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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.15 no.2 São Paulo Aug. 2013

 

PSICOLOGIA CLÍNICA

 

Repercussões da depressão infantil e materna no brincar de crianças: revisão sistemática

 

Effects of children's and mother's depression in children's playing: systematic review

 

Efectos de la depresión en los niños y madres en niños que juegan: revisión sistemática

 

 

Cibele Carvalho; Vera Regina Röhnelt Ramires

Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo - RS - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo teve como foco o processo do brincar em crianças com indicadores de depressão ou cujas mães apresentavam depressão. A literatura vem demonstrando a importância do brincar para o desenvolvimento infantil, bem como ressaltando a incapacidade ou a impossibilidade dessa capacidade como um sintoma de problemas na criança. Foi realizada uma revisão sistemática de literatura, com o objetivo de visualizar estudos sobre o foco desta pesquisa. Foram identificados 16 estudos que contemplaram os critérios de inclusão. A revisão revelou evidências que apoiam a utilização do brincar como um recurso importante na avaliação psicológica de sintomas depressivos na infância, com diferenças encontradas no comportamento lúdico de crianças que apresentavam esse quadro. Verificou-se um aumento de pesquisas nos últimos anos, tendo os estudos mais recentes se dedicado a avaliar a eficácia do tratamento para crianças com indicadores de depressão, utilizando o brincar como recurso terapêutico.

Palavras-chave: ludoterapia; criança; mães; depressão; desenvolvimento infantil.


ABSTRACT

The present study focused the play's process in children with depression indicators or whose mothers had depression. The literature has demonstrated the importance of play to children's development, as well as highlighting the inability or failure of this ability as a symptom of problems in the child. This study systematically reviewed the research literature with aim to identify studies about this researches focus. It was identified 16 separate studies that met criteria for inclusion. The review revealed evidence to support play's relevance as an important resource in the psychology evaluation of depressive symptoms in childhood, with differences found in the behavior of depressed and nondepressed children in play situations. The review indicates there has been an growth in research in recent years, so that recent studies has been devoted to evaluating the effectiveness of treatment for children with indicators of depression, using play as a therapeutic resource.

Keywords: play therapy; child; mothers; depression; child development.


RESUMEN

Este estudio se centró en el proceso de juego en los niños con indicadores de depresión o de madres con depresión. La literatura ha demostrado la importancia del juego para el desarrollo del niño, así como poner de relieve la incapacidad o la falta de esta habilidad como un síntoma de problemas en el niño. Se realizó una revisión sistemática de la literatura, con el objetivo de visualizar los estudios sobre el enfoque de esta investigación. Se identificaron 16 estudios que contemplen los criterios de inclusión. El examen reveló evidencia que apoya el uso del juego como un recurso importante en la evaluación psicológica de los síntomas depresivos en la infancia, con diferencias en el comportamiento de juego de los niños que poseían esta imagen. Hubo un aumento de la investigación en los últimos años, con estudios más recientes están dedicados a evaluar la eficacia del tratamiento para los niños con indicadores de depresión, utilizando el juego como recurso terapéutico.

Palabras clave: ludoterapia; niño; madres; depresión; desarrollo infantil.


 

 

O foco deste trabalho foi o processo do brincar em crianças com indicadores de depressão ou cujas mães apresentavam depressão. O brincar já foi descrito por diversos autores do campo psicanalítico que evidenciaram sua importância para o desenvolvimento infantil. Entre esses autores, destacam-se Melanie Klein (1981) e Donald W. Winnicott (1975).

A pioneira em utilizar o uso do brinquedo na psicanálise com crianças foi Melanie Klein (1981), que evidenciou que o conteúdo específico dos jogos infantis é idêntico ao núcleo das fantasias das crianças, e uma das principais funções dos jogos infantis é proporcionar uma descarga para essas fantasias. Klein (1981) assinalou também que, por meio da representação do brincar, é possibilitada uma realização de desejos, como a invenção de personagens característicos no jogo da criança.

