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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.16 no.1 São Paulo Apr. 2014

 

PSICOLOGIA SOCIAL

Construção da identidade discursiva de estagiários na área de psicologia do trabalho

 

The construction of the discursive identity of the graduating in the area of working psychology

 

Construcción de la identidad discursiva del graduando en el área de psicología del trabajo

 

 

Rosângela Rocio Jarros RodriguesI
I Universidade Estadual de Londrina, Londrina – PR – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

A construção da identidade do psicólogo pode ser compreendida por meio de diferentes propostas de análise. Esta pesquisa inscreve-se na filiação da análise de discurso da linha francesa fundada por Michel Pêcheux. O objetivo é analisar o processo de construção da identidade discursiva do graduando na área de psicologia do trabalho, um campo de atividade de forças ideológicas conflituosas. O método é qualitativo e constitui um estudo de caso, a partir dos dados obtidos por meio de 14 excertos extraídos da seção da fundamentação teórica de relatórios finais do estágio. Os resultados revelam duas formações discursivas dominantes que emergem a partir do discurso do outro: manutenção e transformação. Ambas são projetadas como discursos em confronto para um lugar, o da organização privada. Conclui-se que a identidade discursiva é construída por meio do jogo de aproximação e distanciamento da formação discursiva da transformação.

Palavras-chave: psicologia do trabalho; identidade; trabalho; análise de discurso; estágio


Abstract

The construction of the psychologist’s identity can be understood through different proposed of analysis. This research enrolls in the filiation of the analysis of discourse of French line proposed for Michel Pêcheux. The objective is to analyze the construction of the discursive identity of the graduating in the area of working psychology that a field of activity of conflicting ideological forces. The method is qualitative and it constitutes a case study, starting from the data obtained through 14 extracted excerpts of the section of theoretical propositions of reports of apprenticeship. They reveal them two dominant discursive formations that emerge starting from the discourse of the other, denominated of maintenance and of transformation, both are projected as discourses in confrontation for a place, the one of the deprived organization. In is ended that the discursive identity is built through the approach game and estrangement of the discursive formation of the transformation.

Keywords: working psychology; identity; work; analysis of discourse; apprenticeship


Resumen

La presente investigación se inscribe en el análisis del discurso de línea francesa del Michel Pêcheux. El objetivo es analizar el proceso de construcción de la identidad discursiva del graduando en el área de psicología del trabajo, que es un campo de actividad de fuerzas ideológicas conflictivas. El método es cualitativo y constituye un estudio de caso a partir de los datos obtenidos por medio de 14 fragmentos extraídos de la sección de fundamentación teórica de los informes finales de la pasantía del quinto año de Psicología. Los resultados revelan dos formaciones discursivas dominantes que emergen a partir del discurso del otro, denominadas manutención y transformación. Ambas son proyectadas como discursos en confrontación para un lugar: el de la organización privada. Se concluye que la identidad discursiva es construida por medio del juego de aproximación y distanciamiento de la formación discursiva de transformación.

Palabras clave: psicología del trabajo; identidad; trabajo; análisis del discurso; pasantía


 

 

A psicologia do trabalho (PTr) é considerada uma das áreas tradicionais de atuação do psicólogo. Seu objeto de estudo centra-se na relação do ser humano com o trabalho; o primeiro compreendido como sujeito social e histórico (Bock, 2009), e, o segundo, como atividade. Assim, o trabalho não se restringe ao modelo dominante de mercadoria, de emprego e remuneração (Codo, 2006).

A análise dessa relação humana com o trabalho é feita a partir do contexto em que se realiza, ou seja, sob quais condições de produção homens e mulheres realizam suas atividades. Sabe-se que, sobre essa relação, intervêm determinantes de dominação de várias ordens, como econômica, social, política, cultural, de gênero. Portanto, a PTr tem o olhar posto sobre as condições de produção e as variáveis de dominação que determinam as interações sociais no campo do trabalho.

