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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.17 no.1 São Paulo Apr. 2015

 

PSICOLOGIA SOCIAL

Adoecimento e sofrimento de professores universitários: dimensões afetivas e ético-políticas

 

Sickness and suffering of university professors: affective and ethical-political dimensions

 

Enfermedad y sufrimiento de profesores universitarios: dimensiones afectivas y ético-políticas

 

 

Eduardo Pinto e SilvaI
I Universidade Federal de São Carlos, São Carlos – SP – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Neste artigo, objetivamos identificar e analisar diagnósticos prevalentes de problemas de saúde de professores, com destaque aos relativos à saúde mental. Os dados são de pesquisa em universidade federal em processo de expansão-interiorização, cujo objetivo foi analisar as repercussões das múltiplas demandas desse processo no trabalho, na saúde e na subjetividade. O instrumental metodológico foi composto por: entrevistas semiestruturadas com professores de áreas, campi e unidades acadêmicas distintos; análise de documentos e dados sobre a expansão; sistematização de dados sobre afastamentos por problemas de saúde coletados em consulta aos livros da junta médica da instituição. Priorizamos a apresentação destes registros. De outra parte, apontamos, nos limites do escopo do artigo, para aspectos qualitativos do adoecimento e/ou sofrimento, com articulações entre diagnósticos identificados e análises das entrevistas. Concluímos que o adoecimento e sofrimento envolvem dimensões afetivas, éticas e políticas.

Palavras-chave: adoecimento; sofrimento; trabalho do professor; saúde mental; expansão universitária.


Abstract

In this paper we aim to identify and analyze prevalent diagnosis of teachers' health problems, especially those concerning the mental health. The data are acquired of federal university research in expansion-internalization process, which analyzed the impact of the multiple demands of this process at work, related to health and subjectivity. The methodological instrument was composed of: semi-structured interviews with teachers of different areas, campuses and academic units; analysis of documents and data on the expansion; systematization of data on nonattendance due to health problems collected in consultation with the books of medical committee of the institution. We place in order the presentation of such records. On the other hand, we pointed out, to develop the scope limit of the article, qualitative aspects of the disease process and/or suffering with intersections between identified diagnoses and analysis of interviews. We conclude that sickness and suffering involve affective, ethical and political dimensions.

Keywords: sickness; suffering; professor work; mental health; university expansion.


Resumen

En este artículo nos proponemos identificar y analizar diagnósticos prevalentes de problemas de salud de profesores, especialmente los relativos a la salud mental. Los datos son resultantes de pesquisa en universidad federal en proceso de expansión-interiorización, cuyo objetivo ha sido analizar el impacto de las múltiples demandas de este proceso en el trabajo, salud y subjetividad. Las herramientas metodológicas han sido compuestas por: entrevistas semi-estructuradas con profesores de diferentes áreas, campus y unidades académicas; análisis de documentos y datos sobre la expansión; sistematización de datos sobre ausentismo por problemas de salud, recogidos en la consulta a los livros de la junta médica de la instituición. Priorizamos la presentación de estos registros. Por otra parte, en los límites del artículo, señalamos algunos aspectos cualitativos de la enfermedad y/o el sufrimiento, con uniones entre diagnósticos identificados y análisis de las entrevistas. Concluímos que enfermedad y sufrimiento implican dimensiones afectivas, éticas y políticas.

Palabras clave: enfermedad; sufrimiento; trabajo del profesor; salud mental; expansión universitaria.


