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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.17 no.1 São Paulo abr. 2015

 

PSICOLOGIA CLÍNICA

Dificuldades de maternagem em um grupo de mães de crianças agressivasI

 

Difficulties in mothering in a group of mothers of aggressive children

 

Las dificultades de la maternidad en un grupo de madres de niños agresivos

 

 

Aline Esteves BasagliaII; Maria Abigail de SouzaII
I Agradecimentos à Prefeitura do Município de Santana de Parnaíba.
II Universidade de São Paulo, São Paulo – SP – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

A agressividade no ambiente escolar foi considerada por Winnicott uma das manifestações de tendência antissocial decorrente de privação emocional precoce. Com esse pressuposto, sugeriu que, para tentar garantir um trabalho bem-sucedido com crianças agressivas, seria aconselhável oferecer um ambiente protetor e estável que lhes faltou. Devido à escassez de estudos envolvendo diretamente mães de crianças agressivas, esta pesquisa buscou investigar o funcionamento psíquico de mães de meninos entre 8 e 12 anos que apresentavam queixa de agressividade no ambiente escolar. Trinta mães que tinham seus filhos em atendimento psicológico foram submetidas a duas entrevistas psicodiagnósticas, uma sobre o filho e outra sobre ela mesma (Edao). Os resultados evidenciaram frágil controle das emoções, dificuldade no estabelecimento de contato interpessoal, sentimentos de insegurança, de angústia e tendência depressiva. Tais características poderiam produzir um efeito negativo sobre o desempenho da função materna, diminuindo a possibilidade de proporcionar aos filhos um ambiente protetor e estável.

Palavras-chave: agressividade; comportamento antissocial; relações mãe-criança; privação; escala diagnóstica adaptativa operacionalizada.


Abstract

Winnicott considered aggression in the school environment one of the manifestations of antisocial tendency, due to early emotional deprivation. With this assumption and to ensure a successful work with aggressive children, he suggested it would be advisable to provide the protective and stable environment they lacked. Due to the lack of studies directly addressing these mothers, we aimed to investigate the psychological functioning of mothers of aggressive boys between 8 and 12 years old. Thirty mothers, whose children were undergoing psychological treatment, were assessed through two psychodiagnostic interviews, one regarding the child and the other regarding the mother (Edao). The results showed weak emotional regulation, difficulty in establishing interpersonal contact, feelings of insecurity, anxiety and depressive tendency. Such characteristics could have a negative effect on the performance of maternal functions, reducing the possibility of providing their children with a protective and stable environment.

Keywords: aggressiveness; antisocial behavior; mother-child relations; deprivation; adaptative operational diagnostic scale.


Resumen

La agresión en el entorno escolar fue considerado por Winnicott una de las manifestaciones de la tendencia antisocial, debido a la prematura privación emocional. Con esta hipótesis, sugirió que, para tratar de asegurar un trabajo exitoso con niños agresivos, sería aconsejable proporcionar un entorno protector y estable que carecía. Debido a la falta de estudios que incluyen directamente a estas madres, esta investigación trata de analizar el funcionamiento psicológico de las madres de niños agresivos entre 8 y 12 años de edad. Treinta madres que tenían a sus hijos en el tratamiento psicológico se sometieron a dos entrevistas de psicodiagnóstico, un con respecto al niño y otro sobre si mismas (Edao). Los resultados mostraron frágil regulación emocional, dificultad para establecer contacto interpersonal, sentimientos de inseguridad, ansiedad y tendencia depresiva. Tales características podrían tener un efecto negativo en el desempeño de las funciones maternas, lo que reduce la posibilidad de proporcionar a los niños un entorno protector y estable.

Palabras clave: agresividad; conducta antisocial; relaciones madre-niño; privación; escala diagnostica adaptativa operacionalizada.


