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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.16 no.2 São Paulo ago. 2014

 

AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

Comunidades terapêuticas para dependentes de substâncias psicoativas: avaliação dos resultados do tratamento

 

Therapeutic communities for substance abusers: assessment of treatment outcomes

 

Comunidades terapéuticas para dependientes de sustancias psicoactivas: evaluación de los resultados del tratamiento

 

 

Alessandro Antonio ScadutoI; Valéria BarbieriI; Manoel Antônio dos SantosI
I Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto – SP – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

A comunidade terapêutica (CT) é uma modalidade de atenção a usuários abusivos de substâncias psicoativas utilizada no Brasil. No entanto, há poucos estudos acadêmicos sobre seus alcances e limitações, de modo a oferecer subsídios para que a qualidade do atendimento possa ser aprimorada. Este estudo teve por objetivo analisar as mudanças no funcionamento psicológico de internos de uma CT, por meio de avaliação realizada no início e no final do tratamento. Participaram sete homens, dependentes de crack, cocaína e álcool. Os participantes foram avaliados por meio de entrevista semiestruturada, Inventário Multifásico Minnesota de Personalidade (Improved Readability Form – MMPI–IRF) e Teste de Apercepção Temática (TAT). Os resultados sugerem que o tratamento promoveu melhoras no funcionamento psicológico em graus diferentes para dois subgrupos de participantes, em termos do tipo de estruturação da personalidade. Essa variável pareceu mediar a qualidade da introjeção das experiências afetivas ao longo do tratamento.

Palavras–chave: comunidade terapêutica; avaliação terapêutica; droga (abuso); Teste de Apercepção Temática; Inventário Multifásico Minnesota de Personalidade


Abstract

The therapeutic community (TC) is a treatment modality for substance abusers applied in Brazil. However, there are few academic studies of its contributions and limitations, in order to improve the care quality. The objective of the study was to investigate psychological profile changes of patients from a TC, who were assessed in the beginning and in the end of treatment. The participants (seven crack, cocaine and alcohol male abusers) were assessed using a semi–structured interview guide, the Minnesota Multiphasic Personality Inventory (improved readability form – MMPI– IRF) and the Thematic Apperception Test. The results show improvements in psychological functioning in different degrees for two subgroups of participants in the end of treatment, in terms of their personality structure type. This variable seems to mediate the introjection's quality of the experiences during the treatment.

Keywords: therapeutic communities; treatment effectiveness assessment; drug (abuse); Thematic Apperception Test; Minnesota Multiphasic Personality Inventory


Resumen

La comunidad terapéutica (CT) es una modalidad de atención a usuarios abusivos de sustancias psicoactivas utilizada en Brasil. Sin embargo hay pocos estudios académicos sobre sus alcances y limitaciones para perfeccionar y mejorar la calidad del atendimiento. El estudio tuvo como objetivo investigar los cambios en el funcionamiento psicológico de pacientes de una CT mediante evaluación al inicio y al final del tratamiento. Los participantes (siete hombres, dependientes de crack, cocaína y alcohol) fueron evaluados mediante una entrevista semiestructurada, Inventario Multifásico Minnesota de Personalidad (Improved Readability Form – MMPI–IRF) y el Test de Apercepción Temática (TAT). Los resultados sugieren que el tratamiento promovió mejorías en el funcionamiento psicológico en diferentes grados para dos subgrupos de participantes, en términos del tipo de estructuración de la personalidad, lo cual pareció intermediar la calidad de la introyección de las experiencias afectivas a lo largo del tratamiento.

Palabras clave: comunidad terapéutica; evaluación terapéutica; drogas (abuso); Test de Apercepción Temática; Inventario Multifásico Minnesota de Personalidad


 

 