 

 

Apresentamos, neste artigo, considerações sobre os diagnósticos prevalentes no adoecimento de professores de uma universidade pública. Os dados são de pesquisa cujo objetivo foi analisar as repercussões da expansão e interiorização da universidade no trabalho, na saúde e na subjetividade do professor. São destacados dados quantitativos e descritivos de problemas de saúde mental. Não obstante, nos limites do escopo deste artigo, apontamos para alguns aspectos das entrevistas que vão além dos dados quantitativos e que lançam hipóteses explicativas sobre os motivos pelos quais eles possam ser subnotificados. Um dos aspectos evidenciados nas entrevistas foi o de que nem sempre o adoecimento ocorre, ao menos aos moldes de configurar uma situação passível de ser facilmente diagnosticada pela nosografia psiquiátrica. Isso não exclui, porém, a existência de formas de defesa perante fatores patogênicos do trabalho que tendem a configurar sofrimentos e/ou adoecimentos tão surdos quanto insidiosos, passíveis de fazer com que doenças crônicas eclodam de forma tardia e aparentemente inesperada. Apontamos que o sofrimento psíquico no trabalho tende a ser comum numa universidade marcada por relações competitivas e com frágeis possibilidades de laços solidários e/ou de reconhecimento do/no trabalho. E destacamos uma dimensão do sofrimento docente: os impedimentos à concretização de suas expectativas e ideais éticos e políticos. Percebemos que uma parcela de docentes tem como sentido fundamental do trabalho e de seu desejo de ser professor a possiblidade de contribuir para processos de transformação social, aspecto este dificultado na universidade que se expande sob os auspícios da sociabilidade produtiva e da razão instrumental.

É importante salientar o papel da universidade e nossa concepção a respeito do sofrimento docente. A instituição universitária e sua historiografia revelam inúmeras batalhas intelectuais, com destaque às polêmicas quanto à sua função social e às tendências de circunscrição de suas práticas em torno da profissionalização. Se, por um lado, a universidade efetiva práticas voltadas à reprodução do social conforme exigências de uma dada configuração histórica, econômica e política, atualmente um tanto atrelada às tendências de mercantilização da ciência, ela engendra, por outro, críticas ao seu tempo histórico e às suas próprias estruturas (Silva & Silva, 2011). A opção pelo trabalho na universidade por parte de muitos docentes entrevistados em nossa pesquisa se relaciona a um posicionamento político e ao ideal de materialização da universidade como instituição crítica de seu tempo histórico e de si mesma, e, portanto, voltada à radical transformação das desigualdades existentes no campo social. É justamente nos impedimentos a esse posicionamento e ideal que floresce o sofrimento ético e político. As condições de trabalho na universidade se caracterizam pela precarização e intensificação do trabalho e por modelos de gestão gerencialista que induzem busca por metas e resultados que, em grande medida, se desviam da função social transformadora (Sguissardi & Silva, 2009).

Consideramos que o sofrimento é inerente à atividade laboral e que se relaciona dialeticamente ao prazer. O trabalho como mediador entre o desejo e a vida social envolve renúncias e ao mesmo tempo possibilita gratificações (Dejours, 2004b).

Neste artigo, ao tratarmos da questão do sofrimento e adoecimento docentes, remetemo-nos às suas dimensões afetivas, éticas e políticas. Como nos aponta Sawaia (1995, p. 155), "é preciso colocar no centro da reflexão do adoecer" a maneira como cada indivíduo se relaciona consigo e com o mundo social como "ser ético" e "ser afetivo". O "agir infrutífero" no trabalho, no sentido das reduzidas possibilidades do sujeito ético-político de atuar conforme o ideal de transformação social, produz o "sofrimento psicossocial"; o trabalho "deixa um gosto amargo na boca", sobrepõe o "tempo de viver" ao "tempo de morrer", espécie de "adormecimento intelectual" que, no limite, engendra o "sofrimento" como redução do indivíduo ao "zero afetivo" e às vivências depressivas que condensam "sentimentos de indignidade, inutilidade e desqualificação" (Sawaia, 1995, pp. 158-159).