Para Klein (1981), o jogo revela a atitude da criança perante a realidade, por meio de mecanismos de dissociação e projeção, demonstrando um dos principais incentivos para a transferência, algo extremamente significativo para o trabalho analítico. Para a autora, cada brinquedo e cada brincadeira têm sempre uma variedade de significados simbólicos, que estão ligados a fantasias, desejos e experiências das crianças, e as inibições na capacidade de formar símbolos e usá-los para desenvolver a fantasia são indicadores de perturbações importantes (Klein, 1981).

Para Winnicott (1975), essas dificuldades refletem as falhas do cuidado materno e do ambiente para o bom desenvolvimento da criança, pois as falhas da mãe são sentidas pelo bebê como ameaças que dificultam o seu desenvolvimento, provocando angústias que colocam em xeque a continuidade do ser. O autor concebia o brincar como um aspecto universal da natureza humana, sinônimo de saúde, pois facilita o crescimento, conduz aos relacionamentos grupais e é uma experiência criadora, intensamente real para quem o faz. O brincar pode ser utilizado como uma forma de comunicação na psicoterapia, sendo a psicanálise desenvolvida como forma altamente especializada da expressão do brincar, a serviço da possibilidade de comunicação dos conflitos internos da criança. Conforme Winnicott (1975), o brincar tem um lugar e um tempo para acontecer, e, para dar um lugar ao brincar, o autor postulou o que chamou de espaço potencial entre o bebê e o ambiente, representado em um primeiro momento pela mãe.

Esse espaço somente acontece perante uma relação de confiança estabelecida entre o bebê e a mãe, pois a mãe suficientemente boa, que consegue se conectar às necessidades do bebê, permitindo-lhe assim a ilusão de onipotência, gera a potencialidade para que o bebê, por meio de sua criatividade, utilize-se do brincar no momento em que a mãe está ausente, mas com a confiança de que ela retornará. A primeira experiência do brincar, para o bebê, se daria no momento em que utiliza um objeto transicional, como um boneco, um cobertor, uma fralda, algo que diminua sua ansiedade na ausência da mãe. Esse objeto, portanto, é algo entre a fantasia e a realidade, e constitui-se como um símbolo de união do bebê e da mãe, ao mesmo tempo que significa o início da separação (Winnicott, 1975). A vivência de falhas e inconstância do vínculo nesse ambiente acaba alterando o desenvolvimento normal da criança e, consequentemente, dificulta a capacidade da criança de simbolizar, o que a torna também incapaz de brincar (Winnicott, 1975).

A dificuldade ou a impossibilidade de brincar pode ser considerada um sintoma de problemas na criança. Entre os problemas de desenvolvimento, ou entre as expressões de sofrimento psíquico da criança, a depressão tem sido considerada e descrita por diversos autores, como é discutido a seguir.

A depressão é um problema frequente encontrado pelos profissionais da saúde mental ao diagnosticarem e tratarem seus pacientes (Schneider & Ramires, 2007). Estimativas apontam que, na população brasileira, de 0,4% a 3% das crianças apresentam características depressivas (Bahls, 2002).

Coutinho e Ramos (2008) afirmam que, na infância, a depressão está associada a perturbações do humor de duração variáveis. Esse quadro, em geral, é acompanhado por sintomas físicos e mentais, o que interfere na forma de sentir, pensar e agir dessa população.

Em crianças pré-escolares, com idade entre 6 e 7 anos, a sintomatologia mais comum relacionada à depressão é representada por sintomas físicos, como fadiga, tontura, dores de cabeça e abdominais. As queixas de sintomas físicos são seguidas por ansiedade, especialmente ansiedade de separação, fobias, agitação psicomotora ou hiperatividade, irritabilidade, diminuição do apetite com falha em alcançar o peso adequado e alterações do sono. Também são relacionadas, com menor frequência, a ocorrência de enurese e encoprese, fisionomia triste, comunicação deficiente, choro frequente, movimentos repetitivos e auto e heteroagressividade na forma de comportamento agressivo e destrutivo.

