SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.17 número2Produção científica sobre Acompanhamento Terapêutico (AT) na pós-graduação brasileira: revisão da literaturaResenha crítica do livro Comportamento agressivo na infância: da teoria à prática, organizado por Juliane Callegaro Borsa e Denise Ruschel Bandeira índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.17 no.2 São Paulo ago. 2015

 

PSICOLOGIA SOCIAL

Diferenças conceituais entre resposta e iniciativa de atenção compartilhada

 

Conceptual differences between response and initiative of joint attention

 

Diferencias conceptuales entre la respuesta y la iniciativa de atención compartida

 

 

Regina Basso ZanonI; Bárbara BackesI; Cleonice Alves BosaI
I Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre – RS – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Há evidências substanciais de comprometimento na habilidade de atenção compartilhada (AC) em crianças com autismo, o qual é um dos principais preditores desse transtorno do desenvolvimento. Entretanto, geralmente se compreende a AC de forma molecular, desconsiderando a diferenciação entre os seus componentes, isto é, os comportamentos de resposta (RAC) e de iniciativa (IAC). No presente estudo, a ontogênese da habilidade de AC e as diferenças na RAC e IAC são discutidas com base no desenvolvimento da compreensão da ação intencional e nos seus correlatos neuropsicológicos. Conclui-se que a diferenciação entre RAC e IAC é importante, uma vez que há evidências da última como o preditor mais robusto do autismo, trazendo implicações teóricas, metodológicas e práticas relevantes.

Palavras-chave: atenção compartilhada; iniciativa; resposta; autismo; intencionalidade.


Abstract

There is substantial evidence of early impairment in joint attention (JA) ability in children with autism. Difficulty in this ability is one of the boldest sign of the disorder. However, JA is usually understood in a molecular form, disregarding the distinction between its components, in other words, response (RJA) and initiative (IJA) behaviors. In this study, the ontogeny of JA ability and the differences in RJA and IJA were discussed based on the development of understanding of intentional action and its neuropsychological correlates. It was concluded that it is important to differentiate RJA from IJA because there is evidence that the latter may be a bolder predictor of autism rather than the RJA bringing both theoretical and methodological implications, as well as relevant practice.

Keywords: joint attention; initiative; response; autism; intentionality.


Resumen

Hay evidencia sustancial de dificultades en la atención compartida (AC) en los niños con autismo, siendo este uno de los principales predictores de este trastorno del desarrollo. Sin embargo, esta capacidad ha sido generalmente entendida de forma molecular, ignorando la distinción entre sus componentes, es decir, conductas de respuesta (RAC) y de iniciativa (IAC). En el presente estudio, la ontogenia de la habilidad de AC y las diferencias en RAC y IAC se discutieron basadas en el desarrollo de la comprensión de la acción intencional y sus correlatos neuropsicológicos. Se concluyó que es importante diferenciar entre RAC y IAC porque hay evidencia de que esta última puede ser un predictor más robusto de autismo, trayendo implicaciones teóricas, metodológicas y prácticas importantes.

Palabras clave: atención compartida; iniciativa; respuesta; autismo; intencionalidad.


 

 

A atenção compartilhada (AC) é definida como a habilidade de coordenar a atenção entre dois parceiros sociais em relação a um terceiro referencial externo (Tomasello, 2003), com o propósito de compartilhar uma experiência em comum. Embora não haja um consenso quanto à emergência da AC, estudos destacam que ela parece surgir, de forma mais clara, entre os 9 e 14 meses de idade, estabilizando-se em torno dos 18 meses (Abreu, Cardoso-Martins, & Barbosa, 2014; Bosa, 2009; Mundy & Newell, 2007). Entretanto, esse período pode variar de acordo com 1. o nível de desenvol­vimento social, comunicativo e cognitivo da criança; 2. o nível de maturação neuro­biológica infantil; 3. a qualidade da interação cuidador-criança; e 4. aspectos culturais (Mundy, Sullivan, & Mastergeorge, 2009; Tomasello, 2003).

A intencionalidade da criança é o núcleo da habilidade de AC e expressa inicialmente por meio de gestos como apontar, mostrar e dar objetos, alternando o olhar entre estes e a face do parceiro. Esses mesmos gestos podem ter outro objetivo – a busca de assistência (pedidos) – e devem, portanto, ser diferenciados da AC.