A comunidade terapêutica (CT) é uma modalidade de atenção grupal/comunitária a usuários abusivos de substâncias psicoativas influenciada por diversos modelos teóricos, que focam mudanças de comportamento e de crenças como objetivos terapêuticos (De Leon, 2003). As primeiras CT surgiram nos Estados Unidos, no final da década de 1950, e no Brasil, na década de 1970, com princípios de igualdade entre equipe e pacientes, divisão do trabalho e valorização da convivência (Fracasso, 2002). Embora estudos demonstrem a eficiência das CT em outros países (Carrol & McGinley, 2000; Dekel, Benbenishty, & Amram, 2004), os estudos brasileiros têm mostrado que a maior parte dessas instituições oferece serviços de baixa qualidade, devido à precariedade da preparação de suas equipes e das atividades oferecidas (Sabino & Cazenave, 2005; Silva & Garcia, 2004). Entre as principais críticas às CT brasileiras, destacam–se a ênfase em pressupostos moralistas e religiosos, e o pouco embasamento científico, cenário comum na América Latina, que destoa da organização de tais instituições nos Estados Unidos e na Europa (De Leon, 2003).

Monte Serrat (2002) ressalta que as CT não são o único método para tratar usuários abusivos de substâncias psicoativas; outras estratégias são descritas em Figlie e Laranjeiras (2004) e Lima (2001). Além disso, Monte Serrat (2002) também afirma que as taxas de recuperação variam entre 30% e 35%. Por sua vez, Hser, Joshi, Anglin e Fletcher (1999) referiram taxas de abstinência de internos de um programa de internação entre 50% e 60% um ano após o final do tratamento.

Nessa mesma direção, Hser et al. (2001) afirmam que, até o momento, não há modalidade de tratamento que seja comprovadamente mais eficaz para o abuso de substâncias psicoativas. Além disso, a adesão ao tratamento e a manutenção da recuperação se constituem em desafios de longo prazo (Fals–Stewart, 1992; Garcia, Pillon, & Santos, 2011; Pratta & Santos, 2006, 2007, 2009; Scaduto & Barbieri, 2009; Vargens, Cruz, & Santos, 2011).

Segundo Chan et al. (2004), ainda são poucas as pesquisas sobre o que ocorre com diferentes tipos de internos em CT ao longo do tratamento. Em um estudo com mais de 360 participantes, os autores observaram que mulheres com mais de 25 anos de idade e com experiência prévia em CT apresentavam maior envolvimento com o tratamento. Contudo, Chan et al. (2004) não verificaram relações estatisticamente significantes entre características pessoais e fatores como autoeficácia, autoestima, comprometimento com abstinência e introspecção. Nesse sentido, De Leon (2003) ressalta a importância de variáveis "dinâmicas" (percepção dos internos sobre o uso de substâncias e o tratamento) em relação a variáveis "fixas" dos internos em CT (por exemplo, indicadores demográficos, história pessoal anterior), além de considerar o processo de mudança vivido pelos internos na CT como multidimensional e relacionado à aquisição do que ele denominou de experiências e percepções essenciais, em níveis individual (relação do indivíduo consigo mesmo e sua autoimagem) e comunitário (experiências de relação do indivíduo com o grupo de internos da CT). Essas vivências possibilitariam internalizar novos valores e atitudes, levando a mudanças na identidade que ocorreriam em dimensões e domínios descritos pelo autor e apresentados no Quadro 1, os quais podem ser avaliados qualitativa e quantitativamente, o que permite estimar os resultados do tratamento ao longo do tempo.

 

 

Segundo Messina, Nemes, Wish e Wraight (2001), ainda há muito a ser compreendido sobre o que esses autores chamaram de "caixa–preta" do tratamento em CT. No Brasil, a escassez de estudos sobre essas instituições impõe a necessidade de avaliar sua efetividade e a natureza de seus componentes terapêuticos, para reduzir suas dificuldades e limites. Dessa maneira, o presente estudo teve por objetivo avaliar possíveis mudanças ocorridas no funcionamento psicológico de usuários abusivos de substâncias psicoativas submetidos a tratamento em uma CT.

 

Método

Participaram do estudo sete internos em CT do sexo masculino, com idades entre 21 e 35 anos e que atendiam a critérios diagnósticos para uso abusivo ou dependência de substâncias psicoativas (crack, cocaína e álcool). Todos os participantes tinham escolaridade equivalente ao ensino fundamental e nível socioeconômico entre médio e baixo. Foram considerados critérios de inclusão: ter no mínimo três semanas de internação, ter completado pelo menos a quarta série do ensino fundamental e não apresentar déficit cognitivo, complicações neurológicas e/ou histórico de tratamento psiquiátrico para comorbidade.

