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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.17 no.1 São Paulo abr. 2015

 

PSICOLOGIA CLÍNICA

Conjugalidade e expectativas em relação à parentalidade em casais homossexuais

 

Marital relationship and expectations about parenthood in gay couples

 

Relaciones conyugales y expectativas acerca de la parentalidad en parejas homosexuales

 

 

Alexandre Trevisani MelettiI; Fabio Scorsolini-CominI
I Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba – MG – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O objetivo deste estudo foi compreender os processos de construção da conjugalidade e as expectativas em relação à parentalidade em casais homossexuais. Foram entrevistados quatro casais (quatro homens e quatro mulheres) que coabitavam havia quatro anos, em média. Utilizaram-se entrevistas semiestruturadas e a técnica da história de vida, audiogravadas e transcritas. A análise de conteúdo revelou três categorias: relação conjugal, constituição da família e expectativas quanto à adoção ho­moparental. Os casais entrevistados fundamentam e qualificam seus relacionamentos baseados nos sentimentos de amor, companheirismo, parceria, lealdade e fidelidade. Apresentam o desejo de ter filhos, reconhecendo a responsabilidade de tal escolha. Observa-se que atribuem à família a responsabilidade de uma instituição que deve cuidar de seus participantes, protegê-los e incentivá-los, sendo o arranjo homoafetivo comparado ao modelo tradicional e heteronormativo. Apesar do preconceito existente em relação às homossexualidades, mostram-se interessados no debate atual acerca dos direitos da população LGBT.

Palavras-chave: conjugalidade; homossexualidade; parentalidade; relações familiares; adoção.


Abstract

The aim of this study was to understand the processes of construction of the marital relationship and expectations about parenthood in same-sex couples. It has been interviewed four gay couples (four men and four women) who have been living together for four years, on average. Semi-structured interviews have been used and the technique of the life history has been also performed in an individual appliance. They have also been audio taped, fully and literally transcribed. The content analysis revealed three categories: marital relationship, family formation and expectations regarding the adoption by homosexual couples. The couples who have been interviewed founded and qualified their relationships based on feelings of: love, companionship, partnership, loyalty and fidelity. The couples have also claimed the desire to have children, recognizing the responsibility of such a choice. It is observed that these couples have given responsibility to the family as an institution that must take care, protect and encourage their participants, resulting the homosexual engage very much alike to the kind of arrangement of the traditional and heterosexual model. Despite the feature prejudice regarding homosexualities, they have shown interest in the current discussion on the rights of LGBT people.

Keywords: marital relationship; homosexuality; parenthood; family relationships; adoption.


Resumen

El objetivo de este estudio fue comprender los procesos de construcción de las relaciones conyugales y expectativas acerca de la parentalidad en parejas del mismo sexo. Fueron entrevistados cuatro parejas homosexuales (cuatro hombres y cuatro mujeres) que vivían juntos durante cuatro años, en promedio. Fueron utilizadas entrevistas semiestructuradas y la técnica de la historia de la vida, todas aplicadas individualmente, grabadas en audio, transcritas textualmente. El análisis de contenido reveló tres categorías: la relación marital, formación de la familia y las expectativas a respecto de la adopción homoparental. Las parejas entrevistadas fundamentan y califican las relaciones por medio de los sentimientos de amor, compañerismo, colaboración, lealtad y fidelidad. Presentan el deseo de tener hijos, reconociendo la responsabilidad de esta elección. Se observa que es atribuida a la familia la responsabilidad de una institución que deba cuidar, proteger y incentivar sus participantes, siendo homoafectivo según la comparación con el modelo tradicional heteronormativo. Pese los prejuicios existentes en contra a las homosexualidades, se muestran interesados acerca de los debates por los derechos de la población LGBT.

Palabras clave: relación conyugal; homosexualidad; parentalidad; relaciones familiares; adopción.