A AC tem sido compreendida de forma molecular, desconsiderando a diferenciação entre os seus componentes, isto é, os comportamentos de resposta (RAC) e de iniciativa (IAC). Os comportamentos de RAC referem-se à habilidade da criança de seguir a direção do olhar, dos movimentos da cabeça e dos gestos de outra pessoa para compartilhar um interesse comum. Esse comportamento reveste-se de diferentes níveis de complexidade. Conforme Mundy et al. (2009), comportamentos mais rudimentares de RAC podem ser observados no plano proximal, quando a criança, por exemplo, pega e manipula um brinquedo que lhe é entregue por um parceiro, alternando o olhar entre o objeto e a face do parceiro. Já um nível mais complexo de RAC pode ser visualizado no plano distal, quando a criança segue a direção do olhar do parceiro social no momento em que este aponta com o dedo indicador para algo que está distante, como um quadro na parede ou um avião no céu. Em ambas as situações, a intencionalidade do bebê em compartilhar um interesse com o parceiro é inferida por meio da identificação da coordenação entre o olhar e os gestos da criança com aqueles do parceiro, assinalando um foco comum de atenção.

Por sua vez, os comportamentos de IAC se relacionam com a habilidade da criança em direcionar, de maneira espontânea, a atenção do parceiro para um objeto/evento de interesse dela, isto é, sem que o parceiro tenha antes feito algum tipo de solicitação à criança com o objetivo de compartilhar interesse, curiosidade, prazer e descobertas dela em relação a uma dada situação (Bosa, 2009). Por exemplo, a criança aponta para um objeto que está a certa distância e tenta “mostrá-lo” ao parceiro, alternando o olhar entre o objeto/evento e a face do parceiro. Frequentemente, esses gestos são também acompanhados por vocalizações e/ou sorriso.

É consenso entre os estudiosos que a habilidade de AC representa um marco no desenvolvimento infantil, sendo um importante precursor do desenvolvimento da linguagem e das relações sociais (Bosa, 2009; Tomasello, 2003), assim como da teoria da mente (Abreu et al., 2014). Tais associações têm acumulado evidências na última ­década, sobretudo de estudos envolvendo grupos clínicos. Delinicolas e Young (2007), por exemplo, investigaram a relação entre IAC, RAC e linguagem, em 56 crianças com autismo, com idades entre 2 e 6 anos e 5 meses. Os comportamentos foram avaliados pelos seguintes instrumentos: early social-communication scales, peabody picture vocabulary test-third edition e language development survey. Os autores encontraram correlações positivas não somente entre ambas as habilidades de AC (IAC e RAC), mas também entre estas e a linguagem, tanto expressiva quanto receptiva. Nessas condições, dada a sua emergência no primeiro ano de vida da criança, atrasos ou desvios qualitativos no desenvolvimento da AC constituem um importante preditor de transtornos graves que comprometem o desenvolvimento sociocomunicativo, como o transtorno do espectro autista – TEA (Bosa, 2009; Paparella, Goods, Freeman, & Kasari, 2011).

O TEA é um transtorno neurodesenvolvimental, com início precoce, caracterizado pelo prejuízo na comunicação e na interação social recíproca e por padrões repetitivos de comportamento, interesses ou atividades (American Psychiatric Association [APA], 2013). Esses comprometimentos se apresentam com intensidade e forma variadas e requerem um nível específico de suporte. No que tange aos comportamentos sociais, crianças com TEA podem apresentar dificuldades na reciprocidade socioemocional (por exemplo, reduzido compartilhamento de interesses, emoções e afeto, e falha em iniciar as interações sociais ou responder a elas), no uso de comportamentos comunicativos não verbais (por exemplo, anormalidades no contato visual e na linguagem corporal, déficits na compreensão e no uso de gestos, e ausência de expressões faciais) e no desenvolvimento, na manutenção e compreensão de relações (por exemplo, reduzido interesse em pares e dificuldades em compartilhar brincadeiras imaginativas) (APA, 2013; Bosa, 2009; Delinicolas & Young, 2007).

Considerando o papel crucial e precoce da AC no desenvolvimento social e linguístico infantil, bem como a sua importância no diagnóstico precoce do TEA, entende-se que essa habilidade deve ser adequadamente compreendida e investigada. Isso requer o conhecimento das diferentes funções de gestos e expressões faciais que variam de acordo com a intencionalidade da criança e o contexto. De fundamental importância para o diagnóstico precoce do TEA é o conhecimento dos diferentes níveis de complexidade das iniciativas e respostas de AC, o que nem sempre é levado em conta na maioria dos instrumentos desenvolvidos nessa área.