O estudo foi conduzido em uma CT de um município do interior do Estado de São Paulo, com características típicas (Silva & Garcia, 2004): localização na zona rural, tratamento com duração de nove meses baseado em atividades de cunho religioso, laboral e nos 12 passos do Alcoólicos Anônimos (AA – para mais detalhes, cf. De Leon (2003)). A equipe profissional era composta por monitores (ex–internos) e equipe de saúde de apoio formada por psicóloga e psiquiatra, que realizavam atividades de avaliação clínica e atendimento em grupos. A instituição admite apenas homens adultos e, esporadicamente, adolescentes maiores de 16 anos de idade.

Material e procedimento

Os participantes foram avaliados individualmente no início (fase pré–CT) e no término do tratamento (fase pós–CT) por meio da aplicação de um roteiro de entrevista semiestruturado para caracterização sociodemográfica, histórico de uso de substâncias psicoativas e percepções sobre o tratamento. Em seguida, foram aplicados o inventário multifásico Minnesota de personalidade – forma IRF (improved readability form – MMPI–IRF), conforme a revisão proposta por Barbieri (1996), e dez cartões selecionados do teste de apercepção temática – TAT (Murray, 2005). Os cartões selecionados (1, 2, 3RH, 4, 6RH, 7RH, 8RH, 18RH, 16 e 9RH) foram aplicados nessa ordem visando suscitar os seguintes conteúdos: ideal de ego, relacionamentos interpessoais, trabalho, superego, depressão e propensão ao suicídio (Murray, 2005). Tais cartões foram selecionados com base em outros estudos que descreveram o funcionamento psicodinâmico da população–alvo do presente estudo (Kessler et al., 2003; Martins, 2003; Souza, 1998). Os instrumentos foram administrados em entrevistas individuais, em uma sala reservada da própria CT. Na fase pós–CT, incluiu–se uma entrevista devolutiva  para os participantes.

Análise dos resultados

Os dados obtidos foram analisados individualmente e, em seguida, agrupados com base nas dimensões do processo de mudança descrito por De Leon (2003).

Os dados do MMPI–IRF foram codificados de acordo com as recomendações de Barbieri (1996). Os protocolos pré e pós–CT de cada participante foram comparados quanto à presença e configuração de elevações nas escalas de validade e clínicas (≥ 70T). A interpretação do MMPI–IRF foi realizada em uma perspectiva psicodinâmica, com base no estudo de Trimboli e Kilgore (1983).

As histórias do TAT foram analisadas segundo o referencial proposto por Morval (1982), e os protocolos pré e pós–CT foram comparados em suas convergências e divergências, além de eventuais mudanças observadas ao término da internação.

O conjunto de dados obtidos nas avaliações foi interpretado segundo uma perspectiva psicodinâmica, a partir dos trabalhos de Arzeno (1995), Bergeret (1998) e Winnicott (2000). No presente estudo, com base no objetivo de avaliar as mudanças ocorridas no funcionamento psicológico dos internos, os resultados apresentados se referem à comparação das fases pré e pós–CT nos domínios que compõem a dimensão 4 (psicológica): habilidades cognitivas, habilidades emocionais e bem–estar psicológico.

 

Resultados

Os participantes foram divididos em dois grupos, de acordo com indicadores de seu funcionamento psicológico. Em linhas gerais, pode–se afirmar que o primeiro grupo, formado por Adalberto, Benedito, Caio e Diego (nomes fictícios), apresentou prejuízos mais severos que o segundo – formado por Émerson, Francisco e Geraldo (nomes fictícios).

Domínio 4.1 (Habilidades Cognitivas)

Na fase pré–CT, os participantes se mostraram disponíveis para o contato interpessoal, ainda que tenham referido dificuldades nos relacionamentos conjugais ou familiares. A Tabela 1 mostra os escores dos participantes nas escalas do MMPI–IRF. Quatro participantes apresentaram escores rebaixados na escala K (defensividade), enquanto três deles apresentaram tendência à elevação na escala Si (introversão social), sendo ambas as escalas relacionadas a esse domínio. No término do tratamento, tais escores se apresentaram na zona média para os dois grupos, ainda que dois participantes (Benedito e Caio) tenham mantido o rebaixamento em K, e Diego, a tendência à elevação em Si.

