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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.16 no.1 São Paulo Apr. 2014

 

PSICOLOGIA SOCIAL

Aspectos psicossociais da construção da identidade paterna

 

Psychosocial aspects of paternal identity construction

 

Aspectos psicosociales de la construcción de la identidad paterna

 

 

Gabriela Teixeira VieiraI; Adriano Roberto Afonso Nascimento
I Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte – MG – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

A presente investigação buscou analisar, a partir da teoria da identidade social, os aspectos psicossociais envolvidos na construção da identidade paterna, segundo 14 sujeitos, com idade entre 20 e 50 anos, todos pais do primeiro filho, com idade entre 2 a 7 meses, residentes da região metropolitana de Belo Horizonte/MG. Com esse objetivo, a partir de um roteiro semiestruturado, realizaram-se entrevistas que, posteriormente, foram submetidas à análise de conteúdo. As categorias foram organizadas segundo os três componentes da identidade social: cognitivo (ser responsável; dar amor e carinho ), avaliativo (ser bom pai) e emocional (atividades prazerosas realizadas com os filhos). Em seu conjunto, os entrevistados procuram negociar, de formas variadas, os sentidos e as práticas tradicionais relacionados ao ser pai com as mais recentes expectativas sociais sobre tal função nas suas relações cotidianas.

Palavras-chave: paternidade; identificação social; grupo social; análise qualitativa; psicologia social


Abstract

This study aims to analyze from the perspective of Social Identity Theory the psychosocial aspects involved in the construction of fatherhood from the viewpoint of 14 fathers, between the ages of 20 and 50, all parents of their first child, aged 2-7 months, living in the metropolitan area of Belo Horizonte. Interviews were conducted from a semi-structured script, which subsequently were subjected to content analysis. The categories were organized according to the three components of social identity: cognitive (be responsible; to give love and affection), evaluative (be good father) and emotional (pleasurable activities carried out with the children). Global results show that respondents seek to negotiate in their daily relationships, in a wide range of ways, the traditional meanings and practices of being a father with the latest social expectations about that role.

Keywords: paternity; social identification; social group; qualitative analysis; social psychology


Resumen

Este estudio tuvo como objetivo analizar a partir de la teoría de la identidad social, los aspectos psicosociales implicados en la construcción de la paternidad en 14 sujetos, con edades comprendidas entre 20 y 50 años, todos padres de su primer hijo, con edades entre 2-7 meses, viviendo en la región metropolitana de Belo Horizonte/ MG. Con este objetivo a partir de un guión se llevaron a cabo entrevistas semi-estructuradas que posteriormente fueron sometidas a análisis de contenido. Las categorías fueron organizadas según los tres componentes de la identidad social: cognitivo (ser responsable; dar amor y afecto), evaluación (ser buen padre) y emocionales (placenteras actividades llevadas a cabo con los niños). En general, los encuestados tratan de negociar en muchas formas los significados y las prácticas relacionadas con ser padre a partir de las últimas expectativas sociales sobre dicha función en sus relaciones cotidianas.

Palabras clave: paternidad; identificación social; grupo social; análisis cualitativo; psicología social


 

 

O presente artigo buscará analisar como a identidade paterna tem sido construída e vivenciada em seus primeiros momentos, ou seja, por pais cujo primeiro filho tem idade máxima de 7 meses. Para tanto, apresentaremos, primeiramente, alguns trabalhos sobre paternidade que vêm sendo desenvolvidos nos últimos anos, principalmente no contexto brasileiro, e a perspectiva sobre identidade a partir da teoria da identidade social, com a qual trabalhamos.

Na década de 1990, em relação ao estudo da paternidade, Jablonski (1998, p. 121) afirmava que “este campo veio crescendo meio ‘à margem’ nas Ciências Sociais, possuindo hoje, a despeito de seu desenvolvimento silencioso, um significativo contingente de investigações, pesquisas e reflexões de inegável valor e substância”. De modo adicional, Trindade (1998) apontava que a maioria das pesquisas realizadas até aquele momento sobre o tema investigava os pais sem ouvi-los diretamente, enfatizando apenas a ótica feminina. Pouco se investigavam a responsabilidade e o desejo masculinos no processo de reprodução. Após mais de uma década, o que se percebe, hoje, é que a temática da paternidade constituiu-se efetivamente como objeto de estudo de vários pesquisadores no Brasil e no exterior (Souza & Benetti, 2009).