Uma avaliação adequada pode conduzir à intervenção necessária, uma vez que, segundo Bahls e Bahls (2003), a depressão infantil constitui uma doença grave que pode se prolongar ou ser recorrente na idade adulta. Segundo Fonagy, Target, Cottrell, Phillips e Kurtz (2002), os estudos que abordam o tratamento do quadro depressivo em crianças e adolescentes demonstram uma adaptação de modelos adultos, deixando evidente a falta de compreensão acerca do desenvolvimento, que deveria identificar condições próprias de cada etapa do crescimento emocional. Nessa perspectiva, o brincar revela-se como uma possibilidade relevante de compreender o universo de crianças com indicadores de depressão, tanto no processo de avaliação psicológica como de intervenção clínica.

Dessa forma, tendo em vista o que foi discutido até aqui, o presente estudo teve por objetivo realizar uma revisão sistemática da literatura sobre o tema do brincar em crianças com indicadores de depressão ou cujas mães apresentavam depressão. Espera-se, assim, contribuir para a compreensão dessa importante atividade humana e de seu impacto na situação clínica já descrita.

 

Método

Foram consultadas as bases de dados PsycINFO, Portal da Capes, Ebsco, SciELO e Pepsic. Os descritores utilizados foram children, depression e play. O período abrangido pela revisão foi de janeiro de 1985 a setembro de 2011.

Critérios de inclusão e de exclusão

Os artigos foram incluídos de acordo com os seguintes critérios:

Idade: optou-se por incluir estudos que compreendessem a faixa etária dos participantes entre 1 e 12 anos de idade. Entretanto, um estudo que abrangeu a faixa etária de 8 a 16 e outro de 4 a 16 anos foram incluídos.

Foco do estudo: foram incluídos estudos que abordassem o brincar de crianças deprimidas e/ou o brincar de crianças de mães deprimidas.

Procedimentos de coleta e análise dos dados

Todos os estudos que contemplaram os critérios de inclusão foram analisados descritiva e qualitativamente a partir de uma síntese dos dados realizada pelos autores, em que as principais características de cada estudo foram sistematizadas e integradas em um quadro apresentado no final do artigo (Quadro 1). Os estudos foram então analisados de acordo com as seguintes categorias: foco, método e resultados. Com os dados já tabulados, procedeu-se à busca de sínteses convergentes e divergentes de ideias, selecionando os temas mais recorrentes, destacados por categorias temáticas, que serão apresentadas e discutidas a seguir. Três estudos não estavam disponíveis na íntegra. Desse modo, realizaram-se esses mesmos procedimentos com os resumos.

 

Resultados

Inicialmente, foram capturados 571 estudos. Numa análise preliminar, identificou-se que a maioria deles não abordava o foco estabelecido para este estudo. Tratava-se de estudos que abordavam outras faixas etárias (adolescentes e adultos), outras patologias, conflitos parentais, brincar etc. Com base no foco descrito, selecionaram-se 16 estudos que contemplavam plenamente os critérios de inclusão.

Os estudos foram então agrupados em três categorias temáticas:

O brincar de crianças com sintomas depressivos.

O brincar de crianças de mães deprimidas.

O brincar utilizado como recurso terapêutico no tratamento de crianças com sintomas depressivos.

Os resultados, mostrados no Quadro 1, demonstram um crescimento no número de pesquisas nos últimos anos, identificando-se, nesta revisão, dez estudos, dos 16 encontrados, realizados nos anos 2000, apenas dois na década de 1980 e quatro na década de 1990. Os estudos mais recentes, realizados na primeira década dos anos 2000, dedicaram-se a avaliar a eficácia do tratamento para crianças com indicadores de depressão, utilizando o brincar como recurso terapêutico. Foram encontrados seis estudos nessa categoria. Nas categorias "o brincar de crianças com sintomas depressivos" e "o brincar de crianças de mães deprimidas", encontraram-se cinco estudos para cada caso.

Um apecto relevante refere-se ao delineamento das pesquisas: 12 estudos foram realizados por meio de métodos quantitativos, dos quais cinco eram estudos longitudinais. Apenas quatro estudos eram qualitativos.

