SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.15 número1Resenha do livro Ansiedade: terapia cognitivo-comportamental para crianças e jovens, de Paul StallardAspectos psicossociais de uma intervenção comunitária na periferia de São Paulo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.15 no.1 São Paulo abr. 2013

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

O papel do mediador no incentivo à participação das comunidades nas ações de promoção da saúde

 

The mediator's role in enhancing comunitary participation in health promotion actions

 

El papel del mediador en el incentivo a la participación de las comunidades en las acciones de la promoción de la salud

 

 

Nathalia DomitrovicI; Maristela D. AraujoI; Bruna C. QuintanilhaII

IUniversidade Federal do Espírito Santo, Vitória - ES - Brasil
IIPsicóloga do Centro de Referência de Assistência Social (Cras), Vitória - ES - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ações de promoção da saúde são baseadas em um conceito ampliado de saúde, considerada como resultado da interação entre fatores ambientais, socioculturais, biológicos e psicológicos, e os conselhos locais de saúde (CLS) se constituem como mecanismos constitucionais que concretizam a participação social para a transformação dos fatores que favorecem a saúde. Esta pesquisa objetivou investigar o funcionamento de dois CLS ligados a duas unidades básicas de saúde (UBS) e verificar como ocorre a participação social nas ações de promoção da saúde. Realizamos entrevistas semiestruturadas com oito participantes dos CLS e acompanhamos suas reuniões durante quatro meses. Foram entrevistados dois profissionais psicólogos que atuam nas UBS. Foi possível perceber a inter-relação entre a participação social e as ações de promoção da saúde. A multiplicidade de opiniões e as diversas formas de seu exercício redobram a importância da mediação, exercida pelos profissionais psicólogos no cotidiano dos serviços, com o objetivo de favorecer a participação dos usuários.

Palavras-chave: controle social; promoção da saúde; conselhos de saúde; Atenção Primária à Saúde; pesquisa qualitativa.


ABSTRACT

Health promotion actions are based on a wider definition of health considered as a result of interaction between environmental factors, socio-cultural, biological and psychological, and the Local Health Councils (CLS) constitute themselves as embodying constitutional mechanisms for social participation transformation of the factors that promote health. This study aimed to investigate the functioning of two CLS, connected to two Basic Health Units (UBS) assessing the occurrence of social participation in health promotion actions. Semi-structured interviews were conducted with eight participants of CLS and their meetings were followed for four months. Two psychologists of the UBS were interviewed. It was possible to see the interrelations between social participation and Health Promotion actions. The multiplicity of opinions and various forms of exercise, redouble the importance of mediation exercised daily by psychologists in the health services, in order to enhance users participation.

Keywords: social control; health promotion; health councils; Primary Healthcare; qualitative research.


RESUMEN

Las acciones de promoción de la salud se basan en una definición más amplia de la salud considerada como un resultado de la interacción entre factores ambientales, socio-culturales, biológicos y psicológicos, y los consejos locales de salud (CLS) se constituyen como mecanismos constitucionales que aseguran la participación social para la transformación de los factores que promueven la salud. Este estudio tuvo como objetivo investigar el funcionamiento de los CLS, conectado a las dos unidades básicas de salud (UBS), y como el control se produce la participación social en las actividades de promoción de la salud. Hemos llevado a cabo entrevistas semi-estructuradas con ocho participantes del CLS y siguieron a sus reuniones durante cuatro meses. fueron entrevistados a dos psicólogos profesionales que trabajan en UBS. Era posible ver la relación entre la participación social y las acciones de promoción de salud. La multiplicidad de opiniones y las diversas formas de ejercicio, refuerzan la importancia de la mediación ejercida por los psicólogos diariamente en los servicios con el fin de fomentar la participación de los usuarios.

Palabras clave: control social; promoción de la salud; consejos de salud; Atención Primaria de Salud; investigación cualitativa.


