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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.15 no.2 São Paulo Aug. 2013

 

PSICOLOGIA CLÍNICA

 

Bulimia nervosa: uma articulação entre aspectos emocionais e rede de apoio social

 

Bulimia nervosa: a link between emotional aspects and social support network

 

Bulimia nerviosa: una articulación entre aspectos emocionales y red de apoyo social

 

 

Carolina LeonidasI; Maria Aparecida CrepaldiII; Manoel Antônio dos SantosI

IUniversidade de São Paulo, São Paulo - SP - Brasil
IIUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis - SC - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As redes de apoio social são configuradas pelas relações interpessoais significativas que as pessoas estabelecem nas situações cotidianas. Há escassez de estudos que investiguem o modo como a rede de apoio se articula com a personalidade nos transtornos alimentares. Este estudo objetivou investigar possíveis relações entre os aspectos emocionais de uma mulher de 27 anos, com diagnóstico de bulimia nervosa, e o modo como se configura sua rede de apoio social. Os instrumentos utilizados foram: entrevista semiestruturada, genograma e mapa de rede. Observou-se que a rede significativa é pequena, com membros distribuídos de forma não equitativa, com maior concentração em pessoas da família de origem, que foi caracterizada como a principal fonte de apoio. Evidenciou-se relação entre aspectos da personalidade da participante e o empobrecimento da rede, que parece incrementar os sentimentos de tristeza, solidão e isolamento social, comprometendo o potencial de apoio da rede e intensificando vivências de desamparo e menos-valia.

Palavras-chave: bulimia nervosa; apoio social; redes sociais; saúde mental; caso clínico.


ABSTRACT

Social networks are configured by the significant interpersonal relations that people establish in daily situations. There are few studies that investigate how the support network is articulated with the personality in eating disorders. This study aimed to investigate possible relationships between the emotional aspects of a 27 year--old woman with bulimia nervosa, and how her network of social support is configured. The instruments used were semi-structured interview, genogram and network map. It was observed that significant network is small, with members unevenly distributed, with higher concentration in the family, which was characterized as the primary source of support. It was evidenced a relation between aspects of the participant's personality and the impoverishment of the network, that seems to increase the feeling of sadness and loneliness, undermining the network's potential to support and also intensifying feelings of helplessness and inferiority.

Keywords: bulimia nervosa; social support; social networks; mental health; clinical case.


RESUMEN

Las redes de apoyo social son configuradas por las relaciones interpersonales significativas que las personas establecen en las situaciones cotidianas. Faltan estudios que investiguen la forma como la red de apoyo se articula con la personalidad en los trastornos alimentares. La finalidad de este estudio fue investigar posibles relaciones entre los aspectos emocionales de una mujer de 27 años, con diagnóstico de bulimia nerviosa, y la forma como se configura su red de apoyo social. Los instrumentos utilizados fueron: entrevista semiestructurada, genograma y mapa de red. Se observó que la red significativa es escasa, con miembros mal distribuidos y mayor concentración en personas de la familia de origen, que fue caracterizada como la principal fuente de apoyo. Fue evidenciada que aspectos de la personalidad de la participante están relacionados al empobrecimiento de la red, que parece incrementar los sentimientos de tristeza, solitud y aislamiento social, comprometiendo el potencial de apoyo de la red e intensificando vivencias de desamparo e menos-valía.

Palabras clave: bulimia nerviosa; apoyo social; redes sociales; salud mental; caso clínico.


 

 

As redes de apoio social são configuradas pelas relações interpessoais que os indivíduos estabelecem nas situações cotidianas da vida, tanto no interior da família como no plano macrossocial, de modo geral (Lavall, Olschowsky, & Kantorski, 2009). Essas redes incluem a rede social pessoal de cada sujeito, que corresponde à "soma de todas as relações que um indivíduo percebe como significativas ou define como diferenciadas da massa anônima da sociedade" (Sluzki, 1997, p. 42).

Segundo Bertin e Passos (2003), todo indivíduo se insere em uma história que preexiste ao seu nascimento, e segue-se a isso o estabelecimento de vários tipos de vínculos, que partem de uma interação regular estabelecida com os membros do contexto ao qual o sujeito pertence. Essas interações que o indivíduo estabelece dentro das relações familiares, sociais e pessoais fazem parte do processo de constituição de sua identidade, que é construída e reconstruída constantemente ao longo do ciclo vital. Assim, considera-se que todas as pessoas significativas contribuem de forma muito particular para a constituição de uma pessoa como sujeito.

