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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.17 no.1 São Paulo abr. 2015

 

PSICOLOGIA SOCIAL

Sentidos e arte: pesquisa-facilitação com um grupo de arte-identidade

 

Meanings and art: facilitation-search with a group of art-identity

 

Sentido y arte: investigación-facilitación con un grupo de arte-identidad

 

 

Cândida Maria Farias CâmaraI; Cezar Wagner de Lima GóisI
I Universidade Federal do Ceará, Fortaleza – CE – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O engajamento da autora no Movimento de Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim colaborou para estabelecer o objetivo da pesquisa: compreender os sentidos que emergem do processo criativo realizado por participantes de um grupo de arte-identidade e sua implicação na construção da identidade. Para tanto, identificaram-se os sentidos expressos pelos participantes, os aspectos da expressão da identidade presentes nos sentidos e a contribuição da utilização da arte para a construção da identidade. Optou-se pelo método facilitar-pesquisando, de modo a contemplar a inseparabilidade entre facilitação de grupo e pesquisa. Foram gravados os relatos verbais e fotografadas as sessões, ambos submetidos à análise de conteúdo. Emergiram da pesquisa as seguintes unidades de sentido: medo da criação e resistência a ela; processo de criação; natureza; polaridade existencial – libertação/nascimento versus prisão/bloqueios; sentimento de grupo e de gratidão. Os sentidos revelam o processo criativo mediado pela arte como forma de fortalecer a identidade no desenvolvimento da coragem de criar a própria existência.

Palavras-chave: sentido; arte; identidade; pesquisa; facilitação.


Abstract

The authoress's commitment towards research, Movement of Community Mental Health of Bom Jardim, contributed to establish its aim of understanding the meanings that emerged from the creative process of participants, who are from an identity art group, and its implication on building of identity. To this end, expressed meanings were identified from the participants, the aspects of expression of identity exists in those meanings and the contribution of the use of art to build identity. The methodology facilitate it-searching was adopted, contemplating the inseparibility bet­ween the facilitation of group and search. Verbal reports were recorded and the sessions were photographed. Some units of meaning emerged as: fear and resistence to creation; creation processes; nature; existential polarity – release/birth versus prision/locks; feeling of group and grattitude. The meanings reveal the creative process mediated by art as a way to make idendity stronger in the development of creating the own existence.

Keywords: meaning; art; identity; search; facilitation.


Resumen

El compromiso de la autora en el Movimiento de Salud Mental Comunitaria do Bom Jardim colaboró en el logro de los objetivos de la investigación: comprender los sentidos que emergen en el proceso creativo de los participantes de un grupo de arte-identidad y su implicación en la construcción de la identidad. Para ello se identificaron los sentidos manifestados por los participantes, los aspectos de la expresión de la identidad presentes en dichos sentidos y la contribución de la utilización del arte en la construcción de identidad. Se optó por el método facilitar buscando de modo a contemplar algo inseparable entre facilitación de grupo y busqueda. Las sesiones fueron fotografiadas y los relatos verbales registrados. Emergieron categorías de análisis como: miedo y resistencia a la creación; proceso de creación; naturaleza; polaridad existencial – liberación/nascimiento frente a la opresión/bloque; sentimiento de grupo y gratitud. Los sentidos revelan el proceso creativo como una forma de fortalecer la identidad en el desenvolvimiento del coraje de crear la propia existencia.

Palabras clave: sentido; arte; identidad; investigación; facilitación.


 

 

A presente investigação é fruto do engajamento da autora no Movimento de Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim (MSMCBJ), organização não governamental situada na periferia da cidade de Fortaleza, com atuação voltada para a prevenção e promoção da saúde mental. Nesse trabalho como facilitadora de grupos comunitários tanto de jovens como de adultos, constatou-se a necessidade de uma reflexão intrínseca ao ato de intervenção, ou seja, a realização de uma pesquisa concomitante ao ato de facilitar grupos. Dessa forma, aqui se traça um paralelo entre ambos os trajetos.