 

 

Desde o início do movimento da Reforma Sanitária, na década de 1970, a saúde é um tema de intensa discussão e embates políticos e sociais no cenário brasileiro. Uma das conquistas que emergiram dessas lutas está na implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), instituído para atender ao artigo nº 196 da Constituição Federal de 1988, que define a saúde como "um direito de todos e dever do Estado". Em 1990, o SUS foi regulamentado, e, em suas diretrizes, destacam-se a universalidade, a integralidade, a equidade e a participação social (Coletânea de normas..., 2007). Com o propósito de garantir esta última diretriz, a Lei Orgânica nº 8.142 (1990) define como um dos critérios para o repasse de recursos financeiros para os Estados e municípios a existência dos chamados conselhos de saúde, de forma que sua ocorrência se faz obrigatória nas três esferas: nacional, estadual e municipal. Tais conselhos são compostos em 50% por representantes de usuários, 25% de trabalhadores e 25% de prestadores de serviços públicos e privados, tendo função deliberativa e o papel de "estabelecer ou discriminar aquilo que é de interesse público" em relação à temática da saúde (Dimenstein, 2007). Em alguns municípios, existe uma quarta modalidade de participação: os conselhos locais. Vinculados a uma unidade básica de saúde (UBS), tais conselhos se destinam à discussão das questões específicas de cada comunidade e não representam uma exigência constitucional (Pessoto, Nascimento, & Heimann, 2001).

No município de Vitória/ES, campo desta pesquisa, os funcionamentos do conselho municipal e dos conselhos locais de saúde são regulamentados, desde 2006, pela Lei Municipal nº 6.0606. As principais funções atribuídas aos conselhos são: acompanhar e fiscalizar a implantação da política municipal de saúde no âmbito de seu território; promover reuniões, debates, seminários e outras formas de participação da população para incentivar o interesse dos moradores, a fim de obter sua participação ativa e crítica na solução dos problemas de saúde existentes na área de abrangência da unidade de saúde; eleger prioridades nas ações de saúde junto às gerências das unidades de saúde de acordo com as necessidades do território no qual estejam inseridos e/ou região de saúde; entre outras (Lei 6.0606, 2006).

As ações e os serviços públicos de saúde devem buscar sua promoção, proteção e recuperação. Ainda que os aspectos de proteção e recuperação pareçam muito claros, o mesmo não se verifica quanto à promoção. Embora esteja em vigor a Política Nacional de Promoção da Saúde (2006), aprovada em 2003, as práticas observadas nos serviços ditos como de promoção da saúde apontam muito mais para uma lógica de prevenção, focadas nas doenças (Iglesias, 2009).

A compreensão relacionada à promoção da saúde está longe de configurar um consenso entre seus estudiosos. Segundo Buss (2000), é possível distinguir dois grandes grupos de ideias a seu respeito. O primeiro concebe como promoção atividades educativas que busquem a transformação dos comportamentos dos indivíduos, estimulando a adoção nas esferas familiares de um estilo de vida que priorize hábitos considerados mais saudáveis. Dessa forma, os fatores externos ao controle do indivíduo não são considerados. Por sua vez, o segundo grupo, cujas concepções são mais recentes, compreende a promoção da saúde de forma ampliada, abarcando fatores econômicos, ambientais, socioculturais e políticos. As atividades de promoção, segundo tal critério, se direcionam ao coletivo de indivíduos, buscando estabelecer "condições favoráveis ao desenvolvimento da saúde" (Buss, 2000, p. 167) e reforçar a capacidade de participação política dos indivíduos da comunidade (empowerment). Portanto, a promoção da saúde vem sendo colocada, desde a carta de Ottawa de 1986, como uma visão alternativa ao modelo biomédico, entendida como algo construído coletivamente.

Há de se considerar uma estreita relação entre a promoção da saúde e a participação da comunidade ao compartilhar dos processos de gestão de suas condições na área da saúde. Contudo, alguns autores apontam para a existência de certa distância entre a garantia legal da participação social e a efetivação prática de seus objetivos, quando são colocadas em funcionamento as instâncias instituídas, tais como os conselhos de saúde (Vazquez, 2003). Portanto, torna-se fundamental analisar as formas de funcionamento dos Conselhos.

Além disso, tendo em vista que o profissional psicólogo, como trabalhador na área de saúde, está imerso e diretamente envolvido nas ações de promoção da saúde, como verificado em pesquisas anteriores (Santos, Quintanilha, & Dalbello-Araújo, 2010), vale verificar a importância de seu papel nesse contexto. Assim, a pesquisa teve como objetivos: investigar a participação dos conselhos locais de saúde nas ações de promoção da saúde entre as unidades de saúde da região de Maruípe, em Vitória, no Espírito Santo, apreender como ocorre a articulação entre os componentes do conselho - gestores, trabalhadores da área de saúde, especialmente o profissional psicólogo e representantes da população - e verificar em que medida a existência dos conselhos possibilita a participação efetiva dos usuários na elaboração e na implementação de políticas de promoção da saúde.

