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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.15 no.3 São Paulo dez. 2013

 

PSICOLOGIA CLÍNICA

 

Cinema e abuso sexual na infância e adolescência: contribuições à formação do psicólogo clínico*

 

Cinema and sexual abuse in childhood and adolescence: contributions to training of the clinical psychologist

 

Cine y abuso sexual en la infancia y la adolescencia: contribuciones a la formación del psicólogo clínico

 

 

Tales Vilela Santeiro; Lucas Rossato

Universidade Federal de Goiás - Jataí - GO - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O abuso sexual infantil/adolescente (ASI) tem integrado práticas clínicas atuais, e o cinema o torna visível e o expõe em suas implicações subjetivas e sociais, favorecendo sua discussão. O objetivo deste trabalho foi analisar filmes comerciais/ficcionais sobre ASI, produzidos entre 2001 e 2010 (N = 21), para caracterizar como são filmados, ambientes/contextos onde ocorrem, vítimas e abusadores, desfechos de casos e para discutir contribuições à formação clínica. Os títulos foram buscados em bases de dados especializadas em cinema e junto a psicólogos que utilizam filmes no processo formativo. Critérios de análise foram preestabelecidos, e as obras, analisadas sistematicamente. O gênero dramático e a nacionalidade norte-americana predominaram. O ASI foi retratado por meio de encenações explícitas; no geral, ocorreram em ambientes públicos com crianças e perpetrados por conhecidos. Os filmes analisados aproximam-se de tópicos da literatura especializada sobre ASI e demandam do espectador condição emocional para elaborar situações de conteúdo psíquico intenso.

Palavras-chave: criança; adolescente; psicologia clínica; filme; agressões sexuais.


ABSTRACT

Sexual abuse of children/adolescents (SAC) has integrated current clinical practices and the cinema, which makes it visible and exposes in its subjective and social implications, favors their discussion. The objectives were to analyze commercial films/fictional about SAC, produced between 2001/2010 (N = 21), to characterize how they are filmed, environments/contexts where they occur, victims, offenders, repercussion of cases and to discuss contributions to clinical training. The titles were searched in databases specialized in film and along with psychologists who use film in the educational process. Analysis criteria were predetermined and movies were systematically analyzed. Dramatic gender and U.S. citizenship prevailed. The SAC has been portrayed by means of explicit performances, in general, occurred in public places, with children, offender was close to the victim. The films analyzed are similar to the specialized literature on SAC's topics and requires the viewer's emotional condition to elaborate situations of intense psychic content.

Keywords: infant; teenager; clinical psychology; cinema; sex offenses.


RESUMEN

El abuso sexual infantil/adolescente (ASI) tiene integrado prácticas clínicas actuales i el cine lo vuelve visible y lo expone en sus implicaciones subjetivas y sociales, favoreciendo su discusión. Los objetivos fueron analizar las películas comerciales/ficcionales sobre ASI, producidas entre 2001/2010 (N = 21), para caracterizar como son gravados, ambientes/contextos donde ocurren víctimas, abusadores, deshechos de casos y para contribuir con discusiones la formación clínica. Los títulos fueron buscados en bases de datos especializadas en cine y junto a psicólogos que utilizan películas en el proceso formativo. Criterios de análisis fueron prestablecidos y fueron analizadas obras sistematicamente. Prevalecieron el género dramático y la ciudadanía de los EE.UU. El ASI ha sido retratado por medio de escenas explícitas; en general, ocurren en ambientes públicos, con niños y perpetrados por conocidos. Las películas analizadas se aproximan de tópicos de la literatura especializada sobre ASI y demandan del espectador condición emocional para elaborar situaciones de contenido psíquico intenso.

Palabras clave: niñez; juventud; psicología clínica; película; delitos sexuales.


