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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.17 no.2 São Paulo Aug. 2015

 

AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

Funcionamento adaptativo: panorama nacional e avaliação com o adaptive behavior assessment system

 

Adaptive behavior: national perspective and evaluation with adaptive behavior assessment system

 

Funcionamento adaptativo: panorama nacional y evaluación con el adaptive behavior assessment system

 

 

Tatiana Pontrelli MeccaI; Natália Martins DiasI; Caroline Tozzi ReppoldII; Monalisa MunizIII; Cristiano Mauro Assis GomesIV; Ana Carolina Monnerat Fioravanti-BastosV; Denise Balem YatesVI; Luiz Renato Rodrigues CarreiroVII; Elizeu Coutinho de MacedoVII
I Centro Universitário Fundação Instituto de Ensino para Osasco (Fieo), Osasco – SP – Brasil
II Universidade Federal de Ciências Saúde de Porto Alegre, Porto Alegre – RS – Brasil
III Universidade Federal de São Carlos, São Carlos – SP – Brasil
IV Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte – MG – Brasil
V Universidade Federal Fluminense, Niterói – RJ – Brasil
VI Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre – RS – Brasil
VII Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo – SP – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Funcionamento adaptativo se refere a habilidades conceituais, sociais e práticas que permitem adaptação ao ambiente. Este estudo objetivou uma revisão da literatura a partir do SciELO e realização de novas análises estruturais com o Abas-II, um dos principais instrumentos de avaliação do construto. Os resultados mostraram que estudos nacionais são recentes, mas crescentes nos últimos anos, com concentração na área multidisciplinar. Dos 46 artigos levantados, identificaram-se 13 instrumentos utilizados, porém há carência de estudos que investiguem suas qualidades psicométricas, apontando a avaliação como importante problemática na área. Foram realizadas análises estruturais alternativas às indicadas no manual, considerando as matrizes de correlação apresentadas neste estudo. Os resultados evidenciam melhor adequação dos dados a um modelo bifatorial, composto por um fator geral e fatores específicos, quando comparado aos modelos de único fator e três fatores. A relevância do tema contrasta com a incipiência dos estudos e a carência de instrumentos no contexto nacional.

Palavras-chave: funcionalidade; comportamento adaptativo; psicometria; avaliação psicológica; revisão.


Abstract

Adaptive behavior refers to conceptual, social and practical skills, which allow adaptating to the environment. This study aims to do a scientific literature review from the SciELO and to conduct further structural analysis with the ABAS-II, one of the main instruments to evaluate the construct. The results showed that Brazilian studies are recent, but they have been increasing in previous years, mainly concentrated in the multidisciplinary area. We identified 13 instruments in 46 articles, but there is a lack of studies investigating their psychometric qualities, pointing its evaluation as an important problem in the area. Alternative structural analysis to the ones presented in the original manual were performed considering the correlation matrices. The results showed a better adequacy of the data to a bi-factor model, consisting of a general factor and specific factors when compared to single-factor and three-factor models. The theme relevance contrasts with the incipiency of studies and the lack of instruments in the Brazilian context.

Keywords: functionality; adaptive behavior; psychometrics; psychological assessment; review.


Resumen

Funcionamiento adaptativo se refiere a las habilidades conceptuales, sociales y prácticas que permiten la adaptación al entorno. Este estudio tuvo como objetivo revisar la literatura partiendo del Scielo y la aplicación de nuevos análisis estructurales con el ABAS-II, una de las principales herramientas para la evaluación del constructo. Los resultados mostraron que estudios nacionales son recientes, mas muestran crecimiento en los últimos años, con concentración en el área multidisciplinar. De los 46 artículos analizados, se identificaron 13 instrumentos utilizados, pero se constató la falta de estudios de investigación de sus cualidades inherentes a la psicometría, señalando la evaluación como un problema importante en el área. Análisis alternativos a los presentados en el manual, fueron realizados, considerando las matrices de correlación. Los resultados muestran mejor la adecuación de los datos a un modelo de dos factores, que consiste en un factor general y los factores específicos en comparación con los modelos de uno y de tres factores. La relevancia del tema contrasta con la escasez de estudios y falta de instrumentos en el contexto nacional.

Palabras clave: funcionalidad; conducta adaptativa; psicometría; evaluación psicológica; revisión.


