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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.16 no.2 São Paulo Aug. 2014

 

PSICOLOGIA CLÍNICA

Possibilidades e desafios do apoio matricial na atenção básica: percepções dos profissionais

 

Possibilities and challenges of matrix support in primary care: professional's perceptions

 

Posibilidades y desafíos del apoyo matricial en la atención básica: percepciones de los profesionales

 

 

Maria Salete Bessa JorgeI; Mardênia Gomes Ferreira VasconcelosI; José Pereira Maia NetoI; Luciana Gurgel Farias GondimII; Emanuel Cesar Proença SimõesIII
I Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza – CE – Brasil
II Prefeitura de Maracanaú, Fortaleza – CE – Brasil
III Escola de Saúde Pública do Ceará, Fortaleza – CE – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O estudo objetivou analisar a operacionalização do apoio matricial (AM) em saúde mental na atenção básica. Trata–se de uma pesquisa qualitativa, realizada em um Centro de Saúde da Família de Fortaleza, Ceará, Brasil. Participaram do estudo os profissionais da Estratégia Saúde da Família e do Centro de Atenção Psicossocial. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas e observações sistemáticas das práticas e submetidos à análise de conteúdo. Os resultados apontam que o AM assume variadas formas, dependendo do contexto em que se desenvolve e das percepções dos profissionais envolvidos. Sua efetivação sugere mudança nas práticas dos profissionais, com a inclusão de ações interdisciplinares e de compartilhamento de saberes. Nessa dinâmica, estão implicados o nível de compromisso e engajamento dos gestores, profissionais de saúde, usuários, familiares e comunidade, que, de maneira compartilhada, contribuem decisivamente para a reorganização do cuidado em saúde mental na atenção básica.

Palavras–chave: matriciamento; saúde mental; atenção básica; promoção da saúde; assistência à saúde


Abstract

The study aimed to analyze the operation of the matrix support (MS) in mental health, at primary health care. This is a qualitative research conducted in a Family Health Center in Fortaleza, Ceará, Brazil. The study participants were professionals from the Family Health Strategy and Psychosocial Care Center. Data were collected through semi–structured interviews and systematic observations of the practices and submitted to content analysis. The results indicate that the MS takes different forms depending on the context in which it develops and the perceptions of the professionals involved. Its effectiveness suggests a change in the professional's practices, with the inclusion of interdisciplinary activities and sharing of knowledge. In this dynamic, the level of commitment and engagement of managers, health professionals, users, family and community are implicated, that in a shared way, decisively contributes to the reorganization of primary care in mental health care.

Keywords: matrix support; mental health; primary health care; health promotion; delivery of health care


Resumen

El estudio tuvo la finalidad de analizar la operacionalización del apoyo matricial (AM) en salud mental en la atención básica. Es una investigación cualitativa realizada en un Centro de Salud de la Familia de Fortaleza, Ceará, Brasil. Participaron del estudio los profesionales de la Estrategia de Salud de la Familia e Centro de Atención Psicosocial. Los dados fueron colectados mediante entrevistas semiestructuradas y observaciones sistemáticas de las prácticas y sometidos a análisis de contenido. Los resultados muestran que el AM asume formas distintas, según el contexto en que se desarrolla y de las percepciones de los profesionales implicados. Su efectivación sugiere cambios en las prácticas de los profesionales, con la inclusión de acciones interdisciplinares y conocimientos compartidos. En esta dinámica están implicados el nivel del compromiso y participación de los administradores, profesionales de salud, usuarios, familiares y comunidad que de manera compartida contribuyen decisivamente para la reorganización del cuidado en salud mental en la atención básica.

Palabras clave: matriciamiento; salud mental; atención básica; promoción de la salud; asistencia a la salud


 

 

Disparando discussões sobre a articulação da saúde mental com a atenção básica (AB), destaca­se que os transtornos mentais comuns na atenção primária possuem alta prevalência, com ênfase para os transtornos de ansiedade, afetivos e somatoformes (Roca et al., 2009). De modo mais específico, pelo menos um terço de todos os usuários atendidos nesse nível de atenção apresenta tais transtornos e busca por assistência. Em sua maioria, no entanto, não são reconhecidos ou são tratados de forma ineficaz (Siddiqi & Siddiqi, 2007). Ante essa constatação, a Organização Mundial da Saúde (OMS) defende a integração da saúde mental na AB.