Para que o aluno vivencie essa práxis e possa aplicar-refletir-produzir conhecimentos, é realizado o estágio curricular. O estágio na área se apresenta como um desafio porque é uma prática em que se dá a confluência de dois campos: acadêmico e do trabalho. É nesse interstício que se exercita o papel profissional ainda sob supervisão acadêmica. São campos supostamente dominados por ideologias distintas, que interpelam alunos, supervisores acadêmicos e de campo como sujeitos falantes, pois é, na e pela linguagem, que se materializam as ideologias que orientam e sustentam determinado grupo profissional.

Em nossa sociedade, ao se dizer o que alguém faz, está qualificando-o pelo exercício laboral, o que leva à preposição de uma identidade de papel social. A construção da identidade é mediada pela linguagem e se dá por meio do movimento dialético e permanente entre diferenças e semelhanças com o interlocutor.

Neste artigo, nosso objetivo é analisar as peculiaridades do discurso do aluno no estágio de PTr. O problema de pesquisa que se apresenta é de que maneira o enunciador- aluno constrói a identidade discursiva estando num campo de forças ideológicas conflituosas. A escolha da temática, o papel do psicólogo do trabalho, se deve pela centralidade que ocupa tanto na formação acadêmica como na profissão.

A perspectiva teórica adotada nesta pesquisa é a análise do discurso (AD) de linha francesa. Foi a partir da década de 1960 que essa disciplina, proposta por Michel Pêcheux, tornou-se conhecida. A AD nasceu inscrita em um quadro de reflexões advindas da linguística, do marxismo e da psicanálise. É constituída consoante Brandão (1998, pp. 23-24) pelo seu enraizamento

[...] na lingüística e pela preocupação com o embricamento entre o modo de enunciação e o lugar histórico-social de onde emerge essa enunciação. Isto é, seu objetivo é apreender a linguagem enquanto discurso, a instância que materializa o contato entre o lingüístico (sistema de regras, de categorias) e o não-lingüístico (lugar de investimentos sociais, históricos, psíquicos...) pela atividade de sujeitos que interagem em situações concretas.

Uma das alianças teóricas de Pêcheux (1997a) foi com Foucault de quem toma emprestada a noção de formação discursiva para compreender o que rege os enunciados na interlocução dos sujeitos falantes. Foucault (2012) propõe que o discurso é um conjunto de enunciados que pertence a uma mesma “formação discursiva” (FD) e atende a regras de formação, concebidas como mecanismos de controle que determinam o interno (o que pertence) e o externo (o que não pertence) a ela e, desse modo, delimitam o que pode e deve ser dito.

Um enunciado constitui uma unidade do ato de enunciação que está ligada a uma determinada FD. O enunciador revela sua filiação ao enunciar o que pode e deve ser dito, ou melhor, expressa-se com enunciados próprios da FD a que está submetido (Maingueneau, 2008). Todavia, o sujeito discursivo ao enunciar mobiliza o conjunto de discursos outros que vão além da FD filiada, estabelecida numa rede interdiscursiva.

A AD advoga o primado do interdiscurso, porque não acredita que haja discurso único, que já não tenha ligações com os discursos já ditos. Não existem limites rígidos entre um interior e o exterior de uma FD, por isso fala-se do interdiscurso como espaço aberto de trocas de interlocução entre vários discursos que tem relação entre si, seja de aliança ou de confronto. A relação polêmica de confronto estabelecida entre dois discursos não é acidental porque ambos não são instituídos independentes um do outro, a existência de um é a causa do outro existir, portanto é a condição de possibilidade.

O interdiscurso é apreendido pela seguinte tríade: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. O universo discursivo é o conjunto de FDs de todos os tipos que interagem numa conjuntura dada; o campo discursivo é um conjunto de FDs que se encontram em concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada de universo discursivo; espaço discursivo corresponde aos subconjuntos de FDs que o analista, por julgá-las relevantes para seu propósito, coloca em relação. Tais restrições devem resultar apenas em hipóteses fundadas sobre um conhecimento dos textos e um saber histórico, que serão em seguida confirmados ou informados quando a pesquisa progredir (Maingueneau, 2008).