As redes sociais têm como característica primária o fato de serem abertas e dinâmicas, ou seja, são marcadas pelo inacabamento, estão em permanente construção e têm como princípio básico a conectividade (Custódio, 2010; Moré, 2005; Moré & Crepaldi, 2012; Orlandi, 2011). Pode-se dizer que essas redes possibilitam as trocas efetivas entre um indivíduo e os integrantes de entidades coletivas, e é por meio dessas trocas que os recursos desses grupos são utilizados de forma a facilitar a resolução de conflitos e a satisfação de necessidades do indivíduo.

Na última década, tem havido um crescente interesse da comunidade científica pela investigação das redes sociais no contexto dos transtornos mentais graves e persistentes (Lavall et al., 2009; Moré & Crepaldi, 2012). Nesse cenário, a identificação das redes sociais possibilita conhecer como se dá a distribuição do cuidado na assistência, caracterizando-se como um importante recurso na atenção ao sujeito em sofrimento psíquico.

Custódio (2010) sugere que as redes sociais estão fortemente ligadas ao construto do apoio social, uma vez que é por meio das redes que esse apoio é fornecido. O apoio social remete à ajuda mútua, que pode ser significativa ou não, dependendo do grau de integração da rede. Esse apoio pode ser considerado como uma estratégia do indivíduo para enfrentar as dificuldades decorrentes dos problemas de saúde e doença. O cuidado e acolhimento proporcionado pelos membros da rede possibilitam que o indivíduo compartilhe os problemas e expresse seus sentimentos, evidenciando as marcas de socialização e relações estabelecidas no decorrer desse processo de subjetivação, o que favorece a atribuição de sentido e coerência à própria vida (Lavall et al., 2009).

Entre os transtornos mentais que mais têm ganhado visibilidade na era contemporânea, figuram os transtornos alimentares - TA (Andrade & Santos, 2009; Leonidas & Santos, 2012). São descritos como quadros psicopatológicos caracterizados por graves perturbações no comportamento alimentar, que afetam, em sua maioria, adolescentes e jovens do sexo feminino (Borges, Sicchieri, Ribeiro, Marchini, & Santos, 2006; Oliveira & Santos, 2006; Valdanha, Scorsolini-Comin, & Santos, 2013). Esses quadros assumem muitas vezes um curso crônico e incapacitante e podem resultar em prejuízos físicos, psicológicos e sociais, que acarretam aumento da morbidade e mortalidade. Acometem uma ampla faixa etária - geralmente, entre 13 e 21 anos - e podem ter evolução fatal quando não tratados, em função da gravidade do quadro clínico ou das consequências dos agravos à saúde que acarretam. São predominantes em mulheres (cerca de 90% dos casos) de todas as camadas sociais (Cabrera, 2006), sendo o terceiro transtorno mental mais comum entre as mulheres (Björk & Ahlström, 2008).

A bulimia nervosa (BN) é um dos tipos prevalentes de TA, categorizada no DSM-IV-TRTM: manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais sob o código 307.51 (Associação Americana de Psiquiatria, 2002). Há dois tipos de BN: o purgativo, no qual acontecem episódios de vômitos autoinduzidos e uso abusivo de laxantes, diuréticos e enemas, e o não purgativo, no qual o indivíduo realiza intensos jejuns e exercícios físicos excessivos, sem a ocorrência de vômitos e outros comportamentos compensatórios. Os aspectos que configuram a personalidade de pacientes com BN incluem: baixa autoestima, pensamento do tipo "tudo ou nada", ansiedade, perfeccionismo, incapacidade de encontrar formas de prazer e satisfação na vida, busca de problemas mesmo em questões corriqueiras, elevada exigência e incapacidade de "ser feliz" e fruir a vida (Abreu & Cangelli, 2004). Segundo Limbert (2010), tais características resultam em incapacidade de desenvolver e sustentar redes sociais saudáveis, uma vez que as pessoas acometidas apresentam dificuldades nos relacionamentos interpessoais e desajustamento social.