A maior parte dos estudos (12) foi publicada nos Estados Unidos e quatro foram publicados na Inglaterra, o que demonstra a hegemonia americana nas pesquisas com esse foco. A maioria dos estudos (nove) abrangeu participantes em idade pré-escolar, e sete tiveram participantes em idade escolar.

O brincar de crianças com indicadores de depressão

Alguns estudos recentes buscaram identificar e avaliar as características de crianças deprimidas no que tange à interação lúdica e às peculiaridades no seu comportamento simbólico, concluindo que há diferenças entre o brincar de crianças deprimidas e não deprimidas (Altmann & Gotlib, 1988; Field et al., 1987; Lous, Wit, Bruyn, Riksen-Walraven, & Rost, 2000; Lous, Wit, Bruyn, & Riksen-Walraven, 2002). Verificou-se que sintomas comportamentais da depressão, como agitação psicomotora e retardo, podem ser sistematicamente observados durante procedimentos padronizados de jogos (Altmann & Gotlib, 1988; Field et al., 1987), assim como a menor competência social demonstrada por crianças deprimidas que, de acordo com o estudo de Altmann e Gotlib (1988), alcançaram maior abertura para o contato social, mas gastaram a maior parte do tempo em brincadeiras solitárias e em interações negativas com seus pares.

A principal característica observada no brincar de crianças com indicadores de depressão está relacionada a diferenças nos valores de jogo simbólico em situações de brincadeira livre. Essas crianças demonstraram jogar significativamente menos em nível simbólico, não conseguindo se envolver com os jogos e revelando baixo nível de fantasia. São características que as diferenciam de crianças que não possuem indicação para atendimento clínico (Field et al., 1987; Lous et al., 2000, 2002), como também para outras desordens de comportamento, como apresentado no estudo de Field et al. (1987), comparando-as com crianças com trantorno de conduta.

De acordo com o estudo de Lous et al. (2002), realizado com 90 crianças, sendo 30 crianças deprimidas, 30 crianças com outras psicopatologias e 30 crianças sem qualquer problema identificado, que foram avaliadas em três situações de brincadeira, o comportamento de crianças deprimidas observadas durante as brincadeiras não foi menos ativo. Entretanto, elas demonstraram um comportamento significativo de não brincadeira, com a atenção mais voltada para o meio ambiente e para o pesquisador, o que pode refletir características clínicas de perda de concentração. Esses resultados sugerem que as crianças deprimidas podem não ser comportamentalmente retardadas e inativas, mas ativas de maneira diferente. Uma possível explicação, para esses autores, seria de que o brincar exige mais atenção e controle interno do que o comportamento de não brincadeira, assim como os estados depressivos poderiam ser mais prováveis de suprimir o comportamento do brincar do que o comportamento de não brincadeira.

Ainda de acordo com o estudo de Lous et al. (2002), um aspecto relevante observado no brincar dessas crianças foi a nítida queda na expressão simbólica quando as crianças foram colocadas a completar narrativas iniciadas pelo pesquisador, e, nessas narrativas, o humor negativo na história foi apresentado. Esses resultados apoiam a hipótese inicial do estudo de que os problemas regulatórios que caracterizam a depressão das crianças têm um efeito inibidor sobre o jogo simbólico dessas crianças. Esse tipo de situação provavelmente desencadeia pensamentos e emoções que são de difícil controle para as crianças deprimidas, pois afetam seu sistema de regulação de problemas. Outro aspecto ressaltado foi de que a inibição do jogo simbólico e a fragmentação do comportamento das crianças deprimidas lembram crianças com apego desorganizado, que são caracterizadas por comportamentos desorganizados e estados desengajados em situações interpessoais estressantes. Entretanto, não se pode confirmar essa hipótese, pois, no presente estudo, não foi examinado que relações se estabelecem entre a experiência interpessoal das crianças, o apego, a depressão e o comportamento de brincar.