Mais recentemente, muito se tem falado sobre a “nova paternidade”, “movimento no qual a figura do ‘pai cuidador’ se mostra como uma das principais e mais perceptíveis dimensões” (Brasileiro, Pontes, Bichara, & Bastos, 2010, p. 147). Nesse novo contexto, percebe-se que houve um aumento considerável de pesquisas que trazem a temática da participação e do envolvimento paternos e das vivências e expectativas, dos sentimentos e da experiência a partir da perspectiva dos pais (Souza & Benetti, 2009).

Embora alguns trabalhos, considerando as variações encontradas para pais de diferentes gerações (Scott, Athias, & Longhi, 2005), demonstrem por parte dos pais um desejo de envolvimento no desenvolvimento dos filhos (Bornholdt, Wagner, & Staudt, 2007) e uma maior proximidade e afeto na relação pai-bebê, a participação nos cuidados não se mostra tão efetiva quanto planejada por aqueles durante a gravidez (Krob, Piccinini, & Silva, 2009). O que esse conjunto de estudos tem reiterado é que as mães ainda são vistas como as principais responsáveis pelo desenvolvimento das crianças, principalmente nos primeiros anos de vida.

Como visto, a participação masculina em relação aos cuidados permanece restrita em relação a suas intenções/expectativas. A questão que permanece é: por que isso ocorre? Parece-nos que compreender como se constitui a identidade paterna é relevante para se chegar a uma resposta para essa questão.

O processo de identificação, bem como suas implicações psicossociais, sobretudo nas proposições iniciais e nos consequentes desdobramentos da denominada teoria da identidade social, é campo de interesse já tradicional da área de psicologia social (Deschamps & Moliner, 2009; Torres & Camino, 2011).

Segundo Tajfel (1983, p. 261), três são os componentes constitutivos da identidade social:

Cognitivo: no sentido de que se sabe que se pertence a um grupo.

Avaliativo: no sentido de que a noção de grupo e/ou pertença a ele pode ter uma conotação de valor positivo ou negativo.

Emocional: no sentido de que os aspectos cognitivos e avaliativos do grupo de pertença a ele podem ser acompanhados de emoções (tais como amor ou ódio, gostar ou não gostar) dirigidas a um grupo próprio ou para outros com os quais tem certas relações.

Grupo, nesse contexto, deve ser entendido como grupo psicológico, ou seja, “uma entidade cognitiva com grande significado para o indivíduo em um determinado momento” e não uma “relação face-a-face entre um certo número de pessoas” (Tajfel, 1983, p. 290). A extração do valor vinculado à pertença e consequentemente ao seu significado emocional ocorrerá, portanto, por meio da comparação social, ou seja, da comparação intergrupal. Na base dessa comparação, encontram-se categorias sociais, entendidas como a reunião de “objetos ou acontecimentos sociais, em grupos, que são equivalentes no que diz respeito a ações, intenções e sistemas de crença” (Tajfel, 1983 p. 290). Para que seja possível o sentimento de pertença a um grupo, é necessário que haja tanto um processo de autocategorização como de categorização pelos outros. Desse modo, o reconhecimento social também deve ser considerado como um aspecto relevante no que diz respeito à construção identitária.

A identidade pode então ser compreendida como um

[...] processo social, que toma lugar não só no interior do indivíduo (fatores intrapsíquicos) ou no espaço das relações individuais (fatores interindividuais), mas se desenvolve no nível social e institucional (fatores intergrupais) (Torres & Camino, 2011, p. 235).

Em suas primeiras proposições, a teoria da identidade social identificou, na busca de distintividade positiva por indivíduos e grupos, o motivo primeiro para os processos de identificação e o consequente estabelecimento das referências nós (ingroup) e eles (outgroup). Mais recentemente, entretanto, tem-se admitido que tanto a busca dessa distintividade positiva quanto os conteúdos simbólicos utilizados nos processos de comparação e diferenciação entre grupos são selecionados em função do contexto da relação entre esses mesmos grupos em um dado momento (Deschamps & Moliner, 2009). Nesse sentido, todo processo de construção identitária, ao pressupor a construção de uma alteridade, deve considerá-la como dependente de um contexto histórico e relacional.

