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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.17 no.2 São Paulo Aug. 2015

 

PSICOLOGIA CLÍNICA

Associação entre religiosidade e saúde mental em pacientes com HIV

 

Association between religiousness and mental health in patients with HIV

 

Asociación entre la religiosidad y la salud mental en pacientes con VIH

 

 

Sally Knevitz da SilvaI; Susane Müller Klug PassosI; Luciano Dias de Mattos SouzaI
I Universidade Católica de Pelotas, Pelotas – RS – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O objetivo deste estudo foi verificar a associação entre religiosidade e indicativos de ansiedade e depressão em pacientes com HIV, em serviço do Sul do Brasil. Trata-se de estudo transversal com amostra de conveniência composta de 617 pessoas que vivem com HIV, as quais responderam à entrevista estruturada que continha itens sobre religião e a hospital anxiety and depression scale. A prevalência de indicativos de depressão e ansiedade foi de 34,4% e 47%, respectivamente. Ter religião foi professado por 76,3% dos entrevistados, enquanto 54,4% praticaram sua religião no último mês e 50,6% tinham religiosidade. Ter religião esteve associado com idade, abuso/dependência de álcool e indicativo de depressão. Prática religiosa esteve associada com idade, lipodistrofia e indicativo de ansiedade. Religiosidade esteve associada com idade, lipodistrofia, abuso/dependência de tabaco e indicativo de ansiedade. Infere-se que a religiosidade seja benéfica para a saúde mental, especialmente em pacientes com sintomatologia ansiosa.

Palavras-chave: ansiedade; depressão; saúde mental; HIV; religião.


Abstract

This study aimed to assess the association between religiousness and indicatives of anxiety and depression among patients with HIV in a service of the south of Brazil. This was a cross-sectional study thatused a convenience sample of 617 HIV patients. They answered a structured interview which contained questions about religion and the Hospital Anxiety and Depression Scale. The prevalence of the indicatives of depression and anxiety was, respectively, 34.4% and 47%. 76.3% of the respondents stated they were religious, while 54.4% practiced their religion during the previous month and 50.6% were religious. Having a religion was associated with: age, alcohol abuse/dependence, and indicative of depression. The religious practice was associated with: age, lipodystrophy and the indicative of anxiety. Being religious was associated with: age, lipodystrophy, tobacco, abuse/dependence and indicative of anxiety. It can be inferred that religiousness can be beneficial to mental health, particularly in patients with anxiety symptomatology.

Keywords: anxiety; depression; mental health; HIV; religion.


Resumen

El objetivo de este estudio fue verificar la asociación entre la religiosidad y los indicativos de ansiedad y depresión en pacientes VIH en servicio del sur de Brasil. Estudio transversal, con muestra de conveniencia con 617 pacientes viviendo con VIH. Ellos respondieron entrevista estructurada que contenía ítems sobre religión y la hospital anxiety and depression scale. La prevalencia de indicativos de depresión y ansiedad indicativa fue de 34,4% y 47%, respectivamente. La religión era profesada por el 76,3% de los encuestados, mientras que el 54,4% practicaron su religión durante el último mes y el 50,6% tenía religiosidad. Tener religión estuvo asociado con: edad, abuso/dependencia de alcohol y indicativo de depresión. La práctica religiosa estuvo asociada con: edad, lipodistrofia y indicativo de ansiedad. La religiosidad se relacionó con: edad, lipodistrofia, abuso/dependencia del tabaco y indicativo de ansiedad. Se infiere que la religiosidad es beneficiosa a la salud mental, especialmente en pacientes con síntomas de ansiedad.

Palabras clave: ansiedad; depresión; salud mental; VIH; religión.


 

 

Até o final do ano de 2010, havia 34 milhões de pessoas vivendo com HIV no mundo, segundo boletim do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) e do Ministério da Saúde (2011). Conforme o Ministério da Saúde (2012), no Brasil, foram notificados, de 2000 até 2012, 446.318 casos da doença. Mesmo com avanços científicos e tecnológicos em saúde que minimizaram os prejuízos relacionados a essa condição clínica, o fato de ser uma doença sem cura (Faria & Seidl, 2006) e associada a um estigma negativo vinculado à morte torna o diagnóstico de HIV/Aids um evento estressor.