Além dos aspectos de personalidade mencionados, as mulheres com diagnóstico de BN também costumam apresentar comorbidade com transtorno de personalidade borderline, código 301.83 do DSM-IV-TRTM (Kaye, 2008; Paccola, 2006; Rosa & Santos, 2011; Vindreau, 2003). De acordo com o DSM-IV-TRTM, esse transtorno, de forma geral, indica padrões de impulsividade e instabilidade emocional que se refletem nos relacionamentos interpessoais, na autoimagem e nos afetos. Também se manifestam graves dificuldades para lidar com o abandono - real ou imaginário - , já que a separação ou a percepção de rejeição pode acarretar sentimento de raiva inadequada e ações impulsivas, tais como comportamento suicida ou de automutilação. Além de instabilidade do humor, descontrole emocional e explosões de raiva, os pacientes podem apresentar tristeza, ciúmes intenso, apego afetivo exacerbado, teimosia e insatisfação pessoal (Rosa & Santos, 2011). Quando esses comportamentos e sentimentos se apresentam de forma recorrente, intensa e persistente, produzem um padrão existencial marcado por dificuldades de adaptação ao ambiente social e suscetibilidade ao transbordamento afetivo. Pacientes borderlines tendem a lidar mal com qualquer tipo de adversidade, especialmente com aquelas que envolvem rejeição, desaprovação ou abandono. Quando se deparam com essas situações, costumam vivenciar uma reação de estresse intensa, com consequências imprevisíveis.

Os TA configuram uma categoria psicopatológica ainda cercada por amplo desconhecimento por parte da população em relação às características, à evolução e ao tratamento, o que acaba gerando incompreensão por parte de familiares, parceiros afetivos, amigos, professores e colegas de trabalho. Por ser uma condição crônica estigmatizante, esse desconhecimento incrementa o isolamento social das pessoas acometidas, aumentando seus sentimentos de solidão e desamparo ante os desafios encontrados no processo adaptativo (Scorsolini-Comin & Santos, 2012). Por essa razão, quando se planeja o cuidado destinado a esses pacientes, é fundamental que os profissionais conheçam sua rede social e o apoio percebido (Resende, Bones, Souza, & Guimarães, 2006; Vieira & Nóbrega, 2004).

Com base na hipótese de que os aspectos constitutivos da personalidade de mulheres acometidas por TA podem comprometer as relações interpessoais, familiares e afetivas, que elas estabelecem ao longo da vida, acarretando isolamento social, pode-se pensar que as relações que essas mulheres estabelecem com os membros de suas redes sociais são bastante conturbadas e fragilizadas, marcadas por conflitos e por dificuldades no estabelecimento de vínculos consistentes e duradouros. Considerando que o vínculo e as relações aparecem como fundamentais no enfrentamento de doenças estigmatizantes (Lavall et al., 2009), hipotetiza-se que o potencial de apoio e o próprio desenvolvimento da identidade de adolescentes e jovens adultos com TA podem estar comprometidos, agravando os sintomas e intensificando o sofrimento, o que pode culminar com a cronicidade do quadro psicopatológico.

Ao considerar esses pressupostos, o objetivo deste estudo foi investigar as possíveis relações entre os aspectos emocionais de uma mulher com BN e o modo como se configura sua rede de apoio social.

 

Método

O presente estudo foi desenvolvido segundo um enfoque de pesquisa qualitativa, na modalidade de estudo de caso individual. Foram seguidas as orientações práticas para o planejamento, a execução e divulgação de estudos de caso, em psicologia, preconizadas pela literatura (Peres & Santos, 2005). A expressão "estudo de caso" é utilizada para designar uma estratégia metodológica, adotada tanto em pesquisas científicas quanto em práticas profissionais que apresentam características peculiares. De acordo com Stake (2000), somente pode ser considerado um caso passível de investigação científica um sistema integrado, unitário e multifacetado, ou seja, o resultado da combinação de diversas variáveis, sejam elas sociais, biológicas, psicológicas, culturais, econômicas ou de qualquer outro tipo.

A participante deste estudo é uma mulher de 27 anos, com diagnóstico de BN do tipo purgativo, que se encontrava vinculada a um serviço especializado no tratamento de TA. Essa participante foi selecionada de uma amostra de conveniência composta de 23 pacientes com TA atendidas no serviço multiprofissional, situado em um hospital universitário do interior paulista. Os critérios de seleção da participante foram: 1. estar em regime de tratamento ambulatorial, 2. apresentar discurso coerente e orientado no espaço e tempo e 3. apresentar características que configuram um "caso", de acordo com a literatura (Stake, 2000).