Nesse sentido, o propósito do presente estudo é discutir as bases conceituais dos comportamentos de AC, especialmente a diferenciação entre iniciativas e respostas de AC, no âmbito do desenvolvimento humano. Recorre-se a uma teoria que trata do desenvolvimento comunicativo justamente porque a identificação precoce do TEA envolve habilidades que não emergem (ou o fazem de forma qualitativamente distinta) na faixa etária esperada, sendo fundamental o conhecimento de parâmetros de desenvolvimento comunicativo típico. Em função disso, inicialmente a etiologia e o desenvolvimento da AC serão explorados de acordo com a abordagem sociopragmática de Tomasello (2003), que trata do desenvolvimento da linguagem com base no papel dos processos histórico-culturais na constituição da cognição humana. A escolha dessa teoria deu-se justamente pela sua ênfase na questão do papel da intencionalidade na comunicação e pelo detalhado estudo do desenvolvimento pré-linguístico, especialmente os gestos. Considerando que o núcleo do TEA é a dificuldade em compreender os outros como agentes mentais e intencionais, compreende-se a utilização desse aporte teórico nesse campo.

Contudo, não era claro, na abordagem sociopragmática, o porquê da emergência da AC especificamente no terceiro trimestre de vida da criança, ressaltando que a base para o seu desenvolvimento estabelece-se logo após o nascimento, já nas primeiras interações. Nesse sentido, a compreensão do salto qualitativo no comportamento de AC, nesse período de vida, pode ser ampliada com base no modelo do processamento paralelo e distribuído (MPPD) de atenção compartilhada (parallel and distributed processing model of joint attention), proposto por Mundy et al. (2009) e Mundy e Newell (2007). Esse modelo aborda o desenvolvimento de conexões neurais específicas envolvidas no desenvolvimento social, incluindo a diferenciação entre IAC e RAC, o que também contribui para a explicação sobre os possíveis processos envolvidos na etiologia do TEA. Sendo assim, o presente estudo propõe uma articulação teórica entre aspectos do desenvolvimento da intencionalidade infantil envolvidos nos comportamentos de RAC e IAC, como preditores de sinais de alerta do TEA, e seus correlatos neurocognitivos.

 

Desenvolvimento

Atenção compartilhada: abordagem sociopragmática

Tomasello (2003), partindo de uma visão sociopragmática do desenvolvimento humano, considera os 9 meses de idade como uma revolução para os bebês, a qual gera consequências surpreendentes em relação a como eles aprendem a interagir com os objetos, a se comunicar gestualmente com os outros e a pensar sobre si mesmos. É nesse momento que emergem, de forma mais clara, os comportamentos de AC, resultando em cenas compostas por um triângulo referencial que envolve criança-adulto-objeto/evento/símbolo. Ressalta-se que, antes do segundo semestre de vida, as interações dos bebês com os objetos ou pessoas são predominantemente diádicas, isto é, os bebês são capazes de agarrar e explorar objetos e brinquedos, entretanto, durante essa ação, eles tendem a ignorar a presença do parceiro social. O contrário também é verdadeiro: os bebês, inicialmente, interagem de forma diádica com as pessoas (interações face a face), ignorando os objetos.

Segundo Tomasello (2003), as crianças passam a se envolver em interações triádicas quando começam a entender as outras pessoas como agentes intencionais. Isso envolve compreender que os outros têm estados mentais e que suas relações com entidades externas podem ser compartilhadas (inicialmente apenas acompanhadas e depois dirigidas). Uma situação prototípica dessa fase é quando os bebês começam a olhar, de modo flexível e confiável, para onde os adultos estão olhando, passando a se envolver em sessões relativamente longas de interações sociais mediadas por um objeto ou evento. Eles utilizam os adultos como pontos de referência social e, por consequência, passam a agir sobre os objetos da mesma maneira como os adultos agem sobre eles.
É nesse contexto, com base na aprendizagem por imitação, que emergem, posteriormente, os comportamentos sociocomunicativos que representam tentativas da criança de dirigir a atenção dos adultos para alguma entidade exterior (por exemplo, gesto de apontar, mostrar), em sintonia com os processos atencionais dela própria (foco comum de atenção).

Dessa forma, os diferentes comportamentos de AC são explicados em termos de uma “teoria da simulação”, na qual as crianças entendem os outros por meio de uma analogia consigo mesmas – elas fazem o juízo categórico de que os outros são como elas e, por isso, devem funcionar como elas próprias. Trata-se de um processo, denominado de “inferência”, que decorre da capacidade de cada ser humano de se identificar com os outros seres humanos. Tomasello (2003) entende que a compreensão dos meios como diferentes dos fins é crucial para a emergência da intencionalidade. Nesse caso, a criança se dá conta de que a ação sobre um objeto (por exemplo, rolar a bola para um parceiro) é resultado da intenção de fazê-lo e não de um evento casual qualquer (por exemplo, vento). Com isso, ela passa a entender que as ações das outras pes­soas, assim como as dela, também refletem intenções.