Assim, à medida que os sentidos que legitimem essa alteridade deixem eventualmente de ser aceitos e valorizados, novos sentidos, e consequentemente novas alteridades, precisarão ser construídos. No entanto, a construção desses novos sentidos se dá, de forma recorrente, a partir de antigas referências já disponíveis.

Considerando o que até aqui foi apresentado, o objetivo deste trabalho foi investigar como a identidade paterna tem sido construída e vivenciada em seus primeiros momentos, ou seja, por pais cujo primeiro filho tem idade máxima de 7 meses. Pretende- se apresentar um panorama desse processo, a partir de um conjunto de entrevistas, levando-se em conta os três componentes apontados por Tajfel (1983) como centrais na constituição da identidade social.

 

Método

Local e participantes

Foram entrevistados, entre setembro e dezembro de 2010, 14 sujeitos de 20 a 50 anos, de diferentes escolaridades (quatro com ensino fundamental, quatro com ensino médio e seis com ensino superior), todos pais do primeiro filho, cuja idade variava de 2 a 7 meses, vivendo com a mãe da criança (esposa/companheira), residentes na região metropolitana de Belo Horizonte/MG.

Procedimento para coleta de dados

As entrevistas foram realizadas por meio de um roteiro semiestruturado por nós elaborado, dividido em blocos, que, posteriormente, foram reagrupados no momento da análise dos resultados. Constavam, no roteiro semiestruturado, temas como: a) paternidade (definição); b) mudanças/permanências das relações de amizade; c) mudanças/ permanências no trabalho; d) autoavaliação como pai; e) comparação com os próprios pais; f) comparação com outros pais; g) atividades que mais gostam de realizar com os(as) filhos(as); h) atividades que menos gostam de realizar com os filhos(as); i) frequência dos cuidados com os(as) filhos(as); j) quem realiza mais atividades com o(a) filho(a); e k) percepção da avaliação da esposa sobre sua condição de pai.

Procedimento para análise dos dados

Os dados coletados nas entrevistas (gravadas e transcritas integralmente) foram submetidos à análise de conteúdo (Bardin, 1977). Definiu-se como unidade de registro o tema. A análise dos dados foi realizada em diversas etapas: a) leitura flutuante do material coletado para que fossem extraídas impressões gerais sobre as entrevistas; b) processo de categorização, levando-se em consideração, a princípio, apenas o conteúdo manifesto das respostas dadas a cada tópico do roteiro; c) reagrupamento dentro de cada tópico das categorias com significados similares; d) sempre que possível, reagrupamento dos próprios tópicos a fim de considerá-los segundo os componentes da identidade social.

Cuidados éticos

Todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, apro vado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (Parecer n° 0299.0.203.000-10). Os nomes apresentados neste estudo são fictícios a fim de preservar a identidade dos sujeitos.

 

Resultados e discussão

Optamos, neste relato, pela apresentação dos resultados já articulados à sua discussão. Também priorizamos a inclusão de um maior número de extratos das entrevistas que ilustram os argumentos da discussão, em detrimento da disponibilização das tabelas da análise de conteúdo. O nosso objetivo foi conceder ao texto uma maior fluidez. Reiteramos que os resultados serão apresentados a partir dos componentes da identidade social.

Componentes cognitivos

Considerando a totalidade dos resultados, a definição central de pai, presente em vários momentos das entrevistas, é “ser responsável”. Os entrevistados definem a paternidade como um ato de responsabilidade, tanto pela educação/criação dos filhos como pelo sustento, pelos cuidados e pela proteção destes, demonstrando a coexistência de modelos mais tradicionais e mais recentes de paternidade.