No Brasil, dados do Ministério da Saúde (2005) revelam que 56% das equipes de saúde da família realizam algum tipo de intervenção em saúde mental. Assim, essas equipes evidenciam a necessidade de apoio e de recursos estratégicos para a produção do cuidado em saúde mental, principalmente no tocante a demandas relacionadas ao uso abusivo de álcool, drogas e diversas outras formas de sofrimento psíquico. O estudo de Miranda, Pennini e Aloma (2003) revela a ineficiência na avaliação em saúde mental de parte significativa dos usuários que passam pela AB. Tal fato pode configurar­se como desassistência e desarticulação na rede de saúde, impactando na qualidade do cuidado ofertado.

O apoio matricial (AM) ou matriciamento em saúde mental, nesse contexto, revela­se como importante estratégia de articulação entre saúde mental e AB, ou seja, pode ser entendido como um recurso de suporte especializado às equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) na AB no atendimento às pessoas em sofrimento psíquico ou transtornos mentais. É um novo modo de produzir saúde em duas ou mais equipes que compartilham experiências, saberes e práticas, numa elaboração compartilhada baseada em uma proposta de intervenção pedagógico­terapêutica (Ministério da Saúde, 2011).

Formulado por Campos (1999), o matriciamento constitui ferramenta que altera a lógica de funcionamento das equipes de saúde com foco no trabalho colaborativo. No contexto da AB, o AM em saúde mental se estrutura com origem na interlocução de equipes especializadas ou de AM, compostas pelos profissionais do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) e pela equipe territorializada ou de referência, de que fazem parte os profissionais da equipe da ESF, que possui dúvidas ou, por vezes, receio em conduzir tais casos (Campos & Domitti, 2007).

O AM possibilita o fortalecimento do compromisso dos profissionais com a produção de saúde e com a condução dos casos, de modo que, ao reduzir o excesso de encaminhamentos, fortalece a corresponsabilização pelos casos de saúde mental, na busca por estimular o vínculo entre as equipes e destas com os usuários. Isso contribui para o fortalecimento da interdisciplinaridade, rompendo com as ações contingenciais, fragmentadas e verticalizadas, moderadas pelo modelo biomédico da atenção à saúde (Ministério da Saúde, 2003; Bezerra & Dimenstein, 2008).

Dimenstein et al. (2009) apontam o AM como uma transformação do sentido de cuidar, apreendendo saúde como produção de vida diária das pessoas, articulada ao contexto familiar, comunitário e cultural. Nessa conceituação, observa­se a potencialidade da contribuição que a AB pode oferecer para se consolidar como suporte em relações corresponsáveis entre os trabalhadores, usuários e a comunidade, uma atenção mais ligada à noção de cuidado integral.

Assim, reafirmando a importância dessa proposta integradora da saúde mental na AB (Nunes, Juca, & Valentim, 2007; Souza, Matias, Gomes, & Parente, 2007), buscou­se como objetivo do estudo analisar a operacionalização do AM ou matriciamento em saúde mental na AB com amparo nos discursos de profissionais da equipe de saúde da família e do Caps.

 

Método

Esta é uma pesquisa com abordagem qualitativa, realizada no Centro de Saúde da Família (CSF) localizado na Secretaria Executiva Regional IV (SER IV), no município de Fortaleza, no Ceará, Nordeste do Brasil. A SER IV é composta, entre outras, por uma rede de serviços de saúde e educacionais e grandes avenidas que funcionam como corredores comerciais. Esse território agrega também a instituição de ensino superior em que os autores do estudo atuam, os quais assumem a corresponsabilidade sanitária com a saúde da população, objetivando contribuir para a melhoria da assistência por meio da produção de conhecimento e divulgação de resultados que poderão ser significativos para o desenvolvimento de políticas públicas.