De acordo com essa perspectiva, a AC relaciona-se à compreensão da intenção comunicativa, constituindo-se como base sociocognitiva da aquisição da linguagem. Isso ocorre porque as interações triádicas, que envolvem a percepção da intencionalidade dos outros, são fundamentais para a criança entender o uso de símbolos linguísticos pelo adulto. Nesse sentido, quando a criança passa a compreender os outros como agentes intencionais e a perceber a intenção do ato sociocomunicativo, que ocorre em uma experiência de AC, um novo mundo de realidades intersubjetivamente partilhadas começa a se abrir, povoado de artefatos e de práticas sociais culturalmente criados (Tomasello, 2003).

Nessas condições, Tomasello, Carpenter, Call, Behne e Moll (2005) propuseram a existência de três estágios de compreensão da ação intencional, os quais marcam o desenvolvimento precoce da cognição social humana:

Compreensão da ação animada: por volta dos 6 meses de vida, os bebês entendem as outras pessoas como agentes animados (mas ainda não intencionais) e, então, passam a compartilhar ações e estados emocionais em relações diádicas (interações face a face) com o ambiente físico e social.

Compreensão da ação voltada para objetivos: por volta dos 9 meses, os bebês entendem os outros como seres capazes de realizar ações específicas para produzir objetivos específicos, passando a compartilhar objetivos, ações e percepções, e a se engajar triadicamente com os outros – emergência da intencionalidade.

Compreensão do planejamento de ações: por volta dos 14 meses, os bebês entendem as outras pessoas como agentes intencionais que são capazes de selecionar planos de ação para produzir objetivos em contextos específicos e, com isso, passam a compartilhar estados intencionais e percepção com os outros, engajando-se de forma colaborativa.

Como já visto, o comprometimento qualitativo no desenvolvimento sociocomunicativo é crucial para o diagnóstico de crianças com TEA. Ademais, o déficit na habilidade de se engajar em relações triádicas de AC representa um importante indicador precoce desse transtorno. Nesse sentido, entende-se que a pouca compreensão dos outros como agentes intencionais reflete, indubitavelmente, no modo como as crianças com TEA interagem com o mundo. Por exemplo, alguns pesquisadores destacam que crianças com TEA apresentam comportamentos com características mais instrumentais, sendo capazes de utilizar gestos para solicitar objetos ou para se engajar em ações sociais rotineiras (Abreu et al., 2014; Bosa, 2009; Paparella et al., 2011; Tomasello, 2003). No entanto, elas não utilizam esses mesmos gestos para compartilhar com os outros interesses por objetos e por suas propriedades. Da mesma maneira, tais crianças parecem ter dificuldades para compartilhar estados mentais, o que limita a criação de ações culturalmente compartilhadas com os outros. De fato, Tomasello et al. (2005) ressaltam que a maioria das crianças com TEA não apresenta engajamento colaborativo e recíproco, bem como raramente participa de atividades culturais e simbólicas.

Nesse contexto, presume-se que a resposta de uma criança a um comportamento de AC iniciado por alguém é um sinal social que indica a compreensão, por parte da criança, da intencionalidade do parceiro (por exemplo, brincar com ela). Entretanto, vale dizer que tal comportamento pode ser facilmente confundido com uma aprendizagem por contingência social na qual o foco de interesse da criança pode ser apenas o objeto e não a relação (isto é, brincar com o adulto), ou seja, a criança interessa-se pelo objeto e o manipula da mesma forma que o adulto, mas sem o propósito de interagir. Ressalta-se que esse comportamento, denominado emulação, é frequentemente observado em primatas não humanos, bem como em algumas crianças com TEA (Tomasello, 2003; Tomasello et al., 2005). Entretanto, essa confusão não se estabelece quando é a criança que inicia uma cena de AC, tornando clara a sua intencionalidade, que é puramente social. O comportamento de IAC envolve, entre outros fatores, a compreensão da criança dos seguintes fatores: 1. são necessárias algumas escolhas entre diferentes estratégias para atingir um determinado objetivo (brincar); 2. para atingir esse objetivo, é necessário haver a manipulação da atenção do parceiro; 3. as estratégias empregadas são aquelas aprendidas com os parceiros em contextos semelhantes e então imitadas, da mesma maneira que o parceiro fez em relação a ela; e 4. ter noção de que o parceiro vai experienciar aquela situação como prazerosa e interessante, da mesma forma como ela a experienciou anteriormente (Tomasello, 2003). Nesse sentido, o comportamento de IAC parece envolver uma maior compreensão, por parte da criança, dos diferentes aspectos envolvidos na interação social.

