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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.13 no.3 São Paulo dez. 2011

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Relações familiares de duas crianças ribeirinhas da Amazônia

 

Family relations of two riverside children in Amazon

 

Relaciones familiares de dos niños que viven en la orilla de la Amazonia

 

 

Daiane Gasparetto da Silva; Fernando Augusto Ramos Pontes; Simone Souza da Costa Silva

Universidade Federal do Pará, Belém - PA - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O modo de vida do ribeirinho amazônico organiza as relações interpessoais das crianças de forma particular, corroborando a ideia de que cada contexto gera o desenvolvimento de habilidades sociais distintas. Com base nesse princípio, esta pesquisa teve por objetivo descrever as particularidades das interações de duas crianças de 3 anos de idade com os seus parceiros em uma comunidade ribeirinha situada no Rio Araraiana - Ilha do Marajó/Pará. Utilizaram-se como recursos metodológicos: inventário de rotina (IR), diário de campo (DC) e entrevista semiestruturada. Os resultados foram organizados a partir das díades familiares. Com base nos dados, observou-se que o contexto familiar estrutura as relações com as crianças, introduzindo-as na cultura ribeirinha por meio da instrumentalização de habilidades e competências que lhes permitirão sobreviver de modo autônomo.

Palavras-chave: crianças; família; desenvolvimento; interação; cultura.


ABSTRACT

The way of life of the Amazon's riverside man organizes the inter-personal relations of children in a peculiar manner, corroborating the idea in which each context generates the development of different social skills. With this assumption, the present research had as objective to describe the particularities from the interactions of two aged three children with their partners in riverside community located in the Araraiana river - Marajó Island/ Pará. As methodological resources were used: routine inventory (RI), field diary (FD) and semi-structured interview. The results were organized coming out of the families dyads. Based on the data, was observed that the family's context structures the relations with the children, introducing them in the riverside culture through the instrumentalization of skills and competences which allow them to survive in an autonomous way.

Keywords: Children; family; development; interaction; culture.


RESUMEN

El modo de vida de los que viven en la orilla amazónica organiza las relaciones interpersonales de los niños de forma particular, corroborando la idea de que cada contexto genera el desarrollo de habilidades sociales distintas. Partiendo de este principio, esta pesquisa tuvo por objetivo describir las particularidades de las interacciones de dos niños de tres años de edad con sus parejas en una comunidad que vive en la orilla situada en el Río Araraiana - Isla de Marajó/Pará. Fueron utilizados como recursos metodológicos: inventario de rutina (IR), diario de campo (DC) y entrevista semiestructurada. Los resultados fueron organizados a partir de la categoría familia. Basado en los datos, se observó que el contexto familiar estructura las relaciones con los niños, introduciéndolas en la cultura que vive en la orilla del río por medio de la instrumentalización de habilidades y competencias que les permitirán sobrevivir de modo autónomo.

Palabras clave: niños; familia; desarrollo; interacción; cultura.


 

 

Introdução

Diante das discussões que marcaram a psicologia sobre a contribuição do ambiente e da biologia para o comportamento, atualmente os teóricos do desenvolvimento entendem que a trajetória dos indivíduos sofre a ação tanto dos atributos genéticos quanto dos fatores socioambientais, o que conduz ao entendimento do desenvolvimento como um fenômeno multideterminado. Nesse sentido, é indiscutível o papel exercido pela cultura sobre a vida das pessoas, uma vez que as características contextuais especificam as relações estabelecidas pelo sujeito (COLE; COLE, 2003).

A noção de desenvolvimento como fenômeno multideterminado e a ênfase sobre o papel do contexto, seja este físico, seja social, têm sido apresentadas por diferentes modelos teóricos, entre os quais se destacam as ideias bioecológicas de Bronfenbrenner (1996). Segundo esse autor, para compreender as mudanças que ocorrem na vida das pessoas, é preciso analisar os seguintes componentes: pessoa, processo, contexto e tempo (PPCT). Esses elementos mantêm entre si relações de interdependência, uma vez que juntos organizam a trajetória desenvolvimental das pessoas (BRONFENBRENNER, 1996; BRONFENBRENNER; CECI, 1994).