 

 

As pesquisas no campo da Psicologia da família têm emergido como possibilidade de repensar a instituição familiar a partir de suas transformações, dando visibilidade, entre outras, às famílias compostas por casais do mesmo sexo (Campos, 2012; Lomando, Wagner, & Gonçalves, 2011). O surgimento dos movimentos sociais na defesa dos homossexuais e as mudanças recentes no que tange aos relacionamentos amorosos têm colaborado para a flexibilização do modelo patriarcal e, assim, gerado novos arranjos familiares, dando ênfase à parceria homoafetiva estável (Féres-Carneiro, 1997; Johnson & O'Connor, 2002; Moscheta & Santos, 2006; Prado & Machado, 2008; Reczek & Umberson, 2012).

A maior visibilidade dos arranjos homossexuais vem se dando não apenas nos meios científicos, com a ampliação dos estudos sobre essas famílias em termos da interação do casal, das concepções de saúde e das práticas parentais, por exemplo, mas também social e juridicamente (Kertzner, 2012; Markey, Markey, Nave, & August, 2014; Mitchell, 2014; Santos, Scorsolini-Comin, & Santos, 2013), reconhecendo o acesso a direitos e mecanismos de proteção do Estado. De acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2011), há cerca de 60 mil casais homossexuais no Brasil, embora haja a expectativa de um número ainda maior desses arranjos.

Nesse cenário, o projeto da existência de filhos é cada vez mais discutido, o que foi impulsionado pela aprovação da união civil entre pessoas do mesmo sexo, no ano de 2011, considerado um importante marco legal no reconhecimento dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT). Antes mesmo desse reconhecimento, discutia-se a possibilidade de casais homossexuais vivenciarem a parentalidade, seja por meios biológicos ou adotivos. Embora a adoção por duas pessoas do mesmo sexo ainda não tenha sido aprovada no Brasil, mesmo com a nova lei da adoção, datada de 2009, encontramos exemplos de aberturas em diversas partes do país, em que casais de homens e de mulheres puderam exercer a parentalidade a partir do reconhecimento de suas uniões, sendo a adoção, de fato, considerada um direito de todos e de todas (Cecílio, Scorsolini-Comin, & Santos, 2013; Tomazela, 2011; Uziel, Mello, & Grossi, 2006). No entanto, a adoção pelo casal é apenas uma das modalidades de experiência da parentalidade, evocando diversas possibilidades de ocorrência desse exercício. A partir desse panorama que coloca o casal homossexual em meio a diversas transformações na ordem dos afetos, das leis e do ser família, este estudo teve por objetivo compreender os processos de construção da conjugalidade em casais homossexuais e suas expectativas em relação à parentalidade.

 

Método

Participantes

Foram convidados a participar do estudo quatro casais, dois de homens e dois de mulheres, todos homossexuais, maiores de idade e engajados em relacionamentos estáveis há, no mínimo, dois anos, de modo contínuo, em coabitação.

Instrumentos

Utilizaram-se os seguintes instrumentos para a coleta dos dados:

Roteiro de entrevista semiestruturada com o(a) participante: consistiu em um roteiro de entrevista semiestruturada elaborado pelos pesquisadores acerca das experiências amorosas, dos processos de desenvolvimento ligados à homossexualidade, das expectativas de exercício da parentalidade, da experiência da união estável e das perspectivas futuras em termos da união.

Técnica da história de vida: consiste em solicitar ao respondente que descreva, com as próprias palavras e do modo como julgar conveniente, como foi sua história de vida até o momento.

Procedimento

Coleta de dados: o recrutamento dos participantes ocorreu a partir da rede de contatos dos pesquisadores na região do Triângulo Mineiro (MG). Os participantes foram informados acerca do objetivo do estudo e das condições para a participação a partir da leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Após a anuência dos participantes, foram agendadas as entrevistas, que ocorreram em salas reservadas do serviço-escola da instituição de origem dos autores. Os participantes receberam nomes fictícios. Os instrumentos foram aplicados individualmente e face a face. Primeiramente, aplicou-se a técnica de história de vida do participante. Em um segundo momento, realizou-se a entrevista semiestruturada. A aplicação de ambos os instrumentos ocorreu em apenas um encontro, com duração aproximada de uma hora e trinta minutos e foi audiogravada. As entrevistas foram transcritas na íntegra e literalmente para posterior análise.