A abordagem sociopragmática, por ser uma teoria de desenvolvimento, contribui significativamente para a compreensão da AC, entretanto deixa algumas lacunas no entendimento do que ocorre especificamente no TEA. Assim, o modelo proposto por Mundy et al. (2009) e Mundy e Newell (2007), ao estender as noções da teoria sociopragmática, aborda os comprometimentos sociais precoces do TEA, aprofundando a reflexão acerca dos correlatos neurais envolvidos nas habilidades de RAC e IAC.

Modelo do processamento paralelo e distribuído da atenção compartilhada

Mundy et al. (2009), numa perspectiva neurocognitiva do desenvolvimento humano, entendem que, para interpretar os comprometimentos na RAC e IAC em indivíduos com TEA, deve-se reconhecer que essas habilidades apresentam trajetórias desenvolvimentais distintas. Enquanto a RAC refere-se a uma habilidade precocemente adquirida, refletindo o processamento da informação dos sinais sociais dos outros, a IAC concerne a uma habilidade mais avançada, que depende do desenvolvimento de funções executivas mais sofisticadas, incluindo o planejamento e o monitoramento de ações baseadas em intenções específicas.

Nessas circunstâncias, Mundy e Newell (2007) sugerem que a AC está ligada a dois sistemas inter-relacionados de regulação da atenção, o anterior e o posterior, e cada um envolve áreas específicas do córtex. O sistema de orientação e percepção da atenção posterior é um sistema involuntário, comum a vários primatas, que se desenvolve desde os primeiros meses de vida do bebê e desempenha papel crucial para a emergência da RAC. Esse sistema relaciona-se aos córtex temporal superior e parietal, os quais sustentam aspectos do desenvolvimento da imitação, da percepção de orientação de olhar e da cabeça de outras pessoas, além das relações espaciais entre o eu, o outro e o ambiente. Por sua vez, o sistema de atenção anterior estaria relacionado à IAC, iniciando seu desenvolvimento no segundo semestre de vida. Esse sistema associa-se à atividade do córtex pré-frontal, que envolve o processamento cognitivo e emocional, incluindo a regulação das ações autoiniciadas e direcionadas a objetivos sociais. Nesse sentido, as diferenças nas funções e no período do desenvolvimento dos sistemas de atenção anterior e posterior explicam, em parte, a dissociação da IAC e RAC em termos de desenvolvimento (Mundy et al., 2009).

De forma semelhante, alguns autores afirmam que o aparecimento de certos sintomas específicos do TEA depende da maturação do lobo frontal e, consequentemente, da emergência das funções executivas (Dawson et al., 2002). Essas funções são necessárias para que o indivíduo guie o seu comportamento em um ambiente em constante mudança, incluindo habilidades como planejamento, memória, flexibilidade­mental, início e inibição de resposta e monitoramento da ação (Robinson, Goddard, Dritschel, Wisley, & Howlin, 2009).

No que se refere ao desenvolvimento precoce, Dawson, Panagiotides, Klinger e Hill (1992) sugerem que, durante os seis primeiros meses, o comportamento emocional regulatório do bebê evolui de respostas reflexas aos estímulos (por exemplo, frio, dor e fome) para uma consciência do estado interno e uma habilidade de associar, temporariamente, estados emocionais com determinados estímulos externos. Posteriormente, no período entre seis e oito meses, o comportamento progride e começa a envolver funções associadas ao lobo frontal – o bebê passa a ser capaz de selecionar estímulos externos e atender a eles, além de perceber sequências temporais que envolvem as suas próprias ações e os estímulos do meio. Os autores afirmam que esses comportamentos emocionais regulatórios se expandem drasticamente durante a segunda metade do primeiro ano de vida, uma vez que os regulatórios passam a ser planejados. É justamente nesse período que surgem os comportamentos de AC, que envolvem habilidades cognitivas, intencionalidade e a habilidade de realizar sequências relativamente complexas de comportamentos triádicos com objetos (Dawson et al., 2002).

