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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.15 no.3 São Paulo dez. 2013

 

PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

 

Situação-limite na educação infantil: contradições e possibilidades de intervenção

 

Limit situation in early childhood education: contradictions and possibilities of intervention.

 

Situación-limite en la educación preescolar: contradicciones y possibilidades de intervención

 

 

Ana Paula Gomes Moreira; Raquel Souza Lobo Guzzo

Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas - SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho está circunscrito nos marcos da psicologia escolar. Sua realização buscou discutir a aplicação do conceito de situação-limite, delineado por Ignacio Martín-Baró, ao contexto da educação infantil. Tal conceito enfatiza a relação entre risco, proteção e vulnerabilidade a partir da perspectiva materialista de base dialética. Por meio de uma investigação documental com as características da pesquisa-ação-participante, conduzimos um processo construtivo-interpretativo que culminou na elaboração de categorias representativas do que sejam situações-limite para o desenvolvimento das crianças. O conteúdo dessas categorias indica que as situações que se constituem como limites para o desenvolvimento das crianças ultrapassam as questões pedagógicas e envolvem as políticas de saúde e assistência, além de elementos de risco como tráfico e violência. Daí conclui-se a emergência da ideia de situação-limite como uma contribuição teórica e prática para o campo da psicologia escolar.

Palavras-chave: psicologia escolar; educação infantil; prevenção; psicologia social da libertação; materialismo.


ABSTRACT

This work is placed in the framework of school psychology. Its development tried to discuss the application of the concept of limit-situation, created by Ignacio Martín-Baró, to the context of childhood education. This concept emphasizes the relationship between risk, vulnerability and protection from the dialectical materialist perspective. Through a documentary investigation based on participatory-action-research, we conducted an interpretive process culminating in the development of categories that are representative of the limit situations for the development of children. The contents of these categories indicate that the situations which constitute boundaries for children's development surpass the pedagogical issues and involve the health and welfare policies and the risk elements such as trafficking and violence. This emphasizes the emergence of the limit-situation idea as a theoretical and practical contribution to the field of school psychology.

Keywords: school psychology; childhood education; prevention; liberation social psychology; materialism.


RESUMEN

Este trabajo se circunscribe dentro de los límites de la psicología escolar. Se logró discutir la aplicación del concepto de situación-límite, esbozado por Ignacio Martín Baró, en el contexto de la educación preescolar. Tal concepto enfatiza la relación entre riesgo, factores protectores y vulnerabilidade a partir de la perspectiva materialista de base dialéctica. Por medio de una investigación documental de las características de la pesquisa-acción-participante, se condujo un proceso constructivo-interpretativo que culminó en la construcción de categorías representativas de lo que se entiende como situación-límite para el desarrollo de los niños. El contenido de estas categorías indica que las situaciones que se constituyen como límites para el desarrollo de los niños transponen las cuestiones pedagógicas y envuelven políticas de salud y asistencia, además de elementos de riesgo como el tráfico y la violencia. Así, se concluye la emergencia del concepto de situación-límite como una contribución teórica y práctica en el campo de psicología escolar.

Palabras clave: psicología escolar; educación preescolar; prevención; psicología social de la liberación; materialismo.


 

 

A construção da psicologia escolar e educacional como área de aplicação, pesquisa e intervenção está relacionada ao próprio desenvolvimento da psicologia como profissão. Essa relação explicita a reivindicação dos fundamentos da psicologia para a compreensão e organização dos processos de escolarização e aprendizagem. Da mesma forma, é extensa a literatura que reflete sobre as condições, características e finalidades de tal reivindicação (Patto, 1993, 1997; Machado, 2003; Marinho-Araújo & Almeida, 2005; Cruces, 2006; Guzzo, 2007; Souza, 2007; Tanamachi, 2007).

Historicamente, tem-se questionado a participação da psicologia no campo da educação como uma ciência que, significativamente, disponibilizou seus saberes para as tarefas de avaliação e diagnóstico das dificuldades escolares, contribuindo para a dicotomização entre o sujeito do processo escolar e o contexto da escola. O conteúdo desse questionamento anunciava a necessidade de que a psicologia se envolvesse com a constituição do processo de escolarização, conhecesse sua dinâmica e, aí sim, anunciasse estratégias de intervenção (Patto, 1993, 1997).