Para o processo de facilitação, o objetivo é fornecer ao grupo um espaço de confiança e de aceitação que, em contato com a arte, possa deflagrar processos de criação. Para a pesquisa, busca-se compreender os sentidos que emergem desse processo criativo e sua implicação para a construção da identidade. Como objetivos específicos, trata-se de identificar os sentidos expressos pelos participantes e os aspectos da expressão da identidade que estão neles imbricados, traçando, por fim, as contribuições da utilização da arte na construção da identidade.

A identidade, nesta ocasião, é entendida como um processo de metamorfose, porque falar de identidade significa remeter-se ao seu próprio processo de produção, não como produto ou como algo dado, mas "se dando num contínuo processo de identificação" (Ciampa, 2001, p. 66). Ocorre, inicialmente, com a atribuição de papéis sociais atribuídos ao sujeito antes mesmo de nascer, como o nome e as expectativas em relação ao gênero. Ao crescer, o indivíduo modifica o que lhe foi atribuído, passando por uma série de significações e assumindo uma posição própria diante daquilo que lhe foi posto. É um processo em que há a criação e a destruição permanentes de personagens, conforme as vivências de cada sujeito inserido nos grupos sociais e pertencentes à comunidade (Rodrigues, Carvalho, & Ximenes, 2011).

A identidade, portanto, é expressa por meio de personagens associadas aos papéis sociais, como o fato de ser mãe, filha, professora e estudante. É em sua representação que cada personagem carrega um sentido para o indivíduo. Os papéis são construídos de acordo com histórias de vida interligadas a um significado coletivo. Ou seja, o sentido, como campo de particularidade, só se faz compreender dentro de um âmbito socialmente vivido em que todos compartilham significados coletivamente (Barros, Paula, Pascual, Colaço, & Ximenes, 2009).

Além desse aspecto da identidade como noção de si mesma e representação consciente, há também sentimentos e afetos. Todo sentido é carregado não somente de carga cognitiva, mas também afetivo-volitiva, e, por meio deles, tem-se uma brecha para os processos da identidade em sua totalidade. Em outras palavras, a identidade é sentimento de si, sentimento de estar vivo, como presença corporal e visível, totalidade vivida aqui e agora.

Com base nesses pressupostos, compreende-se que o processo criativo mediado pela arte deflagra na identidade o sentimento de si mesmo e repercute na representação de si mesmo. A arte facilita o processo criativo quando possibilita ao indivíduo expressar-se mediando sua relação com o mundo, com os outros e consigo. A arte é uma atividade autopoiética e promotora de saúde (Araújo, Câmara, & Ximenes, 2012). Como atividade humana, a arte possibilitou o desenvolvimento de nossa potencialidade consciente e imaginativa. Como não se separa a arte do fazer humano, ela foi denominada arte-identidade (Góis, 2005).

A arte-identidade pode ser compreendida como uma prática no âmbito da atenção primária como apresentada no livro Saúde comunitária: pensar e fazer, de Cezar Wagner de Lima Góis (2008). Segundo o autor, a arte-identidade é uma

[...] abordagem expressivo-evolutiva (pedagógica e terapêutica), que parte da arte em sua função mediadora da relação indivíduo-mundo, para facilitar a expressão do potencial de vida inerente a todo ser humano, o qual por muitos caminhos anseia expressar-se, fazer-se singularidade com os outros no mundo (Góis, 2008, p. 217).

A arte-identidade é uma abordagem que facilita o desenvolvimento evolutivo da expressão criativa inerente à identidade por meio da arte.