Análise dos dados: as entrevistas foram analisadas verticalmente (uma a uma), a fim de conhecer a perspectiva de cada participante sobre a conjugalidade. Em um segundo momento, após a compreensão minuciosa de cada caso, fez-se uma análise horizontal com todas as entrevistas analisadas, a fim de identificar semelhanças e diferenças nos relatos. Após leitura minuciosa de todo o corpus, definiram-se as seguintes categorias temáticas: 1. o casal e a relação conjugal; 2. expectativas com relação à adoção homoparental; 3. constituição de uma família. Os dados foram analisados de acordo com os estudos disponíveis sobre conjugalidade no contexto brasileiro (Cecílio et al., 2013; Féres-Carneiro, 1997; Lomando et al., 2011; Santos et al., 2013; Zambrano, 2006).

Considerações éticas: o projeto que deu origem a este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de origem dos autores (Protocolo n. 2.404/2012).

 

Resultados e discussão

O Quadro 1 apresenta os nomes fictícios, idades, profissões/ocupações, tempo de relacionamento e resumo das histórias de vida. Como podemos observar, a média de idade dos participantes foi de 27,12 anos, e eles estavam unidos e coabitando havia quatro anos, em média. Em termos das famílias de origem, pode-se observar que apenas dois entrevistados são provenientes de famílias com arranjos considerados tradicionais, com pai e mãe casados. Há dois casos de participantes que foram criados pelos avós, e os demais relatam histórias de separação conjugal, morte de um dos genitores e/ou recasamento dos pais.

 

 

O casal e a relação conjugal

Essa categoria trata da constituição do casal e de como eles veem o seu relacionamento conjugal. Percebemos que, de forma homogênea, os casais trouxeram à tona temas que envolviam os sentidos de companheirismo, lealdade, parceria, fidelidade e respeito, como pode ser observado nos seguintes trechos:

É ser muito companheiro um do outro, é ser namorado, sabe, poder estar curtindo momento juntos e que isso seja assim fácil ou simples, sabe, que seja natural, que é natural quando as coisas estão dando certo, quando as coisas estão indo bem. E também ser um casal é saber que as coisas não estão indo muito bem e que a gente quer voltar pra aquilo e saber o que é aquilo [...] (Ana).

Eu acho que é ter parceria, ser leal, um casal precisa ser leal um com o outro, acho que isso é o mais importante (Roberta).

Traição não é simplesmente a traição física, se ele está puxando assunto com outra pessoa e tá dando bola e tal ou com um menino pela internet ou vendo foto dele, ele já tá tendo uma traição psicológica e eu não aceito isso quanto tem um relacionamento com sentimento [...] (Daniel).

Foi possível reconhecer, em algumas falas, a temática da traição em relacionamentos estáveis quando os participantes tentavam definir o que caracterizaria um relacionamento conjugal. Notadamente na fala dos homens entrevistados, o relacionamento de casal pareceu ser sustentado, entre outros, na interdição da traição e na necessidade de que os companheiros estejam juntos e "fechados" às demais pessoas. A traição é separada em física e emocional, e as duas modalidades seriam igualmente nocivas ao relacionamento. Segundo Féres-Carneiro (1997), homens e mulheres homossexuais valorizam igualmente o companheirismo, a integridade e o carinho, mas as diferenças localizam-se no respeito à privacidade e na capacidade erótica dos parceiros, considerada mais presente nos homens. Os relatos sobre traição, desse modo, parecem mais relacionados aos homens homossexuais. Há que se recuperar que, entre os estereótipos construídos histórica e socialmente acerca dos homens homossexuais, está a ideia de promiscuidade associada ao masculino (Prado & Machado, 2008), o que não seria observado em relação às mulheres homossexuais. A epidemia de Aids nas décadas de 1980 e 1990 também esteve associada aos homens homossexuais devido ao seu comportamento considerado de risco (Uziel, 2012).