Inúmeras vezes, os prejuízos psicológicos provocados nesses pacientes não são considerados, por não se constituírem em sintomatologia de transtorno propriamente dito. De acordo com a WHO (2000), o conceito de saúde mental vai além da mera ausência ou presença de sintomatologia. Trata-se, pois, de um processo de saúde-doença em que o bem-estar físico, psicológico e social abrange aspectos da vida do indivíduo como um todo, incluindo condição socioeconômica, relacionamento interpessoal e condição clínica. Dessa forma, demanda maiores esforços cognitivos e comportamentais relacionados a estratégias de enfrentamento. Então, além do comprometimento clínico, a soropositividade pode ser vivida pelos pacientes com sofrimento psíquico.

Conforme Liu et al. (2013), isso faz com que essa população apresente maiores proporções de transtornos mentais. Além disso, mesmo que não sejam preenchidos critérios diagnósticos específicos, com grande frequência essa população experiencia elevada prevalência de sintomatologia de transtornos mentais comuns. O evidente impacto na saúde mental pode ser reforçado pela identificação de elevadas prevalências de transtornos mentais específicos, como os grupos de transtornos mentais mais comuns na população geral – transtornos depressivos e ansiosos (Andrade, Walters, Gentil, & Laurenti, 2002). As prevalências de transtornos ansiosos e depressivos em pacientes infectados pelo HIV são altas, podendo chegar a 45% e 66%, de acordo com a literatura internacional (Liu et al., 2013).

Portanto, torna-se importante a atenção à saúde psíquica dos pacientes com HIV. A vivência negativa dessa doença pode trazer inúmeros prejuízos, bem como o
diagnóstico e a evolução da infecção podem ser considerados como ocasião para exercício de habilidades intra e interpessoais. Em trabalho de revisão de literatura, foi apontado que a religiosidade pode influenciar com mecanismos potenciais na adaptação psicológica de pessoas com HIV/Aids. Entre os benefícios das crenças e práticas religiosas, há o favorecimento de emoções de conforto; a disponibilidade de suporte social; a redução da carga emocional da doença, com sua possível aceitação; a auto­aceitação facilitada; e o auxílio na preservação da saúde (Siegel & Schrimshaw, 2002). Esses aspectos podem ser considerados como fatores de proteção para doenças mentais, como sintomas depressivos (Faria & Seidl, 2005). Contudo, quanto à sintomatologia ansiosa, um estudo de revisão de literatura identificou como inconsistente a relação entre ansiedade de morte e religiosidade em pacientes com HIV/Aids. A partir disso, em um estudo de metanálise, foi indicado que a ansiedade de morte está relacionada a pequeno efeito inverso (r = -0,12) com religiosidade intrínseca (convicção pessoal da crença) e a pequeno efeito direto (r = 0,15) com religiosidade extrínseca (prática religiosa em instituições) (Miller, Lee, & Henderson, 2012).

Ter uma religião implica agregar-se a diferentes parâmetros culturais, conceitos morais e ideais específicos que oferecem significado à existência humana. Tal conceito está relacionado com a religiosidade intrínseca. Por sua vez, a religiosidade extrínseca vincula-se com um conjunto de atividades e crenças. Esses distintos aspectos da religiosidade podem associar-se de maneiras específicas com a saúde mental (Agorastos, Demiralay, & Huber, 2014).

Portanto, a relação entre o contexto da religiosidade e pacientes com HIV/Aids configura-se importante. Nesse sentido, o apoio social gerado pelos aspectos religiosos pode interferir na evolução da infecção e nos modos de enfrentamento da Aids (Faria & Seidl, 2006). Apesar dessa relevância, ainda são escassas as pesquisas no Brasil que abordem esse tema. Assim, o objetivo deste estudo foi verificar a associação entre religiosidade e indicativos de ansiedade e depressão em pacientes com HIV/Aids atendidos pelo Serviço de Assistência Especializada em HIV/Aids (SAE) de Pelotas, no Rio Grande do Sul.

Método

Participantes

Este estudo transversal foi realizado no período de dezembro de 2011 a julho de 2012. A seleção amostral foi por conveniência no SAE da cidade de Pelotas, responsável pelos atendimentos da região sul do Estado.

Incluíram-se, no estudo, os pacientes acima de 18 anos que aceitaram participar da pesquisa, compreenderam os objetivos dela e assinaram, em duas vias, o Termo de Con­sentimento Livre e Esclarecido. Adotaram-se os seguintes critérios de elegibilidade da amostra: compreensão cognitiva dos questionários e possibilidade de permanecer sozinho na sala com o entrevistador. No total, 690 pacientes com sorologia positiva para HIV ou com diagnóstico clínico de Aids foram convidados a participar. Destes, 625 aceitaram ser entrevistados, contudo oito participantes foram excluídos por não preencherem adequadamente parte do instrumento de pesquisa.