 

 

Durante a formação em psicologia, inúmeras ferramentas são úteis para auxiliar na obtenção de conhecimentos científicos acerca dos fenômenos humanos. Em psicologia clínica, a formação considera, no geral, o tripé constituído por atendimento clínico supervisionado, estudos teóricos e psicoterapia pessoal. Essas atividades são necessárias para desenvolver habilidades e competências relacionadas à atitude clínica e para consolidar a identidade do profissional (Enéas & Yoshida, 2012; Heidemann, Montagner, Brunstein, & Eizirik, 2012), esteja ele integrado aos consultórios particulares ou a outros âmbitos institucionais (Conselho Federal de Psicologia, 1992).

Dentre os possíveis recursos utilizados nos estudos teóricos e nas atividades de supervisão de casos, alguns ganham destaque porque se aproximam da realidade que o estudante vivenciará no ambiente clínico. O cinema é um deles, pois expõe conteúdos relativos a inúmeros contextos socioculturais e históricos, possibilidades de discussão relevantes ao trabalho do psicólogo clínico, tais como saúde mental (Landeira-Fernandez & Cheniaux, 2010), bioética (Dantas, Martins, & Militão, 2011) e diversidade sexual (Santos, Costa, Carpenedo, & Nardi, 2011). Essa constatação, acrescida ao fato de os filmes propiciarem atmosfera lúdica em sala de aula (Santeiro, 2011), consolida a linguagem da sétima arte como mediadora de processos de ensino e aprendizagem, também no âmbito psicanalítico, no qual o cinema vem sendo utilizado há tempos e permanece nos dias atuais como linguagem instigadora de discussões (Gabbard, 2001; Gabbard & Crisp-Han, 2010; Greenberg, 2000; Heidemann et al., 2012; Swift & Wonderlich, 1993).

Por essa via, o abuso sexual infantil/adolescente (ASI) é, dentre os apontados, um tema caro à formação do psicólogo clínico, haja vista sua relevância social e sua ocorrência nas práticas clínicas atuais. Ele se insere no terreno geral da sexualidade humana e de seus transtornos (Holmes, 2007) e tem sido investigado academicamente, inclusive por meio de filmes (Godoi & Neves, 2012; Silva, 2011).

O ASI integra-se à temática da violência sexual infantil, que consiste no ato de violar direitos sexuais da criança em dois sentidos: no de abuso, indicador de ocorrência de práticas sexuais, e no da exploração, que implica a obtenção de lucro por meio de pornografia ou utilizando a vítima como elemento de troca (Brasil, s.d.). O ASI tem acometido crianças/adolescentes em diversos países e culturas, não ocorrendo apenas nas camadas menos favorecidas do ponto de vista socioeconômico (Capitão & Romaro, 2008; Kiem, 2008; Lee & Kim, 2011; Ramirez, Pinzon-Rondon, & Botero, 2011), o que remete a observá-lo como um fenômeno universal e, portanto, valioso de ser enfocado na formação do psicólogo clínico.

De acordo Habigzang e Caminha (2008), o ASI é definido como todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual, cujo agressor esteja em estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado do que a criança ou o adolescente. Ele é manifestado em formas variadas, que vão desde uma carícia íntima, manipulação de genitália, mama ou ânus, até a exploração sexual, voyeurismo, exibicionismo, penetração vaginal, anal ou oral (Padilha & Gomide, 2004). Pode ser perpetrado por estranhos ou familiares; e, neste último caso, é entendido como de natureza intrafamiliar e incestuosa (Roudinesco & Plon, 1998).

Tendo em vista a proeminência do ASI e as contribuições que o cinema pode prestar para mediar o processo de ensino e aprendizagem no cenário de formação de psicólogos clínicos, definiu-se o objetivo deste estudo: analisar filmes comerciais e ficcionais sobre o ASI, enfocando cenas ou relatos de personagens, para caracterizar: como é filmado (tema principal ou secundário), vítimas, ambientes/contextos onde ocorrem, características dos abusadores e repercussões de casos. De modo paralelo, outro objetivo foi correlacionar os achados com tópicos encontrados em produções científicas quanto ao ASI, para discutir as contribuições que esses filmes podem prestar ao processo de formação do psicólogo clínico.