A partir desses esforços, tem-se constituído dentro da área a concepção de que a atuação do psicólogo nas instituições educativas ou nos espaços de discussão e deliberação das políticas educacionais está intimamente relacionada com a compreensão, explicação e promoção dos processos de desenvolvimento humano em seus diversos aspectos (Machado, 2003; Marinho-Araújo & Almeida, 2005; Cruces, 2006; Guzzo, 2007; Souza, 2007; Tanamachi, 2007).

Nesse sentido, este artigo insere-se no bojo da discussão sobre o papel da psicologia para a compreensão dos processos de desenvolvimento no contexto da escola e objetiva contribuir com ela a partir de uma reflexão mobilizada pela categoria situação-limite, elaborada por Ignacio Martín-Baró no interior da psicologia social da libertação. Ignacio Martín-Baró foi um psicólogo social e jesuíta espanhol que participou ativamente da longa guerra civil que atingiu El Salvador durante 12 anos. Por meio de sua formação teológica, filosófica, política e psicológica, ele desenvolveu um valoroso estudo sobre a realidade da pobreza, sobre as contradições sociais e, especialmente, sobre o contexto da guerra, seus condicionamentos históricos e políticos e sobre a contraposição de suas consequências objetivas e subjetivas para a constituição do psiquismo humano (Ibáñez, 2001).

Sua chegada à América Latina e a permanência em El Salvador possibilitaram a construção de uma reflexão crítica sobre as condições econômicas e sociais que envolveram (e envolvem) a vida dos povos latinos e, mais ainda, sobre o papel da psicologia como profissão e ciência diante dessa conjuntura. Essa produção, então denominada psicologia social da libertação, delimitou um campo de estudo sobre as condições concretas de vida que se relacionam com os processos de desenvolvimento humano (Montero, 2009).

O conjunto de princípios que culminou na organização dessa produção enfatizou a análise histórica como ferramenta da psicologia, necessária para a compreensão da relação indivíduo e sociedade, para a análise das formas de organização dos grupos e dos conflitos existentes, especialmente, no âmbito das complexas e, por vezes injustas, relações econômicas, políticas e sociais. A ideia de libertação, decorrente dessa formulação, pode ser entendida como condição, como fim, como propósito e como objetivo, que visa à busca pela superação dessas condições sociais opressivas e luta pelo estabelecimento de relações interpessoais saudáveis e emancipadas (Martín-Baró, 1990).

Assim, o arcabouço teórico construído por Ignacio Martín-Baró forneceu as bases para uma compreensão mais ampla das diversas dimensões que contribuem para o desenvolvimento humano, como um processo intrinsecamente social. Os seus pressupostos lançaram luz sobre as práticas psicológicas e sobre seus métodos de ação e intervenção. Logo, o marco teórico delimitado por Martín-Baró convergiu no sentido das posturas críticas, que buscavam se colocar ao lado dos sujeitos nas suas condições concretas de vida e não apartado delas, que se opunham às práticas fragmentadoras da psicologia que, hegemonicamente, organizava seus recursos de diagnóstico e tratamento do indivíduo com dificuldades de adaptação (Martín-Baró, 1990).

A concepção construída por Martín-Baró (1990, 1996), então, toma forma e se evidencia a partir da sua vivência da situação de guerra. A precariedade das condições de vida e o contato íntimo com a violência e o com o medo o levaram a refletir sobre o desenvolvimento humano como um processo que acontecia circunstanciado por eventos extremos. A sua atenção volta-se, especialmente, para o desenvolvimento das crianças pequenas nesse contexto, e os seus esforços são direcionados para o propósito de entender os movimentos e as imbricações desse processo. Para isso, Martín-Baró (1990, 1996) toma, a partir das produções de Paulo Freire (2005), o conceito de situação-limite, enfatizando ser uma unidade explicativa do processo de desenvolvimento como um movimento circunstanciado por limites concretos.