Os participantes do estudo foram constituídos por grupos de representação, utilizando como critério de inclusão: ser profissional dos serviços da ESF ou do Caps e compor a equipe de AM ou a equipe de referência no CSF. Assim, o grupo I foi composto por dois médicos e três enfermeiros da equipe de saúde da família. Já o grupo II contou com a participação de um enfermeiro, um assistente social, um psiquiatra, um psicólogo e um terapeuta ocupacional do Caps. O fechamento amostral foi baseado na saturação teórica, segundo a qual as "informações fornecidas pelos novos participantes da pesquisa pouco acrescentariam ao material já obtido, não mais contribuindo significativamente para o aperfeiçoamento da reflexão teórica fundamentada nos dados que estão sendo coletados" (Fontanella, Ricas, & Turato, 2008, p. 17).

Para coleta das informações, foi elaborado um roteiro com questões sobre a experiência com o matriciamento em saúde mental, as dificuldades e possibilidades que visualizam com a prática, tendo como foco a assistência integral do usuário do serviço. A seguir, os profissionais foram abordados no próprio local em que prestavam o atendimento de saúde, respondendo a entrevistas semiestruturadas e participando das observações sistemáticas das práticas.

Os dados foram gravados em áudio e, em seguida, transcritos. As observações foram registradas em diários de campo, com o objetivo de complementar as informações obtidas da entrevista. Para organização das informações, seguiram­se três etapas, estabelecidas por Minayo (1999), retraduzidas por Assis e Jorge (2010): ordenação, classificação e análise final dos dados, que inclui classificação das falas dos entrevistados, componentes das categorias empíricas, sínteses horizontal e vertical, e confronto entre as informações, agrupando as ideias convergentes, divergentes e complementares. De posse das informações, procedeu­se à análise que foi orientada pela análise de conteúdo temática, baseada em Minayo (2008).

Como limitações do estudo, pode­ se destacar a ausência da participação de usuários e seus componentes familiares no processo de produção das informações, uma vez que estes não são apenas espectadores, mas sim coautores da operacionalização do matriciamento. Esta análise, no entanto, faz parte de uma pesquisa mais ampla, denominada A rede de atenção primária como elo de integração da saúde mental, com ênfase no matriciamento, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual do Ceará (Uece), pelo Parecer sob nº 08622882­0.

 

Discussão de resultados

Com base nas informações coletadas, foi possível traçar três temáticas – "Concepções sobre o apoio matricial", "Operacionalização do matriciamento nos serviços de atenção básica: ênfase para a saúde mental" e "Limites e desafios do matriciamento em saúde mental" –, para uma análise mais aprofundada em convergências, divergências e complementaridades.

Concepções sobre o apoio matricial

O matriciamento ou apoio matricial em saúde mental assume variadas formas, dependendo do contexto em que se desenvolve e das percepções dos profissionais envolvidos, pois o modo como é concebido influencia diretamente sua implantação e desenvolvimento. Portanto, essa temática permite uma reflexão sobre os modos como o matriciamento é idealizado pelos profissionais da ESF e da equipe especializada.

No que diz respeito à troca de conhecimentos entre os diversos núcleos de saberes, aponta­se a saída de um processo de trabalho individualizado ou fragmentado pela especialização para uma ação dialogada e interdisciplinar, repercutindo, inclusive, nos atendimentos individuais, ampliando a perspectiva clínica do profissional. Nesse sentido, há um caráter técnico­pedagógico no matriciamento que se reflete na transformação do cuidado produzido pelos profissionais com os usuários. Pode­se observar essa afirmação nos discursos a seguir:

[...] quando a gente matricia pela primeira vez na vida, a gente deixa de executar um trabalho individualmente. Nós nos reunimos e formamos uma roda de conversas com o terapeuta ocupacional, o psicólogo, o enfermeiro, o médico, e isso acaba nos gerando uma troca de conhecimentos, eu aprendo com a psicóloga, ela aprende comigo, e nós aplicamos o que foi aprendido até nos nossos atendimentos individuais (S1GI).

[...] além da visão multi e interdisciplinar, onde realmente no matriciamento a gente consegue ver um pouco o que é um trabalho multidisciplinar, onde cada um com seus diversos saberes, com seus pontos de vista, com um núcleo de ação no seu contexto profissional está ali para trazer lucro e benefícios para esse usuário (S2GII).