 

Metodologia

A busca de informações ocorreu por meio de dois eixos fundamentais:

Para fundamentação teórica, realizou-se pesquisa bibliográfica em bases de dados eletrônicas on-line (SciElo, BVS-Psi e ProQuest), por meio dos verbetes "abuso sexual infantil", "pedofilia", "violência sexual infantil", "incesto" e variações correlatas.

Pesquisa documental realizada em sites especializados em filmes, os quais apresentam críticas de filmes, são ranqueados nas primeiras colocações quando se utiliza o Google como ferramenta de busca (Adoro Cinema, Cine Pop) e não têm o compromisso de organizar dados quantitativamente. Nessa situação, vocábulos análogos aos descritos no item anterior foram empregados, complementada por busca informal, voluntária e realizada após explicitação dos objetivos da pesquisa, junto a três psicólogos que utilizam filmes no processo formativo de estudantes de psicologia, sendo dois deles professores de universidade pública e um de instituição privada (amostra de conveniência).

A partir das buscas iniciais, assistiu-se a alguns títulos encontrados à guisa de estudo piloto, e os seguintes critérios de análise foram adotados para inclusão das obras cinematográficas: 1. o ano das produções, englobando dez anos compreendidos entre 2001 e 2010; 2. a encenação ou os relatos verbais sobre o ASI; 3. a acessibilidade de títulos para assistência (filmes editados em formato DVD, disponíveis em videolocadoras e para compra); e 4. obras com idioma ou legendagem em português.

A busca inicial resultou em 24 títulos, dos quais, a partir da assistência, três não atendiam aos critérios adotados e foram excluídos da amostra: Dogville, 4 meses, 3 semanas e 2 dias e Joshua: filho do mal. Aparentemente os mecanismos de busca utilizados incluíram esses filmes porque os dois primeiros focalizam cenas de abuso e violência sexual, entretanto com adultos, e o terceiro focaliza diversas violências, mas não ASI.

Os dados das películas que atendiam aos critérios preestabelecidos eram lançados em planilhas individuais, a partir das quais as seguintes variáveis estiveram sob observação sistemática:

a) Localidade do ASI como temática explorada: central (o argumento/roteiro girava em torno do ASI durante a maior parte do filme e com grande impacto no seu contexto geral) ou secundária (o argumento/roteiro tratava do ASI em pequenas circunstâncias e sem grande impacto no seu contexto geral).

b) Forma de representação do ASI: explícita (encenações) ou implícita (relatos orais de personagens).

c) Perfil das vítimas: faixa-etária (crianças, adolescentes ou ambos) e sexo (masculino, feminino ou ambos).

d) Perfil dos abusadores: grau de proximidade em relação à vítima (familiares, professores, padres, desconhecidos etc.) e sexo (masculino, feminino ou ambos).

e) Contexto em que o abuso ocorreu: escolar, religioso, familiar, público (playgrounds, praças, ruas).

f) Natureza do ASI: coito consumado (anal, oral, vaginal), carícias íntimas, voyeurismo, exibicionismo, natureza não especificada (nos casos de ASI encenado de modo implícito, cf. item "b").

g) Repercussão pública do caso ou permanência em sigilo.

Para determinação do item "a", o qual implicava julgamento subjetivo, houve discussões estabelecidas entre os autores até que consensos fossem obtidos. Essas concordâncias estabeleceram-se após treinamento inicial, obtido via três estudos piloto. Após esse momento, a especificação da localidade do ASI ocorreu sem divergências.

 

Resultados e discussões

A partir da assistência dos títulos e do atendimento aos critérios metodológicos preestabelecidos, foram encontrados 21 filmes que tratavam o ASI em cenas ou relatos de personagens, todos de longa-metragem (Quadro 1). Quanto ao gênero dos filmes, eles foram estabelecidos a partir das informações constantes das capas originais, a partir das quais se observaram 16 (76%) dramas, seguidos por dois (9%) suspenses, um terror, um documentário e um ficção científica (5% cada).