Para a coleta de dados, utilizaram-se roteiro de entrevista semiestruturada, genograma e mapa de rede, além de consulta ao prontuário hospitalar da participante. A técnica de entrevista semiestruturada foi utilizada no presente estudo por permitir o aprofundamento em um determinado tema de pesquisa de uma forma flexível no que tange à sequência das perguntas formuladas. O roteiro foi constituído pelos seguintes temas: 1. dados sociodemográficos da participante, 2. informações acerca do TA, 3. informações relativas ao tratamento, 4. situação emocional da participante, 5. a rede social da participante (perguntas para a construção do mapa de rede), 6. a rede familiar da participante (questões para a construção do genograma) e 7. desfecho da entrevista.

O genograma é um diagrama do grupo familiar (Lavall et al., 2009) utilizado para representar a estrutura interna de uma família, incluindo no mínimo três gerações (Wright & Leahy, 2002). Tem por objetivo levantar informações sobre os membros e as relações familiares através das gerações, além de propiciar dados a respeito de saúde, ocupação, religião, etnia e migrações (Krüger & Werlang, 2008; Lavall et al., 2009). O mapa de rede, por sua vez, é um instrumento elaborado por Sluzki (1997), que consiste em representar graficamente a rede social do indivíduo a partir de um mapa dividido em quatro quadrantes, relacionados à família, às amizades, às relações de trabalho ou escola, às relações comunitárias e às relações com instituições (como serviço de saúde e jurídico) ou de credo religioso. O mapa também é dividido em círculos de proximidade, caracterizados por "relações íntimas", "sociais" e "conhecidos".

A coleta de dados foi realizada em junho de 2010, individualmente, em sala reservada da instituição hospitalar. A entrevista teve duração aproximada de 60 minutos e foi audiogravada mediante anuência da participante. Juntamente com a entrevista, foram construídos o genograma e o mapa de rede. Posteriormente, a entrevista foi transcrita na íntegra e literalmente, e o material coligido constituiu o corpus da pesquisa, que possibilitou o trabalho de análise e interpretação. Os instrumentos (genograma e mapa de rede) foram analisados de acordo com as recomendações e o referencial teórico proposto por Sluzki (1997). De forma concomitante à análise da entrevista, o genograma e o mapa de rede, construídos à mão pela pesquisadora, durante a coleta de dados, foram mais bem diagramados com uso do CorelDRAW Graphics Suíte, um programa específico para criação de elementos gráficos, para facilitar a visualização dos instrumentos.

Em relação aos cuidados éticos, o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HC-FMRP-USP), processo HCRP nº 2155/2010. Para preservar o anonimato, a participante recebeu um nome fictício (Sissi), escolhido por ela ao final da entrevista.

 

Resultados e discussão

Sissi procurou o serviço especializado em função de um quadro de compulsão alimentar, seguido de vômitos incoercíveis e prática excessiva de exercícios físicos. A participante relatou que esse problema surgira havia dez anos, desde a separação dos pais, e acarretou-lhe um ganho de peso de aproximadamente 10 kg. A participante relatou que havia quatro anos vivenciara a pior fase do problema, pois vomitava de 10 a 12 vezes por dia, comia de forma descontrolada e excessiva - por exemplo, ingeria três caixas de bombons e três pacotes de bolacha de uma única vez, além de vários potes de sorvete seguidos. Essa compulsão alimentar, somada às demais dificuldades, culminou em uma impossibilidade de continuar frequentando a faculdade, pois passava a maior parte do tempo vomitando e com a mente preenchida por pensamentos obsessivos de emagrecimento. Apesar de todos os prejuízos enfrentados em seu processo de desenvolvimento, nunca havia procurado tratamento anteriormente. Na época do início do tratamento no serviço, Sissi pesava 65,1 kg, tinha 1,75 m de altura e IMC = 21,2 kg/m², considerado dentro da faixa de normalidade. A partir da anamnese psiquiátrica, foi-lhe atribuído pela equipe multiprofissional o diagnóstico de BN, em comorbidade com transtorno de personalidade borderline.