O interdiscurso estabelecido no espaço discursivo indica a memória do grupo representando as formulações já feitas e esquecidas que, no entanto, constrói a história dos sentidos. É sobre essa memória que os sentidos são concebidos e produzem, para o enunciador, a ilusão de que sabe do que está falando, que tem o controle e é a origem do dizer. Argumenta Orlandi (2012, p. 54), essa ilusão é necessária para que “o sujeito se estabeleça como um lugar possível no movimento da identidade e dos sentidos: eles não retornam apenas, eles se projetam em outros sentidos, constituindo outras possibilidades dos sujeitos se subjetivarem”. Os sentidos constituídos vêm pela história, marcados pela ideologia e pelas condições de produção. A história é a memória coletiva, é o que permanece como monumento herdado e repetido.

O fenômeno ideológico age dinamicamente pela lembrança, pelo consenso, pela convenção grupal da imagem que o representa. A ideologia depende de uma teoria da motivação social, ou melhor, considera Ricoeur (1990, p. 68), é “movida pelo desejo de demonstrar que o grupo que a professa tem razão de ser o que é”. Todo grupo mantém uma relação com o “ato fundador”, que é político em sua essência e que o instaurou; sendo, portanto, a função da ideologia repetir, manter e reatualizar a memória social de um acontecimento, mesmo que a distância.

Para a AD, não existe relação direta ou natural entre as palavras e as coisas, mas sim linguística e histórica. A identidade é um movimento na história, ela se transforma, não havendo identidades fixas. É ilusório considerar a identidade como imóvel, embora essa ilusão, paradoxalmente, faça parte do imaginário que garante o envolvimento dos sujeitos na construção da identidade. A identidade se refere àquelas posições que permanecem na memória afetada pelo inconsciente e pela ideologia, o interdiscurso. Segundo Orlandi (2002, p. 206), há a identificação com certas ideias:

[...] com certos assuntos, com certas afirmações porque temos a sensação de que elas “batem” com algo que temos em nós. Ora, este algo é o que chamamos de interdiscurso, o saber discursivo, a memória dos sentidos que foram se constituindo em nossa relação com a linguagem. Assim nos filiamos a redes de sentidos, nos identificamos com processos de significação e nos constituímos como posições de sujeitos relativas às formação discursivas, em face das quais os sentidos fazem sentido.

A identificação se manifesta pelo fato de o discurso fazer sentido na medida em que já estejamos filiados a uma rede interdiscursiva mantida pela repetição histórica, que inscreve o dizer como memória constitutiva, fazendo a língua significar para o sujeito e, assim, também se significa. A esse processo de identidade discursiva chamamos de identidade de posicionamento. O posicionamento corresponde aos valores defendidos, de modo consciente ou inconsciente, que, para Charadeau e Maingueneau (2012, p. 267), é “a posição que o sujeito ocupa em um campo discursivo em relação aos sistemas de valor que aí circulam, não de forma absoluta, mas em função dos discursos que ele mesmo produz”.

Os textos escritos resultam de diálogos, já que, entre o enunciador (o escritor) e o enunciatário (o leitor), se estabelecem relações intersubjetivas. Dessa maneira, os enunciados serão sempre atravessados pelas palavras dos outros e pelo discurso outro, ou seja, conforme Authier-Revuz (2004, pp. 246-247), por outros sentidos:

– o das palavras dos outros, os dos outros discursos no meio dos quais todo discurso produz-se, mas de que pode, de maneira fragmentária, reconhecer e designar a presença em si mesmo, graças a um conjunto de formas lingüísticas de distanciamento enunciativo – discursos relatados, aspas, itálicos [...] etc.;

– e o das outras palavras, dos “outros sentidos”, os da polissemia, do equívoco, do avesso do discurso, brincando sob as palavras de um discurso e de que este pode, localmente, assinalar a presença – aspas sobre as coisas imprecisas, jogos de palavras, metáforas [...].