 

 

A frequência de gênero dramático parece relacionar-se, de modo congruente, com temática abordada pelas películas, considerando que os aspectos emocionais, psicológicos e físicos, tanto das vítimas como de outras pessoas indiretamente envolvidas, são entendidos como "trágicos". Além do mais, do ponto de vista do espectador, os filmes analisados requereram condições emocionais para "processar" a violência que a linguagem deles imprimia. Em muitos deles, o ASI era abordado de forma tão enfática e contundente que gerava sentimentos de repulsa, tristeza e compaixão.

A propósito da nacionalidade das produções, 12 eram estadunidenses (57%), quatro coproduções de diversos países (19%), duas brasileiras e duas espanholas (9% cada), e uma britânica (5%) (Quadro 1). Quando esses dados são ponderados, há indícios que confirmam o ASI como uma temática universal e impactante em diversas culturas, mais ou menos desenvolvidas. Nesse momento, não se pode excluir a óbvia relação existente entre a tradição e a condição econômica que países como os Estados Unidos têm para produzir e distribuir filmes, daí nessa análise produções desse país receberem destaque.

O ASI foi expresso como tema principal em 14 longas-metragens (67%) e como secundário em sete (33%). Por exemplo, em Sobre meninos e lobos, ele é entendido como o tema central, embora outros igualmente relevantes sejam expostos, como as questões referentes a confiança, fidelidade, amizade, isolamento, ética das relações humanas, entre outros. O caçador de pipas seria um protótipo que enfoca o ASI de modo secundário, em meio ao tema da amizade existente entre os protagonistas.

No que tange à forma como o ASI foi encenado, 11 produções o fizeram de forma explícita, por meio de encenações (52%), e dez, de forma implícita, por meio de relatos orais de personagens (48%). A forma explícita dava-se por meio de cenas de voyeurismos, carícias, ou tomadas em que o personagem adulto aparecia praticando atos sexuais, dando a entender que estava em situações abusivas. Tráfico humano é um filme no qual uma menina é acariciada por um senhor que pergunta se ela é virgem. A forma implícita ocorreu por meio de relatos verbais, como no caso de Dúvida, película na qual a madre denuncia para uma mãe de estudante que o padre assediou seu filho.

Nos títulos em que o ASI era encenado implicitamente, essa peculiaridade pode ser explicada pelos limites éticos e legais envolvendo o âmbito de filmagem (set), porque naturalmente um ator mirim não poderia ser focalizado em ato nesses momentos. Daí a relevância de considerar a centralidade, ou não, do ASI como tema dos filmes analisados: mesmo que eles o tenham explorado implicitamente, ainda assim situações abusivas podem ter sido centrais na construção do argumento/roteiro. Além dessa característica relacionada à ética, se as obras explicitassem as situações, deixariam de ser comerciais e extravasariam por completo os escopos deste trabalho. Novos estudos permitirão verificar se há mudanças nesse modo de retratar o ASI, considerando novas produções e novos períodos temporais aqui não enfocados.

No que diz respeito ao momento do ciclo vital das vítimas, elas eram crianças em 15 filmes (71%), como em Mistérios da carne e A hora do pesadelo. Eram adolescentes em quatro (19%), como em Volver e Notas sobre um escândalo. Em dois títulos, as pessoas abusadas eram de ambas as faixas etárias (9%): Tráfico humano e Anjos do sol. Essa característica de maior incidência de ASI na infância, quando comparada ao relatado na adolescência, foi demonstrada nos estudos de Capitão e Romaro (2008), Habigzang, Borges, Dell'Aglio e Koller (2010), Padilha e Gomide (2004) e Santos e Dell'Aglio (2008).