 

Método

Optou-se pelo método pesquisa-facilitação com o propósito de contemplar a inseparabilidade entre facilitação de grupo e pesquisa. Góis (2008) explicita sua origem na contramão da lógica de estabelecer um grupo para pesquisar. Não se forma o grupo para pesquisar, não se utiliza do grupo para satisfazer as necessidades da ciência, mas é preciso fazer do trabalho em realização o seu próprio objeto de estudo, ao mesmo tempo que atua na realidade. É um método que se aproxima da pesquisa-ação e pesquisa-participante, mas que também se diferencia em alguns aspectos:

A pesquisa-facilitação aproxima-se da pesquisa-participante no tocante à busca em aliar a investigação científica com a intervenção pedagógica, no entanto não nasce dos movimentos sociais e, diferentemente da pesquisa-ação, não busca uma solução técnica para um determinado problema (Castro, 2009, p. 88).

Dessa forma, distingue-se por seu objetivo, pois não é traçado coletivamente pelo grupo comunitário, podendo também surgir das inquietações do pesquisador-facilitador em seu compromisso com a produção do conhecimento e da potencialização dos sujeitos comunitários. É uma forma de aliar a investigação científica e a atuação profissional sem, necessariamente, apresentar um resultado determinado para um problema comunitário. A primeira e basilar compreensão desse raciocínio é considerar a realidade local e grupal (profissionais e moradores) como a fonte da pesquisa: "A pesquisa faz parte da facilitação por exigência da própria prática facilitadora, do diálogo-problematizador entre profissional e morador" (Góis, 2008, p. 145).

Participantes

O grupo, formado por adultos de faixa etária entre 21 e 59 anos, foi pensado em função da demanda da comunidade, com a presença de moradores da comunidade, pessoas de outros bairros e alguns encaminhados pelo Centro de Atenção Psicossocial, também trabalhadores do próprio MSMCBJ. Todos os integrantes participaram da pesquisa, totalizando 16 sujeitos participantes e pesquisados. O início do grupo ocorreu em agosto de 2009 e permaneceu funcionando até novembro de 2010, totalizando um período de um ano e três meses de processo grupal paralelo à pesquisa.

Procedimentos

Todos os encontros foram devidamente registrados pela pesquisadora-facilitadora por meio dos registros de facilitação. Desses encontros, dois foram gravados com instrumento de áudio e analisados por meio da análise de conteúdo (Bardin, 1977). O momento escolhido para a coleta dos dados ocorreu de acordo com os seguintes critérios: estar com o corpo teórico-metodológico da pesquisa concluído, o grupo apresentar-se com uma matriz grupal (regularidade dos participantes, abertura para viver o processo grupal e vínculo com facilitador e grupo), a concordância e o compromisso com a realização da pesquisa. Além disso, ocorreu a sistemática de fotografar os encontros.

A arte-identidade pode ser realizada de duas formas: no grupo regular (encontros semanais com média de duas horas de duração) e na forma de maratona (intensivos de final de semana). Ocorreram, ao todo, 58 encontros e uma maratona nos dias 20, 21 e 22 de agosto de 2010.

Importa saber que a arte-identidade utiliza-se do método dialógico-vivencial (Góis, 2008). No direcionamento metodológico, temos uma sessão organizada em dois momentos, respectivamente: fase verbal e fase vivencial.

O primeiro momento é verbal e gira em torno de alguma temática levantada pelos participantes ou facilitadores da arte ou das sessões vividas e contempla o momento registrado por meio da gravação de áudio. A fase vivencial ocorre quando, após o diálogo, os participantes são convidados a participar da criação artística e da expressão de seus potenciais, como dança (Toro, 2005), modelagem com argila (Pain, 1996), pintura (Matos, 1995), colagem, poesia, entre outras atividades, registradas por meio das fotografias.