Nesse sentido, depreende-se que a maturação cortical e as funções executivas são importantes para o desenvolvimento da AC, especialmente para a IAC, que envolve o planejamento e o monitoramento de ações baseadas em intenções específicas. De fato, alguns estudos revelam que indivíduos com TEA apresentam também disfunções executivas (Czermainski, Riesgo, Guimarães, Salles, & Bosa, 2014; Robinson et al., 2009). Por exemplo, Robinson et al. (2009), em uma investigação envolvendo 54 indivíduos com TEA e 54 com desenvolvimento típico, equiparados por idade (entre 8 e 17 anos), gênero, QI e vocabulário, constataram que os participantes com TEA apresentaram dificuldades significativas na inibição de respostas e no planejamento. De maneira semelhante, Czermainski et al. (2014), em uma pesquisa que objetivou avaliar as funções executivas e a memória de trabalho em um grupo de crianças/adolescentes brasileiros com TEA (n = 11), comparando-o com um grupo controle com desenvolvimento típico (n = 19) de mesma idade, escolaridade e QI, verificaram que o grupo clínico apresentou déficits no planejamento e na inibição, bem como na flexibilidade cognitiva, na fluência verbal e na memória de trabalho.

Além disso, estudos com neuroimagem têm mostrado que as funções executivas estão relacionadas a diferentes regiões do lobo frontal, incluindo ainda associações entre áreas dos córtex anterior e posterior, bem como vias subcorticais e tálamo (Monchi, Petrides, Strafella, Worsley, & Doyon, 2006). Esse envolvimento conjunto de dois sistemas também foi considerado por Mundy et al. (2009), quando explicaram os correlatos neurológicos da AC. Nessa perspectiva, a AC é entendida como uma forma de processamento paralelo, referindo-se à percepção conjunta de informações da atenção, tanto do próprio indivíduo quanto da atenção de outras pessoas. Essa análise conjunta de ambas as informações, interna e externa, envolve um processamento distribuído por meio dos sistemas corticais anterior e posterior. Por essa razão, entende-se que o sistema anterior está relacionado ao processamento da informação interna acerca da atenção direcionada aos objetivos do próprio indivíduo e, por isso, associa-se ao comportamento de IAC. Já o sistema posterior parece vinculado ao processamento da informação externa, da atenção dada ao comportamento de outra pessoa, o que se faz necessário para o comportamento de RAC. Por isso, esse enfoque foi ­denominado de modelo do processamento paralelo e distribuído de AC – MPPD (Mundy et al., 2009).

O MPPD enfatiza que a aprendizagem precoce do autocontrole da atenção configura-se como um primeiro passo no sentido da compreensão dos comportamentos intencionais dos outros. Nesse sentido, concordando com Tomasello, Mundy et al. (2009) ressaltam que as experiências de AC durante os primeiros nove meses de vida contribuem substancialmente para o desenvolvimento da cognição social infantil. Entretanto, segundo essa perspectiva, o desenvolvimento da AC decorre do aumento na velocidade, na eficiência e na complexidade do processamento da informação atencional, que começa a ser exercitado pelos bebês aos 3 ou 4 meses de idade e permanece como um sistema ativo durante a adultez. Sob esse prisma, em vez de ser substituí­da por estágios mais avançados de cognição social, a AC é tomada como uma camada duradoura dentro de uma espiral que reflete o desenvolvimento socioneurocognitivo humano (Mundy et al., 2009).

A concepção de desenvolvimento da AC proposta pelo MPPD tem motivado a realização de muitos estudos na área. No que se refere às investigações envolvendo crianças com TEA, pesquisadores têm demonstrado, por meio de estudos com neuroimagem, associações entre as disfunções do sistema anterior e a severidade dos sintomas sociais do TEA (por exemplo, Ohnishi et al., 2000). Além disso, Chiu et al. (2008), em um estudo com crianças com TEA envolvendo análises funcionais, sugerem que o córtex cingulado anterior (CCA), responsável pelo automonitoramento e pela resolução de problemas em comportamentos direcionados a objetivos, também está associado com os sintomas sociais do TEA.

Como visto, o MPPD entende que o desenvolvimento humano decorre de ações que envolvem o processamento atencional de informações disponíveis no ambiente. Segundo esse prisma, as crianças aprendem por meio de suas próprias ações, sendo a IAC algo fundamental para que elas aprendam a processar as diversas informações disponíveis, que podem ser internas ou externas. Em síntese, o MPPD sugere que a AC envolve: 1. a informação interna acerca da atenção visual do próprio indivíduo em relação a um objeto; 2. a informação externa acerca da atenção visual de outra pessoa em direção a um objeto; e 3. o processamento integrado de ambas as informações descritas. Com base nessas premissas, o MPPD nos auxilia a compreender as diferenças na qualidade da AC, propondo que os substratos envolvidos na IAC são mais complexos, exigindo a maturação do córtex frontal e, subsequentemente, o desenvolvimento de funções executivas, como as de planejamento e monitoramento de ações. Por essa razão, os comportamentos de IAC, que envolvem o processamento integrado de informações externas e internas, exigindo a associação de áreas dos córtex anterior e posterior, desenvolvem-se após os de RAC. Os principais aspectos dos modelos discutidos nesse estudo podem ser visualizados, de forma articulada, na Figura 1.