 

 

O comportamento agressivo acentuado na infância merece atenção e cuidados, seja pelo potencial de desestabilizar os ambientes familiar e escolar, seja por ser um sintoma de que algo não está bem com a criança e, por isso, exige intervenção – inclusive de natureza preventiva. Nesse sentido, a literatura tem evidenciado que a agressividade destrutiva em crianças encontra significativa correlação com o comportamento violento e o abuso de álcool e/ou drogas na adolescência (World Health Organization [WHO], 2010; Souza, 2001). Desse modo, quando se consideram a violência e as adicções como questões de saúde pública e entende-se que a prevenção é a melhor forma de intervenção (WHO, 2010), o acúmulo de conhecimento sobre a agressividade infantil é indispensável.

Assim como outros comportamentos, pode-se afirmar que a manifestação da agressividade como um comportamento destrutivo nas crianças é multifatorial e comple-
xa. Para melhor compreendê-la, a ciência avança em estudos enfocando vários aspectos, como constitucional, ambiental e psicodinâmico, em que o papel dos cuidados parentais é primordial. Aqui, optou-se por estudar a maternagem como um fator que contribui para a manifestação ou manutenção do comportamento agressivo infantil. A compreensão do funcionamento psíquico materno pode favorecer melhor intervenção e promoção de suporte necessário para o desenvolvimento saudável do filho. Que possibilidade teriam as mães de um grupo de crianças agressivas no ambiente escolar em oferecer uma boa maternagem?

Para refletir sobre essa questão, busca-se apoio na teoria psicanalítica winnicottiana­, a qual concebe a figura materna ou os cuidados maternos como elemento central no processo de maturação do psiquismo. Nela, a manifestação da agressividade de forma destrutiva e frequente na infância pode ser decorrente de uma relação mãe-criança não satisfatória, caracterizada pela falta de cuidados maternos suficientes para o desenvolvimento psicológico saudável (Winnicott, 1997).

Ao analisar as raízes da agressão, Winnicott (1987a) ressalta a existência de amor e ódio com plena intensidade humana desde o nascimento do bebê, sendo manifestada uma agressividade instintiva que, somente mais tarde, no desenvolvimento emocional, pode ser mobilizada a serviço do ódio, mas que, originalmente, é parte do apetite ou de alguma outra forma de amor instintivo. Winnicott (1997), baseando-se em sua experiência e na teoria de Klein e Bowlby, afirmou que o que estaria subjacente à tendência antissocial seria um período de privação emocional da criança na tenra infância, depois de um período em que tudo corria bem. Essa privação emocional exigiria uma capacidade de tolerância além do que a criança teria desenvolvido, desmo­ronando suas defesas egoicas e desencadeando a reorganização de um novo modelo inferior àquele. A partir desse momento, a criança passaria a procurar no ambiente o que lhe faltou na família. A tendência antissocial (expressa nesta pesquisa como comportamento agressivo destrutivo escolar persistente) é a procura por um ambiente humano e controlador, a fim de transpor os primeiros e essenciais estágios de seu desenvolvimento emocional (Winnicott, 1987b).

Outros estudos em psicologia demonstraram a importância do vínculo mãe-criança para a prevenção do comportamento transgressor (Farrington & Smith, 2004; Trentacosta & Shaw, 2008). Kochanska e Kim (2012), por estudos longitudinais, salientaram que a relação mãe-criança pode favorecer manifestações de comportamentos antissociais. A WHO (2010) constatou, por levantamento de estudos, que o desenvolvimento de relações seguras, estáveis e carinho entre as crianças e seus pais e cuidadores e a qualidade desses vínculos evitam a ocorrência de comportamentos agressivos na infância, preconizando intervenções com suficiente antecedência para prevenir a violência juvenil, ou na idade adulta. Nesse sentido, Winnicott (1987b) também acreditava que a melhor forma de garantir um trabalho bem-sucedido com crianças que sofreram privação é oferecer-lhes um ambiente protetor e estável.

Além dos cuidados destinados às próprias crianças, os atendimentos aos pais e os cuidados no ambiente escolar são estratégias relevantes na atenção ao comportamento­ agressivo (Souza & Castro, 2008), inclusive por estudos baseados em evidências científicas (Stoolmiller, Eddy, & Reid, 2000).