O contato com a produção de Freire (2005) foi determinante nesse sentido. No interior da sua obra,localizamos a emergência do conceito de situação-limite a partir da referência às ideias do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto. Ao explicar que concebe a prática da educação libertadora como possibilidade de promover o desenvolvimento dos "homens em situação", Freire (2005, p. 98) explicita sua visão intrinsecamente histórica do homem social, ativo e consciente cujo contato dialético com o mundo é circunstanciado por situações-limite, como dimensões concretas e históricas de uma dada realidade. Para Freire (2005), portanto, as situações-limite são aquelas reveladoras dos atos-limite, isto é, dos atos humanos que carregam sua característica de liberdade, de ser ativo, cujas ações transformam a realidade em que vive. Assim, as situações-limite não são o contorno que esgota as possibilidades, mas as margens que as anunciam.

Portanto, Martín-Baró (1990) eleva a situação-limite à categoria psicológica, uma ideia que, antes, era colocada como categoria sociológica. Na concepção de Martín-Baró (1990), o conceito de situação-limite demonstra que o desenvolvimento dos sujeitos está circunscrito por limites concretos oriundos da clara e indiscutível distinção de classes no interior da sociedade, que se funda sob a égide da exploração de serviços e recursos para sustentar a acumulação de capital. Coerente com sua opção de vida e com a força de quem não dissocia as propostas de atuação profissional da realidade em que ela toma forma, Martín-Baró (1990, 1996) enfatizou que os limites devem ser reconhecidos e considerados como dimensões importantes que indicam os rumos e as possibilidades do processo de desenvolvimento humano.

Assim, ele concebeu as chamadas situações-limite como processos vivos e imersos nas relações que as crianças constroem com o mundo ou que o mundo constrói com as crianças, e não como fatores externos determinantes de um desenvolvimento adoecido e fadado ao insucesso. Portanto, o conceito de situação-limite configura-se como uma aposta de Martín-Baró (1990, 1996) nos sujeitos e nos coletivos que os constituem.

Nessa perspectiva, este conceito emerge como possibilidade para a compreensão das situações que compõem o processo de desenvolvimento das crianças no contexto da escola, contrapondo-se, assim, à literatura que se dedica a essa análise a partir dos conceitos de fatores de risco e proteção. Os estudos desenvolvidos no bojo da literatura sobre risco e proteção (Masten & Powell, 2003; Rutter, Champion, Quinton, Maughan, & Pickles, 2001; Euzébios & Guzzo, 2006; Guzzo & Machado, 2007; Poletto & Koller, 2008; Buffa, Teixeira, & Rossetti-Ferreira, 2010) explicitaram que, somente na interação com os eventos de vida, é que podem ser observadas tanto as influências do risco como as manifestações de vulnerabilidade e o desenvolvimento da resiliência.

Portanto, compreende-se que vulnerabilidade (assim como resiliência) não é uma característica individual, ao contrário, é uma condição que pode surgir, ou não, como resultado do balanço entre recursos, meios, fatores de risco e de proteção que emergem do âmbito individual, familiar e social em que uma criança cresce e se desenvolve. Assim como afirmam Blum, McNeely e Nonnemaker (2002), resiliência e vulnerabilidade são dimensões constituintes de um modelo conceitual, de um processo integrativo, cujo desenvolvimento revela que uma criança pode ser criada em circunstâncias extremamente adversas e se desenvolver de forma saudável, ou crescer em um ambiente com o mínimo de adversidades e nunca superar os desafios do início da vida. Portanto, não se trata de traços que alguns possuem e outros não. Essas dimensões sempre representam algum nível de interação entre eventos individuais e sociais.

Entretanto, se a influência dos elementos de risco e proteção só pode ser observada na interação com os eventos cotidianos, como seria possível identificar o seu impacto para a vida do sujeito? O trabalho de revisão teórica dos fundamentos da psicologia social da libertação sinaliza a emergência do conceito de situação-limite como unidade possível de balizar essa identificação. Por isso, esta pesquisa foi idealizada como um estudo piloto com o objetivo de investigar o entendimento de educadores, famílias e crianças de uma escola municipal de educação infantil de uma cidade no interior de São Paulo sobre as situações-limite no desenvolvimento das crianças, com base nos registros feitos por psicólogos presentes na escola, por meio de um projeto de extensão chamado "Voo da águia".