 

 

Os indicadores do TAT que informam sobre as habilidades desse domínio podem ser observados na Tabela 2. Foram verificados indicadores de dificuldade em produzir histórias na fase pré– CT. Nesses termos, em aproximadamente metade das histórias, o tempo total foi superior a cinco minutos, assim como foram necessárias várias intervenções para que mais detalhes fossem obtidos (o que explica, em parte, o longo tempo total nessas histórias, observada a fase pré–CT). Outros sinais confirmaram essa dificuldade para produzir histórias. Em 27% das narrativas, o tempo de latência foi superior a 30 segundos; em aproximadamente 21% das histórias, houve sinais de invasão afetiva (comentários sobre dificuldades em produzir as histórias, sinais de choque aos cartões ou de angústia). Em 31% das histórias, os participantes fizeram comentários críticos sobre o cartão ou o próprio desempenho.

 

 

Segundo Morval (1982), as condutas dos heróis oferecem indícios sobre o nível de controle dos comportamentos e sua eficácia. A Tabela 3 revela um certo equilíbrio entre condutas de aprendizagem social e instintivas na fase pré–CT, com o número maior das primeiras, sugerindo um razoável equilíbrio entre vivências afetivas e seu controle, ainda que insuficiente em alguns momentos. Um exemplo dessa insuficiência foi observado no protocolo do TAT de Benedito, com 20 condutas instintivas e apenas oito de aprendizagem social.

Morval (1982) classifica as condutas dos heróis como consumativas (aquelas em que a ação do herói da história está relacionada à satisfação de sua necessidade), afetivas (reações impulsivas e ineficazes para a satisfação da necessidade), preparatórias (ações prévias a condutas diretamente relacionadas à satisfação da necessidade), suspensivas (evitação da satisfação da necessidade) e fictícias (ações imaginadas pelo herói e não realizadas). Na fase pré–CT, foi observado um equilíbrio entre condutas compensadas e impulsivas dos heróis, uma vez que houve predomínio de condutas consumativas e afetivas. Entretanto, houve mais condutas consumativas do que preparatórias, sugerindo momentos de pouco planejamento das ações, com a satisfação sendo alcançada de modo impulsivo.

 

 

Ainda na fase pré–CT, o estilo da conduta foi marcado pela passividade e tenacidade, além de um número equivalente de condutas controladas e impulsivas em ambos os grupos. Apesar da aparente contradição desses dados, a análise das condutas dos heróis nos protocolos dos dois grupos mostra dois perfis diferentes. Nas histórias do primeiro grupo, as condutas mais frequentes dos heróis se caracterizaram por passividade, impulsividade e indecisão, enquanto, no segundo grupo, as condutas dos heróis foram caracterizadas pela energia e controle. Deve–se ressaltar, contudo, que, em todos os protocolos, foram observadas condutas dos dois tipos, o que sugere que, em sua maioria, as condutas dos heróis foram eficazes apenas com a ajuda do meio ou em histórias com forte idealização dos heróis e/ou do meio.

Na fase pós–CT, as mudanças mais significativas na qualidade formal das histórias foram uma menor necessidade de intervenções do pesquisador para solicitar mais detalhes para as histórias, redução de comentários críticos dos participantes sobre os cartões ou sobre o próprio desempenho e diminuição de ocorrências de invasão afetiva durante a produção das histórias (Tabela 3). Esses sinais sugerem que os participantes apresentaram melhor coordenação dos recursos cognitivos e afetivos, bem como maior capacidade associativa.

Essa hipótese também parece explicar o aumento do número de histórias curtas e mais detalhadas, indicando que os participantes se envolveram de forma mais coordenada com a tarefa. Como complemento, a Tabela 2 mostra redução do número de histórias pouco elaboradas em relação à fase pré–CT. Ainda, nas histórias em que houve projeção direta (ou seja, em que os participantes narraram suas próprias experiências ou nas quais eles mesmos foram os heróis), houve tentativas de elaboração da história pessoal, especialmente no cartão 16 (em branco), no qual as narrações versaram sobre o tratamento na CT ou a superação da dependência de substâncias psicoativas.