Em relação à relevância desses componentes, Bronfenbrenner (1999) destaca o papel desempenhado pelos processos proximais, ou seja, as interações estabelecidas entre a pessoa e o contexto. Apesar da ênfase nesse componente, o autor não explorou seus diferentes modos de expressão, considerando apenas suas características gerais a partir da ação exercida pelo ambiente e pela pessoa. Todavia, Hinde (1982) estabeleceu a diferença entre o termo relação e interação. Para esse autor, interação refere-se aos eventos superficiais, simples e discretos que se processam em um tempo limitado; já a relação é compreendida como conjunto seriado e contínuo de interações no tempo, sendo também constituída a partir de conteúdo, qualidade e padronização.

Considerando que, na maioria dos casos, as primeiras relações estabelecidas entre as crianças e o contexto se processam nas famílias, muitos estudiosos do desenvolvimento têm postulado que o grupo familiar é um contexto fundamental (BRONFENBRENNER,1996; KASLOW, 1987; LIDDLE, 1987), cujas características marcarão de modo significativo a trajetória pessoal de seus membros. No entanto, vale dizer que a ação da família sobre o desenvolvimento não se dá de modo isolado, uma vez que este é um sistema que mantém relações de interdependência com outros contextos. Szapocznik e Kurtines (1993) consideram que é preciso entender o indivíduo no contexto da família e que esta só pode ser compreendida dentro da cultura. Sendo assim, a cultura, isto é, o macrossistema (BRONFENBRENNER, 1996), concretiza-se no dia a dia das pessoas, estruturando as atividades - e dando significado a elas - realizadas em outros contextos, como o microssistema familiar que, por sua vez, influencia no modo de organização cultural.

Embora seja um sistema que estabelece continuamente trocas com outros níveis contextuais, a família possui características específicas, também chamadas de cultura íntima (SERPELL et al., 2002) ou ainda cultura intrafamiliar. Esse conceito se refere às características que tornam esse grupo único e que, muitas das vezes, só podem ser observadas por um pesquisador atento às sutilezas do cotidiano, por exemplo, aos modos de comunicação, às regras, aos limites impostos aos seus membros, ao clima emocional predominante no grupo etc.

Com base na noção de que a família e a cultura mantêm relações interdependentes, destaca-se a função exercida pelo grupo familiar que, ao demandar da criança padrões comportamentais compatíveis com sua organização e com o contexto cultural em que está inserido, oferece a base do comportamento futuro da criança (STAUDT; WAGNER, 2008). Acrescida a essa ideia, considera-se que não apenas a família estrutura a vida dos mais jovens, mas também os grupos culturais. Nesse sentido, pode-se dizer que o rápido contato das crianças com o conjunto de atividades presentes em seu meio - sejam estas relacionadas à caça, à costura, à pesca ou ao estudo - permitirá que elas aprendam habilidades, valores e crenças da comunidade que, de acordo com LeVine (1988), possibilitarão o desenvolvimento e a sobrevivência desses infantes em seu contexto.

As particularidades referentes a diferentes contextos podem ser identificadas em estudos culturalistas internacionais (LEYENDECKER et al., 2002; SMALL; NEWMAN, 2001) que revelam especificidades de grupos que constroem ao longo do tempo seu próprio mundo simbólico representado por suas crenças, valores e práticas que dão sentido a vida cotidiana, estabelecendo padrões de relações dentro e fora da família que influenciam as relações conjugais, parentais e entre os irmãos.

Apesar das iniciativas de vários grupos de pesquisadores no Brasil e da diversidade cultural que marca o extenso território brasileiro, os dados sobre as trocas interdependentes entre família e cultura ainda são escassos (BUCHER; COSTA, 2003; ROMANELLI, 1999; SIMIONATO-TOZO; BIASOLI-ALVES, 1998), especialmente nos contextos ribeirinhos da Amazônia. Nesse sentido, com o intuito de compreender o desenvolvimento do homem amazônico, este trabalho pretende descrever o conteúdo e a qualidade das relações familiares estabelecidas por crianças de 3 anos que vivem às margens de um rio da Amazônia.

 

Método

A escolha dos participantes - duas crianças de 3 anos - deu-se em função da grande frequência de contato que estas estabeleciam com o ambiente familiar, já que, por causa da idade, ainda não frequentavam a escola. Sendo assim, os ambientes de observação foram: a casa, o quintal e o rio.