 

Método

O "Voo da águia" é um programa de intervenção decorrente do projeto "Construindo as bases para a prevenção primária no Brasil", financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com o objetivo de realizar uma reflexão introdutória sobre o conteúdo da relação entre psicologia e prevenção (Guzzo, 2000). Para isso, o "Voo da águia" prevê a inserção de psicólogos e estudan-tes de psicologia nas escolas da rede pública, com o objetivo de acompanhar o processo de desenvolvimento das crianças, participando dos espaços da sala de aula, da formação de professores e das reuniões com as famílias.

Dessa forma, acompanhar o desenvolvimento significa participar do cotidiano escolar, interagindo com seus diversos aspectos: expressões de violência, dificuldades financeiras relacionadas aos empregos informais ou à participação no tráfico, dificuldades de acesso aos serviços de saúde e assistência que impedem a identificação de questões biológicas importantes ou o impacto das dimensões da desigualdade que exigem que a sobrevivência seja garantida com parcos recursos econômicos.

Como recurso metodológico, os psicólogos que constituem o "Voo da águia" constroem diários de campo, nos quais registram o conteúdo de suas interações cotidianas e as falas de crianças, famílias, diretores e educadores. Os diários de campo são escritos pelos profissionais com o objetivo de registrar as nuanças do processo de desenvolvimento, sob o ponto de vista de todos os sujeitos que se envolvem com ele. Como sujeitos do processo de desenvolvimento, educadores, crianças e famílias expressam suas dificuldades, suas preocupações e suas expectativas com relação a esse processo. Esses documentos fazem parte do banco de dados do Laboratório de Avaliação e Medidas Psicológicas (Lamp) da Pontifícia Univseridade Católica de Campinas, coordenado pela Profª Drª Raquel Souza Lobo Guzzo. O diário de campo, portanto, reflete o olhar do psicólogo que o redige, mas o faz a partir da imersão na realidade, objeto de sua intervenção e pesquisa.

Essa modalidade de pesquisa tem sido denominada pesquisa-ação-participante, porque prevê a inserção e a participação do pesquisador no campo que constitui o objeto do seu estudo. Nesse caso, o pesquisador/psicólogo atua no espaço, reconhecendo-se como integrante do processo da pesquisa (Walter, 2010). No caso específico da pesquisa em espaços educativos, Lüdke e André (1986) reiteram a importância dessa modalidade de pesquisa, combatendo a visão de que o fenômeno educacional só pode ser investigado por meio da decomposição e do isolamento de suas variáveis. As autoras afirmam que, no âmbito da educação e em outras instâncias da vida social, os fenômenos constroem uma diversidade de relações e fazeres inter-relacionados e são construídos por ela. Nesse processo, a participação do pesquisador é imprescindível.

Procedimentos de análise

Para os propósitos desta pesquisa, foram utilizados 127 diários de campo produzidos por psicólogos durante os anos de 2008 e 2009. Esses diários correspondem à totalidade dos documentos produzidos nesse período. Para a análise desses dados, adotou-se o procedimento da análise de conteúdo, tal com explicitado por Moraes (1999), segundo o qual a análise de conteúdo é uma abordagem de trabalho usada para interpretar as mensagens guardadas em uma variedade de documentos, abrindo as portas para facetas dos fenômenos da vida social que, de outro modo, são inacessíveis.

González Rey (2002) denomina esse processo de construtivo-interpretativo, que visa obter, por meio da descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção ou recepção dessas mensagens, com o propósito de designar elementos que adquiriram significação graças à interpretação do pesquisador, em que aspectos subjetivos e objetivos se integraram em uma unidade indissolúvel.

A sistematização desse procedimento, tal como acentua Moraes (1999), envolve os seguintes passos: preparação das informações, unitarização ou transformação do conteúdo em unidades de sentido, categorização ou classificação das unidades em categorias, descrição e interpretação.

Assim, depois de selecionados, os diários de campo são submetidos a uma leitura exaustiva, orientada pelos objetivos anunciados da pesquisa. Essa leitura visa identificar as chamadas unidades de sentido, ou seja, trechos, conjuntos que expressem o que se procura. Nesse caso, a leitura identificava a posição dos educadores, das famílias e das próprias crianças sobre o que seriam situações-limite para o desenvolvimento das crianças. Isso significa dizer que a leitura buscava destacar a opinião desses sujeitos sobre quais situações constituíam-se como limites para o desenvolvimento das crianças, como eventos críticos, como momentos importantes para o seu desenvolvimento futuro.