 

 

Funcionamento adaptativo: conceituação

A Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), proposta pela Organização Mundial de Saúde [OMS] (2004), define funcionalidade como um termo que engloba funções do corpo, atividades e participação. Outro termo relacionado à funcionalidade é funcionamento ou comportamento adaptativo, que se refere a habilidades conceituais, sociais e práticas adquiridas pela pessoa para atender às demandas da vida diária (American Psychiatric Association [APA], 2013).

Há, de fato, relativa sobreposição entre os conceitos de funcionalidade e comportamento ou funcionamento adaptativo. Por exemplo, déficits na adaptação limitam o funcionamento adequado em atividades diárias, como a comunicação, impactando também a participação social e independência em diversos ambientes (casa, escola, trabalho e comunidade) (APA, 2013). Ambos, funcionalidade e comportamento­ ou funcionamento adaptativo, estão fortemente relacionados às deficiências físicas e intelectuais, mas não são restritos unicamente a esse contexto, sendo também utilizados para a identificação de déficits e habilidades relacionados a diversas condições de saúde.

A literatura reporta a existência de alterações no funcionamento adaptativo em diversos transtornos, como a própria deficiência intelectual (Hayes & Farnill, 2003), transtornos do espectro do autismo (Hedvall et al., 2013), transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (Roizen, Blondis, Irwin, & Stein, 1994), síndrome de Tourette (Kollins et al., 2006), síndrome de Rett (Vignoli et al., 2010), síndrome de Williams (Mervis, Klein-Tasman, & Mastin, 2001), síndrome alcoólica fetal (Carr, Agnihotri, & Keightley, 2010), síndrome de Down (Strydom, Dickinson, Shende, Pratico, & Walker, 2009), transtornos de aprendizagem, entre outras condições (Sparrow, Cicchetti, & Balla, 2005).

Recentemente foi publicada a quinta edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5), da APA (2013), que estabelece os critérios diagnósticos necessários a uma série de condições, entre elas as deficiências intelectuais. De acordo com o DSM-5, o transtorno do desenvolvimento intelectual ou deficiência intelectual (DI) se caracteriza por déficits funcionais, tanto intelectuais quanto adaptativos. Preconiza-se que tanto as funções intelectuais quanto as adaptativas sejam avaliadas a partir de instrumentos padronizados. De acordo com a American Association on Intellectual and Developmental Disabilities (Aaidd), essa avaliação requer instrumentos com parâmetros psicométricos adequados, normatizados para a população geral e também para condições específicas, como no caso de crianças com deficiência.

Anteriormente ao DSM-5, o nível de severidade da deficiência intelectual era definido em função das variações do quociente intelectual (QI) (Armstrong, Hangauer, & Nadeau, 2012). As classificações eram utilizadas para fins diagnósticos, determinação dos serviços de suporte necessários, alocação de recursos e seleção de indivíduos para pesquisa e finalidades legais (Shevell, 2008). Porém, uma crítica ao uso exclusivamente dos testes de inteligência como forma de estabelecer o nível da deficiência é que os escores tendem a não ser tão válidos na extremidade inferior da variação do QI (APA, 2013).

A partir do DSM-5, os níveis de severidade da DI, a saber, leve, moderada, grave ou severa, devem ser estabelecidos com base na avaliação do funcionamento adaptativo e não mais nos escores em testes de inteligência. Nesse sentido, a determinação do nível de apoio ou suporte necessário ao indivíduo também deve pautar-se nos déficits adaptativos. Essa revisão se aproxima das definições utilizadas pela OMS, pela Aaidd e por outras organizações. Dessa forma, a avaliação do funcionamento adaptativo torna-se necessária e de extrema relevância para a indicação de intervenções apropriadas, realização de pesquisas e criação de políticas de saúde pública (Maenner et al., 2013).

O funcionamento adaptativo pode ser avaliado em três domínios: conceitual, social e prático. O domínio conceitual, também chamado de acadêmico, envolve a competência em áreas importantes para o desempenho escolar, como memória, linguagem, leitura, escrita, raciocínio matemático, aquisição de conhecimentos práticos, soluções de problemas e julgamento em situações novas. Já o domínio social envolve habilidades­ de percepção de pensamentos, sentimentos e experiências dos outros, empatia, ha­bilidades de comunicação interpessoal, de amizades e julgamento social. Por fim, o domínio prático se refere à aprendizagem e autogestão em diversos contextos, como cuidados pessoais, autocontrole, organização de tarefas escolares e profissionais, entre outros (APA, 2013).

