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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.15 no.3 São Paulo dez. 2013

 

PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

 

Desenvolvimento infantil: concepções e práticas de educadoras em creches públicas

 

Child development: concepts and practices of educators in public daycare centers

 

Desarrollo infantil: concepciones y prácticas de educadoras en guarderías públicas

 

 

Deborah Dornellas Ramos; Nádia Maria Ribeiro Salomão

Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa - PB - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo do pressuposto de que o sistema de crenças sobre o desenvolvimento infantil é elaborado mediante o contexto histórico-cultural e repercute sobre as interações adulto-criança, o presente estudo investigou as concepções de educadoras em creches públicas sobre o desenvolvimento infantil e sua promoção, considerando a realidade de trabalho e a relação família-creche. Em entrevista com seis educadoras, abordaram-se os seguintes aspectos: rotina de trabalho, desenvolvimento das crianças e relação família-creche. Os dados foram analisados a partir da técnica de análise de conteúdo temática. De modo geral, as educadoras avaliaram positivamente o desenvolvimento das crianças. Contudo, aspectos negativos, como agressividade e agitação, também foram relatados. Observou-se que os conflitos entre cuidar e educar se mostraram presentes nas rotinas das creches, repercutindo, sobretudo, nas relações estabelecidas com as famílias e nas interações educadora-criança. Salienta-se a necessidade de compreender esses dados mediante as particularidades do contexto específico em que emergiram.

Palavras-chave: concepção; desenvolvimento infantil; educadores; creches; prática profissional.


ABSTRACT

Considering that the beliefs' systems about child development are elaborated through the sociocultural context and influence adult-child interactions, this study investigated the conceptions of educators in public day-care centers about child development considering their reality of work and the relationship between families and day-care centers. Six educators had been interviewed, taking into account aspects as: work routine, child development and relationship families/day-care centers. Data were analysed using content analysis. In general, the educators evaluated positively the child development. However, negative aspects as aggressiveness and agitation had been also emphasized. The conflicts between giving care and teaching were presented, reflecting itself in the relationships between families and day-cares, and also in the child-educator interactions. It is important to consider the necessity of understand these data bearing in mind the particularities of the specific context where they had emerged.

Keywords: conceptions; child development; teaching; day care centers for children; professional practices.


RESUMEN

A partir del presupuesto que el sistema de creencias sobre el desarrollo infantil es elaborado por medio del contexto histórico-cultural y refleja en las interacciones adulto-niño, el presente estudio investigó las concepciones de educadoras sobre el desarrollo infantil y su promoción, considerando la realidad de trabajo y la relación familia-guardería. Se entrevistaron seis educadoras, abordando aspectos, como: rutina de trabajo, desarrollo de los niños y relación familia-guardería. Se analizaron los datos a partir de la técnica de análisis de contenido temático. De modo general, las educadoras evaluaron positivamente el desarrollo de los niños. Sin embargo, también se relataron aspectos negativos, como la agresividad y la agitación. Los conflictos entre cuidar y educar se mostraron presentes en las rutinas y refleja en las relaciones con las familias y en las interacciones educadora-niño. Se destaca la necesidad de comprender esos datos por medio de las particularidades del contexto específico en que emergieron.

Palabras clave: concepción; desarrollo infantil; educadoras; guarderías; práctica profesional.


 

 

A perspectiva sociointeracionista defende que o desenvolvimento humano se configura por meio da relação entre componentes de ordem biológica e social, mediante as trocas estabelecidas no contexto histórico e cultural em que vivemos. Destaca-se que esses intercâmbios sobressaem pelas suas repercussões sobre a qualidade desse processo em suas diversas esferas. Isso implica considerar o intermédio exercido pelo sistema de valores e conceitos socialmente partilhados, que permitem às pessoas se adaptar às diferentes situações e norteiam a elaboração das ideias sobre as experiências com o mundo.

No que se refere ao desenvolvimento infantil, ressalta-se que a forma como os adultos organizam o ambiente e interagem com as crianças se fundamenta nas suas concepções sobre o desenvolvimento e a educação. Logo, é de fundamental importância considerar as suas repercussões quando se trata tanto da qualidade das interações adulto-criança quanto da promoção do desenvolvimento infantil.