O enunciador situa o próprio discurso em relação aos discursos do outro. A heterogeneidade representa essas relações presentes no discurso, desde seu interior até o seu exterior. O conjunto de discursos que o enunciador associa ao seu, implícita ou explicitamente, fornece as marcas da identidade de posicionamento.

 

Método

Esta é uma pesquisa qualitativa, e, sob seus pressupostos, a linguagem não pode ser compreendida apenas como um artefato natural de relações interpessoais simétricas entre os seres humanos numa dada sociedade, mas também como um produto histórico, portador de representações, significados e valores de uma comunidade discursiva e, como tal, um veículo de ideologia.

Nesta pesquisa, foi empregado o estudo de caso que deve ser visto como uma unidade particular dentro de um sistema mais amplo a ser estudada em profundidade. Salienta Yin (2010, p. 20) que o método é utilizado em muitas situações, para “contribuir com o conhecimento que temos dos fenômenos individuais, organizacionais, sociais, políticos e de grupo, além de outros fenômenos relacionados”. A unidade analisada está situada numa instituição de ensino superior pública, onde o curso de Psicologia conta com 40 anos de implantação. A coleta de dados corresponde ao período de vigência do currículo IV desenvolvido até o ano de 2007. Nesse, a área de PTr tinha duas disciplinas específicas, uma na terceira e a outra na quarta série do curso, e o estágio curricular era realizado na quinta série, sendo a carga horária semanal de seis horas. O campo de estágio tem-se caracterizado por organizações privadas de fins lucrativos, orgãos públicos, organizações não governamentais, associações e sindicatos. O estágio pode ser realizado individualmente ou em grupo.

Como uma das modalidades de avaliação da aprendizagem, o aluno elabora o relatório das atividades desenvolvidas no estágio. O gênero discursivo relatório pressupõe dois enunciatários diretos: o supervisor acadêmico e o de campo; sendo de responsabilidade do primeiro o acompanhamento da confecção do relatório e a atribuição de nota.

Materiais

O relatório de estágio constitui um registro documental de domínio público e a fonte de dados desta pesquisa. Os documentos considerados de domínio público, segundo Spink (2004, p. 126), “são documentos tornados públicos, sua intersubjetividade é produto da interação com um outro desconhecido, porém significativo e freqüentemente coletivo”. Os documentos são objetivações materiais da inscrição da subjetivi dade de seus produtores em determinadas práticas discursivas que permanecem através do tempo. A escolha pelo relatório de estágio se deve à sua característica de descrição de todo o processo de atuação desenvolvido no campo de trabalho e à reflexão sobre o papel do psicólogo numa situação singular, além de revelar, concomitantemente, pelo menos uma parte do currículo ativo.

O relatório de estágio em Ptr tem a seguinte composição estrutural: capa, folha de rosto, resumo, sumário, introdução, fundamentação teórica, justificativa, objetivos, metodologia, resultados, discussão, considerações finais, referências, apêndices e anexos. Todo o texto é escrito conforme as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

Procedimentos

A coleta dos relatórios foi realizada junto aos supervisores acadêmicos da área e depois submetida à pré-análise, que constou da verificação da composição estrutural dos relatórios recolhidos. Após, foram selecionados aqueles relatórios em que o aluno enuncia acerca do papel do psicólogo do trabalho, especificamente na seção da fundamentação teórica. O corpus da pesquisa é composto de 14 fragmentos ou, melhor dizendo, excertos extraídos dessa seção dos relatórios que estão distribuídos entre os anos letivos de 2000 a 2005. Desses excertos, 12 são referentes a estágios realizados em organizações privadas de fins lucrativos nos seguintes setores: alimentação, higiene, farmacêutico, supermercadista, comércio e transporte de grãos. Os outros dois excertos correspondem a experiências de estágio em órgãos públicos municipais (transporte urbano) e estaduais (instituição de ensino superior).

Dada a natureza do objeto de estudo e visando à interpretação do corpus, foram empregadas três categorias discursivas advindas do referencial teórico e metodológico da AD: memória discursiva, FDs e heterogeneidade. Essas categorias já foram abordadas anteriormente neste artigo.