Este estudo fez parte de uma pesquisa de maior porte com o objetivo de avaliar os fatores associados à qualidade de vida na população HIV. O tamanho amostral para a presente proposta foi calculado a posteriori, chegando a um mínimo de 588 sujeitos para associação significativa entre presença de ansiedade e religiosidade. Considerou-se como base estimativa a diferença de 12% entre expostos e não expostos para presença­ de religiosidade, com intervalo de confiança de 95%. Já na avaliação da relação entre ansiedade e depressão com ter religião, o cálculo de tamanho da amostra foi inferior ao relatado.

Instrumentos

Todos responderam ao questionário com entrevista sociodemográfica sobre sexo, idade, escolaridade e classificação socioeconômica, de acordo com o Critério de Classificação Econômica da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa [Abep] (2011).

Como dados clínicos, investigaram-se: presença de lipodistrofia (percepção de modificações corporais em face, nuca, braços, peito e mamas, abdome, nádegas ou pernas após início do uso de medicação antirretroviral) e existência de comorbidades clínicas (diagnóstico autorreferido de diabete, hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia, cardiopatia, tuberculose, hepatite, doença renal crônica, doença pulmonar crônica ou câncer). Também foram coletados dados sobre abuso e dependência de álcool, tabaco e outras drogas, por meio do teste de triagem alcohol, smoking and substance involvement screening test (Assist 2.0). Esse instrumento é composto de oito questões, contemplando nove tipos de substância psicoativa, com escore total de 0 a 20 para avaliar abuso ou dependência, com ponto de corte igual a 4 para indicativo de abuso e 16 para dependência (Henrique, Micheli, Lacerda, Lacerda, & Formigoni, 2004).

Para avaliar depressão e ansiedade foi utilizada a hospital anxiety and depression scale (HAD). Esse instrumento foi validado no Brasil para pacientes com dor crônica e HIV/Aids. É composto por 14 questões de múltipla escolha sobre sintomas na última semana, sendo sete para avaliação da depressão e sete para ansiedade. Esses escores são independentes, e a pontuação em cada subescala varia de 0 a 21, sendo o ponto de corte 8/9, em que valores iguais ou acima de 9 são considerados como sintomatologia significativa. A escala teve alta sensibilidade comprovada e não apresenta viés de confusão com sintomas comuns em doenças clínicas, pois visa à realização do diagnóstico (Castro et al., 2006). As variáveis criadas foram dicotômicas: ansiedade e depressão (sim ou não).

Como desfechos, avaliaram-se a presença e ausência de religião, prática religiosa e religiosidade.

• Para religião, foi utilizada a pergunta “Tu tens religião?”, com “sim” ou “não” como opções de resposta.

• Para prática religiosa, as questões “Com que frequência tu vais a missa, culto ou sessão na tua religião?” e “Com que frequência tu rezas?” foram consideradas.
A prática do paciente pelo menos uma vez por mês em ambas as questões foi considerada como significando presença de prática religiosa (frequentar instituição
e rezar).

• Como religiosidade, considerou-se o conjunto de ter e praticar religião.

Procedimentos

Esta pesquisa respeitou os princípios éticos estabelecidos pelo Conselho Nacional de Saúde, resolução n. 196, de 10 de outubro de 1996, e foi aprovada pelos comitês de Ética e Pesquisa da Universidade Católica de Pelotas e da Universidade Federal de Pelotas e pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa, sob número de processo 2011/76.

Foi realizada checagem automática no momento da digitação e verificação de suas inconsistências, comparando as duas entradas de dados no programa Epi-Info 6.0, garantindo maior fidelidade às informações. Para o tratamento estatístico, utilizou-se o programa SPSS 10.0. A análise inicial teve como objetivo obter frequências das variá­veis independentes, a fim de caracterizar a amostra do estudo. Foi feita uma análise de significância estatística para verificar diferenças das proporções de religiosidade em relação às variáveis independentes (ansiedade e depressão) em estudo, por meio do teste qui-quadrado.

A análise multivariada foi realizada por meio da regressão Poisson. Nesta última, adotaram-se modelos hierárquicos específicos para cada desfecho. As variáveis independentes que na análise bivariada apresentaram um valor p ≤ 0,20 foram incluídas nos modelos propostos em seus níveis específicos.