Essas concepções aproximam ­se da afirmação de Campos (1999) sobre o AM como dispositivo potente para alterar a lógica de cuidado individualista. Então, é possível observar que, nessa ideia, o AM assume, como caráter essencial, a interdisciplinaridade das ações. Essa característica foi evidente nos discursos dos profissionais tanto do Caps quanto da equipe de saúde da família, que o percebem como estratégia que possibilita o diálogo e a troca de saberes entre as várias categorias.

O matriciamento busca ultrapassar as ações isoladas e verticalizadas dos profissionais nos serviços de saúde, amparadas pelo modelo biomédico, já considerado limitado para atender às necessidades dos usuários quando lhes pretendia garantir um real cuidado conduzido pela concepção de clínica ampliada (Campos, 1999).

Então, assim, com certeza, depois do matriciamento, eu tô mais sensibilizada, já dou mais atenção, escuto melhor. Nem tudo precisa estar indo pro Caps, realmente não. Muitas vezes, o paciente quer apenas ser ouvido, acolhido, e isso dá pra gente fazer aqui, tanto no atendimento individual quanto nos grupos (S3GI).

A reorientação das práticas dos profissionais da equipe de saúde da família, com a contribuição dada pelo matriciamento, no que se refere ao cuidado em saúde mental, é evidente no discurso do profissional, uma vez que este questiona o excesso de encaminhamentos para o Caps com origem na percepção de que é possível se corresponsabilizar e, em alguns casos, tornar­se referência do projeto terapêutico do usuário. Sobre essa concepção, Campos e Domitti (2007) apontam que o matriciamento é um arranjo capaz de oferecer outro modo organizacional para os serviços de saúde que complementa a organização hierarquizada em mecanismos de referência e contrarreferência, protocolos e centros de regulação, pois a dialogicidade e troca de saberes, bem como o apoio especializado, permitem essa corresponsabilização pelos casos de saúde mental.

Percebe­ se, ainda, que a contribuição do matriciamento não está apenas no tensionamento do modelo médico hegemônico de atenção à saúde, pois há a sensibilização dos profissionais para ampliar a visão sobre o contexto de vida do usuário. Esse novo olhar mira processos de cuidado que envolvem acolhimento das narrativas de vida, leva em conta afetos, de modo que os profissionais da ESF consigam se comprometer eticamente com o sofrimento psíquico leve, tornando­se também uma referência de cuidado em saúde mental. Portanto, mais do que uma dimensão de modelo de processo de trabalho em saúde, a noção do matriciamento como modo de sensibilizar para o cuidado atinge a dimensão pessoal de cada profissional.

Na observação das práticas, no entanto, ficou identificado o fato de que existem profissionais da equipe de saúde da família que concebem o matriciamento como mais uma oferta do cardápio de serviços da unidade de saúde. Nessa situação, o AM é compreendido como um atendimento vinculado à consulta médica, que, por sua vez, influenciará o fluxo dos usuários a todas as possibilidades de terapêuticas disponíveis, conforme descrito nos discurso a seguir:

[...] É assim, o que acontece no matriciamento, uma das coisas que ele pede é que o paciente, muitas vezes, passe primeiro pela visão do clínico e, se o clínico não souber agir, aí a gente leva para equipe de matriciamento. O que está acontecendo ultimamente é que as equipes estão desfalcadas de médico, então tem alguns pacientes que são da unidade, mas que na equipe não tem o clínico para atender, e eles estão precisando do matriciamento (S1GI).

Revela­se, desse modo, a noção do matriciamento como um atendimento especializado, que funciona sob a lógica dos encaminhamentos. Ante tal evidência, problematiza­ se a ação fragmentada do profissional da ESF e constata­se que existe uma concepção do modelo médico hegemônico de gerir o AM, favorecendo uma ação em saúde contingente e segregada, na qual as intervenções individuais se sobrepõem ao diálogo entre as categorias profissionais.

A implicação disso, de acordo com Campos (1999), é uma precária responsabilização ou compromisso dos profissionais com a integralidade do cuidado, uma vez que o matriciamento pressupõe a responsabilização de toda a equipe envolvida no processo de cuidar, questionando a limitação do fluxo de atendimento centrado na figura de um profissional.