 

Metodologia

Foram consultados, no recorte da referida pesquisa que ora apresentamos, os livros de licença médica e de junta médica dos anos de 2000 e 2012 da unidade administrativa responsável pelo atendimento de professores e funcionários. Nesses livros, são registrados por parte de uma equipe de médicos vários dados relativos a todos servidores da universidade que nela ingressam, se afastam temporariamente ou se desligam. Os dados incluem identificação do servidor, sexo, idade, função, setor de lotação, tempo de serviço, tempo de afastamento ("dias inativos") e diagnósticos com base no Código Internacional de Doenças (CID), no caso de afastamentos por problemas de saúde. Os atendimentos envolvem processos de admissão, aposentadorias, pedidos de isenção de declaração de renda, licenças para o acompanhamento de familiares doentes, licenças-gestante e licenças comuns ou afastamentos para cuidados com a saúde/adoecimento. Os livros nos quais se inserem os registros de atendimentos são relativos a afastamentos mais curtos (livro de licença médica) e afastamentos acima de 120 dias (livro de junta médica). Não há uma análise sistemática desses dados pelo setor responsável, que se caracteriza mais pelo controle e pelas exigências legais envolvidas nos processos de admissão, afastamento e desligamento de servidores do que propriamente por uma política de promoção da saúde e/ou prevenção de doenças.

Nessa unidade, a ontologia da prática inevitavelmente se insere nos campos dos discursos médico-administrativo-institucionais e acadêmico-científicos. Esse entrelaçamento de discursos inclui o concreto, o trabalho e o sujeito público trabalhador, aspectos indissociados do campo político e das posições nele tomadas, relacionadas a significados e distinções entre direita e esquerda (Bobbio, 2011). Significados e distinções políticas que se relacionam à condição ontológica dos professores, às suas distintas visões ético-políticas, aos seus distintos projetos de universidade e sociedade, que, na universidade heterônoma e instrumental, sofrem revés e engendram sofrimento, estresse e adoecimento.

A pesquisa dos dados sobre adoecimento de docentes nesse setor, foco deste artigo, foi parte de um processo de coleta de dados bem mais amplo. Foram realizadas inicialmente seis entrevistas com professores que ocupavam cargos de gestão em unidades administrativas ou acadêmicas e seis com professores que tinham vinculação com reivindicações da categoria profissional. Essas entrevistas tiveram como mote explicitar e identificar as visões sobre a expansão e interiorização da universidade. Na sequência, realizaram-se 16 entrevistas com professores de distintas áreas dos campi da matriz e do interior, dessa feita com o intuito de investigar as trajetórias de vida e acadêmico-científicas e as repercussões das múltiplas demandas da expansão – pós-graduação, Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) e educação a distância (EaD) – e da pressuposta sobreposição e/ou sobrecarga de atividades no trabalho, na subjetividade e na saúde do professor.

Verificaram-se, no primeiro bloco de entrevistas, distintas visões e posições políticas sobre a expansão e interiorização, o que sinalizou para a necessidade de analisarmos o segundo bloco de entrevistas, tendo em conta os ideais ético-políticos dos docentes. Percebemos que o sofrimento psíquico no trabalho (sobreposto e intensificado), numa expansão universitária desordenada e sem infraestrutura e recursos humanos compatíveis ao crescimento de cursos, vagas e matrículas (Sguissardi & Silva, 2009; Gregório, 2011), mostra-se tanto mais intenso quanto mais se fazem presentes os impedimentos para a objetivação, na atividade trabalho, dos ideais ético-políticos do professor.

Esclarecemos que os dados sobre os diagnósticos prevalentes de adoecimento de professores foram coletados e registrados em caderno de campo, conforme preceitos éticos da pesquisa e sob a mediação de autorização do órgão responsável. Já as entrevistas foram realizadas após autorização dos docentes por intermédio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