A coleta de dados iniciou-se após a submissão do projeto de pesquisa ao Comitê de Ética que aprovou sua execução por meio do Parecer no 2.716-06. Após a prévia seleção dos participantes, os responsáveis das crianças foram informados sobre os objetivos da pesquisa a fim de autorizar a participação delas no estudo. Em um momento posterior aos esclarecimentos e à concordância, foi assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. No intuito de assegurar o sigilo da identidade dos participantes, utilizaram-se nomes fictícios na apresentação dos resultados.

Realizou-se uma abordagem multimetodológica, utilizando instrumentos de natureza qualitativa, cujos resultados se complementam, sendo estes os seguintes: 1. inventário de rotina (IR), que teve por objetivo descrever a rotina das crianças a partir do relato dos pais; 2. diário de campo (DC), no qual foram descritas as particularidades contextuais observadas, bem como as impressões de todos os contatos com as crianças ou quaisquer eventos que a elas se refiram; 3. entrevista semiestruturada (ESE), que consistiu em entrevista semiaberta com os pais das crianças acerca do conjunto de relações estabelecidas por elas dentro da família

A análise do conteúdo dos dados foi feita em três etapas propostas por Bardin (1979) e Minayo (2000): 1. pré-análise (retomada das hipóteses e dos objetivos iniciais da pesquisa, transcrição e estudo das narrativas); 2. exploração do material (codificação dos dados brutos por meio de triagem, contagem e agrupamento das unidades de sentido); 3. tratamento dos resultados obtidos e interpretação (criação de categorias discutidas posteriormente com base no quadro teórico, nos objetivos da pesquisa e nas questões instigadas pelo seu processo).

Sendo assim, os dados foram analisados sob perspectiva qualitativa e organizados na categoria família, subdividida em três grupos com os quais cada criança apresentou maior frequência de contato.

 

Discussão de resultados

Como se trata de dois casos que possuem características particulares, os dados serão apresentados separadamente.

Caso Lucas

Configuração da família de Lucas

O participante Lucas tem 3 anos e 8 meses de idade, sua família mora à beira do Rio Araraiana, ele tem uma irmã mais nova e sua família é católica. A seguir, será apresentado seu grupo familiar por meio do mapa genealógico. Ressalta-se que não foram encontrados dados referentes às idades de Caio e Sara.

 

 

Características sociais: habilidades relacionais

Com base no princípio de que as habilidades do funcionamento adaptativo social podem ser compreendidas a partir de dois níveis de complexidade relacional, como sugerido por Cole e Cole (2003) - coerência dos comportamentos da criança com os padrões relacionais da família e integração comportamental à sua comunidade sociocultural -, serão apresentados os principais sistemas de relacionamento da criança com os membros de sua família.

Com a mãe

Quando se analisou a relação de Lucas com sua mãe, Flávia, foi possível identificar duas categorias relacionais: cuidado e brincadeira. Essas categorias puderam ser observadas com base no que Hinde (1982) chama de conteúdo e qualidade das interações e relações. O conteúdo está fortemente associado às atividades desempenhadas pela díade. Nesse sentido, as relações de cuidado se caracterizaram por iniciativas maternas, visando garantir o bem-estar de Lucas, como quando ela lhe dá alimento, dá-lhe banho, coloca-o para dormir etc. Por sua vez, Lucas assume a posição de ser cuidado, ora aceitando as ações da mãe, ora rejeitando-as.

A categoria brincadeira caracterizou-se pelos comportamentos, em geral, iniciados por Lucas em direção aos membros da família. Flávia não relata uma ocasião interacional exclusiva de brincadeira com seu filho, todavia descreve situações em que todos os membros estão presentes em momentos caracterizados pela ludicidade. Sua descrição não permitiu identificar o quanto Flávia assume um papel ativo nessas situações, no entanto percebe-se que ela se coloca como observadora das iniciativas de Lucas diante do grupo. Embora a participação da mãe não ocorra de modo direto, Pontes e Magalhães (2003) ressaltam que o mais interessante é a partilha do evento do que a atividade de brincar estrita em si.