Estudiosos da abordagem sociointeracionista (Harkness & Super, 1996; Keller, 2008) afirmam que o sistema de crenças sobre o desenvolvimento é elaborado no meio cultural e pode influenciar as ações dos adultos que lidam com as crianças. Em outras palavras, a compreensão dessas pessoas sobre a natureza da criança, a estrutura do seu desenvolvimento e o significado dos seus comportamentos é compartilhada com membros do grupo social, considerando o tempo, o lugar, a natureza e o significado de ser pai/mãe/cuidador, família e sociedade em cada contexto específico. Com base no papel exercido pelas crenças culturais e nas relações destas com o desenvolvimento humano, o presente estudo teve por objetivo analisar as concepções de educadoras que atuavam em creches acerca do desenvolvimento infantil e a promoção desse processo.

Considerando que o desenvolvimento humano ocorre em um contexto sócio-histórico e cultural, Rossetti-Ferreira, Amorim e Vitória (1994) defendem que a criança se desenvolve a partir das trocas com os outros, mediante um sistema de valores e conceitos compartilhados, adaptando-se às diferentes situações e experienciando seus próprios sentimentos e comportamentos ao longo do processo. Logo, pode-se afirmar que a forma como o adulto organiza o ambiente e interage com a criança está relacionada às suas concepções sobre o desenvolvimento e a educação infantil.

Com base nesse pressuposto, Almeida e Cunha (2003) investigaram as representações sociais de professoras sobre o desenvolvimento humano, buscando compreender como as crenças, os valores e as teorias se integram com as práticas desses profissionais e estas com o processo de desenvolvimento dos seus alunos. Como resultados, as autoras verificaram a prevalência da representação ideológica da criança como objeto de proteção e cuidados. Em outras palavras, a dependência se constituiu como elemento estruturante das representações elencadas, o que sugere implicações práticas sobretudo no que tange às experiências e possibilidades que podem ser proporcionadas às crianças no seu cotidiano.

Considera-se, assim, que conhecer as concepções das educadoras sobre o desenvolvimento infantil consiste em um aspecto fundamental para a qualidade das experiências das crianças nas instituições, sobretudo no que diz respeito à estruturação das políticas sociais e à sua aplicabilidade no cotidiano da creche.

Nessa premissa, destaca-se o estudo realizado por Volpato e Mello (2005) que, ao analisarem as condições de trabalho e formação tanto de educadoras quanto de atendentes que atuavam em creches públicas, verificaram que ainda prevalecia um modelo de caráter assistencialista/higienista, principalmente no que diz respeito às rotinas de trabalho e às concepções subjacentes aos aspectos valorizados na atuação. Portanto, observa-se que, longe de ser superado, o conflito entre cuidar/educar ainda faz parte do dia a dia das creches, repercutindo tanto sobre as concepções e práticas das profissionais quanto nas interações com as crianças, o que resulta também em implicações sobre o seu desenvolvimento.

Considerando o papel exercido pelas creches e suas relações com o desenvolvimento infantil, Melchiori, Basioli-Alves, Souza e Bugliani (2007) entrevistaram educadoras e mães com o objetivo de comparar e analisar as suas crenças a respeito do temperamento e do desempenho das crianças. Os resultados apontaram pouca diferença em relação às crenças das participantes, visto que tanto as educadoras quanto as mães consideraram os pais os principais responsáveis por influenciar o desenvolvimento infantil, destacando-se o fato de as mães não reconhecerem o devido papel das educadoras na promoção do desenvolvimento dos seus filhos, assim como as próprias profissionais subestimavam a sua influência sobre o desempenho das crianças.

Logo, observa-se que os conflitos que permeiam as rotinas das creches não se restringem apenas às concepções acerca do seu papel como instituições responsáveis pelo cuidar/educar, estendendo-se ainda às relações estabelecidas com as famílias e aos jogos de atribuição de responsabilidades que se configuram nesse processo de educação/cuidado compartilhados, considerando a necessidade de negociação no que se refere às diferenças relativas às crenças, aos valores e aos procedimentos empregados nos ambientes das creches.