 

Resultados

No processo de investigação, verificou-se a presença de cinco unidades de sentido. "Medos da criação e resistências a ela" é a unidade de sentido que retrata os medos e as resistências que os participantes enfrentam no processo de criação. Surgiram frases de negação, como "Eu não sei fazer isso", "Eu não consigo", "É difícil", e sentimentos como "Tive medo", "Tive raiva", entre outros. A categoria "processos de criação" refere-se às explicações sobre o próprio processo de criação, ao sentido do ato de criar para cada um ou aos fatos apontados como importantes no momento da criação. A terceira unidade de sentido "Polaridade existencial – libertação/nascimento versus prisão/bloqueios" abrange as sensações e os sentimentos de liberdade, (re)nascimento, voar e soltar-se, ao mesmo tempo que surge, no polo oposto, o aprisionamento existencial, obstáculos que impedem de ser livre. A categoria "natureza" corresponde à unidade de sentido que expõe a presença do vínculo com a natureza. Diversos elementos que a constituem surgem nas obras e falas dos participantes. E por fim, "sentimento de grupo e de gratidão" remete ao sentimento de pertença ao grupo, proteção, vínculo e gratidão ao grupo ou a qualquer participante em especial.

 

Discussão

A primeira unidade "medos da criação e resistências a ela" retrata ansiedade, angústia e negação que surgem com a possibilidade de enfrentar e criar algo novo. Entende-se que o potencial criativo, força propulsora de vida, em contato com o contexto cultural, pode ser favorecido a desenvolver-se ou ser bloqueado.

Para May (1982), a sociedade, de modo geral, é um sistema fechado que não aceita as mudanças e transformações que contrariam suas normas. Com isso, o autor afirma que "o problema é que qualquer tipo de 'sistema fechado e exclusivo' destrói a poesia e a arte" (May, 1982, p. 75). Faltam estímulo para correr riscos, mais ênfase na resposta correta, valorização da lógica e do raciocínio em detrimento do sentimento e da intuição repercutindo no estabelecimento de vergonha, autocensura excessiva, medo do fracasso e do ridículo.

Na pesquisa, foram observadas algumas falas importantes.

[...] aí depois você disse assim: "olhe, não imagine nada, não fique pensando no que você vai fazer não, deixe vir, né?, a criatividade, espontâneo". "Vixe, é agora, eu não sei fazer nada". Eu só sabia fazer as florezinhas, mesmo que era o que tava na minha cabeça (participante 1).

Eu tive um medo tão grande quando vocês falaram de fazer argila, né?, eu também tive a mesma sensação... As mesmas, já veio a imagem das panelinhas, né? Também senti muito pavor quando vocês disseram: "Não pode fazer o que já ta, né?, tem que ir criando". Aí comecei a fazer, amassei, amassei, pensei: "Ai, meu Deus, o que eu vou fazer?" (participante 7).

Nesses trechos, é explícita a dificuldade de expressão criativa diante daquilo que já é previamente estabelecido pelo indivíduo, "florezinhas" ou "panelinhas". A ansiedade, o "pavor" e o "medo" traduzem mecanismos de desvio da função criativa, como afirma Toro (1991, p. 390) no caso da mecanização: "o indivíduo se move a partir de padrões impostos de fora e repete sequências de movimentos sem sentido, alheios a sua vida", como repetir o padrão de sempre construir flores ou panelas. Toro (1991) fala ainda de outro mecanismo, a despersonalização, em que a singularidade, com toda sua carga peculiar, é reduzida e despersonalizada, ou seja, deixa de ser única para tornar-se normatizada e homogênea em criação. O indivíduo acaba por distanciar-se cada vez mais de sua potência criadora, negando sua própria identidade de criador e criatura.

Na segunda unidade de sentido, "processos de criação", nas explicações dadas pelos participantes sobre o próprio processo de criação, verificaram-se o ato de criar para cada um ou fatos que se destacam como importantes no momento da criação.

Os processos de criação se encontram profundamente ligados à intuição de um mundo muitas vezes secreto e íntimo, no qual a identidade se encontra integrada. Implicam um impulso de coragem para criar que nem sempre pode ser racionalizável. A intuição, como base dos processos de criação, deixa a marca da capacidade transcendente do ser humano, de descobrir-se de outro modo, sensível. Alguns sentidos dos participantes apontam para essas e outras observações: "Nós tava falando que se mandar fazer outro desenho como esse aqui, com certeza a gente não faz do mesmo jeito, né? A mente da gente faz uma coisa que... Não foi mandado" (participante 5).