Resultados I: primeiras sistematizações sobre atendimentos aos docentes

Os dados brutos sobre os diagnósticos prevalentes de adoecimento de professores foram registrados em caderno de campo e posteriormente sistematizados. No livro de licença médica de 2000 ("licença comum", no jargão dos médicos), verificaram-se 26 casos de atendimentos de professores diagnosticados com a letra F da Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde, relativa ao capítulo V, "Transtornos mentais e comportamentais (F00-F99") (Organização Mundial da Saúde [OMS], 2007, pp. 303-379). No livro de licença médica de 2012, constataram-se sete casos a mais, o que resultou em 33 casos com a letra F. Já os livros de junta médica de 2000 e 2012 apresentaram, respectivamente, 48 e 39 casos relativos ao CID letra F, uma diferença de nove casos, dessa vez invertida, com número maior em 2000. Assim, computaram-se 74 e 72 "casos" (registros/atendimentos) indicados com Fs nos anos 2000 e 2012 (total de 146), anos nos quais o total de todos demais CIDs foram de 210 e 136 (total de 346). O número de registros de "Transtornos mentais e comportamentais", quando comparado ao de outros CIDs, é, portanto, historicamente expressivo, tanto no início da década de 2000 quanto 12 anos depois, em 2012. Em seguida, obtiveram-se os registros de CIDs de doenças relativas à letra M, capítulo XIII, "Doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo" (OMS, 2007, pp. 605-652). Verificaram-se 31 registros de CIDs M em 2000 e 13 em 2012 (total de 44). Isso não indica que sejam irrelevantes, tampouco que não tenham relações com aspectos de personalidade e subjetividade, todos relacionados ao trabalho. Verificaram-se ainda 37 fraturas (S), 31 neoplasias-tumores (C) e 31 doenças do aparelho circulatório.

No caso da junta médica de 2000, dos 796 servidores atendidos, 174 eram professores (21,85%), dos quais 159 apresentavam problemas relativos à saúde (91,37% dos atendimentos a professores). No caso da junta médica de 2012, dos 693 servidores atendidos, 96 eram professores (13,85%), dos quais 71 apresentavam problemas de saúde (73,95% dos atendimentos a professores).

No caso da licença médica de 2000, dos 769 servidores atendidos, 275 eram professores (35,76%), sendo 89 com problemas relativos à saúde (35,36% dos atendimentos a professores). No caso da licença médica de 2012, dos 1.195 servidores atendidos, verificou-se um total de 140 professores atendidos (11,71% do total de atendimentos), dos quais 98 apresentavam problemas de saúde (70% do total de registros de atendimentos a professores).

Assim, obtivemos os seguintes indicadores gerais: a porcentagem de professores dentre o total de atendidos variou de 11,7% (licença de 2012) a 35,76% (licença de 2000). Dentre os atendimentos efetivamente relacionados a problemas de saúde, a variação foi de 32,36% (licença de 2000) a 91,37% (junta de 2000), sendo os percentis da licença de 2012 (70%) e da junta de 2012 (73,95%) mais próximos do registro mais elevado da junta de 2000.

 