 

Método

Para a realização desta pesquisa exploratória, adotamos a abordagem qualitativa em pesquisa que visa "aprofundar a complexidade de fenômenos, fatos e processos particulares e específicos de grupos mais ou menos delimitados em extensão e capazes de serem abrangidos intensamente" (Minayo & Sanches, 1993, p. 247).

O município de Vitória está atualmente dividido em seis regiões de saúde. Elegemos, junto à secretaria executiva do Conselho Municipal de Saúde, a região de Maruípe para desenvolvimento do estudo, uma vez que esta é a área de atuação dos projetos de estágio supervisionado da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Tais projetos visam contribuir para o aprimoramento da formação profissional dos estudantes de graduação do Curso de Psicologia, realizando seus estágios nas seis UBS que funcionam sob a Estratégia de Saúde da Família naquela área. A pesquisa foi autorizada pela Secretaria Municipal de Saúde (Semus) de Vitória e pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Espírito Santo.

Inicialmente, foi realizado um breve mapeamento da região, em que se coletaram dados básicos a respeito dos conselhos locais de saúde de cada uma das seis unidades, com o objetivo de verificar quais estavam em funcionamento, a periodicidade de ocorrência, datas e horários das reuniões, e as formas de contato com seus participantes. Dos seis conselhos locais da região, dois foram selecionados para a realização deste estudo, tendo como critério a frequência de reuniões. Em seguida, efetuaram-se contatos com os coordenadores das UBS cujos conselhos foram selecionados, apresentando-se a proposta da pesquisa.

Após a aprovação por votação entre os membros presentes, as reuniões foram acompanhadas durante quatro meses, utilizando-se do diário de campo para o registro de informações, dados e impressões consideradas relevantes. As entrevistas individuais foram realizadas posteriormente e tiveram, por cenário, os locais de maior conveniência ao entrevistado. No total, entrevistaram-se oito conselheiros e dois psicólogos, completando o número de dez entrevistas, sendo quatro conselheiros e um psicólogo provenientes de cada UBS. Visando garantir a representatividade peculiar dos CLS, entre os conselheiros entrevistados, incluíram-se quatro representantes dos trabalhadores - um médico, os dois coordenadores da UBS e um enfermeiro - , três representantes dos usuários e um representante de instituição parceira. Dois dos entrevistados eram do sexo masculino e oito do feminino.

Seguindo roteiro semiestruturado já submetido a pré-teste, as entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra. Em conjunto com os dados recolhidos no diário de campo, o material levantado foi analisado segundo a análise de conteúdo postulada por Bardin (1977) e balizado pela literatura crítica sobre participação social e promoção da saúde.

 

Resultados e discussões

Os dois conselhos acompanhados tinham um número aproximado de representantes que participavam ativamente de suas reuniões, embora fossem alocados em UBS de tamanhos totalmente díspares. Destarte, as reuniões acompanhadas tinham sempre entre nove e dez participantes, com predominância de, aproximadamente, 70% a 90% do sexo feminino. Os dois conselhos se reuniam mensalmente, de forma regular, embora fossem marcadas reuniões extraordinárias conforme a necessidade. Com base nos assuntos abordados nas reuniões, foi possível estabelecer quatro eixos temáticos, utilizados para a análise dos dados: informes de instituições e instâncias parceiras; campanhas e programas em exercício na UBS; problemas estruturais nos bairros atendidos pela UBS; problemas internos da UBS.

Em relação ao tema problemas internos da UBS, foram incluídas discussões sobre as condições físicas e a necessidade de aumento no número de profissionais. Destacam-se, aqui, questões referentes às reclamações pontuais de usuários quanto ao funcionamento da UBS, dado que traz duas diferentes facetas. Primeiramente, demonstra haver, em alguma medida, o reconhecimento do conselheiro como representante dos usuários, por ser ele abordado pela comunidade na reivindicação de melhorias, pontuando necessidades as mais diversas. Entretanto, isso pode denunciar uma relação demasiado distante entre os usuários e o conselho, visto que os usuários acreditam precisar de um porta-voz, mesmo tendo sua entrada na reunião totalmente franqueada, sendo o direito de voz concedido a critério do Plenário (Lei 6.606, 2006). Um entrevistado revela que as reuniões têm tendência ao esvaziamento, ou seja, os usuários não se apropriam dos espaços.