As questões como lealdade e traição apresentaram-se como conceitos bem distintos para os entrevistados, sendo o primeiro como o de maior importância para o sucesso do relacionamento, como corroborado por Féres-Carneiro (1997). A questão do respeito apareceu como outro fator relevante para que o casal mantenha suas relações saudáveis e foi possível observar que ele não é considerado um sentimento que necessita estar explícito, mas vivenciado de maneira natural e acompanhando outros sentimentos como o carinho e a dedicação. Embora os entrevistados não tenham destacado especificamente as dificuldades encontradas na relação, aparecem menções sobre os momentos que não são positivos e que exigem que eles resgatem o sentido de estar juntos, em uma relação estável. Permanece, portanto, a noção de que o modo como manejam as possíveis crises também constitui o "ser casal", o que não parece se diferenciar do que ocorre com os casais heterossexuais (Markey et al., 2014).

Em termos da divisão de tarefas no cotidiano conjugal, os casais entrevistados não executam papéis conjugais considerados estereotipados, segundo uma orientação de gênero, presente na definição tradicional de conjugalidade. Há, antes, uma divisão igualitária das tarefas, respeitando fatores como tempo utilizado na realização de determinada tarefa e aptidão e gosto do cônjuge para realizá-la:

Então, geralmente eu estou fora o dia todo, eu não sei cozinhar, eu odeio cozinhar, aí, como ele sabe e gosta de cozinhar, ele cozinha, e eu fico mais com a parte da arrumação. Aluguel e contas é tudo dividido, nosso dinheiro é junto, é tudo pago com tudo junto mesmo. E arrumar pra mim realmente é uma terapia, eu pego e organizo tudo, eu odeio bagunça (Alex).

A divisão da tarefa é simples, eu gosto de arrumar a casa e detesto cozinhar, já ela adora cozinhar e detesta arrumar a casa, assim fica fácil (Lúcia).

Com base nessas falas, pode-se compreender que a divisão de papéis e responsabilidades ocorre pautada não em posicionamentos historicamente associados ao binarismo de gênero (masculino ou feminino), mas a partir dos interesses e das habilidades de cada parceiro. Não existem, desse modo, tarefas fixas ou papéis já assumidos de maneira cristalizada, mas exercícios que se apresentam no cotidiano conjugal como forma de dividir tarefas e respeitar a individualidade de cada parceiro. Nos casais em que ambos os cônjuges possuem empregos, a responsabilidade financeira é dividida. Isso só não foi observado nos casais em que um dos membros era estudante e ainda não possuía uma fonte de renda. Mesmo nesses casos, os cuidados domésticos eram divididos, independentemente de quem mais contribuía financeiramente para o sustento do lar, o que não mostra uma relação de separação entre as dimensões financeira e de cuidado doméstico, mas de partilha do cotidiano conjugal, o que cada vez mais vem sendo observado também em casais heterossexuais considerados tradicionais, em que outrora havia forte rigidez entre papéis tipicamente masculinos e femininos (Campos, 2012; Santos et al., 2013).

Expectativas com relação à adoção homoparental

Os casais mencionaram a preocupação da sociedade quanto ao desenvolvimento de crianças criadas por casais homossexuais, a qual traz enraizado o conceito de família tradicional composta por pai, mãe e filhos. Percebemos que a maioria traz o desejo de ter filhos, por meio de adoção, inseminação artificial ou barriga de aluguel. Dado semelhante foi encontrado em pesquisa com 111 homossexuais engajados em relacionamentos afetivos na região de Porto Alegre (Lomando et al., 2011). Foi homogêneo o sentimento de responsabilidade que um filho traz ao relacionamento, e os casais revelaram grande maturidade quando enfatizaram a necessidade de preparo tanto psicológico quanto financeiro, como podemos ver em suas falas:

Eu acho que as pessoas estão muito preocupadas com casais gays querendo adotar, querendo ter filhos porque não tem que ficar pensando sobre isso, vamos falar de adoção, temos várias crianças pra serem adotadas, por que não dois pais? (Ana).

É uma responsabilidade muito grande, não é uma brincadeira que você coloca na sua vida. Se o casal estiver preparado, eu acho que tudo bem, mas acho que pelo menos no começo a criança tem que ter um acompanhamento com um psicólogo, pra criança crescer e estar preparada [...]. Eu não vejo problema nenhum, mas o casal tem que estar muito bem preparado tanto psicologicamente quanto financeiramente (Alex).