O estudo de Archangelo (2010) aborda uma variável ambiental que envolve a incapacidade de brincar de algumas crianças. Nesse estudo, a autora investigou o impacto da exclusão social e o quanto essa vivência pode estar associada ao surgimento de sintomas depressivos na infância, assim como ao impedimento do desenvolvimento natural de funções psíquicas infantis, como o desenvolvimento da capacidade de simbolização. De acordo com o estudo, que avaliou crianças encaminhadas para tratamento psicológico pelos professores como tendo dificuldade de aprendizagem, elas demonstraram uma falha no desenvolvimento da capacidade de simbolizar, que pode ser resultado da privação, pela exclusão social, de necessidades básicas que favoreçam o desenvolvimento psíquico. Constatou-se ainda que uma possível consequência provocada pela dificuldade das crianças de simbolizar seria a dificuldade destas para aprender a ler, escrever e formar pensamentos.

O brincar de crianças de mães deprimidas

Alguns estudos buscaram avaliar a influência da depressão materna no brincar de crianças, na tentativa de compreender se há diferenças na capacidade simbólica des-sas crianças, tendo em vista o entendimento de que a influência materna é importantíssima no desenvolvimento da capacidade da criança para explorar o ambiente (Hipwell, Murray, Ducournau, & Stein, 2005; Rubin, Both, Zahn-Waxler, Cummings, & Wilkinson, 1991; Tingley, 1994). Verificou-se que crianças de mães deprimidas jogaram com menos frequência, de forma mais inibida, ansiosa (Rubin et al., 1991) e, em algumas situações, mais agressiva quando colocadas a brincar com outras crianças (Hipwell et al., 2005). Além disso, houve algumas diferenças de gênero no brincar das crianças expostas à depressão materna recente. As meninas, em suas brincadeiras, demonstraram, em diversas situações, o cuidar da mãe, enquanto os meninos apresentaram maior agressividade em seu jogo e pouca capacidade para dar estrutura narrativa à sua experiência (Murray, Woolgar, Briers, & Hipwell, 1999).

Nos estudos de Hart, Jones, Field e Lundy (1999) e Tingley (1994), foi determinante o fato de o brincar de filhos maiores, com idade entre 5 e 6 anos, estar relacionado ao modo como as mães interagiam com eles em uma fase mais precoce do desenvolvimento, quando tinham entre 2 e 3 anos. Primeiramente, o estudo longitudinal de Tingley (1994) avaliou, de forma isolada, o brincar de filhos de mães deprimidas e, em seguida, a interação de mães e filhos em dois momentos: quando as crianças tinham de 2 a 3 anos, e depois a avaliação foi repetida quando elas tinham de 5 a 6 anos. Verificou-se que, quando a capacidade da mãe deprimida para o jogo simbólico estava prejudicada, poderia haver um impacto maior no desenvolvimento das crianças do que quando a participação no jogo simbólico não fosse parte do repertório de uma mãe não deprimida. Dessa forma, os filhos de mães deprimidas produziram de forma menos sustentada o jogo de fantasia.

Ainda de acordo com o estudo de Tingley (1994), não é possível concluir que há um comprometimento da capacidade de simbolização de crianças com mães deprimidas, entretanto verificou-se uma redução no nível de jogo simbólico dessas crianças. Dessa forma, os filhos de mães deprimidas tiveram menor probabilidade de explorar um cenário novo e foram menos propensos a interagir com um adulto estranho do que filhos de mães não deprimidas. Pode-se inferir que crianças com mães deprimidas, principalmente aquelas cuja depressão é severa e crônica, internalizam de forma diferente, talvez não de modo ideal, visões de si mesmas e dos outros quando as mães não se envolvem no jogo simbólico.

O brincar utilizado como recurso terapêutico no tratamento de crianças com indicadores de depressão

Os estudos mais recentes desta revisão se propuseram a avaliar o brincar como um possível recurso terapêutico no tratamento de sintomas depressivos na infância, tanto em nível individual (Capps, 2007; Prat, 2001) como familiar (Lantz & Raiz, 2003) e grupal (Baggerly, 2004; Li, Chung, & Ho, 2011; Shen, 2002). Em todos os estudos, tanto nos quantitativos quanto nos qualitativos, foi verificada a eficácia dos tratamentos baseados na ludoterapia, os quais reduziram, na maioria dos casos, de forma significativa, os índices de depressão nas crianças, o que demonstra que o trabalho lúdico contribui para elaborar situações traumáticas vivenciadas pelas crianças (Baggerly, 2004; Capps, 2007; Lantz & Raiz, 2003; Li, Chung, & Ho, 2011; Prat, 2001; Shen, 2002).