Para o desfecho ter religião, o primeiro nível contou apenas com a variável idade e o segundo nível com abuso/dependência de álcool, enquanto o terceiro nível foi composto por indicativos de ansiedade e depressão. Na análise dos demais desfechos, o primeiro nível foi composto por idade, escolaridade e classificação socioeconômica, e o segundo nível apresentou lipodistrofia, comorbidades clínicas e abuso/dependência de tabaco, enquanto o terceiro nível foi integrado por indicativos de ansiedade e depressão.

 

Resultados

Dos entrevistados, 51,7% eram do sexo feminino. A média de idade foi de 42 anos (±11,46) e a escolaridade média foi de 6,96 (±4,06). A maioria pertencia à classe socioeconômica C. Mais da metade dos pacientes relatou ter percebido alguma mudança corporal após o início do tratamento (lipodistrofia), e 56,1% relataram ter diagnóstico de outra enfermidade. Quanto ao abuso ou à dependência de substâncias psicoativas, 45,7% foram assim considerados em relação ao tabaco e derivados, e 32,8% em relação a bebidas alcoólicas. De acordo com a escala HAD, 47,0% tinham indicativo de ansiedade, e 34,4%, indicativo de depressão. Quanto aos desfechos avaliados, 76,3% relataram ter alguma religião, e 54,4%, realizavam prática religiosa (rezar e frequentar culto pelo menos uma vez por mês). Ao considerarem religiosidade como ter e praticar religião, 50,6% preencheram os critérios para essa variável (Tabela 1).

 

 

Na análise bivariada (Tabela 2), a variável sexo não apresentou diferença significativa nos desfechos avaliados. A variável idade apresentou diferença estatisticamente significativa para os três desfechos, e a prevalência destes aumentou conforme aumentaram os grupos etários (p = 0,000). Escolaridade mostrou-se inversamente proporcional à prática religiosa e religiosidade, e ter mais anos de estudo esteve associado à menor prevalência desses desfechos. Da mesma forma, o nível socioeconômico também esteve associado inversamente à prática religiosa e religiosidade, porquanto as classes mais favorecidas apresentaram menor prevalência dos desfechos quando comparadas às classes de menores índices. Com relação a ter uma religião, tanto escolaridade quanto nível socioeconômico não apresentaram associação significativa.

 

 

A presença de lipodistrofia e comorbidades clínicas esteve relacionada à maior prevalência de prática religiosa e religiosidade entre os pacientes, e não se constatou diferença significativa no caso de ter religião. Pacientes com abuso/dependência de álcool foram os que mais relataram ter alguma religião. Para prática religiosa e religiosidade, no entanto, a variável de abuso/dependência de álcool não apresentou diferença significativa. Quanto a abuso/dependência de tabaco, menos da metade dos pacientes praticavam religião e preencheram critérios para religiosidade. Isso não se confirma quanto ao relato de ter religião, em que 70,1% dos pacientes abusavam de tabaco ou eram dependentes.

Quanto à depressão, 69,3% dos pacientes com indicativo de sintomatologia relataram ter alguma religião. Não houve diferença significativa com prática religiosa e religiosidade.

O indicativo de ansiedade apresentou diferença estatisticamente significativa em todos os desfechos. A ansiedade esteve associada a menores proporções de ter religião (71,7%), prática religiosa (49,5%) e religiosidade (45,0%), em comparação aos pacientes não ansiosos.

Após a análise multivariada (Tabela 3), os indivíduos com idade igual ou superior a 47 anos apresentaram significativamente maior proporção dos desfechos religiosos (31%, 52% e 58%, respectivamente) quando comparados aos pacientes de até 35 anos. Em relação à classe socioeconômica, os indivíduos das classes A e B apresentaram menor proporção dos desfechos de prática religiosa e religiosidade.

Quanto à lipodistrofia, os pacientes que percebiam essa síndrome apresentaram proporção maior de prática religiosa (47%) e religiosidade (45%). Indivíduos que fazem uso abusivo/dependente de álcool apresentaram menor proporção do desfecho ter religião. Já os que fazem uso abusivo/dependente de tabaco apresentaram menores proporções dos desfechos de prática religiosa e religiosidade.

Pacientes que apresentaram indicativo de ansiedade apresentaram menor proporção de prática religiosa e religiosidade. Para pacientes com indicativo de depressão, verificou-se o mesmo resultado quanto a ter religião.