O menor envolvimento de Flávia nas brincadeiras e o maior comprometimento nas interações de cuidado podem ser explicados com base no modo como estão estruturados os papéis de gênero (PEDROSO, 2003; SILVA, 2006) nas famílias que vivem nessa comunidade. Em geral, as mães são as figuras encarregadas dos cuidados com os filhos, enquanto os pais, além de serem os provedores do lar, estão mais presentes durante os momentos de brincadeira.

Em termos qualitativos, as observações domiciliares permitiram identificar que, às vezes, a relação da díade Flávia-Lucas é marcada pela desobediência da criança diante das demandas maternas. Essa característica foi identificada em episódios como o seguinte: certa vez, Flávia chamou Lucas que se encontrava no fundo do quintal e, ao perceber que o filho não atendia ao seu chamado, voltou-se ao marido e disse: "Ei, Mário... olha o Lucas no fundo do quintal". Na sequência, Mário fez a mesma solicitação que a esposa, mas Lucas lhe obedeceu. Em seguida, a mãe fez o seguinte comentário para a pesquisadora: "Sempre é assim, os filhos obedecem mais os pais do que as mães" (diário de campo, 19.7.2007).

Com o pai

Socialmente, nessa comunidade, a representação do bom pai é compatível com aquela encontrada nas sociedades tradicionais, isto é, a do "bom provedor", ou seja, o pai que provê, principalmente, o alimento (SILVA et al., 2010, 2011). Tanto as entrevistas como as observações ofereceram dados que indicam Mário como um representante dessse tipo de pai. Flávia, ao concluir sua descrição da competência de Mário como figura paterna, diz: "Ele é um bom pai pra eles [os filhos]" (diário de campo, 19.7.2007). Além do mais, essa representação em torno de Mário é compatível com os dados observacionais. Verificou-se que, durante grande parte das vezes nas quais se estabeleceram contatos da equipe de pesquisa com Mário, este se encontrava executando alguma atividade de subsistência que poderia variar desde o consertar a rede de pesca até o fazer matapi (armadilha para pegar camarão feita com fibras da mata local).

Mesmo com tanto trabalho para sustentar sua mulher e seus dois filhos, Mário mostra-se presente de um modo particular. Observou-se, por meio da aplicação do inventário de rotina, que o pai, quando não estava executando atividades de subsistência fora do ambiente doméstico, em geral se encontrava trabalhando em sua casa. Esse modo de organizar seu tempo permanecendo em sua residência a desempenhar seu trabalho permitia a Mário vários momentos de interação com Lucas.

Considerando as bases teóricas de Hinde (1982), categorizaram-se os momentos de interação de Mário com Lucas de modo semelhante ao que fora identificado com Flávia, ou seja, dois conjuntos relacionais: cuidado e brincadeira.

O cuidado diz respeito às situações em que Mário executa ações visando ao bem-estar do filho. Após o almoço, antes da "sesta" (período de descanso após o almoço), Mário embala a criança até ela adormecer. Em relação a essa situação, Flávia afirma: "Agora ele [Lucas] já dorme na rede dele, ele só quer que o pai dele embale ele, porque, depois que ele dorme, pronto" (diário de campo, 19.7.2007).

A brincadeira pode ser dividida em duas categorias: 1. com a participação ativa de Mário, por exemplo, "a noitinha, assim, ele pega uma lamparina e pega as crianças e vão lá pra frente... e ficam olhando pro rio, ficam brincando de briga..." (Flávia, diário de campo, 19.7.2007); 2. com a participação passiva de Mário, nos momentos em que ele confecciona matapi e Lucas lhe mostra alguns objetos, joga pedra nas árvores, pula, corre, fica mexendo nas talas. A relação de Mário e Lucas é marcada por situações em que o pai mostra-se disponível a auxiliar o filho em suas vicissitudes cotidianas, fato que sinaliza a presença paterna na vida da criança.

Com a irmã

Os episódios de interação de Lucas com sua irmã (Alana) são marcados basicamente por brincadeiras. A mãe das crianças diz: "Ele não gosta muito de brincar com Alana, porque ela não acompanha ele nas travessuras dele" (diário de campo, 19.7.2007). Embora Lucas tente estabelecer interações com Alana por meio da brincadeira, nem sempre isso é possível. De fato, a irmã, com apenas 1 ano, encontra-se em uma fase de desenvolvimento físico anterior à de Lucas, o que limita sua participação em algumas brincadeiras com o irmão.