A partir daí, os trechos extraídos eram agrupados segundo elementos de semelhança e organizados em categorias referentes à concepção dos educadores, das famílias e das crianças. Assim, para a visão dos educadores, as seguintes categorias foram construídas: riscos psicossociais, ausência de políticas de inclusão, política de agrupamento na educação infantil e relação conflituosa entre os membros da equipe educativa. Para a visão das famílias, as seguintes categorias foram construídas: dificuldade de acesso às políticas de saúde/assistência, riscos psicossociais e processos de adaptação à escola.

 

Resultados

As categorias elaboradas refletem, de fato, dimensões concretas vivenciadas pelos principais agentes envolvidos com a educação infantil: educadores e famílias (inclusive as próprias crianças). Isso evidencia a sugestão de Martín-Baró (1990) de que a situação-limite implica a vivência de uma condição objetiva, cujo impacto, negativo, afeta o desenvolvimento das crianças em idade escolar. No entanto, o autor reitera que o impacto dessas situações está diretamente vinculado a uma série de outros elementos que sugerem vulnerabilidade e, portanto, refletem uma condição subjetiva. Para elucidar a compreensão de cada categoria, apresentaremos alguns trechos dos diários de campo. Considerando o total de 127 documentos, utilizou-se "DC + número do diário" para identificar o trecho selecionado.

A categoria "Riscos psicossociais", presente tanto na visão dos educadores como das famílias/crianças, revela a convivência com dimensões de violência, seja ela doméstica (física, psicológica, sexual ou com aspectos de negligência) ou institucional. Tais dimensões estão, por sua vez, relacionadas a aspectos mais amplos, como as relações familiares, o uso e abuso de álcool e de outras drogas psicoativas, e a convivência com o tráfico, além da presença de outros elementos estruturais, como altos índices de desemprego e condições inadequadas de moradia e alimentação. Isso está evidenciado nos seguintes trechos:

A educadora especial disse que está preocupada com "P" e com seu irmão de 5 anos que estuda em outra escola que ela trabalha. Ela disse que a criança de 5 anos tem ido sozinha à escola e pedido dinheiro na rua junto com a irmã adolescente e com o consentimento da mãe (DC027).

A professora "U" chega na escola e comenta "toda quinta feira tem coisa acontecendo aqui". Ela disse que na quinta feira passada o pai de um aluno seu foi assassinado pelo padrasto. De acordo com a professora, esse pai não era um sujeito bem visto na comunidade, devia a muita gente e ninguém gostava dele. Falou que ele foi atropelado pelos bandidos (o padrasto inclusive) logo após deixar o filho na escola. Atropelaram o pai e depois passaram por cima novamente quebrando as pernas e em seguida descarregaram a arma nele. Ela diz que esse tipo de morte é um aviso para a comunidade. Falou ainda que recebeu a notícia na sala de aula. Ela imediatamente fez uma roda e ficou contando historinhas para as crianças enquanto o carro de polícia e a ambulância iam passando pela escola (DC043).

A categoria "Relações conflituosas entre os membros da equipe educativa" emerge do ponto de vista dos educadores. Ela revela o quanto o relacionamento entre professores, monitores e a equipe gestora influencia o cotidiano das crianças no ambiente escolar. As relações entre os membros da equipe educativa são, muitas vezes, baseadas na competição, na disputa e na ausência de compartilhamento. Os conflitos são explícitos e influenciam, diretamente, a maneira como eles lidam com as crianças no dia a dia:

"H" me falou, por telefone, que saiu de licença porque estava muito estressada e deprimida com toda a situação que vinha vivenciando na escola. Relatou que o cansaço não foi das crianças, mas da equipe de funcionários da escola (DC023).

A monitora da sala da professora "Z" afirma que as relações na escola são construídas com base na inveja, na desconfiança, um desejando o mal do outro. Disse que sente um clima muito carregado e que sempre ora antes de ir à escola (DC050).