A confluência de entrevistas e observações permitiu constatar que, apesar de as concepções sobre AM ou matriciamento se encontrarem fomentadas por várias possibilidades de atuação das equipes da ESF e do Caps, nota­ se que a posição clássica de encaminhamento e relações verticais ainda persiste. Isso demonstra a dificuldade de romper com o modelo biologicista de atenção à saúde, em que o usuário ocupa um lugar desfavorável, um distanciamento da equipe, transferindo, dessa forma, a responsabilidade de um serviço a outro.

Operacionalização do matriciamento nos serviços de atenção básica: ênfase para a saúde mental

A análise dos discursos dos profissionais do Caps evidenciou que estes se acham pouco apoiados pelos coordenadores das unidades básicas de saúde. Nessas unidades de saúde, a lógica da gestão dos processos de trabalho é baseada na produtividade e no atendimento da demanda para os programas do Ministério da Saúde, o que impossibilita a participação da equipe, seja pela justificativa de falta de tempo, de equipe incompleta ou da não disponibilidade desta para ações que articulem saúde mental na AB.

[...] para alguns coordenadores da unidade de saúde, tirar o médico da consulta é o fim do mundo. O mundo vai acabar. Vai morrer todos os pacientes, então, nós temos uma dificuldade de fechar as agendas dos médicos, principalmente pela demanda da população é muito grande [...] o posto de saúde tem muito da questão, [...] da produtividade, o número de pessoas que você atende [...] tem uns profissionais que se comprometem mais, uns estão mais preocupados com a quantidade de atendimento e não com a qualidade do tratamento [...] (S3GII).

É nessa realidade que a operacionalização do AM se estrutura, de modo tímido e lento. Enfrentando dificuldades em sua implementação, a estratégia permeia os espaços da AB e problematiza o cuidado integral, tensionando a organização das práticas e o apoio da equipe de saúde da família.

Essas resistências correspondem à não priorização da saúde mental no contexto das práticas de saúde dos profissionais na unidade básica. No cotidiano dos serviços, a exigência quantitativa de atendimentos clínicos dificulta a operacionalização e consolidação do AM, pois a noção de produtividade é a necessidade maior. Em contraposição a esse tipo de processo de trabalho na AB, Silveira e Vieira (2009) asseveram que a relevância da formulação de políticas que envolvam o cuidado em saúde mental está explicada e calcada no direito do usuário de encontrar, em sua unidade sanitária de referência, uma estratégia de acolhimento articulada com os demais dispositivos assistenciais presentes na rede de atenção.

Dimenstein et al. (2009) reafirmam esse direito quando consideram que o AM emergiu da constatação de que a reforma psiquiátrica não poderia ir adiante com seus inovadores propósitos se a AB não fosse agregada ao processo, bem como os leitos psiquiátricos em hospitais gerais.

Em contraste com o direito de ser assistido em outros níveis de atenção, está outra resistência que transpõe a mudança dos processos de trabalho vigentes, pois o paradigma psiquiátrico ainda persiste no imaginário da sociedade, por acreditar na "periculosidade do louco" e no isolamento social como forma de assistência para pessoas com transtorno mental (Amarante, 2007). Com efeito, foi possível observar, no campo empírico, alguns profissionais da ESF resistentes ao atendimento de casos e demandas de saúde mental. Eles, habitualmente, se utilizam de encaminhamentos para serviços especializados, como os Caps, ensejando uma desresponsabilização com o cuidado ao usuário.

Essas resistências, muitas vezes, são associadas à insegurança para lidar com a doença mental. É possível observar que os profissionais da ESF reconhecem no matriciamento uma possibilidade de assistência ampliada para os usuários, ultrapassando os atendimentos nos programas do Ministério da Saúde, como diabetes e hipertensão, aproximando­ se do cuidado integral preconizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas tais ações ainda ocorrem de modo incipiente.

Então, assim, a gente acaba ficando mais segura porque a gente tá vendo que a comunidade está aqui e que você tá dando uma assistência não só para hipertensão e diabetes, mas para sofrimento, para o que a pessoa precisa. Então, é nesse sentido que a gente começa a ficar mais segura, quando a gente consegue diferenciar o sofrimento psicológico do sofrimento físico (S1GI).

A ênfase técnico­ pedagógica do matriciamento evidencia a possível unilateralidade que pode cristalizar a AB apenas no lugar de aprendiz, quando seu potencial está justamente na proximidade com a vida familiar e comunitária dos usuários, o que é essencial para superar o modelo "medicalizante" e ambulatorial.