Em diversos casos de transtornos do desenvolvimento, os prejuízos cognitivos, sendo eles gerais ou específicos, encontram-se associados a déficits no funcionamento adaptativo (Sparrow et al., 2005). A literatura também discute a relação entre funcionamento adaptativo e outros construtos, como inteligência (Keith, Fehrmann, Harrison, & Pottebaum, 1987), funções executivas (Ware et al., 2012), cognição social e teoria da mente (Astington, 2003; Hughes & Leekam, 2004), bem como com o ajustamento no ambiente escolar (Dunn, 1995).

Algumas variáveis também devem ser consideradas para a compreensão do funcionamento adaptativo, entre elas o contexto cultural e a idade. A primeira representa a estimulação ambiental, e a segunda, o desenvolvimento físico e neurobiológico. Durante fases mais precoces do desenvolvimento, como na pré-escola, comportamentos mais simples são considerados adaptativos. Aqui estão inseridas as habilidades motoras, de comunicação e socialização, como seguir instruções verbais simples, realizar jogos cooperativos com os pares e ser capaz de se alimentar de maneira independente. Já dos anos escolares até a fase adulta, comportamentos mais complexos são requeridos, como a participação em diversas atividades sociais e o desempenho acadêmico e no trabalho (Goldberg, Dill, Shin, & Nhan, 2009).

Delimitados os conceitos, os objetivos deste artigo são: fazer uma revisão de literatura nacional a partir de publicações na base SciELO sobre funcionalidade, comportamento ou funcionamento adaptativo; apresentar um dos principais instrumentos de avaliação do funcionamento adaptativo no cenário internacional, o adaptive behavior assessment system-II (Abas-II); e analisar sua estrutura fatorial com base nas matrizes de correlações do manual técnico do instrumento.

 

Investigação sobre funcionamento adaptativo: revisão da literatura nacional

Com o objetivo de verificar na literatura brasileira pesquisas que abordam o construto funcionamento adaptativo, realizou-se uma busca na base de dados SciELO em julho de 2014, acessado por meio da BVS-Psi, utilizando os termo “funcionalidade”, “comportamento adaptativo” e “funcionamento adaptativo”, sem restrição quanto ao ano de publicação dos artigos científicos encontrados. A partir da análise dos resumos dos artigos, elaboraram-se algumas categorias de análise, quais sejam, ano de publicação, área da revista que publicou o artigo, tipo de amostra, sexo dos participantes da pesquisa, delineamento, objetivos do estudo e instrumentos de funcionamento adaptativo utilizados.

Desse levantamento foram resgatados 46 artigos, sendo 37 com o termo “funcionalidade”, um com a expressão “comportamento adaptativo” e oito trabalhos em que a palavra “funcionalidade” foi empregada em áreas e com semânticas diversas das abordadas no presente artigo. O único artigo encontrado com o termo “comportamento adaptativo” foi publicado em 2010 pelos autores Carvalho, Pocinho e Silva, em uma revista da área da psicologia, e que apresenta uma revisão da literatura, ou seja, um estudo teórico, com o objetivo de compreender o construto dentro da área da educação e saúde. Não foram encontrados artigos com o descritor “funcionamento adaptativo”.

Quanto aos 37 artigos resgatados com o termo “funcionalidade”, todos foram publicados após o ano 2000. Com relação a 2005 e 2007, encontrou-se um artigo de cada ano; cinco artigos foram publicados em 2009; verificaram-se quatro artigos de 2010; sobre 2011 e 2012, identificaram-se seis artigos por ano; e, de 2013 a 2014, este último ano até o mês de julho, constataram-se sete artigos em cada ano. No Brasil, os estudos sobre funcionamento adaptativo são recentes, e, apesar de publicação crescente, ainda há poucos trabalhos quando se consideram todas as diferentes áreas em que o construto se faz presente e importante de ser investigado.