Considero delicado. Não pela situação homoafetiva, pois este bebê viria respaldado com muito amor. Mas criar um filho é muito complicado. Confesso que eu sou mais resistente neste ponto. Não quero pôr um filho no mundo pra não ter boa educação, boas perspectivas de vida. Pra isto, gostaria de ter mais dinheiro que tenho (Mariana).

Percebemos, na fala dos entrevistados, o receio não somente com questões a respeito da possibilidade ou não de terem um filho, mas evidenciou-se a preocupação que eles têm em relação ao que a sociedade pensa sobre o presente tema e a que tipo de sofrimentos a criança estaria exposta sendo filho de um casal homossexual, o que também foi relatado em estudos anteriores (Johnson & O'Connor, 2002; Lomando et al., 2011). Assim, embora exista o desejo de ser pai ou mãe, as dificuldades vislumbradas parecem adiar essa decisão ou mesmo a concretização da parentalidade. De acordo com Uziel (2012), pais gays e mães lésbicas não são novidade, entretanto a visibilidade sobre essa discussão parece um fenômeno recente. Inclusive, despertam no Brasil temores de grupos religiosos que entendem o crescimento da população LGBT como ameaça ao futuro da humanidade.

O receio desses pais em criar um filho passa pelas representações dos pais homossexuais como pessoas que poderiam influenciar na orientação sexual futura dos filhos. Embora a maior parte dos estudos concorde que não há especificidades ou comprometimentos psicológicos para filhos criados em famílias homoafetivas (Santos et al., 2013; Vecho & Schneider, 2005), há que se considerar que os próprios pais têm dificuldade em lidar com esse aspecto. Como isso será comunicado ou explicado à criança? De que modo ela compreenderá que possui dois pais ou duas mães? Essa preocupação está presente na fala de Alex, que destaca a necessidade de apoio psicológico, a fim de que a criança compreenda o arranjo familiar no qual ela está se desenvolvendo. Assim, o preconceito enfrentado pelos casais emerge como uma dificuldade de inserir uma criança nesse arranjo familiar, de modo que ela poderia ser depositária desse preconceito voltado ao casal e à sua orientação homoafetiva.

A preocupação com a questão financeira aparece em todos os entrevistados, o que pode indicar maturidade e responsabilidade no que se refere à decisão de ter filhos, mas, ao mesmo tempo, indicar uma tentativa de racionalização da questão, relegando o desejo para um segundo plano, submetido aos aspectos materiais. Desse modo, aventa-se a possibilidade de que esses casais, na verdade, estejam distanciados do ideal de serem pais e mães, apresentando muitos questionamentos que afastam os cônjuges de uma reflexão mais objetiva de experiência de parentalidade. O preconceito experienciado pelos casais pode oferecer suporte para essa consideração. No entanto, há que se considerar que a experiência da parentalidade pode ser importante para remalhar esses vínculos considerados negativos, inclusive na família de origem, gerando modos mais positivos de compreender o arranjo familiar e as próprias experiências afetivas (Benghozi, 2010), o que nos remete à próxima categoria de análise.

Constituição de uma família

As definições mais tradicionais de família são insuficientes para abarcar arranjos como os priorizados neste estudo. O conceito de família, construído social e historicamente, é assim narrado pelos participantes:

Olha, família é uma coisa que eu nunca tive, mas eu posso dizer assim que é uma mãe e um pai, mas pode ser também dois pais. Igual a gente pensa em ter um filho, igual assim pra conversar, ter liberdade, né? Porque, se eu tiver um filho, eu quero que ele tenha liberdade de chegar, conversar [...] como eu nunca tive com o meu pai e com a minha mãe (Carlos).

Família pra mim é cumplicidade, amor, carinho, brigas, afetividade, enfim, tudo ao mesmo tempo agora. Mas tudo com muito respeito. Ah... E detalhe: família é pai, mãe e crianças; pai, pai e crianças; e mãe, mãe e crianças. Tem que ter amor... (Mariana).