Um dos psicólogos entrevistados esclarece também a problemática do esvaziamento como uma questão complexa, na qual participação da comunidade acaba ficando restrita à atuação de poucos representantes. Destaca, como fatores privilegiados, certa forma fechada de funcionamento das reuniões, sendo pouco receptivas a novos participantes, bem como a própria limitação física: "As figuras acabam, muitas vezes, sendo as mesmas [...]. Eu queria que o [bairro] viesse inteiro, mas vai caber?" (psicóloga de UBS). A outra psicóloga entrevistada, ex-participante do conselho de sua UBS, denunciou, além da limitada presença da comunidade, a falta de firmeza nas discussões e assevera: "Não sei até que ponto a diretora ser a presidente do conselho não pode ser um empecilho [...]. As discussões não pegam".

O tema problemas estruturais nos bairros integra questões levantadas, principalmente, pelos representantes dos usuários, tais como o alagamento de uma praça, o acúmulo de lixo em um terreno baldio, fiações defeituosas, bueiros entupidos, falta de espaços de recreação para crianças, entre outras. Esse foi o bloco temático no qual uma noção ampliada de saúde assumiu maior consistência, porquanto apontaram para a importância de ações que ultrapassem os limites físicos da unidade, contemplando outros espaços comunitários. Surge, por exemplo, a compreensão de que acúmulo de lixo e água empoçada em locais da região estão ligados a problemas de saúde da comunidade. Demonstra-se, portanto, o entendimento da multideterminação que envolve o conceito de saúde para além da noção de negação da doença (Buss, 2000), o que indica, em certa medida, que os CLS pesquisados assumem ações de promoção da saúde entre suas atribuições. Entretanto, quatro das dez entrevistas indicaram entraves para a articulação entre a participação e a promoção da saúde. Um dos aspectos de destaque questão foi a dificuldade de comunicação entre usuário e conselheiro.

A gente não consegue ter esta leitura, não consegue fazer com que este conselho saia desta minúcia de discussão para estas grandes questões [da promoção da saúde]. A gente é iniciante ainda, talvez não pelo não entendimento ou pela fragilidade no entendimento dos participantes, mas é que é um conjunto de fatores que envolvem tanto alguns profissionais de saúde que estão envolvidos, a dificuldade que a gente ainda tem no relacionamento com o usuário e fazer com que isso ganhe um volume maior saindo desta esfera aqui. Elas [as conquistas] são muito pactuadas neste âmbito e a comunidade, às vezes, se frustra porque não entende como isto vem sendo pactuado e porque não tem reflexo. Ela não entende como sendo legítimo, ela não se sente representada (Conselheiro representante dos trabalhadores).

Certo desconhecimento sobre as verdadeiras atribuições do CLS, não só por parte da comunidade em geral, mas também dos próprios integrantes, é apontado por cinco entrevistados como um obstáculo para uma atuação mais ampliada, que se direcione com mais clareza a ações de promoção da saúde. Denuncia-se, nesse ínterim, um uso do CSL limitado a questões pontuais ou até pessoais:

O conselho atua muitas vezes de forma muito pontual. Ele quer saber só porque dona Maria não conseguiu a consulta para o dia tal [...] ele não se preocupa se tivemos um aumento no número de casos de sífilis, um aumento nos casos de dengue, a não ser que isso cause um impacto muito grande. Mas eu não vejo a preocupação com o macro (Conselheiro representante dos trabalhadores).