A categoria "Dificuldade de acesso às políticas de assistência", elaborada a partir do ponto de vista das famílias/crianças, representa, no primeiro caso, a compreensão teórica e prática da cisão entre os setores de saúde e de educação ao longo de um processo histórico de construção das políticas públicas no interior do sistema capitalista, conforme acentua Yamamoto (2007). O trecho apresentado a seguir elucida essa conjuntura:

Ao chegar à escola, a mãe de "J" me procurou para informar como estava o tratamento no ouvido da criança. Disse-me que ela precisou mudar de otorrino para poder diagnosticar uma perda de audição no ouvido esquerdo da criança. Ressaltou que se tivesse continuado com a médica que o acompanhava nunca iria descobrir nada na criança, pois nunca fizeram um exame, se não fosse a escola alertá-la sobre essa questão, o filho poderia ficar surdo com o decorrer da vida (DC021).

Tal cisão traduz a oposição entre os interesses da acumulação e as necessidades dos cidadãos, ao passo que, no segundo caso, ela é o reflexo de quem sofre, cotidianamente, o impacto dessas políticas públicas que tratam a questão social de forma fragmentária e parcializada, oferecendo migalhas para sustentar a sua contraditória dinâmica de sustentação.

As categorias "Ausência de políticas de inclusão" e "Políticas de agrupamento na educação infantil", ambas reveladas segundo o ponto de vista dos educadores, refletem a distância existente entre a criação de uma política de pública e a sua implementação prática. Com relação às políticas de inclusão, os educadores sentem-se, de modo geral, despreparados para lidar com elas. A principal queixa refere-se à falta de apoio e de recursos que subsidiem sua atuação, e, assim, mais uma vez se retomam os entraves de uma conjuntura política desarticulada, desde a construção das políticas públicas específicas nos espaços consultivos e deliberativos até a construção do projeto pedagógico da escola.

Ao chegar à escola fui conversar com a professora "L" que me comunicou de seu aluno novo, um chinês que não falava e nem entendia português, falou-me da dificuldade de trabalhar com essa criança em sala de aula. Ela disse que nunca tiveram suporte de ninguém, a escola simplesmente coloca as crianças em suas salas e elas que se virem (DC006).

A mesma situação acontece com relação às políticas de agrupamentos multietários. Os educadores evidenciam sua preocupação acerca do impacto dessa dificuldade sobre o desenvolvimento das crianças no contexto escolar, em função, principalmente, do grande número de crianças na sala de aula e do precário desenvolvimento de atividades pedagógicas que atendam à diversidade etária sem deixar de promover a integração:

A professora "F" me falou que a situação estava desgastante: "tem muita criança na sala, cada uma com uma idade diferente, eu peguei um monte de crianças pequenas, preciso fazer várias atividades para cada faixa etária, falar a mesma atividade de forma diferente para que todos compreendam o que eu falo, eu faço tudo em dobro nesta sala, isto aqui não é uma escola rural onde as crianças estão agrupadas em diferentes idades porque não tem professor e nem salas de aula suficientes para todos. Estou cansada e depois é tudo culpa do professor se ele não consegue desenvolver um bom trabalho na escola" (DC029).

Finalmente, a categoria "Processos de adaptação à escola", elaborada a partir do ponto de vista das famílias/crianças, revela a preocupação das famílias não só com a entrada dos filhos nas creches, mas também com eventuais mudanças de turmas ou de professor. É possível observar que a reação das crianças a essas situações é muito influenciada pelas relações que a mãe, o pai e outros familiares estabelecem com essa novidade. As falas das famílias demonstram que, muitas vezes, as crianças expressam, na escola, conflitos que vivenciam dentro de suas casas, por meio dos relacionamentos estabelecidos entre os membros de suas famílias.

A mãe de "M" veio conversar comigo porque acha que alguma coisa aconteceu na escola, ela começou a ter dor de barriga e resolveu não querer ir mais para a escola. Ela relata que a filha reclama muito da professora, não gosta dela, preferia quando era "I". A mãe sente-se preocupada em relação à fala da filha e não vê a hora do ano acabar para ela sair da escola. Ela acha que a professora nova não está sabendo lidar com a filha (DC039).