Por meio das falas dos participantes, podemos perceber que, de forma geral, quando tentam definir o conceito de família, muitos trazem as noções de que ela é uma instituição que deve prover cuidado, amor, carinho, companheirismo e proteção, o que atravessa o imaginário social e histórico acerca da família (Zambrano, 2006). Observa-se a diversidade de arranjos quando os entrevistados definem o que é família. Assim, há tanto a menção aos arranjos mais tradicionais centralizados na heterossexualidade dos pais e na existência de filhos (a exemplo do que vivenciaram em suas famílias de origem) como aberturas para pensar nos diferentes modos de compor uma família, como no caso desses casais. Assim, abre-se a possibilidade de revisão acerca dos conceitos transmitidos até então de modo majoritário (Campos, 2012; Santos et al., 2013).

Outro aspecto que pode ser depreendido é a comparação com a família de origem, de modo a romper com os modelos que não tenham sido experienciados de modo positivo. As experiências das famílias de origem balizariam, desse modo, a construção da parentalidade na vida adulta. Os modelos considerados positivos formam a base para que os relacionamentos na vida adulta possam ser desenvolvidos de maneira similar ou buscando o mesmo objetivo. De modo oposto, as experiências consideradas negativas na família de origem passam a ser o ponto de partida para a adoção de posturas distintas por parte dos participantes no sentido de agir diferente e de maneira mais positiva, cuidando dos filhos de modo mais saudável e com maior envolvimento afetivo. Essa seria a base da transmissão geracional em que os elementos considerados negativos, os não ditos e os fantasmas seriam transmitidos de uma geração a outra para que pudessem ser elaborados (transmissão pelo viés da negatividade), do mesmo modo como poderia ocorrer a remalhagem desses elementos, possibilitando experiências mais saudáveis e menos traumáticas (Benghozi, 2010). É a possibilidade de fazer diferente dos pais que é expressa na fala de Carlos. Tal desejo ancora-se não apenas na remalhagem dos vínculos, mas também na conjugalidade e na parentalidade como veículos de expressão dessa nova cadeia de vínculos. Os possíveis receios existentes em relação à constituição de uma família centrada no casal homoafetivo e com filhos pode estar relacionada às próprias dificuldades experienciadas na família de origem. Apesar disso, a conjugalidade dos participantes, se bem manejada, pode conduzir à resiliência familiar, proporcionando vinculações mais seguras e satisfatórias. Sobre as mudanças sócio-históricas, podemos salientar a percepção que os participantes têm a respeito de como a sociedade os vê:

Eu acho que no começo, quando o casal se mostra, causa um estranhamento aquela coisa assim... [...] E eu acho que hoje o preconceito está tão gratuito e tão incentivado por pessoas de influência que as pessoas não estão parando pra pensar no que é um relacionamento homossexual, um relacionamento de carinho, amor, afeto [...] (Ana).

Ah, a sociedade com certeza já pensa em perversão, a sociedade que a gente não conhece, porque as pessoas que a gente conhece apoia, não discrimina e tal... (Daniel).

Olha, sinceramente, com preconceito. Mas o pior é quando ele é velado. Tenho boas relações e sou respeitada da maneira que sou. Inclusive no meu serviço pela maioria. Mas sempre tem um ou outro que acaba tendo uma pitadinha homofóbica, como já teve no meu atual trabalho (Mariana).

Observou-se que é unânime a percepção de que a sociedade se refere de maneira preconceituosa à homossexualidade e aos casais compostos por pessoas do mesmo sexo. A menção à perversão é pautada na consideração de que a homossexualidade seria uma doença e que, portanto, deveria ser curada ou ser passível de tratamento. Além de a homossexualidade não ser mais considerada uma doença (Dunker & Kyrillos, 2010), segundo a Resolução n. 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia, o profissional de Psicologia não pode, entre outros, propor o tratamento da homossexualidade. Recentemente tal resolução foi questionada por políticos relacionados a religiões evangélicas, o que promoveu um importante embate entre os saberes psicológicos, a atuação dos profissionais da Psicologia e o modo como determinadas religiões se posicionam diante da questão no cenário brasileiro. A influência da religião na formação de um posicionamento acerca das homossexualidades e dos relacionamentos amorosos entre pessoas do mesmo sexo é mencionada pelos participantes como algo que dificulta a luta por mais direitos para a população LGBT.