Aqui se apresenta um paradoxo da intuição: ao mesmo tempo que a "mente" guia as mãos, ela faz algo que não é conscientemente "mandado". Nesse âmbito, embora o processo criativo integre a experiência total do indivíduo (racional e sensível), por possuir sua base intuitiva, os sentidos surgem à medida que são expressos, construídos no ato de criar: "Os processos de criação ocorrem no âmbito da intuição. Intuitivos, esses processos se tornam conscientes na medida em que são expressos, isto é, na medida em que lhe damos uma forma" (Ostrower, 2007, p. 10).

Tal processo implica um aspecto receptivo e ativo, a criação atua fortemente a partir do ser, para além dos mecanismos de mecanização ou despersonalização. Como adverte May (1982, p. 82), "a receptividade do artista não deve ser confundida com passividade. Consiste em manter-se alerta e aberto à mensagem do ser. Exige uma agilidade, uma sensibilidade aguçada para permitir que o eu seja o veículo de inspiração".

Da mesma forma, outro participante:

[...] e justamente o que ele tava falando também que a gente é... Desenhou o que a gente tava vivendo naquele momento, né? Como por exemplo, eu tava compartilhando que eu tava fazendo um sol, um sol, um sol... De repente, depois, eu passei pra árvore, aqui na minha árvore eu queria fazer verde, de repente, a árvore ficou seca, e eu me desesperei: "Não"... Que me dominou... (participante 10)

A árvore seca o domina, a obra então ganha vida. Em questão, o sujeito que cria a obra ou a obra que o produz? Nessa citação, seus sentimentos são traduzidos por mais que tente ir contra seu momento de vida e fazer uma árvore verde. Se há inspiração e o engajamento do criador, não há como separá-lo de sua obra. A linguagem da arte que revela a identidade em seus aspectos mais singulares, no contato com a arte, sua existência se refaz e, quando fala do processo de criação, ordena fatos, sentimentos, ações e o comportamento dotando-o de novos sentidos.

Há um aspecto peculiar na unidade "polaridade existencial – libertação/renascimento e prisão/bloqueios", pois os sentidos que emergem envolvem-se numa tensão entre um processo de libertação existencial e aquilo que o impede de desenvolver-se.

Comentei aqui a dificuldade que eu tive pra começar a fazer essas mandalas, né? E essa daqui eu não consegui me soltar, eu sinto que eu fiquei presa aqui, bem aqui no meio. Eu queria vida aqui, até dei um nome pra ela, de vida... Só que eu me senti presa, muito presa. [...] Essa mandala aqui, eu tô totalmente livre, tô livre... Livre mesmo, me emocionei, quase não conseguia falar no inicio, que eu tava emocionada, eu senti vontade de chorar, só que eu fiquei um pouquinho... Aí depois eu consegui falar [...] também comentei pra ela que meu problema não é mais uma coisa que me prende, né?, quando eu começo a pensar nele, que eu sei que ele vai... Como ontem, que ele quis... E eu: "Não, eu não vou, eu não quero, quero ser livre"... Quero me sentir daqui pra frente livre, toda, desprendida desse meio aqui (participante 7).

No relato, as mandalas retratam seu conflito, "me senti muito presa", enquanto a sua sensação na outra mandala é de que "eu quero" estar livre e desprendida. Para May (1982, p. 11), a coragem de criar é o alicerce do ser e está intimamente ligada aos processos afetivos e integrais dele:

A coragem não é uma virtude nem um valor entre os valores do indivíduo, como o amor ou a fidelidade. É o alicerce que suporta e torna reais todas as outras virtudes e valores. Sem ela, o amor empalidece e se transforma em dependência. Sem a coragem, a fidelidade é mero conformismo. A palavra coragem tem a mesma raiz que a palavra francesa coeur, que significa coração.