Na rotina da creche, a presença dos valores sociais nas relações estabelecidas entre educadoras e crianças foi investigada por Almeida (2006), que verificou a influência de valores construídos a partir da negociação subjetiva entre mães e educadoras acerca do papel destas últimas. Nos resultados obtidos por Almeida (2006), destacou-se o fato de as educadoras perceberem a adaptação da criança e de sua família à creche como um processo desgastante e doloroso, o que repercutiu sobre suas práticas, por meio de uma conduta homogeneizadora durante a interação com os bebês, além da concepção de que lugar de criança pequena seria em casa.

Com o objetivo de compreender as concepções de desenvolvimento que constituem os saberes e as práticas de educadoras que atuam na educação infantil, Jorge, Reis e Nascimento (2008) verificaram concepções de caráter mais ambientalista, apesar de as profissionais terem enfatizado a influência da perspectiva sociointeracionista em suas práticas. Conforme as autoras, a valorização dessa última abordagem pode estar relacionada à busca pela formação profissional, como também às mudanças relacionadas às concepções das educadoras, favorecendo assim a transformação das suas práticas cotidianas.

Portanto, uma vez que as práticas das educadoras se configuram mediante as concepções acerca dos fatores que permeiam a sua atuação, questiona-se:

Quais são as suas concepções e práticas quando se trata do desenvolvimento infantil e da sua promoção?

Quais são as suas concepções sobre o papel que exercem nas creches e sobre a atuação destas últimas?

Como essas profissionais concebem as relações família-creche e as suas repercussões práticas?

Sendo assim, o presente estudo objetivou analisar as concepções de educadoras sobre o desenvolvimento infantil e os procedimentos para a promoção desse processo, considerando a sua realidade de trabalho e a relação família-creche.

 

Método

Participantes

Participaram desta pesquisa seis educadoras de Maternal I, com faixa etária média de 32,8 anos e renda familiar variando em torno de 2,66 salários mínimos. Das seis educadoras, três haviam cursado formação de nível superior em pedagogia, enquanto as demais apresentavam apenas a formação pedagógica Normal. Ressalta-se que as três educadoras que tiveram acesso ao ensino superior cursaram a graduação em formato intensivo, apenas durante os finais de semana, o que muitas vezes implica comprometimentos da qualidade do processo de ensino-aprendizagem (Machado, 2010).

Local

As entrevistas foram realizadas em seis creches públicas do município de João Pessoa, Paraíba. Nas turmas do Maternal I, uma educadora e uma auxiliar de sala eram responsáveis por uma média de 20 crianças, na faixa etária entre 24 e 30 meses, as quais frequentavam as creches em período integral. Ressalta-se que essas instituições eram localizadas em bairros caracterizados pelo baixo nível socioeconômico de sua população. A renda média das famílias das crianças variava entre um e dois salários mínimos, e as mães eram solteiras e não haviam completado o ensino fundamental.

Instrumentos

Foi utilizada uma entrevista semiestruturada, composta por três etapas: 1. dados sobre a educadora; 2. dados sobre o trabalho; e 3. dados sobre o desenvolvimento da criança. Na primeira etapa, o roteiro compreendia questões referentes aos dados sociodemográficos, enquanto, na segunda, as perguntas remetiam à formação profissional das educadoras, às rotinas nas creches e àquilo que elas mais gostavam e menos gostavam no seu trabalho. Por fim, na terceira etapa, solicitava-se às educadoras que falassem sobre o desenvolvimento das crianças e o que elas consideravam importante fazer para promover esse processo. Questionava-se ainda sobre as famílias das crianças, o papel destas no desenvolvimento infantil, assim como o papel das creches. O registro das entrevistas foi feito por meio de gravação digital.

Coleta de dados

Os primeiros contatos com as instituições visaram à apresentação dos objetivos da pesquisa, dos procedimentos de coleta de dados, além dos compromissos éticos adotados, por meio dos Termos de Consentimento Livre Esclarecido. A coleta de dados teve início por meio do rapport com as educadoras e do levantamento de seus dados sociodemográficos. Em seguida, foram realizadas as entrevistas que aconteceram em ambientes reservados, no interior das próprias creches, durantes horários considerados convenientes pelas educadoras.