No momento da entrevista, Sissi pesava 63,4 kg e seu IMC correspondia a 20,6 kg/m². A participante relacionava os episódios de compulsão alimentar com os momentos em que se encontrava "muito nervosa". Esse "nervosismo", por sua vez, estava associado a um alto grau de "perfeccionismo" e "cobrança" que a participante exercia sobre si mesma, principalmente no que tange às notas obtidas no curso universitário. Sissi também atribuía a ocorrência da compulsão alimentar à necessidade de "preencher um vazio que sentia". Vivenciava um sentimento de profunda tristeza, que se expressava como um vazio, o qual ela tentava "burlar" por meio da compulsão alimentar seguida de vômitos ou pela realização frenética de exercícios físicos.

Eu me cobro demais, sou muito perfeccionista e às vezes eu não atinjo as notas que eu quero atingir... [...]. Eu me cobro demais, sabe? Tô sempre me cobrando... E na maioria das vezes, é isso, mas outras vezes é um vazio que eu sinto e fico tentando preencher... um vazio... [...]. Não sei o que que é... Eu fico triste, sinto um vazio e não sei o que fazer pra melhorar. Agora que eu tô controlada com os remédios, eu não sinto mais vontade de vomitar, mas na época, assim, que eu não fazia o tratamento, eu tentava às vezes, é... burlar esse sentimento com outra atividade.

Sissi considera que a pior fase do TA aconteceu quando se mudou de sua cidade de origem e passou a morar sozinha para cursar a universidade. Nessa época, a participante relata que sentia muita falta da mãe e "começou a vomitar mais e a perder todo o controle". A compulsão alimentar e os vômitos costumavam comprometer tanto a assiduidade nas aulas da faculdade quanto os relacionamentos interpessoais. O isolamento social era o recurso que Sissi encontrava para lidar com suas dificuldades, uma vez que não gostava de sair para programas sociais com amigos e com o ex-namorado, pois "sabia que iria vomitar". Quando acontecia de a participante sair com essas pessoas, criava estratégias para ir ao banheiro vomitar, tais como dizer que precisava se afastar para falar ao celular. Dessa forma, Sissi passou a evitar sair com os amigos ou frequentar as aulas da faculdade, restringindo, assim, os contatos interpessoais e o tamanho de sua rede social.

Apesar de evitar os relacionamentos interpessoais, Sissi não demonstrava sofrimento vinculado ao isolamento: suas relações pessoais eram caracterizadas por ela como sendo "não tão grudadas, mas também não tão distantes". Notou-se uma dificuldade no estabelecimento de vínculos de intimidade. Além disso, a participante relatou necessitar de momentos solitários: tinha o hábito de visitar a casa das amigas quando convidada, mas não costumava ir sempre, nem as convidava para ir à sua casa. Relata que mora sozinha exatamente por gostar de vivenciar momentos de solidão.

No que tange ao tratamento do TA, Sissi apontou a participação da família como uma das partes mais significativas. A participante relatou que o relacionamento com seu pai era bastante distante, do ponto de vista afetivo, mas a exigência - por parte da equipe de profissionais - de que os pais participassem do tratamento foi considerada como uma oportunidade de se aproximar do pai, dividindo com ele as questões relacionadas ao sofrimento gerado pelo transtorno, de modo a poder obter seu apoio. Além disso, a relação com o pai era permeada por uma tendência à culpabilização dele, uma vez que os sintomas do TA começaram a aparecer a partir da separação dos pais - que, segundo a participante, aconteceu por "culpa" do pai. Foi de uma separação litigiosa e bastante turbulenta. Relatou que o pai perseguia sua mãe, era adúltero e usava de violência física e verbal. Sissi considera que "cresceu com transtorno de paternidade" (sic), denotando que sentia muita raiva, medo e revolta do pai. Todos esses sentimentos negativos culminaram em um distanciamento em relação à figura paterna e no estabelecimento de uma aliança muito intensa com a mãe, que se converteu em um tipo de vínculo fusionado e indiferenciado.

O meu pai sempre foi um pai muito violento, batia na minha mãe... Eu sempre vi, ele sempre foi adúltero e... Eu sempre cresci muito revoltada, eu e minhas irmãs... Aí, quando eles largaram, ele tentou matar minha mãe... E aí, foi nessa época que eu fiquei... que aconteceram muitas coisas... Porque foi uma separação litigiosa... Aí... A gente sempre cresceu na minha casa... sempre cresceu com... com transtorno de paternidade. Sempre com medo do meu pai.