A presente pesquisa decorreu do interesse em investigar o funcionamento psíquico de mães de crianças agressivas, tendo se desenvolvido no contexto de uma pesquisa-intervenção mais ampla, a qual atendia crianças agressivas, seus pais e educadores no ambiente escolar, como prevenção de comportamento transgressor e abuso de substâncias psicoativas. A dificuldade de comparecimento dos pais quando chamados às entrevistas revelou-se acentuada. Os dados colhidos com as mães ou avós que compareciam à entrevista sugeriam ausência de condições internas dos pais para apoiar, orientar e formar os filhos, bem como uma dificuldade para proporcionar um ambiente­ externo que favorecesse crescimento e desenvolvimento emocional saudável (Souza, Soldatelli, & Lopes, 1997). Dessa forma, o objetivo aqui é contribuir para uma reflexão sobre o tema agressividade destrutiva por meio da investigação do funcionamento psíquico de mães de crianças do sexo masculino que apresentavam queixa de agressividade motora e verbal no ambiente escolar. A investigação e compreensão do funcionamento da dinâmica materna dessas crianças podem auxiliar em possíveis estratégias de intervenção que promovam melhor suporte para o desenvolvimento do filho e, consequentemente, na prevenção de futuros comportamentos transgressores.

 

Método

Participantes

Foram atendidas 30 mães biológicas e legalmente responsáveis pelos filhos que estavam em atendimento psicológico público ambulatorial infantil em unidade básica de saúde (UBS) de uma região da Grande São Paulo carente do ponto de vista socioeconômico. Os critérios de inclusão consideraram que os filhos fossem do sexo masculino, entre 8 e 12 anos de idade, encaminhados pela escola com a queixa principal de agressividade motora e verbal (heteroagressividade) e tivessem sido avaliados por outro profissional que não fosse o pesquisador que atenderia a mãe. O critério de exclusão foi que tais filhos não apresentassem perturbação neurológica ou psiquiátrica que pudesse influenciar a queixa principal. A média de idade das mães foi de 36,2 anos (dp = 5,6) e de seus filhos 10,0 anos (dp = 1,3).

Instrumentos

• Entrevista semidirigida com as mães sobre a criança com roteiro baseado na entrevista com os pais de Aberastury (1989). Essa escolha teve como objetivo evidenciar melhor a relação estabelecida entre a mãe e a criança.

• Entrevista semidirigida com as mães com roteiro baseado na escala diagnóstica adaptativa operacionalizada (Edao) desenvolvida por Simon (1996, 2005) e verificada como importante instrumento diagnóstico em pesquisas (Santos, Honda, Santeiro, & Yoshida, 2013). E também a aplicação individual do método de Rorschach, cujos resultados serão apresentados em outro trabalho a ser publicado. Essas escolhas deveram-se à possibilidade de realizar uma avaliação diagnóstica mais aprofundada, em tempo reduzido, que pode ser aplicada em uma população que não se apresenta como "paciente".

Procedimentos

Foram convidadas a participar da pesquisa todas as mães de crianças que obedeceram aos critérios de inclusão e exclusão estabelecidos, até perfazer o número de 30. A psicóloga responsável pelo atendimento da criança fazia o convite à mãe para parti­cipar da pesquisa. Se a mãe concordasse, a psicóloga responsável pela pesquisa agendava os contatos por telefone.

A coleta dos dados foi realizada em quatro entrevistas individuais, em sala de atendimento da própria instituição, nas quais se explicitaram os objetivos e a metodologia da pesquisa. Se as mães concordassem, assinavam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e era iniciada a entrevista sobre a criança. As entrevistas seguintes consistiam na aplicação da Edao, sendo realizada uma devolutiva do material analisado ao final das entrevistas. Após o processo psicodiagnóstico, caso as mães tivessem interesse, poderiam ser encaminhadas para atendimento psicoterápico na própria unidade de saúde.