Na fase pós–CT, também se observou maior número de condutas de aprendizagem social, o que, de acordo com Morval (1982), apesar de sugerir controle sobre as vivências afetivas, pode indicar rigidez na sua regulação. Ainda nessa fase, houve um aumento de condutas consumativas e fictícias, e redução do número de condutas afetivas e suspensivas. Ainda foi observado aumento das condutas tenazes, controladas e plásticas, e redução do número de condutas passivas, indecisas e fracas ao final do tratamento, além da diminuição do número de condutas de iniciativa, o que pode ser explicado pelos indicadores de maior dependência e confiança no meio, como também pôde ser observado no MMPI–IRF. Assim, conforme descrito na Tabela 1, apenas um participante apresentou elevação na escala Pa no final do tratamento. Já os participantes com escores rebaixados na escala K na fase pré–CT (Adalberto, Benedito, Diego e Francisco) apresentaram escores dentro da média ao final da internação, sugerindo menor fragilidade defensiva, o que poderia permitir o descongelamento do desenvolvimento emocional (Winnicott, 2000).

A categorização da influência do ambiente sobre o herói nas histórias do TAT permite conhecer as expectativas dos participantes acerca de seus relacionamentos interpessoais e do contato com a realidade externa (Morval, 1982). Como observado na Tabela 3, ao final do tratamento, houve redução do número de características do meio que atuam contra o herói nas histórias, sugerindo expectativas mais positivas que podem ser compreendidas como um indicativo de melhora.

Domínio 4.2 (Habilidades Emocionais)

As habilidades que compõem esse domínio se referem à variação dos estados emocionais vivenciados, à expressão e aos graus de contato e socialização dos participantes. Na fase pré–CT, os participantes apresentaram vivências de caráter predominantemente disfórico ao longo das entrevistas, relacionadas aos prejuízos decorrentes do uso de substâncias e ao fato de terem iniciado seu tratamento baseado no princípio da abstinência. Apesar de todos os participantes terem se mostrado colaboradores, o segundo grupo (Émerson, Francisco, Geraldo) se mostrou mais agitado e ansioso do que o primeiro, ao mesmo tempo que mais ativamente envolvido com as atividades durante as entrevistas. Por sua vez, o primeiro grupo se mostrou retraído e suscetível à retenção das vivências afetivas.

Na Tabela 3 são apresentadas as vivências emocionais dos heróis que compuseram as histórias do TAT, as quais foram categorizadas considerando o tipo de afeto predominante. No início do tratamento, observou–se o predomínio de vivências compensadas ou equilibradas sob o aspecto afetivo em relação às demais. Contudo, a soma das outras vivências suplanta as vivências compensadas em pouco mais que 50%, indicando que os heróis das histórias experimentaram sentimentos predominantemente incômodos e de caráter extratensivo (vivências de tipo impulsiva e ansiosa).

Na fase pós–CT, os participantes se mostraram em geral mais à vontade com o pesquisador do que no início do tratamento. Os participantes do primeiro grupo tenderam a se mostrar retraídos (em especial, Adalberto e Diego), mesmo que colaborando com as atividades propostas. Desse grupo, Benedito e Caio apresentaram vivências afetivas de modalidade psicótica na fase pós–CT, fazendo uso predominante de defesas baseadas na idealização e dissociação. O segundo grupo se apresentou de forma mais espontânea durante as entrevistas ao final do tratamento, expressando maior gama de estados afetivos do que o primeiro. A Tabela 3 mostra que, nessa fase, os participantes criaram histórias nas quais os heróis experimentaram mais vivências compensadas ou equilibradas e disfóricas, e menos vivências impulsivas, ansiosas e confusionais do que no início do tratamento.