De acordo com Capps (2007) e Lantz & Raiz (2003), a natureza desagradável de uma experiência nem sempre representa uma inadequação para jogar. Por meio do jogo, as crianças conseguem repetir tudo o que tem um grande significado na vida real para elas e, ao fazê-lo, transformam-se em donas da situação, conseguem ressignificar essas experiências, saem de uma posição passiva e passam a vivenciar uma posição ativa em relação a seus conflitos e traumas.

Dois fatores contribuíram significativamente para redução dos sintomas depressivos das crianças. Um deles foi o ambiente seguro proporcionado pela ludoterapia, por meio do qual elas conseguiram ressignificar seus conflitos e traumas (Baggerly, 2004; Capps, 2007; Lantz & Raiz, 2003; Li et al., 2011; Prat, 2001; Shen, 2002). O outro foi o brincar terapêutico que facilitou uma zona de experimentação para as crianças, por meio da qual elas puderam experimentar o contato com o outro e com as situações traumáticas sem se sentir em perigo (Prat, 2001).

Prat (2001) demonstrou a eficácia de um jogo pensado para criar a capacidade de simbolização em duas crianças que apresentavam um estado depressivo profundo. Ambas apresentavam estados mentais concretos, tendo dificuldade em se envolver com materiais lúdicos. Em virtude disso, foi proposto o jogo do "esconde-esconde" na terapia, uma técnica específica para permitir a construção do funcionamento representacional. Em um primeiro momento, o jogo era vivenciado de modo real, sendo aos poucos substituído pelo esconde-esconde imaginário. Por meio desse jogo, foi apresentado para duas crianças um universo imaginário, onde tudo é possível, proporcionando a elas o acesso a um espaço até então desconhecido, o mundo da fantasia. O autor descreve esse lugar como um espaço psíquico intermediário. Todo o período ativo no jogo de esconder e procurar imaginário consiste na exploração apaixonada e entusiasta pela criança dessas novas áreas do pensamento. O esconde-esconde imaginário foi uma ajuda para a construção de um espaço criativo, sendo o instrumento para essa transformação o espaço compartilhado instituído no jogo.

No estudo de Li et al. (2011), implementou-se o uso de jogos de computador como brinquedo terapêutico para crianças com câncer, internadas em um hospital. Verificou-se a efetividade da terapia na redução dos sintomas depressivos das crianças, pois permitiu a elas a vivência de um momento lúdico, em um período em que vivenciavam uma doença grave, que gerava estresse e restrições físicas e que acabava interrompendo o jogo natural e de socialização, que são essenciais para o crescimento normal e o desenvolvimento das crianças.

Baggerly (2004) e Shen (2002) constataram a importância da abordagem terapêutica com crianças que experienciaram catástrofes naturais, como um terremoto, e sociais, como a falta de moradia, tendo limitados poderes para mudar o seu meio. Dessa forma, o clima promovido no processo de ludoterapia demonstrou diferenças significativas entre o pré e o pós-tratamento. Os sentimentos de confiabilidade e estabilidade aumentaram na relação entre as crianças, e, por meio das intervenções do terapeuta, foi possível ajudar as crianças sobreviventes a melhor ancorar-se psicologicamente (Shen, 2002).

Para Baggerly (2004), foi possível também construir sentimentos de responsabilidade e incentivo, conseguindo aumentar a autoestima das crianças, assim como o sentimento de competência, o que pode ser considerado um fator de proteção para a saúde mental na vida adulta. Verificou-se também que intervenções precoces por meio dos processos de ludoterapia de grupo podem ajudar a capacitar essas crianças a superar sentimentos de inadequação e desenvolver habilidades que possam impedir a sua falta de moradias quando adultas. O ambiente terapêutico conseguiu proporcionar um ambiente seguro em que as crianças poderiam contar verbal ou simbolicamente suas histórias, o que ajudou para que obtivessem sentimento de pertença, algo que estava comprometido na maioria delas.