Essa definição de “ser responsável” é também utilizada na diferenciação dos entrevistados em relação a outros homens que não são pais, corroborando a noção de identidade como um fenômeno relacional e o estudo de Arilha (1998), que afirma que “ser responsável” está fortemente associado à noção de ser homem e que essa noção se contrapõe à “zoeira” da adolescência. O afastamento dos antigos amigos, após o nascimento dos filhos, citado por oito dos 14 entrevistados, demonstra essa passagem da vida de “zoeira” para uma vida de responsabilidade, com a formação de novos vínculos de amizade e grupos de pertença, que são avaliados como melhores que os anteriores. É o que demonstra o seguinte trecho:

Em questão de amizade, muitos distanciam. Aqueles que só querem farra, aqueles que só querem gandaia, aqueles que só querem mulherada. Então, pra mim, esse tipo de amizade, tanto faz. [...] Mudou praticamente todos, todos, todos, todos, todos, todos. Pra mim, tá ótimo as amizades que eu tenho hoje. São a maioria pessoas que também têm filhos, pessoas que são casadas, são bem melhores do que as que eu tinha antes (Talles, 20-29).

Observe-se que, como pode ser visto a seguir, mesmo em uma comparação com outros pais, o “ser responsável” também é utilizado para estabelecer uma gradação, ou seja, quanto mais responsável, melhor pai se é.

Ser um bom pai é ser um pai presente, é um pai que está junto a todos os momentos, é um pai que assume não só o nome de pai. Assume a responsabilidade de ser um pai. É um pai que não deixa as coisas faltarem, é um pai que tá... na hora de sentir a dor, é um pai que tá... na hora de dar um banho, na hora de trocar uma fralda, em todos os sentidos. Além de ser pai, ser, como se diz, o protetor daquela criança, porque, na verdade, é muito fácil a pessoa falar “eu sou o pai de fulano”, mas às vezes não tem responsabilidade nenhuma com ela (Mário, 30-39).

Assim, para o conjunto dos entrevistados, a paternidade chega como forma de transição para uma vida com mais responsabilidade, para alguns também em relação ao trabalho (quatro entrevistados), o que reitera a associação entre responsável e provedor, presente nos modelos mais tradicionais de paternidade (Trindade, 1998; Rotundo, 1985). Essa transição acontece para alguns desde o momento da gravidez e para outros principalmente após o nascimento.

Outro aspecto que parece ser central na definição de bom pai é “dar amor e carinho”, também associado aos aspectos da responsabilidade paterna referentes à educação, ao prover e ao cuidar (seis entrevistados): “Eu acredito que é dar a ele principalmente amor e carinho e cuidar bastante dele, e de poder dar de tudo aquilo que a gente... que os bens materiais pode ser dado, mas principalmente primeiro o amor, que é o principal” (Sinval, 30-39).

Segundo os relatos, percebe-se que a presença paterna também é um dos aspectos importantes na definição do que seja um bom pai, pois, junto com os aspectos citados anteriormente, constrói uma figura paterna mais próxima dos filhos tanto física como afetivamente. Tal proximidade também se refere, eventualmente, à companheira, ou seja, ser um bom pai é ser companheiro, colaborar, compreender e estar ao lado da mãe da criança:

Um bom pai é aquele que tá sempre presente, aquele pai que participa, né? Que tá... que sempre ajuda, sempre colabora. Que tá com a filha a todo momento, tudo que precisar, nunca tá ausente e ajuda também a mãe da criança, em casa mesmo, né? Não só naqueles momentos mais difíceis, mas sim em todos os momentos, né? Tanto nos bons quanto nos ruins (Talles, 20-29).

Pode-se perceber assim que o conteúdo do que seja um bom pai perpassa os modelos tradicionais, ou seja, o pai como o condutor moral e intelectual do filho. No entanto, também podem ser identificados elementos considerados como característicos do que tem sido designado como “nova paternidade”. Assim, o pai, segundo os entrevistados, não é somente mais visto como aquele que deve ocupar o lugar de provedor exclusivo. O bom pai passa a ter a missão de, junto com a mãe, educar bem os seus filhos, dando a eles amor e carinho.