Análise dos dados

Os dados foram analisados a partir da técnica de análise de conteúdo temática. A identificação e análise das unidades temáticas (UT), das categorias de análise e das subcategorias resultaram no surgimento das seguintes classes: "Contextualização do trabalho" (f = 350), "Caracterização das crianças" (f = 240), "Caracterização das educadoras" (f = 66), "Contextualização das instituições" (f = 61) e "Relação família-creche" (f = 50).

 

Discussão de resultados

Uma análise geral identificou a presença de 767 UT nas falas das educadoras, tendo as suas respostas predominado na classe "Contextualização do trabalho" (f = 350), que correspondeu a 45,63% do número total de unidades. As categorias e subcategorias dessa classe, além de suas frequências e percentuais, podem ser vistas na Tabela 1.

 

 

Na Tabela 1, verifica-se que, na classe temática "Contextualização do trabalho", predominou a categoria "Atividades de rotina", prevalecendo as "Atividades de caráter cuidador e orientador de condutas", cujas falas englobaram os procedimentos de cuidado das crianças, tais como: fazer a higiene ("dar banho") e fazer carinho ("quando eles tão doentinho, a gente bota no colo"), além da orientação dos comportamentos infantis ("a gente mostra a forma correta de sentar"; "a gente mostra o que não pode fazer").

Destaca-se que o predomínio das atividades de cuidado nas creches tem sido analisado em diversas pesquisas (Cruz, 2001; Lordelo, 1998; Volpato & Mello, 2005), das quais a de Lordelo (1998) mostra-se especialmente relevante aqui, visto que identificou, entre os funcionários de uma creche pública, o predomínio da concepção higienista e de práticas que consistiam essencialmente em cuidados físicos, além de atividades de fiscalização e controle, que refletiam uma conduta resultante não apenas das necessidades das crianças, mas sobretudo da importância que é dada ao papel dos cuidados nas creches.

Volpato e Mello (2005) também observaram que as educadoras em creches públicas enfatizavam nas rotinas as atividades de alimentação, além da promoção de valores como a gratidão, a obediência e o respeito, enquanto Gomes (2008) constatou a ênfase sobre a assimilação pelas crianças de conteúdos atitudinais socialmente aceitos, como a responsabilidade e a disciplina, o que recai sobre a noção do papel da creche como instituição responsável por orientar e regular os comportamentos infantis.

Ainda no que diz respeito às práticas das educadoras, a segunda categoria mais frequente na classe "Contextualização do trabalho" foi "Avaliação do trabalho", que se subdividiu em: "Aspectos positivos do trabalho" ("não é todas as pessoas que gosta de trabalhar com criança, mas eu trabalho e eu gosto muito") e "Aspectos negativos do trabalho" ("só não cuida 24 horas porque eles têm que ir pra casa dormir"). O fato de as falas terem predominado em "Aspectos positivos do trabalho" demonstra que as educadoras ainda se reportam mais ao seu trabalho de forma positiva, como apontou o estudo de Cruz (2001), no qual as educadoras atribuíam essa concepção ao fato de gostarem de trabalhar com crianças, como foi observado no presente estudo. Contudo, é preciso considerar também a influência da desejabilidade social e as suas possíveis repercussões sobre as respostas apresentadas.

No que concerne ao trabalho com crianças, salienta-se que a segunda classe temática mais frequente foi "Caracterização das crianças" com 240 UT, que representaram 31,29% do corpus. As categorias dessa classe resultaram em uma descrição geral das características das crianças a partir da visão de suas educadoras, como é possível verificar na Tabela 2.

 

 

Na classe "Caracterização das crianças", prevaleceu a categoria "Avaliação do desenvolvimento geral", que se subdividiu em "Aspectos positivos do desenvolvimento" ("eu vejo que eles têm um bom desenvolvimento") e "Aspectos negativos do desenvolvimento" ("tá fraco o desenvolvimento, os alunos das outras turmas eram mais desenrolados"). Apesar de as educadoras terem relatado mais aspectos positivos que negativos, é preciso ponderar que as famílias das crianças são provenientes de contextos socioeconômicos e educacionais bastante desfavorecidos, o que pode ocasionar repercussões sobre a qualidade do desenvolvimento infantil (Hoff, 2006; Seidl de Moura et al., 2004).