Com efeito, a operacionalização do matriciamento em saúde mental talvez venha se configurando mais como transferência de saber especializado do que propriamente de troca entre os níveis de atenção. Um diagnóstico descontextualizado da vida do usuário possui pouco valor terapêutico. Se as dimensões da desinstitucionalização da "doença mental" fossem observadas de forma mais apropriada, essa postura unilateral poderia ser problematizada. Seria sabido que a bússola de nada adianta sem o barco para navegar nos mares misteriosos do sofrimento psíquico.

Limites e desafios do matriciamento em saúde mental

Considerando as particularidades de cada território, o matriciamento é estimulado e busca ampliar o cuidado integral à população. Nessa dinâmica, está implicado o nível de compromisso e engajamento de gestores, profissionais de saúde, usuários, familiares e comunidade, ou seja, todos os sujeitos sociais envolvidos na efetivação e no desenvolvimento das potencialidades que o AM pode oferecer.

Nesta investigação, foi possível evidenciar os principais limites e desafios na consolidação do matriciamento em saúde mental na AB, divergentes nas considerações da equipe do Caps e da ESF; ou seja, para os profissionais da equipe "matriciadora", ou especializada, os limites são descritos como a participação ativa da equipe de saúde da família, em virtude da lógica de produtividade operante na ESF e do preconceito com a saúde mental, enquanto o desafio diz respeito às capacitações como alternativa para enfrentamento à insegurança da equipe, ampliação das práticas e divulgação da ferramenta.

[...] dificuldades no sentido de o posto não ter tempo, não ter equipe ou a equipe não estar disponível para a gente poder ir, a dificuldade dos profissionais para irem ao apoio matricial, a resistência das pessoas no que se refere à saúde mental, em achar que a gente iria colocar mais pessoas lá para eles atenderem, mas o que na verdade não era assim, essas pessoas já eram atendidas lá, já eram cadastradas, já faziam atendimento nestes serviços, era apenas um olhar mais completo para aquela pessoa (S4GII).

A questão cultural deve ser trabalhada cotidianamente, na medida em que ainda estão imbricadas no imaginário dos profissionais da ESF – ocasionando o reflexo na negação de articular a saúde mental em suas intervenções individuais e coletivas – as compreensões estigmatizadoras de "loucura".

As maiores dificuldades são dos profissionais, porque nem todos estão dispostos a trabalhar com saúde mental [...] as maiores dificuldade são essas, de às vezes a equipe não estar disponível para isto, e também de não conhecer e que passar para saúde mental tem um pouco de medo, de preconceito, que acaba dificultando [...] porque muita gente não entende o que a gente quer, a gente já viu relato do tipo: "Se eu estou trabalhando aqui é porque eu não quero trabalhar com nada da saúde mental" (S1GII).

O cotidiano operacional dos serviços de saúde revela entraves que dificultam não somente a eficiência da ferramenta do AM, mas também a qualidade da atenção em saúde ofertada. Figueiredo e Campos (2009) salientam a herança do "eficientismo" da saúde pública, com o propósito de produzir mais no menor período de tempo possível, o que nem sempre está acompanhado da resolubilidade da assistência em saúde.

Associado à exigência da produtividade, da ânsia proveniente da cobrança de resultados quantitativos, observa ­se, nos discursos dos profissionais da equipe de saúde da família ou de referência, que o limite na consolidação do matriciamento é a sobrecarga de trabalho. Assim, temas sobre a grande demanda que se assinala nos serviços de saúde e que dificulta o exercício da interdisciplinaridade durante o encontro de AM na ESF são destacados nos discursos.

[...] equipes que não se engajam o tanto que deveriam, até porque a sobrecarga [...]. Não é tanto nem só por falta de interesse, mas é que a sobrecarga é muito grande. Aqui, para a gente participar do matriciamento, a gente tem que abrir mão de um dia de atendimento [...] (S2GI).