Componentes avaliativos

Os entrevistados buscaram, em sua maioria, construir uma imagem positiva de si mesmos, conforme era previsto a partir da teoria da identidade social. A maioria se considera um “bom pai” (dez entrevistados), enquanto quatro afirmaram que “tentam ser” ou são “mais ou menos” bons pais. Essa imagem é construída, como veremos, a partir da apropriação individual dos significados do que consideram ser um bom pai (e que são compartilhados socialmente), das imagens de si mesmo a partir do olhar dos outros, entre eles o da esposa/companheira, e da comparação com o próprio pai e com outras pessoas que são pais, como alguns amigos. Em alguns casos, como veremos, mecanismos de justificação são colocados em prática no intuito de melhorar a autoimagem.

A comparação com os próprios pais apareceu na fala de muitos entrevistados, e, apesar de todos ressaltarem uma série de características negativas nos genitores, diferenciando- se positivamente destes, procuraram uma forma de apresentá-los, ao final, como bons pais.

Meu pai também foi um bom pai. Ele era assim mais caladão, mais na dele assim, acho que minha mãe que participava mais da... da minha vida assim, mas ele foi um bom pai também... nun... nunca deixou faltar nada, sempre teve presente... assim... nunca... Só é mais fechadão, mas acho que foi um bom pai também (Armando, 30-39).

Esse “ajuste”, presente na fala dos entrevistados, merece ser considerado. Ao mesmo tempo que se diferenciam dos pais enfatizando diversos aspectos negativos, parecem querer manter também uma imagem positiva deles, uma vez que não podem denegrir totalmente a imagem paterna, pois, na medida em que consideram que ser um bom pai é principalmente “saber educar/criar/orientar”, isso seria depor contra eles mesmos. Seria dizer que não foram bem educados/criados/orientados.

Já em relação à comparação com os amigos, são menos complacentes e se diferenciam deles, na maior parte das vezes, buscando estabelecer de fato uma melhor imagem de si mesmos, por meio da colocação de outros pais em um patamar inferior ao deles no que diz respeito à responsabilidade, ao afeto e à presença:

Tenho amigos [pais], mas nenhum deles acho que é tão apegado ao filho igual eu não. Não... porque eles não param dentro de casa, eles não lembram do filho, só fica na rua... A hora que tem de folga não leva o menino pra... passear, não leva num parque, não leva nada... (Sinval, 30-39).

Componentes emocionais e práticas

Decidimos incluir, associada aos elementos relativos ao componente emocional, a descrição das atividades cotidianas realizadas pelos entrevistados com seus(suas) filhos( as). Primeiramente, apresentaremos as atividades que relatam gostar ou não gostar de realizar com os(as) filhos(as). Entre as primeiras, as atividades de lazer sobressaem (nove entrevistados), bem como as atividades de contato (cinco entrevistados), que podem ser compreendidas como o modo pelo qual os pais vão criando uma relação de amizade com os filhos por meio de brincadeiras, passeios e proximidade física e afetiva: “Ah, eu gosto de brincar, pegar ela no colo, ficar apertando as bochechas dela, ficar brincando com ela, isso sempre que eu chego do serviço. Quase todos os dias” (Talles, 20-29).

Essas atividades são prazerosas, muitas vezes relacionadas ao ambiente externo (passear), e proporcionam divertimento tanto a eles como aos/às filhos(as), trazendo aos pais emoções positivas: “Ah, passear com ela na rua. É... de carrinho, ela fica na maior metideza, todo mundo mexe com ela e tudo mais... Elogia que ela é bonitinha e tudo mais, e aí a gente acha bom, né? O que eu mais gosto é isso” (Fabiano, 20-29).

As atividades de que mais gostam são realizadas com grande frequência, diferentemente daquelas que eles afirmam não gostar, principalmente as atividades de higiene (oito entrevistados) e fazer o(a) filho(a) dormir (três entrevistados). Essas atividades são realizadas, na maior parte das vezes, pelas mães das crianças e, raramente ou somente quando não têm outra opção, pelos pais: “Trocar fralda. [...] Aí, tem sempre, é lógico que eu troco, né?, mas sempre que dá pra Cláudia trocar, eu peço pra ela trocar. [...] Eu prefiro que ela faça. Não sei por quê. Não sei se ela tem mais habilidade. Não sei” (Fabiano, 20-29).