O que se discute é que, se anteriormente os relacionamentos amorosos entre pessoas do mesmo sexo ficavam restritos ao universo particular dos casais e de sua rede de apoio mais próxima, na atualidade esses casais têm lutado de modo mais direto por seus direitos, conferindo não apenas visibilidade para as questões levantadas pelo movimento homossexual, como também maior respeito da sociedade (Cecílio et al., 2013). A busca narrada por esses casais é de que sejam, de fato, respeitados em suas escolhas, ainda que sejam alvo de preconceitos e discriminações (Prado & Machado, 2008).

 

Considerações finais

Como principais conclusões do estudo, podemos elencar: 1. os casais entrevistados buscam divisões igualitárias em relação aos afazeres domésticos e às finanças a partir de suas habilidades e interesses; 2. o desejo de se tornar pais e mães está presente em todos os casais, embora sejam destacadas a necessidade de planejamento financeiro e a preocupação com a educação dos filhos em relação à homossexualidade dos genitores, tendo em vista a inserção dos filhos na sociedade e em ambientes como a escola; 3. a constituição da família se dá baseada no respeito, companheirismo, amor e lealdade, e a conjugalidade e a parentalidade podem produzir vinculações mais seguras, caso as experiências na família de origem não tenham sido positivas ou satisfatórias; 4. apesar da maior visibilidade, os casais homossexuais ainda são alvo de preconceito, o que revela a transição pela qual passa a sociedade brasileira em termos das discussões sobre gênero, intimidade, religião e movimentos sociais.

Entre as limitações do estudo, pode-se destacar que se trata, em sua maioria, de casais na fase inicial da construção da conjugalidade, de modo que muitos dos seus desafios referem-se a adaptações no cotidiano e centralizados em aspectos materiais (organização doméstica e financeira), com menções ainda pouco claras à parentalidade ou à oficialização do relacionamento. Ainda, são casais considerados jovens, com experiências conjugais ainda limitadas, com exceção de um casal de mulheres mais velhas que se relacionam há mais de sete anos. Trazer à baila experiências de casais unidos há mais tempo e com mais idade pode nos oferecer outras considerações importantes no estudo da conjugalidade (Reczek & Umberson, 2012). Por se tratar de um estudo qualitativo, os achados aqui discutidos devem ser considerados com parcimônia, a fim de que possam ser disparadores de reflexões por parte de pesquisadores e profissionais da Psicologia.

Mesmo com essas limitações, as experiências narradas pelos entrevistados são relevantes por apontarem para aspectos relacionados à construção da conjugalidade. Conhecer as nuanças desses relacionamentos, seus anseios e suas demandas pode contribuir para o delineamento de intervenções que, de fato, atendam essas pessoas sem, no entanto, construir categorias estanques, haja vista que a literatura recente tem afirmado cada vez mais similaridades entre arranjos homo e heterossexuais, por exemplo (Markey et al., 2014). Ao tentarmos compreender as facetas do relacionamento conjugal em pessoas do mesmo sexo, buscamos auxiliar os profissionais de saúde e da área de ciências humanas a rever posicionamentos e elaborar discursos menos estereotipados, compreendendo que as vinculações estabelecidas referem-se à ordem dos afetos e não necessariamente à orientação sexual. Ao trazermos os achados deste estudo para o campo das psicoterapias de família e de casal, por exemplo, podemos ampliar o repertório de conhecimentos acerca da temática, fomentando práticas mais condizentes com as atuais abordagens de gênero e de cuidados à população LGBT. No campo social, contribui-se inequivocamente para a revisão de conceitos que orientam as políticas públicas e as decisões jurídicas no sentido de garantir direitos a essa população.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Fabio Scorsolini-Comin
Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Triângulo Mineiro
Avenida Getúlio Guaritá, 159, Abadia
Uberaba – MG – Brasil. CEP: 38025-440
E-mail: fabioscorsolini@gmail.com

Submissão: 16.12.2013
Aceitação: 7.12.2014

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