Ademais, observa-se que, em alguns momentos, aos 3 anos de idade, Lucas tem dificuldade de compreender as demandas de sua irmã, o que implica a apresentação de comportamentos ora mais disponíveis às solicitações da irmã, ora ignorando ou revidando suas iniciativas de modo agressivo. A falta de compreensão do menino reflete seu nível social de desenvolvimento, que lhe dificulta perceber que, por ser menor, sua irmã não possui suas competências físicas que lhe permitem correr, pular, equilibrar-se com facilidade.

Caso Pedro

Configuração familiar de Pedro

O participante Pedro tem 3 anos de idade, sua família mora na comunidade, ele tem um irmão mais novo, mora com os avós e um tio; sua família é evangélica. A seguir, será apresentada sua família por meio do mapa genealógico.

 

 

História gestacional e pós-natal de Pedro

Para que a descrição desse caso seja compreendida, torna-se necessário ressaltar as peculiaridades das relações familiares de Pedro, que, logo após ter nascido, foi dado por seus pais (Gabriel e Lia) a seus avós maternos (Luiz e Maria), tendo isso sido determinado por Gabriel desde o primeiro momento da gravidez de sua esposa. Por sua vez, Lia mostrou-se de acordo com a decisão do marido. De fato, conforme o estudo de Santos (2009), os avós no Rio Araraiana frequentemente ficam com os netos primogênitos, pois os pais são muitos jovens e não possuem ainda as competências culturalmente exigidas para o cuidado das crianças. Logo, eles assumem o bebê como filhos-netos, retirando a responsabilidade do jovem casal. Estes, por sua vez, convivem com o neném e aprendem na prática a lidar com os que nascerão no futuro e que serão apenas seus.

Nas primeiras semanas de vida de Pedro, sua mãe (Lia) o amamentou, período em que ficou instalada na casa de seus pais, o que garantiu à criança os cuidados tanto da mãe quanto da avó. Após Lia ter deixado de amamentar seu filho, Pedro passou a ser cuidado mais diretamente por seus avós, uma vez que a mãe o deixou na casa da avó para ir morar com Gabriel em outra habitação também situada no Rio Araraiana. A partir desse momento, estabeleceu-se entre Pedro e seus avós a relação de pais e filho. Contudo, apesar de Pedro chamar Luiz e Maria de pai e mãe, ele também se refere a Gabriel e Lia, pais genéticos, como sendo seus pais. Porém, observa-se que estes estão menos presentes na rotina do infante do que os primeiros. Pedro mora na casa dos avós junto com o tio Valter, chamado afetuosamente de "mano".

Diante do exposto, torna-se necessária a categorização diferencial dos membros dessa família, sendo os avós considerados "avós-pais", o tio como "tio-irmão", enquanto os pais e irmão genéticos permanecem com esta mesma denominação.

Características sociais: habilidades relacionais

A partir da descrição da história de Pedro, torna-se necessário especificar os seus principais sistemas de relações (família: com a avó-mãe; com o avô-pai; com os pais) encontrados no seu dia a dia, para que se possa ter uma compreensão mais clara de como o ambiente social e cultural do menino é incorporado ao seu cotidiano por meio da interação com as pessoas que colaboram no seu processo de adaptação à realidade. A apresentação dos dados segue uma ordem que considera a frequência de interação entre Pedro e os demais membros do seu grupo.

Com a avó-mãe

Por ter ficado sob os cuidados de seus avós, Pedro vive na casa de Maria e Luiz, estando, na maior parte do tempo, junto à Maria, já que, durante as manhãs, seu tio-irmão Valter está na escola e, em horários não determinados, Luiz (seu avô-pai) está fora de casa trabalhando. Durante os momentos em que estão juntos, Maria acompanha Pedro em todas as suas atividades, assumindo uma postura vigilante; embora não demonstre estar sempre disposta a brincar com o menino, Maria, em alguns momentos, entrega-se às suas brincadeiras, assim como aparece em sua fala: "Eu brinco com ele sim, mas não dou muita confiança, não. É porque eu me apego mais nos meus trabalhos de casa". Desse modo, considerando as ideias de Hinde (1982), o dado indica que essa relação é predominantemente de cuidado com alguns momentos marcados por brincadeira.