Constata-se uma situação de triangulação entre Sissi, sua mãe e seu pai. A participante mantém uma aliança com a mãe, relacionamento vulnerável com o pai, e os pais mantêm uma relação conflituosa entre si. Essa triangulação parece ter como função primordial ocultar a relação conflituosa existente entre o casal parental, por meio da atenção e preocupação excessiva para com a filha. Vale ressaltar que, alguns meses após a realização da entrevista com Sissi, os pais se reconciliaram, alegando que isso "seria melhor para a filha". Atualmente, graças à participação dos pais no tratamento, a participante relata que se sente mais próxima do pai e pôde reconstruir a relação de forma positiva, ainda que existam alguns conflitos não solucionados. A relação de Sissi com os pais e outros membros da família, assim como a situação de triangulação, pode ser mais bem observada por meio de uma representação gráfica apresentada na Figura 1.

Sissi considera que sua mãe é sua principal fonte de apoio. Entretanto, a participante não apresentou comentários extensos a respeito desse relacionamento, limitan-do-se a relatar que as duas são muito próximas e que ela está satisfeita com o apoio recebido. Quanto à relação com as duas irmãs, Sissi as considera íntimas. Porém, no que concerne ao TA, as relações fraternas da participante foram consideradas distantes, uma vez que esta não sabe se as irmãs têm consciência de seu quadro psicopatológico. Sissi relata que nunca contou sobre o TA para as irmãs, mas não sabe se a mãe acabou por revelar. Descreve que ela e as irmãs são "meio tabu nessa parte". Quando questionada a respeito do motivo de não contar às irmãs sobre o TA, Sissi menciona sentir vergonha, que se caracteriza como um dos sentimentos mais vivenciados pela participante desde a instalação da BN.

Sissi relata sentir-se muito envergonhada e arrependida por manifestar os sintomas de perturbação alimentar, pois costuma pensar frequentemente nas pessoas que passam fome e as compara consigo mesma, percebendo-se como alguém que "está jogando alimento fora". A participante também refere que sente nojo de si própria, uma vez que o próprio ato de vomitar gera "desprezo e asco". Além disso, sente-se tomada por pensamentos obsessivos relacionados aos alimentos. Dentre as crenças dominantes, relata que não consegue comprar um alimento sem antes ler a quantidade calórica que está contida no rótulo; sempre pensa que vai engordar se for a um determinado lugar; sempre repara no peso das pessoas e sempre considera que "quem é gorda é infeliz".

A participante se considera muito impaciente, intolerante, brava, "mandona" e determinada, e relatou que gosta que as coisas sejam sempre "do seu jeito". Por esse motivo, considera que as pessoas de sua rede social têm dificuldade de lidar com seu jeito de ser, e os relacionamentos interpessoais íntimos são, geralmente, permeados por brigas e discussões. Sissi relata a percepção de que costuma "destruir relações" com o seu jeito de ser.

Como é possível visualizar na Figura 2, a rede de apoio social da participante é formada por sete pessoas, caracterizando uma rede estruturalmente pequena, composta apenas por membros da família, do estudo e da comunidade, não tendo sido incluídos membros no quadrante dos amigos e na parte do serviço de saúde. As colegas da faculdade foram inseridas no quadrante de estudo, de acordo com a escolha da participante. Vale ressaltar que Sissi referiu-se às colegas de faculdade de forma genérica, sem personalizá-las e sem atribuir uma quantidade específica ao número de colegas, o que dificultou a quantificação precisa do número de membros da rede. Assim, nota-se que as relações de Sissi com as colegas da faculdade eram marcadas por distanciamento emocional, uma vez que a participante considerava essas relações "não tão grudadas, mas também não tão distantes".

No quadrante família, foram inseridos quatro membros: mãe, pai e as duas irmãs, todos caracterizados como relações íntimas, como pode ser visto na Figura 2. Evidenciou-se que os principais vínculos existentes na rede da participante têm origem no próprio ambiente familiar, indicando que, apesar da existência de relações conflituosas, vulneráveis e distantes, a família se configura como a rede de apoio social mais significativa. Em contrapartida, Sissi relata uma insatisfação, com o apoio fornecido pela família, que estava relacionada com a dificuldade que os pais apresentavam de lidar com o TA, e também com o desejo de que eles tivessem uma participação mais efetiva e constante no tratamento. A participante mantém alta frequência de contato apenas com a mãe, que foi caracterizada como a principal fonte de apoio emocional.