Essa fala atribui importância à situações mais abrangentes da comunidade. No entanto, permanece ainda muito distante na proposta da promoção da saúde, na medida em que opera de forma muito atada a certa lógica centrada na erradicação de doenças (Buss, 2000; Czeresnia, 2003). Outras falas, que trouxeram esse tema, foram analisadas no eixo campanhas e programas em exercício na unidade. Essas falas se referiram principalmente às campanhas de vacinação contra gripe, ao Programa Hiperdia (direcionado a hipertensos e diabéticos) e aos grupos antitabagismo. Assuntos dessa natureza provinham, principalmente, dos conselheiros representantes dos trabalhadores, solicitando que os representantes dos usuários repassassem informações à comunidade. Em um momento em que se situou como um problema a baixa frequência a um dos programas, a solução apresentada foi pautada no saber médico-científico, sem se colocar em análise que outros fatores poderiam estar envolvidos na baixa adesão por parte da comunidade. O enfrentamento da situação de baixa adesão às ações limitou-se a planos de maior divulgação da importância destas. Não foi considerada a importância da avaliação da própria comunidade sobre a importância das ações dentro de sua realidade local.

Os assuntos enquadrados como informes de instituições e instâncias parceiras vieram de outros setores interligados à área da saúde, como o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), o Centro de Apoio à Juventude (Cajun) e uma instância interna da unidade da saúde: o Colegiado Gestor (CGU).

Os colegiados gestores têm se constituído em espaço de discussão de problemas das unidades de saúde por meio de reuniões quinzenais, de sistema representativo idêntico ao CLS. Entretanto, o Colegiado Gestor é formado apenas por trabalhadores da unidade, de forma que cada categoria de trabalho é representada por um membro. Segundo Cecílio (2010), a gestão colegiada tem, em sua concepção, o objetivo de promover a democratização da vida organizacional do local de trabalho, ou seja, visa a que o processo de gestão da unidade seja compartilhado com o coletivo de trabalhadores. Cecílio (2010, p. 558) aponta, juntamente com Vazquez (2003), para perigo de os Colegiados Gestores se tornarem "simulacros das suas concepções originais", ou seja, de serem desacreditados por seus membros e, por isso, não alcançarem seu potencial de instância de descentralização de decisões.

As entrevistas indicaram para uma maior adesão dos trabalhadores ao Colegiado Gestor do que ao conselho local de saúde, fato que se considera relevante para análise, porque ambos contemplam questões de funcionamento da unidade. As reuniões do CGU são realizadas durante o horário e trabalho, e, nelas, a comunicação ocorre apenas entre profissionais. E mais, o esvaziamento do espaço do conselho, marcado pela extrema rotatividade de seus membros, foi uma questão abordada em mais da metade das entrevistas. O motivo destacado está na falta de um conhecimento prévio do papel do conselheiro, suas atribuições e direitos: "acho que deveria ter alguma coisa para ser mais contínuo, entrando a pessoa que saiba o que é [o conselho]" (conselheira representante de instituição parceira).

Essa rotatividade faz com que os representantes não consigam aquilatar suas conquistas, mesmo que, durante a abordagem de outras questões, várias iniciativas interessantes tenham sido citadas, como a garantia do funcionamento da unidade no turno noturno e a conquista de participação no acompanhamento da construção de uma nova sede para a unidade de saúde. Ou seja, existe o conhecimento de que o conselho pode promover ações importantes para a saúde na comunidade, porém ela não é reconhecida coletivamente.

Por fim, quanto à atuação dos psicólogos no processo de participação social, é importante afirmar que, embora nenhum dos profissionais entrevistados estivesse atuando, no momento, como membro dos conselhos locais de suas respectivas unidades, as entrevistas demonstraram um posicionamento crítico consistente. Destes destaca-se a crítica às situações em que as reuniões se resumiam à função de repasse de informes da UBS à comunidade. Convocados a assumir papel de "ajuda" na divulgação das ações da unidade, os representantes dos usuários são destituídos, nesses momentos, de seu papel como agentes proponentes (Carvalho, 1997). Outras questões foram apontadas como problemáticas no funcionamento de ambos os conselhos, principalmente em relação à dificuldade de democratização dos debates e ao uso partidário desses espaços. Assim, a principal contribuição dos profissionais psicólogos entrevistados residiu na defesa da importância de se garantir a existência do conselho, mas apenas mediante a análise dos usos que são feitos dele, o modo como ele vem sendo operacionalizado:

São fundamentais estes espaços coletivos de deliberação, o conselho, a conferências de saúde [...]. Mas acho que nós temos muito o que exercitar ainda nisso. Eu vejo como estes espaços ainda são muito utilizados para fins de politicagem, mesmo... Fins de mostrar a cara por causa de eleição [...]. Não é porque é conselho de saúde que tem plano comum, sabe? Não é porque é Conselho de Saúde que é legal. A gente precisa pensar no como fazer (Psicóloga da UBS).