Com relação ao sexo dos abusados, em nove produções eram do masculino (43%), como ilustrado em Má educação e Por trás da fé. Em cinco eram do sexo feminino (24%), como enfocado em Volver e Quem quer ser um milionário?. Em sete obras, os abusados eram de ambos os sexos (33%); Medo da verdade e O lenhador representam esse aspecto observado.

Os ofensores eram do sexo masculino em 18 filmes (85%), como encenado em Na captura dos Friedmans, O lenhador e O inferno de São Judas; do sexo feminino em dois (9%): O leitor e Notas sobre um escândalo. Eram de ambos os sexos em um título (6%): Preciosa: uma história de esperança exemplifica o pai e a mãe como violentadores. Esses dados foram correlacionados com a bibliografia pesquisada, nas quais havia indicativos de os abusadores serem, na maioria dos casos de ASI, do sexo masculino (Aded, Dalcin, Moraes, & Cavalcanti, 2006; Araújo, 2002; Capitão & Romaro, 2008).

Os abusadores eram próximos às vítimas em 13 casos (62%); em cinco, estranhos (24%); e, em três, são os próprios familiares (14%). Por pessoas próximas às vítimas, consideram-se professores, padres, amigos, conhecidos que estabelecem relações sociais, como nos casos de Mistérios da carne e Por trás da fé, que tinham, respectivamente, o treinador e o padre da paróquia como ofensores. Estranhos são considerados aqueles que não possuíam qualquer tipo de interação social com a vítima, como nos casos de Tráfico humano, em que menores eram comercializados, e Medo da verdade, que ilustra um sequestrador de vítimas. O estudo de Aded et al. (2006) descreve um fenômeno semelhante, observado na literatura internacional, e corrobora esses dados: os ofensores são, na maioria dos casos, familiares, amigos e outras pessoas ligadas às vítimas.

Os ASI ocorreram em ambientes públicos em dez filmes (48%). Em O lenhador, as vítimas eram abordadas nas ruas ou em parques. Recintos familiares foram encenados em quatro (19%) títulos, como em Preciosa: uma história de esperança. O espaço escolar laico foi retratado em três obras (14%); em A hora do pesadelo, por exemplo, o jardineiro da escola é o transgressor. Ambientes escolares confessionais foram enfocados em outros três filmes (14%), sendo Má educação exemplar no qual o padre/professor abusa de estudante; e um (5%) filme em âmbito religioso, que demonstra ser o padre da paróquia o abusador dos filhos dos fiéis (Por trás da fé).

Os locais/contextos onde os ASI ocorrem estão vinculados ao perfil do abusador que no caso são professores, padres, pais, tios, padrastos, pessoas ligadas à família ou à vítima. Capitão e Romaro (2008) constataram que professores, negociantes e homens tidos como "de bem" aliciam crianças e as expõem em fotos, e até mesmo parentes próximos, como pais e avós, praticam pedofilia e, quando o fazem, subjugando um menor, utilizam técnicas que remetem àquelas de tortura. Serafim, Saffi, Rigonatti, Casoy e Barros (2009) descrevem os perfis dos abusadores, o modo como abordam as vítimas e seus comportamentos sexuais, o que pode ser útil ao estudante e ao formador para enfoque em trabalhos preventivos. Embora esses autores não tenham observado consenso na literatura pertinente, uma das questões que verificaram é que um agressor, mesmo sob risco de ser identificado, dificilmente modifica "seus aspectos psicológicos, culturais ou sexuais" (Serafim et al., 2009, p. 109), o que confere ao seu comportamento caráter repetitivo, dinâmico e maleável. Por sua vez, essas idiossincrasias asseguram, por meio de experiência e confiança acumuladas a cada infração, o "sucesso do crime, protege a identidade do criminoso e garante sua fuga" (Serafim et al., 2009, p. 109).