No que tange aos conhecimentos e às práticas relacionados ao desenvolvimento, a segunda categoria mais frequente foi "Procedimentos para promover o desenvolvimento", que representa 25,61% da classe "Caracterização das crianças". Dentre as subcategorias que emergiram, a de maior frequência foi "Utilizar brinquedos educativos" como instrumentos para a promoção do desenvolvimento infantil ("o que desenvolve mais são esses brinquedos educativos"), seguida das subcategorias "Conversar" e "Contar estórias", cujas falas remetiam às propriedades das atividades citadas e às suas relações com o desenvolvimento das crianças ("absorve mais quando a gente conversa, conta estória").

Em outras palavras, observa-se que predominaram as atividades que envolviam a interação como instrumento-chave para a sua realização e para a promoção do desenvolvimento. Nota-se que tanto o uso dos brinquedos educativos quanto a prática de contar estórias sugerem a valorização do brincar para o desenvolvimento infantil, fato que Martins, Vieira e Oliveira (2006) também verificaram em seu estudo, no qual as educadoras ressaltaram a importância do brinquedo sobretudo no desenvolvimento socioemocional.

No que diz respeito ao desenvolvimento linguístico das crianças, emergiu a categoria "Avaliação do desenvolvimento linguístico" que se subdividiu em "Aspectos positivos do desenvolvimento linguístico" ("a linguagem é muito boa, tem uns que já estão falando") e "Aspectos negativos do desenvolvimento linguístico" ("tem uns que ainda não consegue falar"). Assim como ocorreu em "Avaliação do desenvolvimento geral", observa-se aqui que as educadoras enfatizaram os aspectos positivos da linguagem apresentada pelas crianças. Apesar disso, ressalta-se que fatores característicos do contexto familiar das crianças, como o nível socioeconômico e, sobretudo, o nível educacional, costumam se associar a níveis de desenvolvimento linguístico mais baixos (Goulart & Chiari, 2007; Hoff, 2006).

Ainda no que concerne à classe temática "Caracterização das crianças", destaca-se também a categoria "Avaliação do comportamento" que originou "Aspectos positivos do comportamento" ("o comportamento deles é bom") e "Aspectos negativos do comportamento" ("eles tão sempre mexendo em alguma coisa, só param quando se machuca"). Uma vez que, em grande parte das falas, as educadoras fizeram referência aos comportamentos das crianças de maneira negativa, salienta-se que Almeida e Dessandre (2008), ao investigarem as concepções de criança ideal, fácil e difícil entre educadoras de creches públicas, verificaram que as crianças consideradas difíceis apresentavam comportamentos vistos como pouco satisfatórios, tais como não participação nas aulas e problemas de relacionamento com colegas e professores, além de agressividade e agitação, aspectos que também foram relatados pelas educadoras do presente estudo.

Outra categoria que emergiu foi "Avaliação da personalidade" que determinou o surgimento das subcategorias "Aspectos negativos da personalidade" e "Aspectos positivos da personalidade". Os aspectos considerados positivos na personalidade foram prevalentes e remeteram ao carinho e ao amor das crianças, assim como ao esforço delas em tentar fazer o melhor que podiam na creche. Já quanto aos aspectos negativos, as educadoras enfatizaram principalmente a timidez. No mesmo estudo supracitado, desenvolvido por Almeida e Dessandre (2008), as educadoras relataram que a criança fácil seria participativa e colaborativa, além de se relacionar bem com os colegas e a professora, enquanto as profissionais entrevistadas por Gomes (2008) destacaram a participação, a responsabilidade e a facilidade em aprender.