Resultados II: diagnósticos de problemas depressivo-afetivos e de humor

Outra sistematização que pudemos realizar foi dos CIDs Fs prevalentes, relativos aos "Transtornos mentais e comportamentais, F00-F99" (OMS, 2007, pp. 303-379). Na pesquisa, identificamos um total de 146 registros Fs. Destacamos que o diagnóstico prevalente (quase um terço dos registros) foi o F32 (episódios depressivos). Verificou-se um total de 41 registros (28,08% dos registros). Prevaleceram os casos de episódios depressivos moderados (24 registros de F.32.1), e dez não foram especificados em subcategorias, seguidos por quatro episódios depressivos graves sem sintomas psicóticos (F32.2), dois leves (F32.0) e um grave com sintomas psicóticos (F32.3). Verificaram-se 29 outros registros (28 em 2012) de transtornos afins à depressão: quatro F33.2 (transtorno depressivo recorrente), um F34.0 (ciclotimia) e um F39 (transtorno de humor não especificado); seis F41.2 (transtorno misto ansioso e depressivo); e outros 17 tipicamente afetivos, mais graves, com traços esquizoides e bipolares: dois F25 (transtorno esquizoafetivo), dois F30 (episódio maníaco), sete F31 (transtorno afetivo bipolar), quatro F31.3 (transtorno afetivo bipolar, episódio atual depressivo leve/moderado) e dois F31.6 (transtorno afetivo bipolar). Por fim, tivemos 11 registros (7,53%) de casos de psicose em 2012: esquizofrenia (cinco registros F20) e personalidade esquizoide (seis registros F60.1). Com exceção desses e considerando somente os 41 F32 e os 29 referidos registros, teríamos 70 "problemáticas" de cunho "depressivo-afetivo de humor" (47,94% dos 146 registros da categoria F). No patamar seguinte ao dessas problemáticas, obtivemos 13 registros (8,9%), sendo nove F43 (reações ao estresse grave e transtornos de adaptação), um F43.1 (estado de estresse pós-traumático) e três F43.2 (transtornos de adaptação); 11 registros (7,53%) de F68.1 (produção deliberada de sintomas físicos ou psicológicos); 11 registros (7,53%) de F40 (transtornos fóbico-ansiosos); e mais outros dez registros (6,84%), sendo nove de F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool – síndrome de dependência) e um de F10. Em síntese, verificou-se quase um terço de registros Fs relacionados à depressão, que, se considerados com outros de problemáticas afetivas e de humor, evidenciam um percentil de praticamente metade (47,9%) de "problemáticas" de cunho "depressivo-afetivo de humor" na Categoria F.

 

Discussão dos resultados: para além dos dados quantitativos

Uma vez apresentados os dados quantitativos, cabem alguns esclarecimentos. Muitos dos casos Fs, geralmente os de maior gravidade ou crônicos, como esquizofrenia e alcoolismo, correspondiam, ainda que não em sua totalidade, a atendimentos recorrentes, que tendem a se iniciar na dita "licença comum", adentrar na junta médica e culminar em aposentadoria por invalidez. Outros incluem casos relativamente recorrentes e/ou mais pontuais, de modo que certo número de registros se distribui em um número maior de professores. Nossa hipótese é a de que o professor não entra no sistema de licenças tão facilmente e que, quando entra, é por já estar num estágio avançado de adoecimento, salvo exceções. As entrevistas e suas análises sugerem essa hipótese, e, nos registros de fato, pôde-se notar que cerca da metade dos atendimentos era de casos recorrentes e duradouros, e os demais de atendimentos recorrentes, não duradouros ou ainda isolados/pontuais.

Quando se realizaram os registros dos livros, deu-se atenção aos casos relativos ao polo interiorizado, de modo que o que se evidenciou é ilustrativo do que assinalamos sobre os atendimentos pontuais ou recorrentes. Verificaram-se seis registros nos livros de 2012: quatro de um mesmo professor, outro isolado de CID F32 e outro de licença negada. Salientamos que, neste último caso, o professor não obteve afastamento que do ponto de vista subjetivo achava que fazia jus.

Um aspecto a se salientar é que há diagnósticos de outras categorias que não as da letra F que apenas aparentemente não têm relação com o trabalho, as condições de trabalho ou mesmo com questões psicológicas relacionadas à subjetividade e personalidade do professor. Mas pode-se incorrer em equívocos se não há dados qualitativos, como o das entrevistas. Observamos, por exemplo, um caso diagnóstico M que, conforme pudemos verificar em entrevista, tinha íntima relação com personalidade e trajetória de trabalho e relações de trabalho na universidade. Mas tal não se apreende na mera descrição desse diagnóstico. Há ainda outros exemplos de como os dados e a perspectiva epidemiológica em si são restritos. Um caso E, de hipotireoidismo, se não se evidencia que se trata de CID que se associava a F32.1 (depressão moderada), os nexos entre o somático e o psíquico se perderiam. Outros, como G43.3 (enxaqueca), podem também ter relação com a questão psicológica, assim como "síndrome epilética especial associada ao uso de álcool", H (labirintite), I10 (hipertensão), K70.4 (insuficiência hepática alcoólica), K29.0 (gastrite) e Ms (lombalgia, fibromialgia, tenossinovite), relacionados à postura inadequada e ao sobretrabalho.