Quanto à natureza dos ASI, foram observadas as seguintes: voyeurismo em Efeito borboleta; exibicionismo em O leitor; carícia íntima em Tráfico humano; penetração anal em O inferno de São Judas, oral em Mistérios da carne e vaginal em Sonhos roubados. Houve, ainda, cenas que não foram relatadas nem expostas de forma clara, tal como relatado no item "modo como o ASI foi encenado", por exemplo, no filme Volver. Nesses casos, é necessário salientar que alguns desses comportamentos sexuais são pertinentes aos comportamentos parafílicos, caracterizados por desvios da norma de obtenção de excitação sexual (Holmes, 2007).

Em alusão à repercussão dos casos em meios de comunicação e socialmente, em 13 obras foram revelados (62%); Na captura dos Friedmans e O lenhador são dois modelos. E em oito, os ASI permaneceram em sigilo (38%), sendo alguns exemplares Volver, cujo sigilo permaneceu no meio intrafamiliar, e O caçador de pipas, cuja situação de abuso permaneceu silenciada entre dois amigos.

Vale observar que a repercussão social do ASI varia, dependendo das formas como ele ocorreu. O que se percebe é que, quando os ASI são intrafamiliares, a probabilidade de permanecerem em sigilo é maior; tal como afirma Araújo (2002), o abuso sexual é um fenômeno complexo e difícil de enfrentar por parte de todos os envolvidos. Nessa direção, o ASI intrafamiliar é uma das maiores violências conhecidas. Para Roudinesco e Plon (1998, p. 372), o incesto apresenta o caráter de um tabu universal, na quase totalidade das sociedades existentes, daí o motivo de tantas vezes ser "ocultado e sentido como uma tragédia por quem se entrega a ele".

Todos os títulos apresentavam a idade mínima necessária para sua assistência (Quadro 1). Embora a classificação indicativa estabelecida para os filmes respeite critérios estabelecidos pelo Ministério da Justiça (Brasil, 2012), foi observado que em alguns deles ela poderia ser definida com maior rigor. São casos de encenações, não necessariamente de natureza sexual, que possuem teor elevado de violências que se sobrepõem umas às outras, ao passo que a pedofilia, isoladamente, teria sido suficiente para classificar um determinado filme na faixa dos 18 anos. Tráfico humano (16 anos) é protótipo que possui cenas de violência física, sexual e utilização de palavras chulas, além de cenas com sangue e com crianças expostas às mais diversas situações. Em Sonhos roubados (16 anos), há cenas de nudez, consumo de álcool, drogas e violência física. Particularidades como essas proporcionaram discussão e questionamento dos critérios de classificação indicativa dos títulos e levaram a procurar explicações para essas ocorrências, não compreensíveis quando os próprios critérios foram estabelecidos por instância governamental.

A partir de filmes que visam ao público consumidor comum, retratações de ASI foram semelhantes ao que tem sido observado em atendimentos clínicos reais, interesse especial deste estudo, como também se assemelham ao notado cotidianamente em noticiários de canais abertos de rede televisiva. O tipo de filme considerado exige do espectador, de modo aproximado ao exigido do psicólogo quando lida com questões contratransferenciais, condição emocional para elaborar informações de conteúdo psíquico intenso. Naturalmente, essa aproximação é uma proposta lúdica, por meio da qual não se busca realizar transposição exata de uma teoria desenvolvida em âmbito clínico ao contexto de assistência de filmes. Contudo, o desenvolvimento do trabalho de pesquisa indicou que esse tipo de "ponte" pudesse ser apropriado a um leitor que desconhecesse os movimentos dinâmicos que o outro provoca no terapeuta.

Por essa via, procura-se ressaltar o cinema como um outro, provocador de conhecimentos que extrapolam aqueles racionais, obtidos academicamente pelo estudante, quando se depara com certas construções teóricas em seu processo de formação clínica. A esse respeito, Swift e Wonderlich (1993) relataram estudo no qual o tema da contratransferência foi abordado em seminários destinados a psicoterapeutas neófitos e a experientes. Eles utilizaram o filme House of games, traduzido no Brasil co-mo O jogo de emoções, para elucidar várias perspectivas cruciais para entendimento do fenômeno contratransferencial, e aqui esse trabalho é indicado aos interessados em aprofundamentos teóricos. O que aqui se propõe, de modo semelhante, é que o impacto emocional provocado pelos filmes acerca de ASI possa ser utilizado como "ampliador de campo emocional" para estudantes e formadores se lançarem à compreensão e ao estudo da contratransferência envolvida em situações como as encenadas.