Domínio 4.3 (Bem–estar Psicológico)

No início do tratamento, os participantes referiram sofrimento emocional tanto relacionado ao uso de substâncias quanto a eventos de sua história de vida. Cinco deles relataram problemas para dormir, com sono agitado ou pesadelos. Três deles apresentaram indicadores de comorbidade psiquiátrica para transtorno de personalidade antissocial (Benedito e Émerson, com o primeiro revelando predomínio de sintomas psicóticos) e transtorno de personalidade paranoide (Caio). Os dados do MMPI–IRF (Tabela 1) mostram que os participantes apresentaram ineficácia do controle pulsional ante as invasões afetivas (quatro ocorrências de rebaixamento em K), favorecendo o uso de mecanismos de defesa primitivos, caracterizados por elevações ou tendências a elevações nas escalas Paranoia (Pd) e Esquizofrenia (Sc). Além disso, cinco participantes referiram atuações como fugas de casa, tentativas de suicídio e episódios de agressividade. Os dados do TAT sugerem uma interpretação semelhante, ou seja, predomínio de vivências afetivas de caráter disfórico ou impulsivo, nem sempre controladas pelos recursos mais maduros da personalidade (Tabela 3).

Ao final do tratamento, todos os participantes relataram sentimentos de gratidão à CT e de bem–estar psicológico, variando, contudo, quanto ao nível de integração deles. O primeiro grupo referiu ansiedade pelo fim do tratamento, recorrendo ao isolamento como forma de se preparar para a saída (Adalberto e, em menor grau, Diego), ênfase na espiritualidade para a recuperação (Benedito), desconfiança e dificuldades de convivência com os internos (Caio) e queixa de sono agitado, ainda que em menor grau do que na fase pré–CT (Diego). Esse último participante apresentou os melhores indicadores de seu grupo nesse domínio, referindo maior contato com as próprias emoções, como o relato de um sonho no qual sofria uma recaída, sobre o qual conversou com um monitor. O segundo grupo apresentou maior nível de bem–estar psicológico, gratidão à CT e percepção de dificuldades pessoais das quais os participantes desejavam cuidar, em uma perspectiva de desenvolvimento pessoal/emocional para além do tratamento na CT.

Na fase pós–CT, dois participantes ainda apresentavam critérios para comorbidade psiquiátrica, no caso, Benedito (transtorno de personalidade antissocial, com sintomas psicóticos em remissão) e Caio (transtorno de personalidade paranoide). Já Émerson não apresentou indicadores de comorbidade nessa fase, sugerindo remissão sintomática e maior amadurecimento emocional, favorecendo o enfrentamento da impulsividade. Dessa forma, os grupos diferiram quanto à sua integração psicológica, com o primeiro deles apresentando um estado compensado, mas ainda imaturo, e o segundo exibindo menor idealização de si mesmo e uma percepção mais realista de seus recursos e limites emocionais.

 

Discussão

Os participantes apresentaram indicadores positivos em todas as dimensões avaliadas na fase pós–CT quando comparados à fase pré–CT, o que sugere que o tratamento favoreceu melhoras em termos do desenvolvimento de recursos adaptativos mais maduros e socializados, bem como da redução de vivências de sofrimento psíquico. Contudo, uma análise de cada caso mostra que a extensão dessa melhora foi diferente para cada participante, sugerindo que a CT promove benefícios que variam de acordo com o grau de prejuízo e o nível prévio de funcionamento da personalidade. Desse modo, os dados apresentados dão suporte à hipótese de que um mesmo tipo de tratamento promove diferentes resultados, de acordo com as características de personalidade das pessoas atendidas, como apresentado por Fals–Stewart (1992), que descreveu 235 internos de uma CT a partir do Millon Clinical Multiaxial Inventory (MCMI). Nesse mesmo estudo, foi observado que os internos com personalidades do tipo evitativo, esquizoide e antissocial apresentaram menor adesão ao tratamento e maior chance de recaídas até um ano após o tratamento, comparados com internos que apresentaram outros tipos de personalidade no MCMI.

A partir do conceito winnicotiano de tendência antissocial, é possível entender as melhoras apresentadas pelos participantes. Os resultados sugerem que o tratamento permitiu a introjeção de um objeto continente, capaz de lidar com as vivências impulsivas. Nesse sentido, o ambiente da CT pode ter favorecido a reparação das deprivações vivenciadas pelos participantes em diferentes extensões, levando à amenização da angústia e da busca pelo ambiente como forma de contenção, o que caracteriza a tendência antissocial (Winnicott, 2000). Dessa forma, pode–se afirmar que o tratamento possibilitou o "descongelamento" do desenvolvimento emocional (Santos, 2007; Winnicott, 2000).

