esse propósito foi alcançado. Produziu-se um espaço de confiança e colaboração, em que pesem as dificuldades de encontrar brechas para a atividade de pesquisa em uma jornada de trabalho que já é vivida como exaustiva.

É importante também analisar o efeito produzido por essa primeira etapa. No momento em que se puseram em debate as palavras de caracterização do trabalho, houve uma transformação de sentido das palavras, um diálogo que permitiu a ampliação e transformação desse sentido. Os termos calmo e tranquilo caracterizariam algo indefinido do trabalho. No debate, passam a ser o modo como o trabalho no ambulatório é visto pelos “de fora”. Trata-se da postura exigida dos profissionais de enfermagem do ambulatório para que o trabalho seja bem feito. Desse modo, fica mais clara a atividade necessária, mesmo quando aparentemente nada está sendo feito: antes de tudo, deve-se manter a calma para poder sustentar outros componentes da atividade.

Cabe ainda analisar se esse diálogo continua suscitando a ampliação de sentidos, a participação de diferentes interferências no caminho adotado e ainda a construção de desvios ou soluções para a superação de algumas situações de trabalho consideradas insatisfatórias.

Por esse caminho, pretende-se ampliar a capacidade de enfrentamento pessoal e coletivo das situações mais desgastantes e dar mais potência às boas formas de funcionar.

Assim, busca-se abrir caminhos para a produção de sujeitos capazes de inventar formas de enfrentar novas e velhas situações, utilizando-se para isso de sua própria experiência. Desse ponto de vista, os dispositivos utilizados na análise do trabalho devem incidir sobre a experiência de trabalho dos sujeitos implicados, como participantes de determinado ofício, de modo a transformá-la, tornando-a útil na construção de novas experiências.

 

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Endereço para correspondência

Contato
Marianna Araujo da Silva
Rua Honório, 812/903
Todos os Santos – Rio de Janeiro – RJ
CEP 20771-421
e-mail: mariannafrauches@hotmail.com

Tramitação
Recebido em outubro de 2009
Aceito em dezembro de 2009

 

 

1Há muita mobilidade de pessoal de enfermagem entre setores do hospital, e também existem muitas licenças, além das férias regulares. Em razão disso, nunca conseguimos o número exato de profissionais lotados no setor.2Na maior parte do tempo, a equipe se refere aos usuários como “pacientes”.
3Como se trata de um hospital-escola, e o grupo de pesquisadores é formado, em sua maior parte, por alunos de iniciação científica, no período das férias escolares há um decréscimo de pessoal em ambos os segmentos do GAP, o que inviabiliza a continuidade.