Foram detectadas 11 áreas de revistas científicas que publicaram pesquisas sobre funcionamento adaptativo: enfermagem (sete artigos), psiquiatria (três), medicina (dois), pediatria (um), fisiopatologia (um), multidisciplinar (dez), epidemiologia (três), psicologia (um), educação física (dois), fonoaudiologia (dois) e fisioterapia (cinco). A concentração é na área multidisciplinar, com 27,02% dos 37 artigos publicados. Essa área contempla estudos de áreas específicas como fonoaudiologia, medicina, psicologia, entre outras. Esse resultado é bastante interessante, condizendo com a comple­xidade do construto. A maioria dos estudos é de pesquisa empírica (25 trabalhos), seguida de estudos teóricos (oito), estudos de caso (dois) e relato de experiência (um).

O sexo dos participantes foi bastante equilibrado: 21 artigos têm, em sua composição amostral, sujeitos do sexo feminino, e 23, do sexo masculino. A maioria dos estudos inclui ambos os sexos, mas dois foram específicos do masculino e dois do feminino. Quanto ao tipo de amostra estudada, notou-se grande variedade, sendo 14 tipos de amostra com especificidades diferentes e relacionadas a doenças (por exemplo, idosos estomizados, hemiparesia crônica, lesão medular, lombalgia etc.). No entanto, 15 estudos tiveram como amostra idosos (oito), adultos (cinco), adolescentes (um) e crianças (um), sem relacionar a algum tipo de doença. Por meio dessas informações, pode-se perceber que a funcionalidade tende a ser investigada em sujeitos que apresentam questões de saúde mais complexas ou em idosos. Geralmente, são estudos que procuram verificar como essas populações mostram suas capacidades funcionais. Esse dado pode ser constatado no Quadro 1 sobre os objetivos das pesquisas, na qual também aparecem outras problemáticas de investigação. Para compor essa tabela, agruparam-se os objetivos dos estudos em oito temas que estão descritos nela.

 

 

Cada pesquisa traz um objetivo em particular a ser investigado, mas a maioria é para compreender a funcionalidade dos indivíduos. Porém, para um melhor entendimento, é importante que a medida da funcionalidade também possa ser coletada e compreendia por meio de instrumentos adequados para a população investigada, com evidências empíricas de validade, precisão e normatização. No entanto, poucos estudos se preocuparam com a questão do instrumento, e os que tiveram esse tema como objetivo se limitaram a traduzir o instrumento. Esse é um dado preocupante, pois, conforme observado no Quadro 2, diversos instrumentos são utilizados para coletar dados da funcionalidade dos indivíduos participantes das pesquisas.

 

 

Dos instrumentos citados no Quadro 2, três foram objeto de estudos de tradução: Whodas 2.0, overall assessment of the speaker´s experience of stuttering-adults (Oases-A) e life charts. Somente o core set da CIF para lombalgia foi submetido à validação empírica.

A carência de instrumentos padronizados em português para a avaliação de funcionamento adaptativo (Almeida, 2004; De Carvalho & Maciel, 2003; Santos, 2007) contrasta com a quantidade de opções existente nos Estados Unidos. Em 2002, a American Association on Mental Retardation (AAMR) recomendava o uso dos seguintes instrumentos: Vineland adaptative behavior scales – Vabs (Sparrow et al., 2005), AAMR adaptative behavior scales – ABS (Lambert, Nihira, & Leland, 1993), scales of independent behavior – SIB-R (Bruininks, Morreau, Gilman, & Andreson, 1991), comprehensive test of adaptative behavior-revised – CTAB-R (Adams, 1999) e Abas-II (Harrison & Oakland, 2003). Entretanto, não existem estudos de adaptação e verificação das propriedades psicométricas desses instrumentos para a população brasileira. Um dos principais instrumentos, considerado o estado da arte e a referência histórica, é o Abas-II. Dada sua relevância no cenário internacional, será descrito e abordado com mais detalhes a seguir.

 

Apresentação do Abas-II

Trata-se de uma escala que avalia três fatores amplos: habilidades conceituais, sociais e práticas, conforme a definição de funcionamento adaptativo (APA, 2013). Subja­centes aos três fatores, encontram-se as escalas que avaliam dez habilidades específicas­: comunicação, uso do ambiente comunitário, conhecimento pré-acadêmico, vida no ambiente domiciliar, saúde e segurança, lazer, autocuidado, independência e controle sobre as tarefas, socialização e trabalho. O Abas-II pode ser interpretado com base em três medidas: um resultado geral de nível adaptativo, três índices fatoriais e o desempenho em cada domínio específico a partir de pontos ponderados por faixa etária.