Quase todos os momentos da rotina de Pedro são mediados por Maria, começando por aquele em que os dois acordam juntos (após terem dormido a noite toda em uma só rede), passando pelo café da manhã, pelos momentos de brincadeira, pela preparação e presença durante o almoço, pelo acompanhamento aos cultos evangélicos, até a hora em que Pedro prepara-se para dormir. Antes de o menino dormir, há uma partilha de afeto, pois Maria costuma cantar para que o neto-filho adormeça, o que fica bem evidente quando ela diz: "Na hora de dormir, eu canto, é meu bebê, né? Bebê da mamãezinha".

Com o avô-pai

Pedro, desde o princípio, reconheceu na figura do avô o seu pai, pelos motivos já citados. Dessa maneira, diante da necessidade de assumir a criação do neto-filho, Luiz, além de exercer as tarefas típicas do padrão de pai encontrado na região, trabalhando e provendo o sustento da família, apresenta também outras formas de interação com o seu neto-filho. De acordo com Maria, ao se referir à díade Luiz-Pedro: "tem horas que eles parecem dois moleques aí. Eles brincam. De vez em quando, ele tá deitado e ele rola por cima dele; quando ele tá desocupado, eles brincam de esconde-esconde" (diário de campo, 18.7.2007).

Com base nos relatos de Maria, nota-se que existe uma grande ligação afetiva entre Luiz e Pedro, tornando-os próximos e parceiros em atividades que incluem o bem-estar de ambos. Em uma das falas de Maria, observa-se bem essa afetividade: "Aí quando o avô dele chega, aí é, mas aí ele se encosta. O avô, Deus me livre por causa dele. Aí ele fica com o avô" (diário de campo, 18.7.2007).

Segundo Maria, em algumas ocasiões, Luiz leva Pedro para seu lugar de trabalho (seja no mato ou no rio). Esses momentos são ricos para o processo de desenvolvimento da criança, posto que esse tipo de experiência proporciona ao menino a identificação com seu avô-pai por meio da observação e imitação de seus comportamentos. Presume-se assim que a adoção do papel sexual masculino por parte de Pedro é facilitada por esses momentos em que se encontra diante das atividades realizadas pela figura paterna (BANDURA, 1969).

Com os pais genéticos

Pedro também reconhece os pais genéticos como seus pais. Contudo, a relação pai-filho e mãe-filho não se estabelece constantemente pelo fato de o menino morar na casa dos avós. Inicialmente, a separação da mãe foi vivida por Pedro de modo pouco tranquila, pois este não dispunha mais dos momentos de amamentação.

A partir do momento em que Pedro mostrou-se acostumado à realidade do lar dos avós-pais, apresentou dificuldades em adaptar-se ao ambiente da casa dos pais genéticos.

As atividades desempenhadas entre Pedro e Lia são basicamente enquadradas dentro da categoria relacional de cuidado, uma vez que suas interações limitam-se aos momentos de auxílio que uma criança precisa para realizar certas atividades, ajudando-o, por exemplo, na retirada da espinha do peixe na hora da refeição. De acordo com o relato de Lia, há também pequenas interações de outros tipos entre os dois, tal como ficar junto ao Pedro enquanto este rabisca o papel em que ela estava escrevendo. Em uma das observações realizadas durante o período de coleta de dados, Lia foi vista remando uma canoa com a criança, a qual carregava um pequeno remo, demonstrando padrões comportamentais imitativos em atividades compartilhadas entre mãe e filho.

Já a relação entre Gabriel e Pedro é movida tanto pelo cuidado quanto pela brincadeira, mas com vários momentos de desentendimento entre os dois, pelo fato de Gabriel não ser "um pai de fazer muito carinho", tal como disse Maria (diário de campo, 18.7.2007). O cotidiano dessa díade é marcado por brigas que, geralmente, são desencadeadas quando o menino mexe nos objetos de Gabriel, o que o deixa enraivecido, podendo culminar ou não com agressões físicas à criança. Segundo Lia, Pedro demonstra gostar mais do avô do que do próprio pai. Contudo, Maria evidencia, por meio de sua fala, que Gabriel também tem seus momentos de diversão com Pedro, em que os dois brincam, abraçam-se, beijam-se, demonstrando a afetividade partilhada entre eles.