Análise dos dados

Os dados obtidos na entrevista sobre a criança foram tabulados em termos de frequência simples e analisados qualitativamente. Os dados da entrevista sobre a própria mãe foram analisados quantitativa e qualitativamente com base na Edao de Simon (1996, 2005), cuja organização apoia-se em quatro setores: produtividade, orgânico, sociocultural e afetivo-relacional. Dessa organização decorrem dois tipos de classificação: adequação em cada setor (adequado, pouco adequado e pouquíssimo adequado) e classificação geral diagnóstica que corresponde ao conjunto dos setores afetivo-relacional e produtividade, representados em termos de adaptação, que se divide em eficaz, ineficaz leve, ineficaz moderada, ineficaz severa, ineficaz grave. Todos os dados foram relacionados entre si para a investigação do funcionamento psíquico do grupo.

 

Resultados e discussão

A primeira entrevista com todas as mães caracterizava-se por sinais de resistência, tais como fala evasiva ou uma fala excessiva e superficial. À medida que as mães sentiam-se mais seguras, mudavam a atitude inicial temerosa, e, assim, estabelecia-se uma relação empática e de cooperação. Nas entrevistas que se seguiram, destacavam-se mais a labilidade emocional e as falas evasivas em situações que suscitavam ansiedade. Os resultados obtidos no método de Rorschach foram tratados em outro trabalho para especialistas nesse método projetivo, em função do limite de espaço em um só artigo. No entanto, pode-se dizer que os resultados corroboraram amplamente o que se evidenciou nas entrevistas.

Entrevista com as mães sobre as crianças

De acordo com o modelo de Aberastury (1989), essa entrevista forneceu um conjunto de dados que configurou determinadas dimensões que pareceram comuns a essas crianças e permitiu proceder a uma análise da relação da mãe com a criança.

Com exceção de uma mãe, todas tiveram seus filhos em uma relação conjugal estável, e, desses relacionamentos, 18 foram únicos e 15 perduravam até o momento da pesquisa. Das 30 mães, 18 não planejaram nem desejaram a gravidez, relatando como causa principal dessa rejeição as dificuldades vivenciadas com o pai da criança, rejeição que não sofrera mudança mesmo com a gravidez em curso.

Em seus relatos, não apareceram dificuldades no parto ou no desenvolvimento psicomotor das crianças, porém houve grande dificuldade para se lembrarem de como ocorreram as fases de desenvolvimento (engatinhar, caminhar, falar etc.) ou em até relatarem tais eventos como algo prazeroso.

Apesar de definirem seus filhos como crianças agressivas e com problemas de relacionamento, 17 mães diziam que eles também são crianças mais carinhosas em certos momentos do que outras crianças que conhecem e demonstram satisfação com tal comportamento. A punição física foi relatada por seis mães, sendo a retirada de alguma atividade que o filho gostasse a opção de castigo mais utilizada. Porém, quando se pediam os exemplos desses castigos, a consistência no relato não era observada: não se lembram ou admitem não praticá-lo de forma coerente, como ameaçar e não cumprir.

Em relação à queixa de agressividade, 26 mães relataram vergonha do comportamento do filho, e 21 delas mostraram-se preocupadas em relação ao futuro da criança.

Durante a entrevista, pôde-se perceber no discurso a falta da figura paterna no que diz respeito à responsabilidade de cuidados com o filho. Quando o parceiro era referenciado, as situações diziam respeito às brigas que dificultaram a vivência da gravidez e do parto (14 mães) e à dificuldade de relacionamento dos pais com a criança (oito mães).

Todas as mães foram e são as principais cuidadoras de seus filhos. Percebeu-se, na maioria delas, a preocupação no oferecimento de cuidados materiais capazes de preservar a saúde física da criança. Não houve ausência física por períodos prolongados de cuidados à criança na maior parte dos casos (26 mães)..

Entrevista com as mães sobre si mesmas (Edao)

Essa entrevista, cujo objetivo era realizar uma avaliação diagnóstica ampla em relação aos setores vivenciados pelas mães, revelou dificuldades de adequação principalmente no âmbito afetivo-relacional, o qual compreende sentimentos, atitudes e ações com relação a si próprias e ao semelhante. A classificação do tipo de adaptação de cada setor avaliado em relação ao número de mães é apresentada na Tabela 1.

 

 

Simon (1996) descreve os sintomas que podem caracterizar a ineficácia de adaptação em cada nível:

Leve: sintomas neuróticos brandos, ligeiros traços caracterológicos, algumas inibições.