Logo, na busca por uma nova forma de operar o trabalho em saúde, calcada na solidariedade entre os profissionais e destes com a comunidade, poderemos ter, na ação do profissional psicólogo, um grande aliado. Dependendo de alguns elementos, como a clareza da necessidade de solidariedade entre a população, a inclusão da discussão de saúde no contexto geral da vida e o incentivo às atividades de organização da comunidade, poderemos ter nesse profissional um aliado privilegiado na construção de um novo senso comum, pois ele é capaz de veicular os saberes populares, realizando a tradução entre o que diz o profissional e o que entende e deseja a população, como afirma Boaventura de Souza Santos (2000). Esse intercâmbio de ideias e interlocução de sentidos pode ajudar a inventar novas formas de entender o que é saúde, vista como o elemento capaz de contribuir na construção de uma nova forma de regulação social que almeje a emancipação da vida.

Trata-se de uma alta expectativa que o trabalho técnico detém em relação ao trabalho de organização da participação política da comunidade. Não há dúvida de que empenho, dedicação e compromisso estão presentes nas falas desses profissionais. Porém, a solidariedade com a comunidade não tem respaldo institucional. Nos territórios estudados, nem a população percebe a importância de sua participação, nem os técnicos, de modo geral, conseguem ver a comunidade como parceira. Os que fazem uma leitura diferenciada, acreditando que o papel do profissional seria ajudar a comunidade no autogerenciamento de sua saúde, encontram sérias dificuldades de tempo, espaço e reconhecimento para levar sua postura adiante.

Na maioria das interações observadas, entre os técnicos e as pessoas da comunidade, o que se vê não deve ser tomado exatamente como uma troca, pois as formas de ser da população não encontram espaço de tradução e reconhecimento. As expressões "nós e eles", ouvidas inúmeras vezes, não apontam no sentido de uma construção conjunta, embora alguns afirmem que, se a população estivesse ao lado dos técnicos de saúde, haveria a possibilidade de conquistar melhores condições de trabalho e, por conseguinte, de atendimento ao usuário: "A comunidade não sabe o poder que ela tem. Se ela tivesse uma participação mais efetiva, melhoraria muito as coisas. Mas ela não vem. Só vem quebrar o pau. Pensa que assim vai resolver" (profissional de saúde).

De modo geral, os profissionais não têm o apoio necessário para atividades que visam fomentar a participação comunitária e que estabeleçam uma maior autonomia no cuidado de si, uma maior democratização nas relações técnicos/comunidade e, enfim, a construção da emancipação social: "Quando você vai trabalhar com a comunidade, tem que ter essa relação, porque vai ter troca. Ela confia em mim e eu confio nela. Ela precisa de mim e eu dela" (profissional de saúde).

O desenvolvimento desta pesquisa evidenciou quão múltiplas e complexas são as questões que envolvem a participação social e como variam suas formas de entendimento e exercício. Certamente, é possível constatar que existe, ao menos nas unidades de saúde pesquisadas, uma interferência mútua entre a participação da comunidade nos processos de gestão e as noções de saúde que circulam e regem as ações empregadas naquele espaço.

Nos CLS estudados, o uso da comunidade pelo seu direito de participação social se dava, essencialmente, por meio de seus representantes, que são, segundo relataram, frequentemente procurados para a exposição de problemas e dificuldades pessoais dos usuários. Embora tal fato demonstre um uso pessoalizado do conselho, o que vai na contramão de análises mais abrangentes e coletivas, representa certo grau de apropriação da comunidade desse espaço de discussão que deve ser incentivada e ampliada.

Não se pode deixar de destacar o fato de que o esvaziamento dos conselhos, principalmente por parte dos usuários, demonstrou dificuldades de circulação das informações relacionadas ao conselho e ao papel do conselheiro na comunidade. Talvez seja o caso de criar mecanismos capazes de sanar tais dificuldades. Uma forma possível estaria em colocar, como condição prévia para a inscrição do candidato, o comparecimento a uma reunião de esclarecimento sobre essas questões, junto aos conselheiros mais antigos, de forma que se fizesse também um resgate da história do conselho e de suas conquistas. Trazer à tona a força de realização do conselho pode ser uma estratégia importante para diminuir a distância entre os usuários e o conselho, de forma que sua apropriação por esse espaço tenha um sentido real, uma vez que há compreensão do seu poder de ação.