 

Dimensões éticas e políticas do sofrimento e adoecimentos tão surdos quanto insidiosos

As entrevistas e suas análises nos permitem melhor evidenciar aspectos ocultos do levantamento de dados de livros como os consultados. Ademais, somente elas revelam aspectos ético-políticos do adoecer do professor. Sonhos e visão política de esquerda, como se assinalou no início deste artigo, não são aspectos sem significado, pois, em face dos obstáculos de uma universidade instrumental, geram sofrimento em professores, estresse e até adoecimento. Isso foi percebido em algumas entrevistas, mormente naquelas feitas com professores da área de humanas, que tinham fortes ideais de transformação radical da realidade social.

A análise das relações entre trabalho, saúde e subjetividade do professor não pode prescindir da consideração de inelimináveis contradições e conflitos entre dois aspectos indissociáveis: subjetividade e sociabilidade. E nem das características da expansão e interiorização na universidade em pauta, de sua racionalidade instrumental, sob os auspícios da ideologia gerencialista (Gaulejac, 2007). Verificou-se, nas entrevistas, que a expansão, desordenada e desigual, não atende às expectativas de professores do interior no tocante à possibilidade de desenvolverem pesquisas e imprimirem sua singularidade e criatividade em produções acadêmicas. E muitas são as dificuldades decorrentes de uma avassaladora presença de atividades de ensino e atividades administrativas impelidas pela frágil e insuficiente constituição do polo interiorizado, quer em termos de infraestrutura, quer em termos de quantitativo de docentes (Gregório, 2011). Assim, configura-se uma condição socioinstitucional criadora, desencadeadora e/ou reativadora de disposições de sofrimento, estresse e/ou adoecimento.

A expansão da universidade se caracteriza por um processo de intensificação do trabalho, mas o que parece gerar maior sofrimento é a perda do sentido do trabalho e a quebra de expectativas vinculadas a ele. Embora obviamente inexista trabalho isento de sofrimento ou ainda uma indissociabilidade entre prazer e sofrimento (Dejours, 2004b), destacamos que o prazer no trabalho tende a ser sobreposto, se não impedido, pelo sofrimento ou, mais precisamente, pelas limitadas possibilidades de objetivação do ideal ético-político do professor. A dimensão afetiva tem uma salvaguarda em relações com alunos e processos de formação política destes que ainda encontram sustentação, segundo alguns relatos de professores. Mas chama a atenção que justamente as doenças depressivas sejam as prevalentes, o que indica que a dimensão que tem função positiva no sentido do não adoecimento, a afetiva, encontra-se vulnerável, se não prejudicada.

As entrevistas sobretudo com professores do polo interiorizado revelaram intensas vivências de sofrimento ante as adversidades da expansão e interiorização, assim como frustração em termos das possibilidades extremante restritas de realização de atividades de pesquisa. As condições para tal foram adjetivadas como "insuficientes", "péssimas" e "inexistentes". No entanto, mesmo diante de contexto adverso, caracterizado por cobranças, metas e trabalho intenso, os professores tendem a apontar a sala de aula como espaço onde subsistem a autonomia e as possibilidades de autorrealização.

Uma das entrevistadas revelou frustração em função das limitadas condições de infraestrutura para realizar pesquisas. Mas tal frustração era de certa forma obscurecida por um relato defensivo, por uma busca de autoconvencimento em torno da impossibilidade de realizar o que denominou ser "pesquisa de ponta". Na entrevista, apresentou autocontrole para não extravasar emoção desestabilizadora, dizendo ser necessário "ter que acreditar" em melhores perspectivas futuras no polo para seus desejos profissionais como pesquisadora.