Por meio desses aspectos, podemos perceber a desigualdade de gênero presente. Aquelas atividades consideradas não prazerosas ou difíceis de serem realizadas são delegadas à esposa/companheira. Aqui se podem perceber novamente as antinomias, dessa vez entre os grupos de homens e mulheres: mulher tem mais habilidade, homem é mais bruto. Essa característica atribuída por Fabiano à sua companheira pode ser entendida como dizendo respeito ao conjunto de mulheres, sendo assim uma justificativa que divide o que deve ser atribuição feminina e masculina.

No contato diário com os(as) filhos(as), as condições sociais e as necessidades práticas também irão influenciar o modo de agir, embora às vezes de modo superficial, sem no entanto haver uma transformação efetiva no sentido da ação e na identidade paterna. Isso pode ser notado nos resultados em relação aos pais que dizem permanecer mais tempo com suas filhas (dois entrevistados). Eles enfatizam o caráter momentâneo de uma dedicação quase exclusiva às filhas, e, embora um deles (Reinaldo) tenha cuidado da filha o tempo todo em que a esposa esteve internada (pós-parto), ele faz uma separação nítida dos papéis de pai e de mãe: “Pelo fato da minha esposa ter ficado internada logo no início, que ela teve pré-eclâmpsia e depois teve a síndrome de Hellp, eu fiquei como pai e mãe da menina, olhando ela no hospital, enquanto minha esposa estava no CTI” (Reinaldo, 40-50).

Com exceção de dois, todos os entrevistados admitem realizar, em comparação com as companheiras, menos atividades com os(as) filhos(as). Nesse sentido, os entrevistados reiteram a identidade grupal e a afirmação de que a responsabilidade principal pelos cuidados com os filhos é das mulheres. Eles participam como ajudantes, colaboradores e substitutos, quando necessário.

Embora haja, no cotidiano dos cuidados com o(a) filho(a), uma divisão desigual do trabalho, 13 entrevistados afirmam não haver nada que se recusem a fazer. Isso poderia indicar uma possível flexibilidade e abertura dos pais na negociação das atividades a serem realizadas com os(as) filhos(as).

Entretanto, no conjunto das entrevistas, são raros os exemplos em que os pais afirmam que as esposas/companheiras solicitam a presença deles ou gostariam que participassem mais. A maioria dos pais (oito entrevistados) considera que suas esposas/ companheiras os avaliam como bons pais, ou seja, considera que eles têm exercido de modo satisfatório aquilo que lhes cabe, apesar de elas exercerem, no geral, a maior parte das atividades. Isso pode indicar que as suas esposas/companheiras também se sentem como as principais responsáveis pelo cuidado com os filhos e percebem que cabe aos homens apenas auxiliá-las no que for necessário.

Considerando o conjunto de dados que acabamos de apresentar, dois elementos nos parecem merecer ser retomados, tratando-os, agora, de forma articulada. O primeiro deles é a coexistência de elementos relacionados a modelos tradicionais de paternidade (por exemplo, papel de provedor) e ao que se tem denominado mais recentemente como “nova paternidade” (por exemplo, atributos como carinhoso, cuidador e presente). O segundo é a possível contribuição da teoria da identidade social para o próprio entendimento dessa coexistência.

Quanto ao primeiro elemento, parece oportuno recuperar a proposição de Rotundo (1985) relativa aos três modelos de paternidade presentes na sociedade norte-americana, modelos que, segundo Trindade (1998), também podem ser identificados, em alguma medida, no nosso país:

Paternidade patriarcal: predominou de 1620 a 1800. As principais características desse tipo de paternidade são: modelo agrário, presença física, distância emocional, máxima autoridade paterna relativa a aspectos da vida da esposa, dos filhos e de outros dependentes.

Paternidade moderna: surge em 1800 e se estende até a contemporaneidade. As principais características desse tipo de paternidade são: modelo urbano associado à emergência da burguesia, distanciamento físico, condutor moral, iniciador dos filhos na vida pública, papel de provedor exclusivo.