Essas peculiaridades emocionais alavancadas pelos filmes a respeito de ASI são relevantes no contexto formativo em psicologia clínica, em especial no de orientação psicanalítica, porque representam um dos maiores desafios profissionais existentes. Lidar com respostas emocionais disparadas por diferentes pacientes, em especial por aqueles tidos como graves, é algo que exige do terapeuta trabalho intenso e cotidiano, rumo ao desenvolvimento de estratégias para enfrentamento de experiências de impotência pessoal e profissional que se seguem a relatos de ASI. Nessa vertente, as películas analisadas são revestidas de alto valor pedagógico para o estudante de graduação refletir sobre e se aproximar, apesar de limitado pela linguagem fílmica, de temas frequentes nos contextos clínicos reais.

Naturalmente, esse tipo de consideração não torna prescindível a prática clínica, o que também é ressaltado por Heidemann et al. (2012, p. 80), no contexto de formação em psicoterapia psicanalítica:

A vivência pessoal [...] das intervenções psicoterápicas seguidas de confirmação ou refutação por parte do paciente, entre outras, são imprescindíveis para a aprendizagem da PP [psicoterapia psicodinâmica], e o cinema não proporciona essa experiência.

Além disso, complementam esses autores, com frequência o cinema representa a psiquiatria de maneira estigmatizada, bem como Greenberg (2000) diz ocorrer em relação à psicanálise e aos psicanalistas.

O tamanho da amostra considerada foi definido sem ser possível executar uma seleção completa, no sentido de ser sabido existirem filmes que retratam ASI para além dos anos 2001 e 2010. Essa peculiaridade ilustra limites metodológicos do estudo; porém, apesar de a amostra ser circunscrita, as obras analisadas subsidiaram o entendimento de vários aspectos referentes às vítimas, aos locais onde ASI geralmente ocorrem, quem são os ofensores, quais são as repercussões dos casos, além de terem proporcionado reflexões a propósito de uma problemática socialmente relevante. Utilidade semelhante pode ser alcançada por outros estudantes e formadores de psicólogos interessados em se achegar do tema do ASI, mediados pela linguagem da sétima arte, em especial se a exibição de filmes for antecedida ou sucedida por subsídios teóricos como os aqui enfocados.

Postas essas limitações relativamente ao uso de filmes como ferramenta mediadora de processos de ensino e aprendizagem em psicologia clínica, outros estudos são necessários para desenvolver e consolidar as percepções relatadas. Algumas alternativas podem ser viáveis quando se ampliam o período temporal investigado, a nacionalidade das produções e as temáticas (diferentes do ASI).

Em síntese, os títulos encontrados podem contribuir para o espectador visualizar e se aproximar ao tema do ASI de forma profícua, por duas razões essenciais: 1. pelos aspectos cognitivos fomentados por meio do estudo teórico e 2. pelas experiências emocionais que instigam. Neste último caso, diálogos pertinentes aos desconfortos que causam podem abrir trilhas que levem à compreensão da psicodinâmica dos envolvidos em situações abusivas. O aspecto lúdico desses filmes residiria no momento no qual parte da diversidade de manifestações humanas pudesse, assim, ser compartilhada.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Tales Vilela Santeiro
Universidade Federal de Goiás, Departamento de Psicologia, Campus de Jataí
Rua Riachuelo, 1.530, Setor Samuel Graham
Jataí - GO - Brasil. CEP: 75801-020
E-mail: talessanteiro@hotmail.com.

Submissão: 23.07.2012
Aceitação: 25.06.2013

 

 

* Apoio: CNPq.