 

 

Discussão

Neste estudo, os pacientes mais velhos apresentaram maiores proporções de relato de ter religião, prática religiosa e religiosidade. Esse achado está de acordo com a associação positiva entre variáveis religiosas e menores prevalências de sintomas depressivos e ansiosos em pessoas idosas, que têm maior probabilidade de utilizar a religião como recurso adaptativo de enfrentamento (Faria & Seidl, 2005). Ademais, é possível sugerir associação direta entre esses dados e a própria fase de desenvolvimento dos pacientes mais velhos. Afinal, adultos mais velhos estão mais suscetíveis a diversos eventos estressores, como aposentadoria e “síndrome do ninho vazio”, o que pode gerar busca de apoio e alívio psicológico por meio da prática religiosa e da religiosidade­, para enfrentamento desses eventos. Outro fator que pode colaborar para os referidos achados é a possível maior proximidade desses pacientes com a morte, pois o risco de morrer é incrementado pelo envelhecimento, especialmente quando há uma doença crônica, embora o risco não possa ser determinado.

Quanto aos achados de que pacientes das classes socioeconômicas mais favorecidas apresentaram o desfecho religiosidade em menor proporção, a literatura mostra resultados controversos. No censo demográfico de 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro­ de Geografia e Estatística [IBGE] (2012), verificou-se redução nas proporções de pessoas religiosas (aquelas que professavam religião) a partir de dois ou três salários mínimos como rendimento nominal mensal domiciliar per capita, e as menores prevalências de ter religião foram entre as pessoas que recebiam de cinco a dez salários e mais de dez. Mais estudos ainda são necessários para identificar a relação entre condição socioeconômica e os distintos conceitos de espiritualidade e religiosidade.

Os achados deste estudo também vão ao encontro de diversos autores, sugerindo que a maior proporção de prática religiosa dos pacientes com lipodistrofia (presente também no critério de religiosidade) está diretamente relacionada com a busca de melhor percepção de si e apoio social. Afinal, a religiosidade, compreendida em seus aspectos individuais e institucionais, pode proporcionar ao indivíduo padrões comparativos para autoavaliação e autoconceito, influenciando em sua autoestima e possibilitando que a percepção de si seja valorizada (Faria & Seidl, 2005). No caso da lipodistrofia, esses aspectos tornam-se ainda mais importantes e necessários, pois essa síndrome pode gerar dificuldades psicológicas em razão da visibilidade dos sinais e do consequente preconceito acarretado pela descoberta do diagnóstico de Aids por outras pessoas (Seidl & Machado, 2008). Quanto ao apoio social, pode-se compreender que pacientes com lipodistrofia buscam no convívio institucionalizado da prática religiosa fatores que possam amenizar o sofrimento psicológico ocasionado pelo preconceito e estigma dessa doença. A religiosidade pode influenciar e alterar a percepção dos inúmeros eventos vivenciados por cada pessoa. No entanto, deve-se considerar que outro estudo aponta para a associação da autoestima com a crença religiosa (ou o relato de ter religião), compreendida em aspectos individuais, o que não foi observado nos resultados do presente estudo (Faria & Seidl, 2005).

No que tange ao indicativo de sintomatologia depressiva, este esteve associado diretamente a menor proporção de relato de religião. Pode-se inferir que esse resultado se deva às próprias características dessa doença. Afinal, o transtorno depressivo pode apresentar sintomas como a falta de confiança em si e nos outros, tensão e sensação de medo, dificultando, possivelmente, a adesão à crença religiosa e, por conseguinte, a presença de religiosidade.

Nesse sentido, deve-se atentar para a importância de avaliação criteriosa da sintomatologia depressiva nesses pacientes, de acordo com o estágio da infecção. A síndrome da lipodistrofia pode acarretar alterações psicossociais constituídas em prejuízos para o paciente, como dificuldades nas relações sociais e na regulação da autoimagem (Seidl & Machado, 2008), que podem dificultar ou gerar o diagnóstico diferencial equivocado de depressão.