A família nuclear de Pedro não é bem delineada, portanto as atividades desempenhadas comumente pelos pais não são realizadas somente pelos pais genéticos, estando geralmente sob a responsabilidade dos avós, que são os responsáveis pela maior parte dos cuidados para com a criança. A participação de Lia e Gabriel no cotidiano do menino é feita de diferentes formas: ora atuam como pais, ora como meros parentes próximos.

 

Considerações finais

O desenvolvimento humano, além de se estruturar por meio das características psicológicas individuais, está amplamente ligado aos contextos nos quais os sujeitos estão inseridos, uma vez que o ambiente diferencia de modo particular os comportamentos e as relações desempenhados pelos integrantes de cada comunidade. Esta pesquisa realizada com duas crianças de contexto ribeirinho permitiu observar que os padrões culturais e familiares encontrados nessa comunidade são caracterizados pelo ritmo e pelos tipos de atividades existentes nesse espaço.

No estudo do caso Lucas, observou-se que, por mais que existam dificuldades em manter os cuidados para com a criança, os pais se dispõem a acompanhar o desenvolvimento de seu filho, partilhando aprendizagens e momentos de afetividade. Na relação de Lucas e seu pai Mário, observa-se que há uma pequena ruptura com a noção de paternidade tradicional, uma vez que Mário ocupa parte de seu tempo dispensando ao filho cuidados que, em alguns momentos, foram vistos como ações desempenhadas essencialmente pela mãe.

No caso de Pedro, o infante foi entregue aos cuidados dos avós, resultando em outro tipo de configuração familiar, o que reflete de forma diferencial no reconhecimento da figura paterna e materna pela criança, já que os avós são mais participativos na vida do menino. Vale dizer que, nessa comunidade ribeirinha, as famílias tendem a se organizar de diferentes formas, principalmente pelo fato de os pais serem geralmente muito jovens, o que aumenta a probabilidade de os avós estarem mais presentes na vida dos netos, ficando responsáveis por grande parte de sua educação. É importante destacar que outras pesquisas (FLAHERTY, 1988) têm relatado a entrega pelos pais do filho primogênito aos avós, o que implica a abdicação do exercício de sua autoridade na relação com a criança.

Os estímulos ambientais que caracterizam o contexto investigado, como o rio onde são realizadas algumas brincadeiras, propiciam a criação de novos recursos comportamentais. Assim, o modo de vida dessas crianças pode se tornar adaptado aos tipos de atividades às quais estão, direta ou indiretamente, ligadas. As experiências que os meninos vão tendo a partir do contato com seus familiares propiciam não só o reconhecimento dos tipos de tarefas, mas também da diferença que há entre as desempenhadas por homens e/ou mulheres. Assim, por exemplo, os momentos nos quais Pedro acompanha seu avô-pai nas atividades de subsistência irão ajudá-lo na identificação de seu próprio papel sexual e na apropriação dos padrões masculinos estabelecidos pela cultura.

Nessa região, os vínculos são intensos entre as crianças e seus familiares porque as pessoas passam mais tempo no ambiente da casa do que em outros locais. É no ambiente doméstico e nos locais frequentados por seus familiares que, usualmente, os infantes apreendem, por observação ou imitação, habilidades motoras e sociais que serão aprimoradas e utilizadas ao longo da vida. Nesse sentido, é o contexto de seus relacionamentos que lhes fornece os recursos necessários para sobreviver (BRONFENBRENNER, 1996).

Ser capaz de sobreviver constitui a principal meta do desenvolvimento e esta é alcançada à medida que as crianças adquirem independência e autonomia, por meio da proximidade com seus cuidadores, que treinam seus filhos, guiando-os, orientando-os, estabelecendo regras de ações e ensinando-lhes recursos eficazes para realizar a socialização com a comunidade (COLE; COLE, 2003).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Contato
Daiane Gasparetto da Silva
e-mail: dai_gasp@hotmail.com

Tramitação
Recebido em outubro de 2010
Aceito em maio de 2011