O que queremos ressaltar é que há uma dimensão ética e política do sofrimento do professor que só pode ser compreendida quando levamos em conta as condições objetivas de trabalho da universidade pesquisada e as características de sua expansão-interiorização. E, se a questão das limitadas condições de se realizar como pesquisador foi reiterada por vários docentes do polo interiorizado, a tônica comum dos discursos dos professores da matriz e do interior, particularmente daqueles que tinham como referencial teórico o materialismo histórico-dialético e o pertencimento a uma área de humanas de notada prática junto a populações desfavorecidas, era a de que a universidade afastava-se de sua "função social" e assumia uma identidade quase mercantil, forjada por avaliações heterônomas e modelo de gestão gerencialista, indutores de sociabilidade produtiva, competitividade e rivalidade.

Assim, embora possa haver situações de trabalho que contrabalançam adversidades e sofrimentos, de forma a atenuar os riscos ou a vulnerabilidade ao adoecimento, uma série de insatisfações e frustrações se coloca de forma sorrateira ou mesmo encoberta. Assim, cooptados, se não capturados, pela lógica da sociabilidade produtiva da universidade que se distancia de sua "função social", muitos docentes se referiram aos impedimentos de materializar, no seu cotidiano laboral, seus desejos ético-políticos de transformação social e/ou de realização da condição de professor-pesquisador. Nesse contexto, conforme explicitou uma servidora que atendia professores afastados, o professor, imerso em competição por titulação e produção, em meio a exigências de metas e trabalho intensificado sem a contrapartida de boas condições para tal, "não explode, mas implode". Sofre, embora nem sempre adoeça. Processos defensivos patogênicos são mobilizados, e a doença, ofuscada, revela-se crônica em determinado momento, sem que sua etiologia inicial chegue a ser expressa e contabilizada nos registros médicos da instituição em etapas anteriores.

Um professor do polo interiorizado revelou-se indignado com as condições objetivas de trabalho, de modo a ilustrar o que poderíamos considerar ser evidência de que existe uma produção socioinstitucional do sofrimento e adoecimento docentes nem sempre passível de ser debelada por práticas nas quais buscava sustentar seus ideais éticos e políticos:

Eu vivo pensando em me transferir ou fazer concurso pra outro lugar, mas fico achando que eu não conseguiria, porque eu publiquei pouco, e publiquei tão pouco porque fiquei sobrecarregado, estressado, doente e depois deprimido. O que fez com que eu "ressuscitasse" um pouco foi que eu comecei a escrever denúncias e textos "militantes", e daí me aproximei muito de outras pessoas que também estavam muito incomodadas com a situação do polo e tentando mudá-la... E agora eu fico com medo de me transferir para um outro lugar, ele ter problemas estruturais parecido com os daqui, e eu ainda por cima não conseguir me entrosar lá. De vez em quando eu penso em abandonar a vida acadêmica e ir pra outro país (professor, campi interiorizado).

Um caso de uma professora com sério problema de doença psicossomática foi exemplar no sentido de retratar o adoecer relacionado ao sofrimento e aos impedimentos ético-políticos no trabalho. Lutadora e de trajetória sui generis no sentido da superação de suas condições sociais e econômicas de origem, caracterizava-se por ser movida por ideais de transformação social. Em sua trajetória profissional, teve distintas oportunidades, mas optou pela que julgou mais condizente com seus ideais, ainda que com menor salário: o trabalho na universidade. Desiludiu-se, porém, ante as relações de trabalho que apontou como tensas e permeadas por incompreensões e preconceitos de colegas. Esses aspectos relacionais ao mesmo tempo engendraram e foram agravados por seus problemas de saúde nitidamente relacionados à sobrecarga de trabalho e à sobrecarga emocional no cotidiano da universidade. Assim, o sofrimento prevalecia sobre o prazer, este tão almejado de ser obtido via trabalho. Um dos focos de sua entrevista foi justamente o de não efetivar atividades práticas transformadoras no trabalho na universidade.