Já na classe "Caracterização das educadoras" que englobou 66 UT e correspondeu a 8,60% do corpus, as profissionais forneceram uma visão geral de si mesmas por meio de falas referentes à sua autopercepção e às atividades de preferência na rotina. As categorias e subcategorias podem ser vistas na Tabela 3, assim como frequências e percentagens:

 

 

Essa classe temática se subdividiu nas categorias "Autopercepção" e "Preferência pelas atividades". Destaca-se que esta última prevaleceu com 49 UT, que significaram 74,24% da classe, subdividindo-se em "Atividades de que mais gostam" e "Atividades de que menos gostam". As falas que predominaram em "Atividades de que mais gostam" enfatizavam as atividades de caráter lúdico e/ou recreativo ("quando eles brincam junto com a gente, é a hora assim que eu mais gosto"), enquanto, em "Atividades de que menos gostam", predominaram as atividades de higiene e cuidado das crianças ("Dar banho é fogo, eu não gosto muito, não"). Ressalta-se que, na pesquisa realizada por Beraldo e Carvalho (2006), as educadoras definiram as interações com as crianças como sua principal fonte de prazer, enquanto a alta carga de trabalho foi citada como uma das fontes de insatisfação. A esse respeito, Volpato e Mello (2005) salientam que existem frequentes desvios de função que levam as educadoras a realizar atividades que extrapolam a sua alçada e as sobrecarregam, como as referentes à higienização.

A segunda categoria que emergiu da classe temática "Caracterização das educadoras" foi "Autopercepção", cujas falas diziam respeito às formas como as profissionais viam a si mesmas e ao seu próprio papel no desenvolvimento das crianças, originando as seguintes subcategorias: "Mãe" ("A gente é mãe porque a gente dá carinho, como se fosse uma mãe"), "Educadora" ("É educadora porque você tá ensinando") e "Babá" ("A gente já é babá").

Uma vez que a subcategoria "Mãe" foi a mais frequente, seguida por "Educadora", observa-se que emerge novamente a problemática da relação entre cuidar e educar. A prevalência dos papéis relacionados ao cuidado e ao atendimento das necessidades das crianças (mãe e babá) remete ao próprio contexto histórico das creches, que durante muito tempo se pautaram sobre uma perspectiva assistencialista. Nessa premissa, observa-se que as educadoras possuem ainda um papel considerado difuso, visto que se espera, em determinadas situações, que devam educar/cuidar e, em outras, que devam agir como mães substitutas (Beraldo & Carvalho, 2006; Volpato & Mello, 2005).

As concepções acerca das creches e dos papéis delas como instituições emergiram na classe temática "Contextualização das instituições", com 61 UT, representando 7,95% do corpus. As categorias e subcategorias dessa classe, bem como frequências e percentagens, podem ser vistas na Tabela 4.

 

 

Verifica-se que a classe "Contextualização das instituições" contou com três categorias - "Papel da creche", "Concepção da creche no passado" e "Concepção da creche no presente" - a qual prevaleceu por meio de falas referentes à visão das educadoras acerca do atual papel das creches, dos principais problemas e das possíveis soluções, originando as subcategorias: "Soluções" ("se fosse mais integrado, creche, pais, professores, todos fariam um bom trabalho"), "Problemas" ("faz tarefa de manhã e à tarde fica sem fazer nada") e "Papel positivo" ("eu acho que a gente tem um papel tão importante, muito positivo mesmo"). Observa-se que, apesar de as educadoras perceberem as creches como detentoras de um papel importante e de caráter positivo, as profissionais também salientaram diferentes problemas que têm como pano de fundo comum a falta de organização e estruturação das rotinas e atividades, o que remete ao estudo realizado por Volpato e Mello (2005), cujos resultados apontaram para atividades não planejadas, que resultavam em procedimentos automáticos e realizados desordenadamente, de acordo com o surgimento das demandas.

A categoria "Papel das creches" contou com 19 UT, que denotaram 31,14% da classe "Contextualização das instituições", originando as subcategorias: "Educar" ("hoje em dia o papel da creche é educar mesmo"), "Cuidar" ("o objetivo da creche é como uma mãe normalmente tomaria os cuidados em casa") e "Orientar condutas" ("o nosso papel é corrigir, tá sempre levando eles pra um bom caminho"). Ressalta-se mais uma vez que as controvérsias envolvendo o cuidar e o educar se constituíram como uma constante na história das creches no Brasil, que, em virtude de seu caráter assistencialista, eram vistas como um mal necessário (Rossetti-Ferreira et al., 1994). Essa visão negativa também se fez presente nas falas das educadoras em questão, na categoria "Concepção das creches no passado", cujas falas remetiam às creches como antigos depósitos de crianças ("antigamente era como o povo falava, um depósito de crianças").