 

 

Conclusão

As principais premissas da abordagem sociopragmática sobre o desenvolvimento da AC são as seguintes: 1. as bases do desenvolvimento da AC desenvolvem-se desde o nascimento, com as primeiras interações; 2. em torno do terceiro trimestre de vida, ampliam-se os comportamentos de RAC, em contexto de interação social, representando a compreensão por parte da criança de atos intencionais dos adultos direcionados a ela; e 3. posteriormente esses mesmos atos passam a ser reproduzidos espontaneamente pela própria criança, por meio da teoria da simulação e da aprendizagem por imitação, caracterizando o comportamento de IAC. Algumas crianças estão em risco no que se refere ao desenvolvimento dessa habilidade, e atrasos ou desvios qualitativos na expressão dos gestos, durante a interação social, podem representar sinais de alerta para problemas graves no desenvolvimento social e linguístico da criança, incluindo o TEA.

Com base na articulação dos dois modelos apresentados, pode-se concluir que a maturidade cortical, envolvida na emergência e complexificação da AC, auxilia no desenvolvimento da capacidade de ver a si e os outros como agentes intencionais, durante as experiências nas cenas de AC. A intencionalidade envolve conceber as pessoas como seres que agem e pensam sobre o mundo de acordo com certas metas que são partilhadas a partir de códigos linguísticos, exclusivos da espécie humana. Os substratos neurais das diferentes modalidades de AC envolvem, basicamente, dois sistemas inter-relacionados de regulação da atenção, os quais se desenvolvem em tempos distintos. Isso significa que os substratos envolvidos na IAC são mais complexos, exigindo a maturação do córtex frontal e, subsequentemente, o desenvolvimento de funções executivas, como as de planejamento e monitoramento de ações. Por essa razão, os comportamentos de IAC, que envolvem o processamento integrado de informações externas e internas, exigindo a associação de áreas dos córtex anterior e posterior, desenvolvem-se após o de RAC.

Com base na revisão teórica apresentada, entende-se que o conhecimento acerca das diferenças na qualidade da AC é fundamental por vários motivos. Primeiro, argumenta-se que o domínio por parte dos profissionais acerca do TEA requer mais do que o simples conhecimento da lista de sintomas descritos nos manuais de classificação. Requer, antes, a apropriação conceitual dos parâmetros de desenvolvimentos sociocognitivos e linguísticos que ocorrem no curso do desenvolvimento típico. Isso acontece porque o TEA é identificado não apenas pelo que está presente, mas também e sobretudo por habilidades que deveriam surgir em uma determinada faixa etária, mas que não emergem. Ora, a identificação dessas “lacunas” exige o conhecimento desses parâmetros desenvolvimentais que são, muitas vezes, complexos em sua natureza, como no caso dos níveis de complexidade do TEA.

As implicações práticas desse conhecimento teórico e empírico são inúmeras, tanto em termos de pesquisas quanto de sua aplicação na comunidade. Do ponto de vista da pesquisa, a hipótese da diferenciação entre RAC e IAC e o maior poder preditivo desta última no caso do TEA pode gerar novos delineamentos metodológicos, utilizando di­ferentes grupos de controle para TEA. Mais fundamental ainda é o desenvolvimento de novos instrumentos de rastreamento e de avaliação comportamental de TEA, como o protocolo de observação para crianças com suspeita de TEA – Protea (Marques & Bosa, 2015) que emprega essa diferenciação de forma quali e quantitativa.

No âmbito da aplicação desse conhecimento na comunidade, estão sendo desenvolvidos recursos de videogravação e fôlderes explicativos contendo cenas de AC e suas modalidades para professores da educação infantil e agentes de saúde comunitários (Nuernberg & Bosa, 2014; Steyer & Bosa, 2014), no intuito de identificar os sinais de alerta para o TEA. Os benefícios da identificação desses sinais de alerta o mais cedo possível e o consequente encaminhamento para intervenção precoce estão fartamente documentados na literatura (por exemplo, Dawson et al., 2010), com repercussões positivas tanto no desenvolvimento da criança quanto na qualidade de vida de sua família.