Assim, o professor se vê diante de reduzidas possibilidades de reconhecimento e de ser protagonista de um trabalho sublimatório. Verificou-se ainda predomínio de estratégias defensivas perante as adversidades institucionais que tendem a ser patogênicas. E mesmo que os casos de adoecimento sejam do ponto de vista quantitativo relativamente reduzidos, eles são qualitativamente preocupantes, predominantemente relacionados ao prejuízo da saúde mental e da esfera da afetividade, e, em casos específicos, intimamente relacionados à frustração de sua condição de sujeito político transformador.

A pesquisa e os dados nela coletados corroboram a hipótese de que a expansão da universidade ocorre sob o predomínio da razão instrumental e da sociabilidade produtiva, com repercussões múltiplas e contraditórias sobre o trabalho, a saúde e a subjetividade docente.

Verificou-se que as defesas em face dos fatores patogênicos do trabalho (impedimentos da materialização dos ideais e das expectativas; sobrecarga de atividades, muitas delas destituídas de sentido), ao mesmo tempo que evitam situações claras e inequívocas de adoecimento, tendem a se configurar, elas próprias, como patogênicas (Dejours, 2004a), de forma a propiciar formas de adoecimento tão surdas quanto insidiosas. É possível considerar que, quando o adoecimento se estabelece de forma mais visível e imediata, ele se relaciona ao atual contexto de trabalho, que tanto agudiza como faz eclodir processos etiológicos que, respectivamente, já se faziam presentes ou foram desencadeados na situação vigente da universidade. Nesta se fragilizam os laços de solidariedade e imperam o individualismo e a competitividade. Na visão de professores cujo ideal ético-político é o da transformação e que criticam os processos de expansão, na forma como eles ocorrem, haveria um progressivo afastamento da universidade do que consideram ser sua função social. Não obstante, ainda é possível verificar situações pontuais nas quais as relações afetivas e a criatividade no trabalho ainda subsistem como contrapontos ao estranhamento e à dimensão patogênica do trabalho.

 

Considerações finais

As repercussões das múltiplas demandas da expansão e interiorização são as do sofrimento psíquico e de tendências de um adoecer sorrateiro e insidioso, nem sempre visível ou classificável nos moldes dos diagnósticos médicos. Os dados de afastamentos por motivos de saúde e os diagnósticos de transtornos mentais e comportamentais são indicativos de aspectos patogênicos do trabalho e da construção social e institucional do adoecimento, estresse e/ou sofrimento. Eles são preocupantes mais pelo seu aspecto qualitativo do que propriamente pelos percentis evidenciados. Prevalecem processos de adoecimento de cunho depressivo, afetivo e de humor, elementos fundamentais para as boas relações de trabalho e professor-aluno e desencadeadores de processos crônicos e recorrentes de adoecimento. Transtornos mentais e comportamentais mesclam-se a outros, com destaque para as doenças osteomusculares e somatoformes. A recorrência e prevalência de casos de natureza crônica são um sintoma de que fases anteriores do processo etiológico do adoecimento tendem a ser obscurecidas por processos defensivos nefastos à saúde docente, conquanto somente obscurecem a existência de tendências de formas de adoecimento e/ou sofrimento. Conclui-se que o sofrer e o adoecer da classe trabalhadora professor universitário se caracterizam por um complexo afetivo, ético e político que envolve relações indissociáveis, contraditórias e conflitivas entre a subjetividade e a forma histórica de sociabilidade que parece se afastar, a contragosto de boa parcela dos professores, de sua função social, a reboque de uma racionalidade instrumental e produtiva que gera insignificância, se não falta de sentido (Gaulejac, 2007).

 

Referências

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Dejours, C. (2004a). O trabalho como enigma. In S. Lancman & L. Sznelwar (Eds.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho (pp. 127-140). Rio de Janeiro: Fiocruz.         [ Links ]

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Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Aparecida: Idéias & Letras.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
Maria Aurelina Machado de Oliveira
Rua das Orquídeas, 782, ap. 303, Capim Macio
Natal – RN – Brasil. CEP: 59078-170
E-mail: maria.aurelina@yahoo.com.br

Submissão: 30.1.2014
Aceitação: 8.9.2014

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