Paternidade andrógena: começa a surgir na década de 1970 e, assim como a paternidade moderna, se mantém nos dias atuais. As principais características desse tipo de paternidade são: modelo urbano, decorrente em parte das reivindicações feministas; maior participação masculina no contexto doméstico e na criação dos filhos, resultante da saída das mulheres para o mundo público; tratamento mais igualitário das crianças, independentemente do gênero.

Retomando os resultados apresentados neste texto, é possível afirmar que a coexistência dos modelos “moderno” e “andrógeno” pôde ser identificada nos relatos dos pais entrevistados. Aqui, poderíamos sugerir que o que alguns autores têm denominado como “nova paternidade” (Brasileiro et al., 2010) é a própria coexistência de referências identitárias e de práticas cotidianas associadas aos dois últimos modelos propostos por Rotundo (1985). Assim, o descompasso entre as novas expectativas relativas à paternidade contemporânea, como maior envolvimento emocional e maior participação nos cuidados com os filhos (Sutter & Bucher-Maluschke, 2008; Bornholdt et al., 2007), e a não efetiva divisão igualitária entre mães e pais em todas as tarefas cotidianas de cuidado com esses filhos (Krob et al., 2009) pode ser, na percepção dos pais, apenas aparente. Aqui, consideramos que a percepção dos entrevistados de que os elementos (concepções e práticas) associados a esses dois modelos não são contraditórios pode ser compreendida segundo a teoria da identidade social.

Como pudemos perceber, a vivência da paternidade é perpassada por diversos aspectos. Todos os pais procuraram, a partir dos seus recursos objetivos e subjetivos, construir uma autoimagem positiva em constante negociação com os seus diversos grupos de pertença e suas respectivas expectativas. Ao considerarmos os elementos cognitivos, avaliativos e emocionais relatados pelos pais entrevistados, fica evidente o conjunto de sujeitos/grupos envolvidos mais diretamente no processo de identificação: as esposas/ companheiras, os amigos e os próprios pais. O primeiro grupo/referência seria o responsável pela maior pressão na direção de referências mais modernas de paternidade (mais participativa, mais igualitária). A última referência (próprios pais) seria a mais tradicional, representando o conjunto das experiências vividas pelos entrevistados na condição de filhos. O segundo grupo (amigos) pode ser considerado como aquele de comparação mais imediata, devido a suas características (provável coincidência de gênero, geração e classe socioeconômica entre seus integrantes). No contexto desse conjunto de grupos e referências diversas, os sujeitos entrevistados constroem sua identidade por meio da ampliação do significado de definições mais tradicionais (elemento cognitivo – ser responsável) a fim de comparativamente se avaliarem de forma mais positiva (mais responsável = presente e cuidadoso; bom pai), considerando, consequentemente, os aspectos emocionais de tal avaliação (prazer nas atividades realizadas com os(as) filhos(as) e satisfação pelo reconhecimento externos de que são bons pais). Restaria, nesse conjunto, entender a manutenção dessa positividade associada à percepção de que, na prática, são as companheiras que realizam o maior número de atividades de cuidado com os filhos. Nesse ponto específico, parece adequado recordarmos que a atual socialização de gênero ainda faz com que homens e mulheres aprendam modos de ser diferentes e, portanto, se sintam responsáveis por realizarem coisas também diferentes na interação com seus filhos e suas filhas. Assim, uma possível explicação para o caráter não contraditório dos modelos de paternidade no cotidiano dos entrevistados poderia ser a própria referência à sua condição de homens, ou seja, o que consideramos como identidade paterna seria indissociável da identidade masculina (também complexa e ancorada em referências cognitivas, avaliativas e emocionais).

Depreendemos do que foi aqui apresentado a conclusão de que seria oportuno um maior investimento em estudos que procurassem, por exemplo, considerar a paternidade no quadro mais amplo dos estudos sobre masculinidades (Connell & Messerschimidt, 2013), a fim de nos aproximarmos talvez de forma mais adequada da rede de referências que dá sustentação ao que chamamos aqui de identidade paterna.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Gabriela Teixeira Vieira
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas/Universidade Federal de Minas Gerais
Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha
Belo Horizonte – MG – Brasil. CEP: 31270-901
E-mail: gabriela.tvieira@gmail.com

Submissão: 14.3.2012
Aceitação: 6.11.2013