 

Discussão

Esta revisão revela evidências que apoiam a utilização do brincar como um recurso importante na avaliação de sintomas depressivos na infância, devido a diferenças significativas encontradas no comportamento lúdico de crianças que apresentavam esse quadro. Outra evidência revelada por este estudo apoia a eficácia do brincar utilizado como recurso terapêutico no tratamento de sintomas depressivos na infância.

A maioria dos estudos utilizou métodos quantitativos, tanto para avaliar se o brincar de crianças deprimidas diferia do brincar de crianças não deprimidas, como para avaliar a efetividade do brincar como um recurso terapêutico no tratamento da depressão infantil. Além disso, foi significativo o número de estudos longitudinais, principalmente para avaliar o brincar de filhos de mães deprimidas, que investigaram a influência da depressão materna na formação da capacidade simbólica das crianças e avaliaram os possíveis impactos desse quadro no brincar das crianças. A maior parte dos estudos envolveu participantes de idade pré-escolar, analisou o brincar nessa faixa etária e revelou uma lacuna para futuras pesquisas que envolvam o brincar de crianças mais velhas, em idade escolar.

Embora ainda se utilizem como padrão de diagnóstico para a depressão infantil os mesmos aspectos do diagnóstico de adultos, esses estudos começam a dar algumas referências sobre como utilizar o brincar como uma possibilidade de diagnóstico diferenciado na infância, bem como para o tratamento dessa patologia:

Embora existam poucos estudos que avaliem diferenças do brincar de crianças deprimidas e não deprimidas, aqueles que existem indicam diferenças significativas relacionadas aos valores de jogos simbólicos significativamente menores de crianças deprimidas (Lous et al., 2000, 2002).

Como forma de tratamento para crianças com indicadores de depressão, demonstrou-se a eficácia da utilização do brincar como recurso terapêutico, conseguindo reduzir significativamente os índices de depressão após a ludoterapia (Baggerly, 2004; Capps, 2007; Lantz & Raiz, 2003; Li et al., 2011; Prat, 2001; Shen, 2002).

Há indicações de que o tratamento lúdico para crianças possibilita que elas saiam de uma posição passiva em relação às suas experiências traumáticas e passem a vivenciar uma posição ativa, de modo que consigam ressignificar suas experiências e, dessa forma, reduzir os sintomas depressivos (Capps, 2007; Lantz & Raiz, 2003).

Aponta-se o ambiente seguro proporcionado pela ludoterapia como um fator determinante para que as crianças consigam ressignificar seus conflitos e traumas, na medida em que se apropriam desse espaço (Baggerly, 2004; Capps, 2007; Lantz & Raiz, 2003; Li et al., 2011; Prat, 2001; Shen, 2002).

Verificou-se que filhos de mães deprimidas também demonstraram diferenças no brincar em comparação com filhos de mães não deprimidas, jogando com menos frequência, com reduzido nível de jogo simbólico, de forma mais inibida e ansiosa (Rubin et al., 1991; Tingley, 1994).

O presente estudo revela que, apesar do crescimento nos últimos anos, há ainda poucos estudos sobre a avaliação e intervenção clínica na depressão infantil, sobretudo aqueles voltados para a ludoterapia. Pesquisas que ratifiquem ou não os resultados já obtidos em estudos anteriores sobre o brincar de crianças com indicadores de depressão, em diferentes contextos e várias faixas etárias até a adolescência, podem trazer importantes subsídios. Da mesma forma, estudos que objetivem explorar o processo da ludoterapia para que se compreenda de que forma ela proporciona melhoras signiticativas nos sintomas depressivos irão contribuir para aumentar o entendimento desse processo.

 

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Endereço para correspondência:
Cibele Carvalho
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Avenida Unisinos, 950, Cristo Rei
São Leopoldo - RS - Brasil. CEP: 93022-000
E-mail: cibelecarvalho_8@hotmail.com

Submissão: 11.01.2012
Aceitação: 10.05.2013