A participante 7, quando teve abertura para criar as mandalas, abriu-se para criar a si mesma como possibilidade de libertação de algo que a impedia de sentir uma identidade inteira e fortalecida. Para o autor, a coragem criativa é proporcional ao grau de mudanças, ou seja, à medida que a coragem e a identidade se fortalecem, há uma tendência para que ocorram mudanças nos diversos âmbitos da vida do ser. É um processo gradual, que respeita os processos de autorregulação, o tempo de cada indivíduo e que ocorre em cada ato e gesto cotidiano. Quando há arte, surge a necessidade de transformar a própria vida, que vai ganhando mais clareza, consciência e se fortalecendo no momento de expressão do artista a partir de si mesmo.

A principal característica dessa coragem é originar-se no centro, no interior do nosso eu, pois do contrário nos sentiremos vazios. O "vazio" interior corresponde à apatia exterior; com o correr do tempo, a apatia se transforma em covardia. Portanto, o compromisso em que nos engajamos só é autêntico quando originado no centro do nosso ser (May, 1982, p. 10).

Na unidade de sentido "natureza", nota-se a presença do vínculo e da identificação com os diversos elementos que constituem a natureza: animais, rios, montanhas etc.

Como lembra Prigogine (2009, p. 3), "nada impede pensar que a criatividade do homem prolongue a da natureza". Ou seja, o ser humano não pode ser considerado uma entidade externa à natureza e ao universo, pois ambos se movem impulsionados pelas mesmas forças e são regidos pelas mesmas leis.

Nesse sentido, a arte irrompe como gesto de integração, potencialização e sobrevivência. É uma experiência que facilita a expansão do eu até a identificação com a natureza (Capra, 2006).

É... Eu quis simbolizar aqui a natureza... A natureza vista da minha infância, aqui vem toda a minha infância. É... Onde a gente morava, no interior, Pacoti, eu sou natural de Pacoti quando era menino morava lá. [...] Aí quando a gente tava em Pacoti, a gente olha na distância, que tá assim bem longe em cima dum alto daquele ali, você vai vendo na distância os morros de terras, as partes do sertão, o sol... O sol batendo em cima da serra, né? Dá totalmente isso aqui que eu tô vendo aqui, sabe?, eu peguei naquela tinta ali e me veio na mente isso aqui, sabe? O sol baixou, aí... No começo, nas proximidades que a gente tá, as plantas, né? Aí lá na frente as serras, assim, verdes. [...] aí eu tava hoje de manhazinha, eu me levantei, cinco e meia da manhã, fui pra praia. Tava analisando ali, lá na beira da lagoa, os pés dentro d'água, frio, rapaz. O vento a coisa mais gostosa do mundo, a pancada do mar... A pancada do mar. Aquela brisa gostosa... (participante 5)

Em arte-identidade, todos os gestos são formas de expressão da criação, pois o que importa é o encontro criativo, ou seja, "significa que o encontro criativo na arte é 'total' – representa a totalidade da experiência" (May, 1982, p. 88). Totalidade do momento presente, criativo e de integração com a natureza que reforça uma percepção ecológica profunda (Capra, 2006). É o mesmo que o estado de êxtase criativo definido por May (1982, p. 47):

"Ex-stasis" – isto é, literalmente "ficar fora de", libertar-se da dicotomia da maior parte das atividades humanas, a separação entre sujeito e objeto. Êxtase é o termo exato para a intensidade de consciência que ocorre no ato criativo. Mas não pode ser considerado um mero "desligamento" báquico; envolve a totalidade do indivíduo [...] não é, portanto, irracional; é supra-racional. Conjuga o desempenho das funções intelectuais, volitivas e emocionais.

Na última análise da categoria "sentimento de grupo e de gratidão", retrata-se o sentimento de pertencimento, proteção, vínculo e gratidão ao grupo ou a qualquer participante em especial. A noção de identidade existe porque há outra com a qual interage (Castro, 2009). Não há como negar que a identidade é, antes de tudo, relacional: "Uma identidade necessita de outra identidade, da presença de membros da mesma espécie, não só de um, senão de vários, de um grupo ou de uma coletividade" (Góis, 2002, p. 105). Assim, os participantes destacam a importância do acolhimento e cuidado do grupo para seu desenvolvimento: "Como a Viviane diz, é bom aqui, porque a gente conta e sabe que ninguém vai dizer pra ninguém, vai contar pra ninguém. E é tão bom quando a gente pode desabafar... [choro e fala emocionada] eu estou feliz aqui com vocês" (participante 1).