 

Discussão

A elaboração das categorias como unidades representativas de situações-limite para o desenvolvimento das crianças no contexto da escola permite repensar o papel da psicologia escolar. A escola é enfatizada como espaço primordial de desenvolvimento e, portanto, como espaço que deve ser habitado pelo psicólogo escolar, cuja atuação deve ser expandida e complexificada.

É na escola que as crianças permanecem ao longo de uma parcela muito significativa de suas vidas. Logo, é dentro dela que elas expressam todas as experiências que vivenciam fora dela. A história de cada criança, no interior de uma família específica e de uma determinada comunidade, é diretamente revelada nas relações que elas estabelecem dentro do âmbito educativo. A forma como elas dormem, se alimentam, brincam e interagem com os adultos significativos em suas experiências cotidianas, nos lugares onde vivem, é transportada para as construções que fazem dentro da escola.

Assim, as categorias elaboradas indicam quais situações constituem-se como limites, porque afetam e têm importância para o desenvolvimento das crianças. Elas cumprem o papel de demonstrar o peso que determinadas circunstâncias exercem sobre o desenvolvimento de crianças na idade escolar, enfatizando a materialidade de eventos que podem prejudicar o seu curso.

Tais categorias são, portanto, representativas das situações-limite porque correspondem a condições objetivas e sugerem a presença de risco sem, no entanto, reduzi-lo a fatores ou muito amplos ou muito isolados, como traços epidemiológicos. Elas denotam condições objetivas, materiais, concretas, mas sempre relacionais e, logo, conectadas a dimensões subjetivas, individuais, pessoais. Uma situação-limite, como uma condição objetiva, portanto, relaciona-se dinamicamente com uma condição subjetiva, de vulnerabilidade.

Aqui é importante ressaltar, conforme sugere Martín-Baró (1990), que reconhecer a importância das circunstâncias concretas e objetivas sobre a vida de indivíduos e grupos não significa encará-las como um amálgama que engesse as possibilidades de mudança e transformação, na medida em que elas são também parte das relações humanas, históricas e socialmente construídas.

Entendemos que a compreensão de tal problemática por meio dessa perspectiva dialética agrega elementos importantes que devem ser considerados tanto no âmbito da educação como no âmbito da psicologia e, principalmente, na interface entre esses dois campos de saber. Por isso, enfatizamos o horizonte de libertação, proposto por Ignacio Martín-Baró (2006), como um horizonte emancipatório que, a nosso ver, corresponde aos princípios da psicologia escolar preventiva.

A proposta de prevenção em psicologia escolar está intimamente, conforme sugerem Marinho-Araújo e Almeida (2005), relacionada à reformulação das formas de intervenção no contexto escolar. Essa intervenção deve estar ancorada na compreensão de que o processo de constituição de cada sujeito como tal está sempre imerso nas relações sociais que o envolvem histórica e culturalmente. Portanto, é imprescindível o uso de teorias psicológicas alinhadas com essa concepção intrinsecamente dialética.

Dessa elaboração é possível concluir a proeminência de uma contribuição teórica significativa para o campo da psicologia escolar. Pensar os processos de desenvolvimento à luz da ideia de situação-limite pode levar à estruturação de práticas mais coesas que considerem os eventos cotidianos e a sua condução profissional como determinantes de um percurso saudável para as crianças, suas famílias e os educadores. No entanto, também são evidenciadas as dificuldades de uma pesquisa inicial, cujos resultados ainda são limitados a uma instituição educacional, em um contexto específico. Mais possibilidades e perspectivas, certamente, exigem a realização de mais estudos. Justamente por isso, este artigo também serve ao propósito de disparar pensamentos e ações sobre o trabalho que ainda deve ser feito.

 

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Endereço para correspondência:
Ana Paula Gomes Moreira
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Avaliação e Intervenção Psicossocial: Prevenção, Comunidade e Libertação
Avenida John Boyd Dunlop, s/n, Jardim Ipaussurama
Campinas - SP - Brasil. CEP: 13060-904
E-mail: anapaulaa.moreira@gmail.com.

Submissão: 01.09.2012
Aceitação: 06.09.2013