 

Resultados e discussão

A seguir, organizamos os resultados em duas dimensões. A primeira trata do campo de forças ideológicas que predominam na prática do trabalho desse psicólogo e do lugar projetado para sua atuação. A segunda dimensão apresenta como a heterogeneidade se manifesta por meio do discurso do outro (o discurso citado) e do discurso outro (o sentido outro). Para isso, analisamos como o espaço discursivo é composto por duas FDs advindas de um discurso fundador presente na memória discursiva.

Considerando a primeira dimensão, temos que um discurso é sempre pronunciado a partir de condições dadas, o que implica o sujeito e a situação, conforme Pêcheux (1997b). Na PTr, o enunciador-aluno (E) se posiciona num campo de forças de relações ideológicas comumente contraditórias, advindas do confronto entre capital e trabalho. É no ramo de atividade industrial que mais claramente se verifica essa relação opositiva, porque ali se configura o conflito histórico e social da luta de classes, da exploração do ser humano por outro, da produção da mais-valia. É nesse espaço que a psicologia passa a se desenvolver e ser reconhecida, estabelecendo uma área de atuação.

O campo de forças se estabelece na oposição ideológica em confronto entre os pressupostos do modelo econômico capitalista e aquela de cunho econômico marxista. Quando se observa a diversidade de discursos que se estabelecem no campo acadêmico, parece predominar a formação ideológica de cunho marxista que defende a transformação das condições de produção da existência humana; já o campo de trabalho, projetado pelo E, aproxima-se da reprodução dos valores do sistema dominante capitalista. É nessa tensão de forças que se inscreve a PTr como um espaço discursivo da classe profissional. No momento da enunciação, E está determinado por dois campos: o de trabalho, em que se desenvolve a prática do estágio; e o acadêmico, lugar do ensino formal do saber. Logo, na prática as duas formações ideológicas concorrem e se projetam no discurso especializado da área de PTr.

A materialidade das formações ideológicas é identificada na linguagem por meio das marcas linguísticas presentes nos enunciados, isto é, pela presença de vocábulos e formas de expressão pertinentes a cada FD, como vemos destacados nos excertos a seguir que tratam da atuação na área de PTr:

A psicologia do trabalho, a princípio, veiculou suas práticas dentro de uma lógica de adaptação, onde se resumia aos “recursos humanos” e à busca do melhor trabalhador, aquele que produzisse um melhor resultado, que gerasse mais lucros para a empresa. Utilizava seu saber dentro da lógica capitalista, preocupada não com o sofrimento do trabalhador, mas sim a capacidade ou incapacidade de produzir (excerto 5).

A intervenção do psicólogo aparece como fundamental no contexto das indústrias tendo como uma das metas promover a reflexão dos trabalhadores levando-os à conscientização sobre seus trabalhos e sobre a exploração a que se submetem, a importância do seu papel na empresa, maior dignidade e segurança profissional; a valorização do operário (excerto 8).

No excerto 5, o E reconhece a proximidade da área de atuação com a “lógica capitalista”, indicando que o saber especializado era empregado para aumentar a capacidade de produção, mas marca a distância dessa prática, como analisamos pelo emprego do tempo verbal no passado (veiculou, resumia, produzisse, gerasse, utilizava). Nesse sentido, os trabalhadores eram tomados apenas como “recursos humanos” por meio dos quais poderiam obter “lucro”. As escolhas lexicais revelam marcas da ideologia capitalista no discurso, em oposição ao que surge no excerto 8, em que a escolha lexical (reflexão, conscientização e exploração) parece de filiação ideológica marxista. A relação polêmica advém desse confronto presente na memória do grupo, na construção da identidade discursiva.

O E projeta para si, como local predominante de sua práxis, o espaço da organização privada. Isso é verificável pela recorrência no corpus da presença da preposição “em” e do artigo feminino “a” (na), pelo uso reiterado do advérbio de lugar (dentro) e dos substantivos (organização e empresa), conforme vemos no excerto 1: “no trabalho do psicólogo dentro de uma organização, [...] a prática do psicólogo na organização”.