Seu uso clínico é possível desde o nascimento até os 89 anos de idade e em diferentes condições, como para auxílio no diagnóstico de deficiência intelectual, na identificação de um perfil individual de habilidades preservadas e prejudicadas para planejamento de intervenções, e no acompanhamento e monitoramento de avaliações de um mesmo indivíduo em diferentes momentos (Harrison & Oakland, 2003). A escala pode ser aplicada a pais ou outros respondentes, como professores, cuidadores, outros membros da família e o próprio indivíduo.

Para exemplificar o procedimento de resposta, na escala destinada a pais, estes respondem às questões referentes ao comportamento da criança, de acordo com uma escala Likert entre 0 e 3 pontos. Uma pontuação zero é dada quando a criança não con­segue realizar o comportamento, ainda não alcançou a fase de desenvolvimento que permite realizá-lo ou possui dificuldades físicas que impedem o comportamento; 1 ponto é atribuído aos casos em que quase nunca ocorre o comportamento, mesmo que a criança tenha habilidade para realizá-lo, ou quando ela quase nunca o faz sem ser lembrada; 2 pontos são atribuídos quando a criança tem habilidade para realizar o comportamento, mas o faz apenas às vezes quando necessário, somente às vezes faz sem ajuda ou sem ser lembrada; 3 pontos são atribuídos quando a criança realiza o comportamento na maioria das vezes sem precisar de ajuda ou sem ser necessário lembrá-la.

Parâmetros psicométricos do Abas-II

Para que possam adquirir o caráter de conhecimento científico, os conceitos e as definições de funcionamento adaptativo, como quaisquer outros, necessitam passar pelo crivo de investigações a respeito de sua validade. Estudar a validade de um construto envolve uma lenta e gradativa construção de evidências, assim como um conjunto multifacetado de estratégias e análises de dados. Apesar dessa complexidade, um passo fundamental requer o estudo da validade estrutural dos principais instrumentos que aferem o construto-alvo. Se esses instrumentos não apresentam validade estru­tural, duas possibilidades são plausíveis: os instrumentos são inadequados ou os construtos não são válidos. Nesse sentido, a validade estrutural permite tanto a verificação da qualidade de instrumentos quanto a plausibilidade empírica do construto teórico postulado (Clark & Watson, 1995).

Atualmente, o Abas-II apresenta, em seus estudos, análises fatoriais confirmatórias que apontam tanto para a presença de um funcionamento adaptativo geral quanto para três domínios distintos, porém correlacionados. Ambos os modelos são considera­dos válidos pelos pesquisadores do Abas-II. Em função de sua importância, a estrutura fatorial do Abas-II tem influenciado a definição no campo de estudos sobre funcionalidade, e a investigação da estrutura fatorial do Abas mostra-se bastante pertinente em função do exposto.

O manual do Abas-II apresenta seis análises de versões diferentes do instrumento, com análises fatoriais dos dez escores referentes às escalas. Há uma série de informações a respeito dos alfas de Cronbach de cada uma das dez escalas em populações diferentes, na maioria delas acima de 0,70, indicando confiabilidade adequada. Em relação às seis análises fatoriais confirmatórias, elas foram feitas por meio do método da máxima verossimilhança, partindo do princípio da distribuição normal dos dez escores das escalas do instrumento. As seis análises investigaram especificamente a resposta dos participantes no caderno da: 1. forma adulta, avaliado por outros; 2. forma adulta, autorrelato; 3. forma parental; 4. forma do cuidador ou pai; 5. forma do cuidador ou professor; 6. forma do professor (Harrison & Oakland, 2003).