Outros dados dão suporte a essa hipótese. Como mostra a Tabela 3, os participantes apresentaram melhor controle dos impulsos na fase pós–CT, com Diego, Émerson, Francisco e Geraldo, e também indicadores de melhor contato com suas necessidades. No MMPI–IRF (Tabela 1), apenas dois participantes (Adalberto e Caio) apresentaram escores fora da média.

Embora o domínio 4.1 (Habilidades Cognitivas) incluísse componentes como consciência do próprio comportamento e do comportamento dos outros, além da discriminação de pensamentos e sentimentos passados e atuais relacionados às drogas, a definição desse tipo de habilidades, para De Leon (2003), difere da comumente adotada pelos procedimentos de avaliação psicológica (Argimon & Oliveira, 2009). Os resultados demostram que, na fase pós– CT, o segundo grupo apresentou maior desenvolvimento dessas habilidades – conforme definidas por De Leon (2003) – do que o primeiro, em especial quanto ao grau de contato com as realidades interna e externa. Enquanto o primeiro grupo apresentou maior dependência do meio para lidar com afetos, os componentes do segundo mostraram maior autonomia, decorrente do maior contato com as próprias necessidades.

As diferenças entre os graus de melhora apresentados pelos participantes também podem ser explicadas pelas diferenças entre suas estruturas de personalidade (Bergeret, 1998). Aplicando os critérios estabelecidos por esse autor, pode–se falar em três grupos, de acordo com a estrutura da personalidade e o grau de melhora apresentado ao final do tratamento.

O primeiro grupo, que inclui os participantes Benedito e Caio, apresentou estruturações psicóticas do tipo paranoide, tendo exibido melhoras modestas ao final do tratamento. O segundo grupo incluiu os participantes Adalberto e Geraldo, que apresentaram estruturações neuróticas do tipo obsessivo e histérico de angústia, respectivamente, e níveis diferentes de melhora ao final do tratamento, com Geraldo mostrando maior integração dos recursos da personalidade e maior autonomia do que Adalberto. Por fim, os participantes Diego, Émerson e Francisco preencheram critérios para diagnóstico de organização limítrofe, com ordenamento caracterial neurótico, com graus crescentes de desenvolvimento de recursos adaptativos mais socializados e de menor sofrimento psíquico.

 

Conclusões

Embora a amostra do presente estudo seja pequena, é possível considerar que o tratamento promoveu resultados diferentes para cada grupo, os quais podem ser sintetizados como a oferta de um objeto que alivia a angústia. Dessa forma, os melhores resultados, obtidos com os participantes de estruturações neuróticas e organizações limítrofes, podem ser explicados pelo modo como as experiências durante o tratamento foram introjetadas. No caso de Adalberto (em menor grau) e Geraldo, o tratamento parece ter permitido a reparação da autoimagem a redução da depreciação superegoica. Já para Diego, Émerson e Francisco, a afiliação a um grupo de iguais dentro da CT permitiu apaziguar a angústia de perda do objeto. Nesse sentido, deve–se notar que esses participantes se tornaram monitores da CT ao longo do tratamento, responsabilizando–se por atividades de discussão e apoio aos outros internos.

Em síntese, a apreciação de dados indicativos do tipo de estrutura da personalidade permite aprofundar a compreensão sobre os diferentes graus de melhora apresentados pelos participantes, ao permitir descrever os níveis de introjeção das experiências vivenciadas durante o tratamento e a elaboração destas pelo aparelho psíquico.

A generalização dos resultados aqui obtidos é restrita, tendo em vista a amostra não representativa de pessoas com transtornos relativos ao uso abusivo de substâncias psicoativas. Além disso, os dados obtidos se referem ao funcionamento psicológico dos participantes ao final do tratamento, de forma que novos estudos se fazem necessários para que se possa avaliar a estabilidade dos resultados após a saída da CT.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Alessandro Antonio Scaduto
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Departamento de Psicologia
Avenida Bandeirantes, 3.900, Monte Alegre
Ribeirão Preto – SP – Brasil. CEP: 14040–901
E–mail: aascaduto@uol.com.br

Submissão: 13.12.2011
Aceitação: 20.5.2014