Esse excerto indica que parte da identidade discursiva é construída pela presença do fazer “lá”, isto é, no espaço da organização tomado como território da origem da atuação e permanência da prática. Naquele lugar (dentro e na organização), dá-se a legitimação de um saber especializado que está figurativizada neste estudo pelo profissional da área de PTr. Como enunciar a filiação ideológica de cunho marxista se está no espaço discursivo da Organização privada? É ali que a identidade é reposta consoante a ideologia dominante.

A segunda dimensão aborda o discurso do outro e o discurso outro (Authier-Revuz, 2004). Para isso, o E recorre ao discurso citado, ou seja, o discurso do outro, que se configura como o discurso fundador que dá identidade aos membros da comunidade discursiva. Esse discurso é definido pela historicidade instalada nos processos discursivos. Ele funciona como referência na memória e contempla a produção dos sentidos (Orlandi, 1993).

A identidade discursiva é construída, neste estudo de caso, em relação ao tempo marcado pela dissertação de mestrado de Malvezzi (1979), que consta como bibliografia básica na área de PTr desde 1983, data de registro no currículo II desse curso. Constitui, portanto, um acontecimento discursivo; um laço com o passado, compondo historicamente a memória da profissão. A repetição das afirmações de Malvezzi (1979) sobre o papel profissional caracteriza uma dêixis fundadora. Um discurso autorizado evocado para legitimar posicionamentos de ações e pontos de vista.

A presença do outro, sendo esse o discurso reportado de Malvezzi (1979), revela a heterogeneidade mostrada no discurso do E:

Assim como diz Malvezzi (1979), muito além dessas funções que um psicólogo desempenha deve-se ter claro que ele não é o profissional do como fazer, mas para que vai ser feito (excerto 1).

Malvezzi (1979), chama a atenção para uma denominação do trabalho dos psicólogos organizacionais como “Agentes de transformação dos Sistemas Sócio-Técnicos” (excerto 6).

De acordo com Malvezzi (1979), neste período o psicólogo passa a ser um interventor do processo (excerto 4).

É a partir dessa dêixis fundadora, do discurso do outro, que o E constrói duas FDs. A primeira está ligada à atuação do psicólogo do trabalho como tecnicista, com o foco na aplicação de técnicas e instrumentos de mensuração do desempenho do trabalhador, com modo de ação isolado, predominando o discurso da cooperação nas relações humanas, assim o denominamos de FD manutenção. A FD manutenção pressupõe o ser humano com características de personalidade imutáveis que podem ser instrumentalmente medidas, de tal modo que ele é passível de ser “encaixado” no trabalho preexistente, conforme os seguintes excertos demonstram:

[...] no início o psicólogo tinha como preocupação [...] escolher o trabalhador que tivesse características de personalidade adequadas para que pudesse ter um ajustamento do trabalhador com o seu trabalho (excerto 3).

[...] o profissional de psicologia fazia bastante uso de testes padronizados, cursos para melhora do desempenho, isto é, o trabalho configurava como algo técnico (excerto 4).

[...] encontrar o tal homem certo para uma determinada máquina, ou seja, aquele que melhor se adapte a ela, produzindo mais e cometendo menos erros (excerto 7).

O foco era a mensuração das habilidades gerais das pessoas, realização de análise de cargos, características de personalidade que pudessem prejudicar o ajustamento ao trabalho, entre outras coisas (excerto 10).

[...] reduzindo o psicólogo à tarefa de adaptação pura e simples do homem a tarefa mantendo assim a estabilidade do sistema (excerto 11).

Os léxicos empregados, como características, habilidades e mensuração, denotam que o ser humano era compreendido sob a ótica da psicotécnica, por sua vez filiada à FD manutenção, que partia da análise do cargo para encontrar o trabalhador que se ajustaria mecanicamente às tarefas, às máquinas e à produção prescritas pela organização.