A versão da forma do cuidador ou professor apresentou os seguintes valores para o modelo de um fator: χ² [20] = 142,1; χ²/gl = 7,1; AGFI = 0,92; RMSEA = 0,09; TLI = 0,95. Para o modelo dos três fatores, os valores foram os seguintes: χ² [17] = 127,1; χ²/gl = 7,5; AGFI = 0,91; RMSEA = 0,09; TLI = 0,95. Um bom ajuste do modelo é indicado quando o adjusted goodness-of-fit index (AGFI) e o Tucker-Lewin index (TLI) apresentam valores iguais ou superiores a 0,95, e o root-mean-square error of aproximation (RMSEA), um valor igual ou inferior a 0,05 (Schumacker & Lomax, 2004). Nesse sentido, não se pode atribuir um bom ajuste aos dados para o modelo de um fator nem para o modelo de três fatores para a versão da forma do cuidador ou professor. O AGFI apresentou valores aquém do necessário para um bom ajuste, assim como o RMSEA. A versão da forma do cuidador ou pai apresentou valores relativamente semelhantes à versão da forma do cuidador ou professor (modelo de um fator: χ² [27] = 278,6; χ²/gl = 10,3; AGFI = 0,91; RMSEA = 0,09; TLI = 0,94; modelo de três fatores: χ² [24] = 245,9; χ²/gl = 10,3; AGFI = 0,91; RMSEA = 0,09; TLI = 0,94), indicando também que nenhum­ dos dois modelos possui um bom ajuste aos dados.

Apesar de não terem um bom ajuste aos dados, os valores dessas duas versões poderiam ser considerados relativamente razoáveis, indicando modelos razoavelmente ajustados aos dados. No entanto, as quatro outras versões do Abas-II apresentam valores bastante ruins, indicando ajustes inadequados aos dados tanto para o modelo de um fator quanto para o modelo de três fatores. A versão do professor apresentou os seguintes valores: modelo de um fator, χ² [27] = 753,9; χ²/gl = 27,9; AGFI = 0,85; RMSEA = 0,13; TLI = 0,93; modelo de três fatores, χ² [24] = 706,6; χ²/gl = 29,4; AGFI = 0,84; RMSEA = 0,13; TLI = 0,92. Já a versão dos pais apresentou os valores: modelo de um fator, χ² [27] = 687,3; χ²/gl = 25,5; AGFI = 0,86; RMSEA = 0,12; TLI = 0,91; modelo de três fatores, χ² [24] = 552,2; χ²/gl = 23,0; AGFI = 0,87; RMSEA = 0,11; TLI = 0,92. A versão do adulto, autorrelato, teve os seguintes valores: modelo de um fator, χ² [27] = 502,7; χ²/gl = 18,6; AGFI = 0,83; RMSEA = 0,13; TLI = 0,91; modelo de três fatores, χ² [24] = 482,5; χ²/gl = 20,1; AGFI = 0,82; RMSEA = 0,14; TLI = 0,91. Finalizando, a versão do adulto, avaliado por outros, apresentou os valores: modelo de um fator, χ² [27] = 428,0; χ²/gl = 15,9; AGFI = 0,84; RMSEA = 0,13; TLI = 0,93; modelo de três fatores, χ² [24] = 407,7; χ²/gl = 17,0; AGFI = 0,83; RMSEA = 0,13; TLI = 0,92.

Apesar de apresentar informações relevantes sobre a confiabilidade das escalas e a validade convergente, a validade divergente, a sensibilidade e especificidade em relação a diagnósticos clínicos, as evidências sobre a validade estrutural não são favoráveis. Em função dessa condição, realizamos uma análise alternativa das seis versões do Abas-II, buscando encontrar modelos alternativos com melhor grau de ajuste e capazes­ de apontar uma melhor compreensão sobre os construtos desse instrumento. Serão avaliados três modelos. O primeiro modelo determina a presença de um único fator, e o segundo postula a presença de três fatores. Ambos os modelos apenas reproduzem as análises anteriores do Abas-II supramencionadas. O terceiro modelo determina uma relação bifatorial, com a presença de um fator geral e possíveis fatores específicos, todos sendo ortogonalizados entre si. Será permitido ao modelo bifatorial apresentar diferentes números de fatores específicos, que serão definidos de forma exploratória. Todos os modelos foram estimados com a máxima verossimilhança, por meio do software Amos 16.0. Para a análise, utilizaram-se os dados das matrizes de correlação, com o tamanho da amostra, a média e o desvio padrão das seis versões do Abas-II, disponibilizados no manual (Harrison & Oakland, 2003).