Ademais, demonstrou-se fundamental colocar em análise a relação do conselho com outras instâncias de decisão que venham a coexistir na unidade, tal qual o CGU. O fato de ambos os grupos terem objetivos em comum torna essencial essa comunicação e cooperação, com o propósito unir forças em um trabalho de rede, em vez de criar um sistema fragmentado e burocratizante.

Aponta-se, por fim, para a necessidade da constante análise do funcionamento do conselho, que se atente para algumas configurações indesejáveis, entre as quais o uso partidário dos conselhos, uma rígida hierarquização de saberes, uma abordagem demasiadamente pontual e individualizada sobre as demandas da comunidade, o sufocamento do papel do usuário enquanto cogestor das ações da UBS, entre outras. Nesse sentido, defendemos a importância do profissional psicólogo, como colaborador do processo, promovendo a circulação e troca dos saberes em jogo, além de ser um potente aliado na análise dos modos de funcionamento que se têm operado nos CLS, a fim de garantir a potência de promover, de fato, a participação social e ampliar as ações de promoção da saúde.

 

Referências

Bardin, L. (1997). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Buss, P. M. (2000). Promoção da saúde e qualidade de vida. Ciência & Saúde Coletiva, 1(5), 163-177.         [ Links ]

Carvalho, A. I. (1997). Conselhos de saúde, responsabilidade pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do Estado. In S. Fleury (Org.). Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial.         [ Links ]

Cecílio, L. C. O. (2010). Colegiados de gestão em serviços de saúde: um estudo empírico. Cadernos de Saúde Pública, 26(3), 557-566.         [ Links ]

Coletânea de normas para o controle social no Sistema Único de Saúde. (2007). Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Czeresnia, D. (2003). Promoção da saúde: conceito, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz.         [ Links ]

Dimenstein, M. (2007). Micropolíticas dos afetos: reinventando a participação e o controle social em saúde. In M. E. B. Barros, M. I. B. Moreira, H. A. Novo, & E. M. Rosa (Org.). Psicologia e saúde: desafios às políticas públicas no Brasil. Vitória: Edufes.         [ Links ]

Iglesias, A. (2009) Em nome da promoção à saúde: análise das ações de macroregião do município de Vitória - ES. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil.         [ Links ]

Lei 6.606, de 5 de junho de 2006 (2006). Vitória. Recuperado em 20 maio, 2009, de http://sistemas.vitoria.es.gov.br/webleis/Leis/L6606.PDF.         [ Links ]

Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990 (1990). Brasília: Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde.         [ Links ]

Lei 8.142, de 28 de dezembro de 1990 (1990). Diário Oficial da União, Brasília.         [ Links ]

Minayo, M. C. S., & Sanches, O. (1993). Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade? Cadernos de Saúde Púbica, 9(3), 239-262.         [ Links ]

Pessoto, U. C., Nascimento, P. R., & Heimann, L. S. (2001). A gestão semiplena e a participação popular na administração da saúde. Cadernos de Saúde Pública, 17(1), 89-97.         [ Links ]

Política Nacional de Promoção da Saúde (2006). Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado em 20 maio, 2009, de http://www.portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/portaria687_2006_anexo1.pdf.         [ Links ]

Santos, B. S. (2000). Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Santos, K. L., Quintanilha, B. C., & Dalbello-Araújo, M. (2010). A atuação do psicólogo na promoção da saúde. Revista de Psicologia: Teoria e Prática, 12, 181-196.         [ Links ]

Sipioni, M. E. (2009). Legitimidade da representação social em conselhos de saúde: o caso do conselho municipal de saúde de Vitória - ES. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil.         [ Links ]

Vazquez, M. L. (2003). Participação social nos serviços de saúde: concepções dos usuários e líderes comunitários em dois municípios do Nordeste do Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 19(2), 579-591.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Nathalia Domitrovic
Universidade Federal do Espírito Santo
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional
Avenida Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras
Vitória - ES - Brasil. CEP: 29075-910
E-mail: n.domitrovic@gmail.com

Submissão: 30/10/2010
Aceitação: 8/11/2012