Moderada: alguns sintomas neuróticos, inibição moderada, alguns traços caracterológicos.

Severa: sintomas neuróticos mais limitadores, inibições restritivas, rigidez de traços caracterológicos.

Grave: neuroses incapacitantes, borderlines, psicóticos não agudos, extrema rigidez caracterológica.

Em relação à classificação geral diagnóstica, apenas uma mãe apresentou respostas que revelavam adequação em todos os setores (adaptação eficaz), ou seja, consegue resolver as situações de forma satisfatória, sem resultar em conflito intrapsíquico ou ambiental.

A Tabela 2 apresenta o número de mães em cada nível de classificação (Simon, 1996).

 

 

A seguir, serão abordados os principais resultados nos quatro setores:

Produtividade: a maioria das mães apresentou esse setor como "pouco adequado" (18 mães), sendo sete caracterizadas com o setor produtivo "adequado" e cinco com "pouquíssimo adequado". O principal ponto da ineficácia adaptativa do grupo é o investimento de energia que não resulta em satisfação e bem-estar. As mães referem-se aos afazeres domésticos e à educação dos filhos como atividades cansativas, de difícil execução, pouco prazerosas e limitantes a outros interesses (18 mães). Poucas são as ambições intelectuais e profissionais. Tal expectativa parece ser consequência de um meio pouco estimulante no que diz respeito às realizações profissionais (condição socioeconômica desfavorecida), mas também há falta de iniciativa e energia para novas experiências. O grupo mostrou-se receoso diante de novas situações e apresentou respostas limitadas como reação provável às questões que suscitaram angústia, reduzindo a espontaneidade. Tais resultados trazem a impressão de que os fatores afetivos interferem em uma produção intelectual mais destacada, bem como na forma de abordar as questões nesse âmbito.

Orgânico: 11 mães apresentaram o setor como "adequado", 15 como "pouco adequado" e quatro como "pouquíssimo adequado". Desse grupo, mais da metade (16 mães) apresentou sintomas físicos relacionados a estados emocionais depressivos ou ansiosos (palpitações, tristeza frequente, irritabilidade, insônia etc.). Não houve relato de outros comprometimentos de saúde.

Sociocultural: foram observadas restrições da participação social e de amizades (17 mães, classificadas com o setor "pouco adequado" ou "pouquíssimo adequado"). Vinte mães relataram não ter nenhuma atividade que considerem como lazer. Há dificuldade de estabelecimento de vínculos afetivos e da manutenção de relações. Em geral, observa-se limitação na capacidade de inclusão e participação social. A vida social das outras 13 mães está fundamentada na participação em atividades religiosas, porém de forma passiva (frequência aos cultos ou às missas), sem a inserção ativa na comunidade da sua instituição.

Afetivo-relacional: apenas uma mãe foi classificada com o setor "adequado", as outras 29 ficaram entre "pouco adequado" e "pouquíssimo adequado". As dificuldades maiores encontram-se na relação com o parceiro (24 mães): 17 mães relataram o parceiro como alcoolista e nove apontaram violência doméstica praticada pelo companheiro. Apenas seis mães consideraram como bons os relacionamentos conjugais estabelecidos, o que foi justificado pela passividade ou pelo companheirismo do parceiro.

Quando se analisaram os dados de acordo com a correlação psicanalítico-adaptativa e o modelo de geometria da Edao proposto por Simon (2005), constaram-se fatores ambientais que dificultam a eficácia adaptativa dessas mães (violência, carência social, problemas financeiros), tanto atuais como do passado, considerados formadores da personalidade e atuantes como fator interno relacional.

As mesmas dificuldades decorrentes de alcoolismo, violência doméstica e discussões foram apontadas pelas mães como tendo ocorrido na família de origem, principalmente no que se refere a seus pais (16 mães). As entrevistadas evitavam fazer comentários sobre suas próprias mães, sendo perceptível, diante de manifestações corporais e falas evasivas, a sensação de incômodo com o assunto.