A Tabela 1 apresenta os valores dos índices de ajuste dos três modelos nas seis versões do Abas-II. Vale ressaltar que o AGFI e TLI foram os únicos índices utilizados no estudo original e, por isso, foram mantidos nas análises. Entretanto, acrescentaram-se os índices RMSEA, AIC e BIC, conforme recomendado pela literatura (Schumacker & Lomax, 2004). Em todas as versões, o modelo bifatorial apresentou bom ajuste aos dados e mostrou-se uma estrutura mais correta para a interpretação dos construtos do Abas-II. No entanto, o modelo bifatorial da versão da forma do cuidador, professor, tem um fator específico, enquanto as outras versões têm três fatores específicos. Além disso, nas versões com três fatores, foi permitido que determinadas relações estivessem presentes em uma versão e não em outra. Desse modo, pode-se verificar que o único fator com as mesmas relações em todas as versões é o fator geral, indicando sua importân­cia. A Figura 1 apresenta os modelos bifatoriais das seis versões e os betas encontrados.

 

 

 

 

Apesar de alguns fatores específicos apresentarem betas relativamente baixos em relação às dez escalas, é importante destacar que esses betas baixos são pesos fatoriais já provenientes da eliminação do efeito do fator geral na explicação das escalas, de modo que esses betas realmente representam elementos de validade incremental desses fatores específicos, mesmo que em grau pequeno.

Uma possibilidade para uma estimativa mais adequada dos fatores específicos seria uma análise fatorial confirmatória a partir dos escores dos respondentes nos itens. Infelizmente, o manual do Abas-II apenas fornece a matriz de correlação dos escores nas dez escalas, inviabilizando uma análise importante. Por meio da análise fatorial dos itens, seria mais provável uma estimativa mais robusta dos fatores específicos, pois o número de variáveis observáveis seria infinitamente superior, permitindo uma melhor identificação. No entanto, mesmo com essa limitação, a análise fatorial por meio dos dez escores das escalas fornece boas indicações da presença de fatores específicos a serem considerados e interpretados futuramente pela literatura em adaptação funcional.

 

Considerações finais

A investigação do funcionamento adaptativo pode contribuir para uma melhor compreensão dos comprometimentos associados a diversos quadros clínicos, de modo a fornecer subsídios a intervenções que levem a melhores prognósticos. Nesse sentido, políticas públicas, como práticas e estratégias educacionais e atendimento especializado em saúde e educação, poderiam ser informadas e direcionadas a partir da avaliação de funcionalidade do indivíduo, com o propósito de provê-lo de recursos específicos às suas reais necessidades e ampliar as chances de participação na sociedade.

Apesar de o construto ter ganhado relevância na literatura e na prática clínica com a publicação do DSM-5, que considera a avaliação do funcionamento adaptativo no diagnóstico de nível de severidade de DI, por exemplo, algumas questões permanecem em aberto para investigações futuras. A pesquisa nacional sobre a temática é ainda incipiente e um dos maiores desafios que se colocam à área é a carência de instrumental no contexto nacional. A partir da revisão realizada neste artigo, verificou-se que os estudos que tiverem instrumentos como foco tenderam a deter-se apenas sobre a sua tradução, havendo apenas um relato de investigação de evidências de validade de um instrumento.

Uma avaliação de qualidade é a primeira etapa e pré-requisito para uma intervenção de qualidade. Para tal, é imprescindível dispor de instrumentos cientificamente fundamentados, com adequados parâmetros psicométricos. Com base nesse postulado, o artigo apresentou o Abas-II e análises alternativas para todas as seis versões do instrumento. Evidenciou, em todos os casos, a adequação dos dados a um modelo bifatorial, ou seja, considera que o construto funcionalidade pode ser compreendido por um fator geral e possíveis fatores específicos. Essas análises mostram que o modelo bifatorial parece mais adequado em relação aos modelos de único fator e de três fatores apresentados no próprio manual do instrumento.

O artigo trouxe à discussão o conceito de funcionamento adaptativo e sua relevância no diagnóstico e na intervenção, assim como na compreensão de déficits específicos, confrontando-o com o limitado número de estudos e a carência de instrumentos de avaliação na literatura nacional. Há a expectativa de que o panorama aqui oferecido motive novos estudos que incluam construção, tradução, adaptação e investigação de características psicométricas de instrumentos para a realidade brasileira, entre eles o próprio Abas-II.

 

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Endereço para correspondência:
Tatiana Pontrelli Mecca
Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Rua Piauí, 181, 10º andar, Higienópolis
São Paulo – SP – Brasil. CEP: 01302-000
E-mail: tatiana.mecca@unifieo.br

Submissão: 18.8.2014
Aceitação: 13.4.2015

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