A outra FD que traz o discurso de Malvezzi (1979) foi designada por nós de FD transformação, pois propõe como discurso a ruptura com a visão unilateral e reducionista do trabalho do psicólogo, projetando-a de forma mais ampliada e considerando os efeitos das condições materiais de trabalho e as normas e políticas instituídas pela organização sobre a saúde do trabalhador.

Na FD transformação, o discurso revela o pressuposto de que o ser humano nasce com potencial para ser desenvolvido, e, nessa perspectiva, a ênfase passa a ser sobre os processos de aprendizagem que possam favorecer o seu crescimento, e a atuação é redirecionada na perspectiva da interdisciplinaridade:

Devido a ênfase na subjetividade do indivíduo, o psicólogo começa a participar de programas referentes a humanização da vida no trabalho como de qualidade de vida no trabalho, desenvolvimento de pessoal, educação permanente, etc. (excerto 7).

Agora o psicólogo trabalha como um agente de transformação [...] e participando das decisões estratégicas. [...] trabalho interdisciplinar (excerto 8).

Na década de oitenta há uma modificação no enfoque da Psicologia do Trabalho onde passam a colocar a saúde do trabalhador como principal objeto (excerto 5).

Outro foco da ação do psicólogo, segundo a FD transformação, está em notar os efeitos do trabalho para a saúde do trabalhador. Essa FD marca o discurso da mudança, da posição estratégica no nível da tomada de decisões, do movimento outro que não apenas de ajustar o homem ao trabalho.

 

Considerações finais

As duas FDs estão fortemente marcadas na memória discursiva do E. Assim concluímos que, embora essas FDs se aproximem do discurso da transformação em oposição ao discurso da manutenção, trata-se de discursos em aliança, sendo a primeira um desdobramento da segunda, pois, no lugar projetado como práxis dos psicólogos do trabalho, nas organizações privadas, a FD transformação se filia ao discurso advindo do modelo econômico capitalista. O E se ilude ao empregar léxicos como conscientização, emancipação e transformação, pois projeta, como efeito de sentido, uma ligação com pressupostos marxistas que caracterizaria o discurso outro, o seu avesso.

A construção da identidade discursiva do E passa pelo jogo de aproximação e distanciamento entre as FDs. A FD transformação é o discurso em que o E projeta sua filiação, trazendo para perto de si, e a FD manutenção representa o discurso que se deseja afastar, colocando-o a distância e negando sua existência nos tempos atuais da formação acadêmica do psicólogo do trabalho.

Neste estudo de caso, verificamos que, para enunciar nessa posição discursiva, no estágio curricular em organizações privadas, o E adere à FD dominante como se caracterizasse um discurso outro e não o discurso mesmo, ou seja, ancorado nos pressupostos capitalistas (Rodrigues, 2011).

Diante do exposto, a contribuição prática que essas análises proporcionam é promover a discussão entre colegiado de curso de Psicologia, docentes da área de PTr e alunos, e a indispensável participação de psicólogos inseridos na prática, acerca dos seguintes pontos: 1. investigar qual profissional de PTr o curso deseja e realmente forma; 2. identificar e fomentar a ida do graduando a outros lugares sem a ênfase nas organizações privadas de fins lucrativos; 3. investigar que paradigmas orientam as práticas desenvolvidas na área de PTr; 4. desvelar por que há o predomínio de determinado discurso na formação e 4. debater por que uma formação acadêmica é dividida por áreas de atuação.

Neste artigo, apresentamos a análise discursiva de um corpus a partir dos conceitos da AD, compreendendo um período dado e em certas condições de produção. Propomos a continuidade dessas análises a partir de Malvezzi (2010).

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Rosângela Rocio Jarros Rodrigues
Departamento de Psicologia Social e Institucional, Universidade Estadual de Londrina
Rodovia Celso Garcia Cid (PR445), Km 380, Campus Universitário
Londrina – PR – Brasil. CEP: 86051-990
E-mail: jarros@uel.br

Submissão: 25.1.2012
Aceitação: 8.5.2013