 

Referências

Abreu, C. S., Cardoso-Martins, C., & Barbosa, P. G. (2014). A relação entre a atenção compartilhada e a teoria da mente: um estudo longitudinal. Psicologia: Reflexão e Crítica, 27(2), 409-414.         [ Links ]

American Psychiatric Association (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed.). Washington, DC: American Psychiatric Association.         [ Links ]

Bosa, C. (2009). Compreendendo a evolução da comunicação do bebê: implicações para a identificação precoce do autismo. In V. G. Haase, F. O. Ferreira & F. J. Penna (Orgs.). Aspectos biopsicossociais da saúde na infância e adolescência (pp. 319-328). Belo Horizonte: Coopmed.         [ Links ]

Chiu, P., Kayali, M. A., Kishida, K., Tomlin, D., Klinger, L., Klinger, M., & Montague, P. R. (2008). Self responses along the cingulate cortex reveal quantitative neural phenotype for high-functioning autism. Neuron, 57, 463-473.         [ Links ]

Czermainski, F. R., Riesgo, R. S., Guimarães L. S. P., Salles, J. F., & Bosa, C. A. (2014). Executive function in children and adolescents with autism spectrum disorder. Paidéia, 24(57), 85-94.         [ Links ]

Dawson, G., Munson, J., Estes, A., Osterling, J., McPartland, J., Toth, K., Carver, L., & Abbott, R. (2002). Neurocognitive function and joint attention ability in young children with autism spectrum disorder versus developmental delay. Child Development, 73(2), 345-358.         [ Links ]

Dawson, G., Panagiotides, H., Klinger, L. G., & Hill, D. (1992). The role of frontal lobe functioning in the development of infant self-regulatory behavior. Brain and Cognition, 20, 152-175.         [ Links ]

Dawson, G., Rogers, S., Munson, J., Smith, M., Winter, J., Greenson, J., Donaldson, A., & Varley, J. (2010). Randomized, controlled trial of an intervention for toddlers with autism: the early start Denver model. Pediatrics, 125(1), 17-23.         [ Links ]

Delinicolas, E. K., & Young, R. L. (2007). Joint attention, language, social relating, and stereotypical behaviours in children with autistic disorder. Autism, 11(5), 425-436.         [ Links ]

Marques, D., & Bosa, C. (2015). Protocolo de Avaliação de Crianças com Autismo: Evidências de Validade de Critério. Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, 31(1), 43-51.         [ Links ]

Monchi, O., Petrides, M., Strafella, A. P., Worsley, K. J., & Doyon, J. (2006). Functional role of the basal ganglia in the planning and execution of actions. Annals of Neurology, 59, 257-264.         [ Links ]

Mundy, P., & Newell, L. (2007). Attention, joint attention and social cognition. Current Directions in Psychological Science, 16(5), 269-274.         [ Links ]

Mundy, P., Sullivan, L., & Mastergeorge, A. (2009). A parallel and distributed processing model of joint attention, social-cognition and autism. Autism Research, 2(1), 2-21.         [ Links ]

Nuernberg, A., & Bosa, C. A. (2014). A efetividade de um programa de formação na área de educação para o reconhecimento de sinais de alerta para TEA: aspectos metodológicos. Anais do Congresso Brasileiro Psicologia: Ciência e Profissão, São Paulo, SP, Brasil, 4.         [ Links ]

Ohnishi, T., Matsuda, H., Hashimoto, T., Kunihiro, T., Nishikawa, M., Uema, T., & Sasaki, M. (2000). Abnormal regional cerebral blood flow in childhood autism. Brain, 123, 1838-1844.         [ Links ]

Paparella, T., Goods, K. S., Freeman, S., & Kasari, C. (2011). The emergence of nonverbal joint attention and requesting skills in young children with autism. Journal of Communication Disorders, 44(6), 569-583.         [ Links ]

Robinson, S., Goddard, L., Dritschel, B., Wisley, M., & Howlin, P. (2009). Executive functions in children with autism spectrum disorders. Brain and Cognition, 71, 362-368.         [ Links ]

Steyer, S., & Bosa, C. A. (2014). Efetividade de um programa de capacitação em identificação precoce do transtorno do espectro do autismo na atenção básica em saúde: contribuições da psicologia. Anais do Congresso Brasileiro Psicologia: Ciência e Profissão, São Paulo, SP, Brasil, 4.         [ Links ]

Tomasello, M. (2003). Origens culturais da aquisição do conhecimento humano (C. Berliner, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Obra original publicada em 1999).         [ Links ]

Tomasello, M., Carpenter, M., Call, J., Behne, T., & Moll, H. (2005). Understanding and sharing intentions: the origens of cultural cognition. Behavioral and Brain Sciences, 28, 675-735.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Regina Basso Zanon
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Rua Ramiro Barcelos, 2.600, Santana
Porto Alegre – RS – Brasil. CEP: 90035-003
E-mail: rebzanon@gmail.com

Submissão: 13.5.2014
Aceitação: 7.12.2014

Creative Commons License