Por último, emergiu a classe "Relação família-creche", com 50 UT, representando 6,51% do total do corpus. As falas remeteram à avaliação das educadoras sobre a relação entre as famílias das crianças e as creches, originando apenas a categoria "Avaliação da relação família-creche", que compreendeu as subcategorias "Relação participativa" ("sempre que as mães vêm, a gente conversa sobre os meninos") e "Relação pouco participativa" ("eu acho a família mais afastada, a gente não tem muito contato, não, acho que são muito omissos"). Uma vez que as concepções acerca de uma "Relação pouco participativa" predominaram (f = 27), quando comparadas às que denotavam uma "Relação participativa" (f = 23), pode-se dizer que 54% das falas remeteram à noção de que a relação família-creche seria pouco participativa e marcada especialmente pela falta de contato e por sentimentos negativos.

Ainda no que diz respeito à "Relação família-creche", Almeida (2006) verificou, entre as educadoras, a concepção de que crianças pequenas deveriam ficar sob os cuidados das famílias, enquanto Maranhão e Sarti (2007) constataram que as educadoras atribuíam às mães comportamentos negligentes e julgavam moralmente as famílias. Por sua vez, Melchiori et al. (2007) observaram que as mães pouco citavam as educadoras como pessoas influentes no desempenho dos seus filhos e praticamente não reconheciam o papel delas no desenvolvimento das crianças, sugerindo que os conflitos e as disputas de papéis resultam em concepções negativas tanto por parte das mães quanto das educadoras.

Com base nos resultados apresentados, pode-se constatar que, de modo geral, as falas das educadoras remeteram às concepções acerca dos principais aspectos que permeiam sua atuação profissional, englobando desde a contextualização do trabalho e da realidade das instituições onde atuavam até uma descrição geral do desenvolvimento das crianças e das relações estabelecidas com suas famílias.

Nessa premissa, verificou-se que as educadoras avaliaram positivamente o desenvolvimento geral das crianças, pois enfatizaram as qualidades desse processo e os procedimentos capazes de promovê-lo, com destaque para o uso dos brinquedos educativos e os hábitos de conversar e contar estórias. Contudo, as profissionais também ressaltaram aspectos negativos, sobretudo com relação a determinados comportamentos infantis, como a falta de participação em sala, a agressividade e a agitação, além da relação com as próprias famílias das crianças, que foi descrita como conflituosa e pouco participativa.

Ressalta-se que as particularidades próprias dos contextos nos quais as creches se encontram inseridas precisam ser consideradas nessas análises, o que remete aos fatores socioeconômicos e educacionais que permeiam tanto a realidade das famílias das crianças quanto das próprias educadoras, que não só atuavam em creches públicas que apresentavam uma elevada proporção de crianças por adulto e eram localizadas em bairros periféricos, como também apresentavam comprometimentos com relação às suas formações profissionais, além dos baixos salários.

No que concerne à contextualização do trabalho e das instituições, constaram-se contradições com relação aos aspectos considerados positivos e negativos nas atividades exercidas pelas educadoras, à sua autopercepção profissional e ao seu papel nas instituições onde atuavam. Nessa premissa, destacam-se ainda os conflitos envolvendo as concepções acerca da creche, considerando tanto os seus problemas quanto as possíveis soluções, o que remete às melhorias estruturais, ao planejamento das atividades e ao estabelecimento de uma relação mais integrada e participativa com as famílias das crianças.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Deborah Dornellas Ramos
Universidade Federal da Paraíba, Departamento de Psicologia, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Cidade Universitária, s/n, Castelo Branco
João Pessoa - PB - Brasil. CEP: 58051-900
E-mail: deborahd.ramos@yahoo.com.br

Submissão: 14.04.2012
Aceitação: 05.06.2013