Da mesma forma, uma avaliação psicológica fidedigna também poderia auxiliar na compreensão de outros fenômenos comportamentais coincidentes, como tabagismo e ansiedade. Os fumantes que vivem com HIV/Aids apresentam alta prevalência de transtornos de ansiedade (Shuter, Bernstein, & Moadel, 2012), assim como na população geral. Em pesquisa com 1.229 pessoas da cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais, verificou-se correlação negativa entre religião e tabagismo. Constatou-se que 43,6% dos fumantes regulares praticavam atividades religiosas, enquanto 71,3% dos não fumantes e 75% dos ex-fumantes eram atuantes de algum tipo de religião, independentemente da crença (Cardoso, Coelho, Rodrigues, & Petroianu, 2010). Assim, o tabagismo pode ser considerado uma forma desadaptativa de lidar com a condição clínica do HIV, potencializando sintomas ansiogênicos. A prática religiosa, por sua vez, pode amenizar sintomas de ansiedade provenientes dessa condição. Afinal, a atuação religiosa pode propiciar ao sujeito uma sensação de bem-estar consigo mesmo e de segurança, diminuindo preocupações excessivas e antecipatórias que são características da ansiedade.

Além disso, em pesquisa sobre religião, espiritualidade e saúde mental, apontou-se que existe considerável similaridade nos resultados das pesquisas em saúde mental referentes às crenças e práticas religiosas por causa da semelhança de valores e crenças morais presentes nas diferentes religiões e nas práticas destas (Koenig, Zaben, & Khalifa, 2012). Em estudo sobre intervenções de bem-estar em grupos, identificou-se que ouvir músicas religiosas esteve associado a maior satisfação com a vida e menor ansiedade (Haslam et al., 2014). Assim, o enfrentamento religioso tem implicações sobre a saúde física, o bem-estar psicológico e comportamentos saudáveis.

Com base nos resultados obtidos neste estudo, sugere-se que o perfil de pacientes com HIV/Aids que praticam religião é mais próximo daqueles com religiosidade, diferenciando-se do perfil de quem apenas relata ter alguma religião. A religiosidade (diferenciada da espiritualidade pela presença de aspectos institucionais) tem sido considerada como fator de proteção para esses pacientes, sendo intensificada a partir da vivência da soropositividade (Carvalho, Morais, Koller, & Piccinini, 2007). Afinal, apesar das mudanças nas características da epidemia, o HIV continua relacionado ao impacto social negativo (Carvalho et al., 2007), o que pode demonstrar oportunidade para adesão à prática e crença religiosas.

Em estudo transversal, a quase totalidade da amostra (99,1%) relatou ter crença religiosa. Quando se fez uma estimativa das práticas religiosas públicas nos últimos três meses, 51,8% dos pacientes declararam frequência alta de ida à igreja ou a locais de culto (de uma a sete vezes por semana), e 33,6%, uma frequência baixa (de uma a seis vezes por mês). Quanto às práticas privadas, a maioria dos participantes (59,1%) afirmou praticar privadamente a religião todos os dias, às vezes e mais de uma vez por dia (Faria & Seidl, 2006). Neste estudo, os achados foram semelhantes, pois a maioria relatou ter e praticar religião e ser religiosa. Esses dados também estão coerentes com os obtidos pelo censo demográfico brasileiro de 2010, refletindo a cultura brasileira extremamente religiosa (IBGE, 2012).

Por fim, é necessário ressaltar a limitação desses achados, visto que este foi um estudo de delineamento transversal. Por isso, não é possível compreender uma relação causal entre a presença de religiosidade e a prática religiosa com menor sintomatologia ansiosa. Apesar disso, é relevante que a equipe de saúde que cuida dos pacientes com HIV/Aids esteja atenta a esses fatores, como possíveis facilitadores de enfrentamento saudável da infecção e das consequências psicossociais acarretadas por essa condição.

Portanto, com base nos resultados encontrados, infere-se que a religiosidade seja benéfica para a saúde mental, especialmente a prática da religiosidade em pacientes com sintomatologia ansiosa e a crença em pertencer a uma religião em pacientes com indicativo de depressão. É bem provável que a crença e a prática religiosa atuem como facilitadoras do ajustamento psicológico, principalmente nos participantes com maior idade. A partir disso, torna-se importante a atenção dos profissionais da saúde para os contextos religiosos dos pacientes com HIV/Aids, de modo a compreender a influência da religião e da religiosidade sobre a saúde.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Sally Knevitz da Silva
Universidade Católica de Pelotas
Rua Félix da Cunha, 412, Caixa Postal 402
Pelotas – RS – Brasil. CEP 96010-000
E-mail: sallyknevitz@hotmail.com

Submissão: 3.1.2014
Aceitação: 11.4.2014

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