O grupo, em seu processo, estabelece uma relação de confiança e vínculo. A participante sente-se à vontade para falar, desabafar e se confessar diante dos outros. Assim, pode demonstrar sua fragilidade e permitir ser ela mesma, sem risco de ser julgada. Todos procuram escutar sem preconceito e guardar os segredos e as histórias expostos em grupo, facilitando o vínculo de amor, essencial ao desenvolvimento do grupo e de cada um.

Sem o cuidado essencial, o encaixe do amor não ocorre, não se conserva, não se expande nem permite a consorciação entre os seres. Sem o cuidado não há atmosfera que propicie o florescimento daquilo que verdadeiramente humaniza: o sentimento profundo, a vontade de partilha e a busca do amor (Boff, 1999, p. 112).

O processo do grupo vivido com intensidade, que possui na arte um mediador de suas relações e emoções, amplia as transformações em direção ao desenvolvimento da identidade amorosa e com a coragem de criar. É um processo em que eles aumentam seu campo de presença, gerando um profundo vínculo e um forte sentimento de gratidão. Mais uma fala de agradecimento às facilitadoras: "Depois eu quero só agradecer a vocês duas porque assim... Entrar em contato com a arte-identidade e a biodança" (participante 4).

Agradecer retrata que algo foi doado, compartilhado e modificado em favor do nosso desenvolvimento e crescimento.

[...] eu vim assim primeiro com uma coisa: eu queria viver esse momento com esse grupo porque assim, eu acho que cada grupo, eu gosto sempre de estar com muitas pessoas, assim... Esse grupo é significativo pra mim, eu vivi muitos momentos bons, conheci muita gente interessante, que eu admiro, eu fico olhando assim, a grandeza que tem em cada um, assim... (participante 11).

O grupo é significativo pelos bons momentos compartilhados e pela grandeza das pessoas, a qual admira. A arte em grupo abarca os níveis individuas e coletivos, "por isso a proposta da Arte-Identidade, uma proposta ao mesmo tempo pedagógica e terapêutica de expressão, recriação e fortalecimento da identidade pessoal e coletiva" (Góis, 2005, p. 48).

De forma geral, de acordo com as unidades de sentido discutidas, são apontadas questões relevantes, já que os sentidos identificados revelam o processo criativo mediado pela arte como forma de fortalecer a criatividade e coragem de criar dos participantes. Mesmo diante da repressão e do desvio da noção criatividade, os fatores
de vínculo do grupo e contato com a natureza, mediados pela arte, podem colaborar para aceitar tais dificuldades e, principalmente, para superá-las. A arte tem aqui seu papel fundamental.

O principal entrave encontrado pela pesquisadora refere-se ao aspecto da inclusão da facilitadora na análise do processo do grupo. Cabe dizer que, mesmo não sendo o foco do estudo, uma pesquisa que acrescente e ressalte esse aspecto enriqueceria o estudo. Alguns questionamentos que podem servir para outras investigações de aprofundamento da temática são:

• Quais são as questões culturais envolvidas no processo de adormecimento do potencial criativo que geram tanto medo e resistência?

• Quais as principais diferenças e semelhanças no desenvolvimento de participantes de diferentes grupos de arte-identidade, arte-educação e arte-terapia?

Essas são apenas duas entre muitas perguntas que ressoam deste estudo e da experiência vivida.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Cândida Maria Farias Câmara
Rua Juvêncio Alves, 660, Centro
Quixadá – CE – Brasil. CEP: 63900-000
E-mail: candidapsicologia@gmail.com

Submissão: 2.6.2014
Aceitação: 7.12.2014

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