A escolha do parceiro pode ter relação com vivências infantis e provavelmente reeditar essa relação de medo e inconfiabilidade já vivida (violência doméstica, alcoolismo, falta de colaboração, ausência). O funcionamento psíquico dessas mães evidencia-se como uma tendência à repetição, processando, dessa forma, uma estrutura neurótica com características próprias de lidar com seus conflitos e angústias.

Molina, Donovan e Belendiuk (2010) investigaram características de crianças entre 8 e 10 anos com parentes alcoolistas de primeiro e segundo graus e obtiveram correlação positiva entre a densidade de problemas com álcool e a de problemas de conduta, porém práticas parentais (calor parental, consistência de disciplina e monitoramento parental) podem moderar e diminuir essa correlação.

Considerando o desenvolvimento da teoria psicanalítica, de uma visão intrapsíquica, passando pela contribuição winnicottiana ao enfatizar o intersubjetivo, há outros autores que irão tratar dos aspectos vinculares, considerados transubjetivos, como Kaëz (1998). Para o autor, pela transmissão psíquica transgeracional se transmite material psíquico não elaborado de um espaço psíquico a outro, não permitindo a metabolização e a integração de quem o recebe. Em estudo de revisão sobre esse conceito em autores psicanalíticos, Rehbein e Chatelard (2013) privilegiam o papel da relação mãe-bebê nessa transmissão. No presente estudo, constatou-se que os próprios conflitos precoces dessas mães e a dificuldade delas em elaborar as próprias angústias parecem ser um material psíquico transmitido aos filhos. Segundo Winnicott (1987c), essa dificuldade impede a função de mãe-ambiente, que vai aplacar a angústia que a criança lhe dirige, não favorecendo que ela se disponibilize para seu filho e ajude-o a metabolizar seus conflitos.

Os resultados obtidos nas entrevistas sugerem que esse grupo apresenta características como labilidade emocional, dificuldade de relacionamento com o parceiro, sintomas físicos de ansiedade e depressão, falas evasivas e de evitação em situações que suscitam ansiedade, comportamento ansioso e baixa produtividade. Nas histórias de vida dessas mães, verificam-se alcoolismo por parte do parceiro, violência doméstica, dificuldade de relacionamento familiar e vida social restrita decorrente de questões afetivas. Também há histórico de alcoolismo, violência doméstica e dificuldade de relacionamento na família de origem. Em relação à criança, houve cuidados e preocupação com a sua educação e desenvolvimento, porém faltaram planejamento e desejo da gravidez, além de dificuldades em educá-la pelos problemas vivenciados com o parceiro e com os próprios problemas assimilados no ambiente de origem.

 

Considerações finais

O funcionamento psíquico dessas mães não favorece o crescimento daqueles que dela dependem, pois isso demanda um papel adulto para uma mãe que, no âmbito psicoafetivo, funciona de forma imatura, não conseguindo auxiliar os próprios filhos a superar suas dificuldades, além de repetir e perpetuar uma dinâmica já vivenciada anteriormente em sua família de origem. Tal resultado favorece a importância do trabalho em relação às mães dessas crianças, corroborando pesquisas anteriores que sugerem o atendimento parental como importante auxílio nas intervenções relacionadas à agressividade infantil, nesse caso a mãe ou um adulto que exerça essa função. Como benefício, o acompanhamento psicológico poderia funcionar como propulsor do manejo de suas próprias angústias, fazendo com que haja maior conhecimento e controle de suas dificuldades, favorecendo o crescimento pessoal e a capacidade de estabelecer relacionamentos mais saudáveis. A intervenção psicossocial se configuraria como apoio e assistência nas resoluções de conflito, em que ocorrem violência doméstica e abuso nas relações com o parceiro, estimulando a mudança da condição de ausência desse pai em figura positiva nesse ambiente familiar. Dessa forma, a assistência às mães poderia proporcionar melhor suporte psicológico às crianças, no sentido da retomada de um desenvolvimento emocional saudável.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Aline Esteves Basaglia
Rua Joaquim Ferreira, 147, ap. 32, torre a2, Água Branca
São Paulo – SP – Brasil. CEP: 05033-080
E-mail: basaglia@usp.br

Submissão: 31.1.2014
Aceitação: 21.11.2014

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