Imaginar o matriciamento como sobrecarga para os profissionais diz respeito a uma visão limitada. Nesse aspecto, Bezerra e Dimenstein (2008) consideram que não se pode enxergá­lo de tal modo, sendo necessário ultrapassar essa noção. A transformação da atenção depende da mudança de postura dos próprios profissionais, que não se percebem como agentes sociais com potencial de impactar o cenário atual da saúde pública. O desejo e a qualificação devem se complementar, para que o cuidado ampliado em saúde se efetive e o AM possa ser um forte aliado para a prática desse objetivo, embora, muitas vezes, essa qualificação encontre a barreira política do clientelismo nas formas de contratação dos profissionais.

Entretanto, a exigência e a cobrança que existem nos serviços de saúde, por indicadores e número de procedimentos, com o objetivo de definir a quantidade remanejada de recursos, burocratizam o atendimento e nem sempre correspondem à qualidade dos serviços. Ademais, essas dificuldades vivenciadas pelas equipes do Caps e da ESF podem ser explicadas com a afirmação de Figueiredo e Campos (2009), que consideram a falta do diálogo entre profissionais de saúde e gestores sobre a implantação do matriciamento em saúde mental. Essa dificuldade de comunicação limita a participação dos sujeitos no processo.

Silveira e Vieira (2009) entendem como obstáculos a plenitude do matriciamento, a deficiência de preparo dos profissionais de saúde da rede básica para acolher e cuidar de pessoas com transtornos psíquicos, a dificuldade de reorganização para atuar conforme as mudanças político­institucionais e a desarticulação das ações de saúde mental produzidas na ESF e na unidade de saúde.

Um reconhecido argumento aludido pelos profissionais de saúde é a carência de aperfeiçoamento na área da saúde mental. Nos próprios currículos acadêmicos, por muito tempo, não se destacou o preparo nesse âmbito; o novo modelo orientador de saúde que contribuiu para a construção dos princípios do SUS é recente, e a formação dos profissionais da saúde não acompanhou tais avanços.

Efetivamente, os profissionais do Caps evidenciam a necessidade de capacitações em saúde mental, a fim de efetivar melhorias conexas à prática do AM, conforme descreve o discurso a seguir:

[...] se a gente pudesse dar para eles mais capacitações, tanto para eles quanto para nós mesmos, para estar entendendo [...] é necessário, talvez a divulgação e capacitações, porque capacitação nunca é demais, a gente está sempre se reciclando, porque as coisas mudam, as formas de abordagem mudam, as políticas mudam, então é bom a gente estar sempre se capacitando (S2GII).

Desse modo, a efetivação do AM sugere uma mudança nas práticas de saúde dos profissionais, com a inclusão de práticas interdisciplinares e de compartilhamento de saberes, da educação permanente e do remodelamento das atividades antes fixadas e que agora devem se flexibilizar a um novo dispositivo de cuidado que visa contribuir com o serviço e não sobrecarregar os seus agentes.

Com efeito, a inclusão de ações de saúde mental na AB já se tornou um subsídio elementar para a adoção, por completo, dos pressupostos da reforma psiquiátrica. Essa tendência percebe a saúde mental como parte constituinte da saúde coletiva e, por isso, deve oferecer atenção em todos os níveis de saúde, acolhendo o usuário e suas demandas como todos os outros que necessitam dos serviços de saúde nas demais especialidades, como sujeito ativo, participativo e de direito.

Tanaka e Ribeiro (2009) acreditam que a incorporação efetiva de ações de atenção à saúde mental como estratégia para ampliar a conjunção de problemas passíveis de resolução nesse nível de atenção contribuirá para um real avanço na reorganização do processo de trabalho na AB.

O AM, nesse contexto, pode contribuir decisivamente para que essa reestruturação da AB se realize de maneira compartilhada, em que os profissionais não se sintam desamparados e não percebam a saúde mental como um intencional repasse de funções e tarefas, mas que essa articulação seja entendida como uma ferramenta necessária para a garantia de direitos à população.

 

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Endereço para correspondência:
Maria Salete Bessa Jorge
Universidade Estadual do Ceará, Programa de Pós­Graduação em Saúde Coletiva
Avenida Dr. Silas Munguba, 1.700, Campus do Itaperi
Fortaleza – CE – Brasil. CEP: 60714­903
E–mail: maria.salete.jorge@gmail.com

Submissão: 30.10.2011
Aceitação: 6.5.2014