No quadrante da comunidade, foi inserida apenas uma amiga da igreja. Considerando a escassez de amigos e a superficialidade das relações com os poucos existentes, pode-se notar que o apoio social fornecido pela rede de amigos encontra-se prejudicado. Uma vez que as colegas da faculdade não sabem da ocorrência do TA, não podem fornecer ajuda no enfrentamento do quadro, reduzindo o potencial de apoio da rede.

O presente estudo teve como objetivo investigar as possíveis relações existentes entre a arquitetura emocional de uma mulher com BN e o modo como ela percebe a configuração de sua rede de apoio social. A percepção da participante a respeito do apoio social recebido por meio das redes é crucial, uma vez que envolve a subjetividade e, consequentemente, aspectos emocionais particulares de sua personalidade. Portanto, não depende só da disponibilidade concreta (como de fato se apresenta configurada a rede social de apoio), mas também do modo como a realidade é percebida, uma vez que se reporta à subjetividade e à interferência da organização emocional na forma de reagir diante daquilo que se percebe. Essa percepção pode determinar se o apoio social será satisfatório ou não para a paciente, exercendo influência sobre o quadro psicopatológico.

Observou-se que a rede significativa da participante é pequena, com membros mal distribuídos entre os quadrantes do mapa de rede, havendo maior concentração na família, que foi caracterizada como a principal fonte de apoio. No entanto, notou-se uma ambivalência em relação ao apoio familiar, pois, apesar de ser o mais significativo, é também percebido como insatisfatório.

Evidenciou-se que o desencadeamento do TA coincidiu com a ocorrência de uma série de eventos estressores, tais como: agravamento de conflitos familiares, separação dos pais e aquilo que a participante denominou de "transtorno de paternidade". Entretanto, vale ressaltar que os TA têm etiologia multifatorial, ou seja, o padrão disfuncional das relações familiares não poderia, por si só, ser responsabilizado pelo desenvolvimento do quadro. Esse achado corrobora estudos anteriores que sugerem que os aspectos familiares representam fator de risco que contribui para o desencadeamento dos TA, no sentido de aumentar a probabilidade de ocorrência dos sintomas.

Nessa vertente, alguns aspectos da estrutura e do funcionamento da personalidade da participante merecem ser destacados, tais como o perfeccionismo e a autoexigência excessiva, que acarretavam "nervosismo" e insatisfação consigo própria. Essa dinâmica, por sua vez, apareceu relacionada aos episódios de compulsão alimentar e ao uso posterior de métodos de purgação (vômitos autoinduzidos ou espontâneos, atividade física extenuante). Além disso, as características "impaciente, intolerante, brava e mandona", descritas pela participante, "destruíam relações" e resultavam em maior isolamento, reforçando os sentimentos de culpa e autorrecriminação (vergonha). Acredita-se que o isolamento pode incrementar os sentimentos de tristeza e solidão, comprometendo o potencial de apoio da rede e intensificando ainda mais as vivências de desamparo e menos valia. Desse modo, a condição emocional e a estrutura de personalidade instável, sujeita a episódios de descontrole da impulsividade, também foram fatores que, provavelmente, contribuíram para o desenvolvimento do transtorno do comportamento alimentar, além de dificultarem a percepção do apoio social. Esse achado remete à literatura, que mostra que a percepção empobrecida do apoio social é fator de risco para o desenvolvimento dos TA (Limbert, 2010).

Os resultados deste estudo sugerem a importância de considerar o conhecimento dos aspectos de personalidade, dos vínculos e das redes de apoio social como estratégia facilitadora e ampliadora das ações de assistência em saúde. Acredita-se que esse conhecimento pode fornecer subsídios valiosos para o aprimoramento do tratamento dos TA, uma vez que a dimensão relacional está intimamente associada a características de personalidade que, com outros fatores etiológicos, contribuem para precipitar e manter o quadro psicopatológico.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Carolina Leonidas
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo
Departamento de Psicologia
Avenida Bandeirantes, 3900, Bairro Monte Alegre
Ribeirão Preto - SP - Brasil. CEP: 14040-901
E-mail: carol.leonidas@gmail.com

Submissão: 30.10.2012
Aceitação: 20.04.2013