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Psicologia: teoria e prática

versión impresa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.18 no.1 São Paulo abr. 2016

 

PSICOLOGIA SOCIAL

Espaço urbano, natureza e relações sociais: por uma sustentabilidade afetiva

 

Urban space, nature and social relations: for an affective sustainability

 

Espacio urbano, naturaleza y relaciones sociales: para una sostenibilidad afectiva

 

 

Sonia Regina Vargas MansanoI
I Universidade Estadual de Londrina, Londrina – PR – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

A questão da sustentabilidade vem sendo debatida em diversos âmbitos sociais como os governos, as organizações públicas e privadas, as universidades, e, em larga medida, o debate ganha espaço nas conversas presentes no cotidiano do cidadão comum. É perceptível que no último século a preocupação com a natureza atravessou as fronteiras de países e ganhou relevância global, sendo amplamente debatida em conferências internacionais. Na presente pesquisa teórica, buscou‑se analisar as interfaces entre a natureza e as relações sociais vividas no espaço urbano. Para isso, buscou‑se elaborar conceitualmente a noção de “sustentabilidade afetiva”, mostrando que a preocupação com a natureza envolve, necessariamente, as relações afetivas que construímos em relação ao meio ambiente, mas também em relação às pessoas, ao conhecimento e aos modos de vida. Como resultado, pode‑se dizer que as cidades encontram‑se diante de um grande desafio: atentar para as maneiras de viver que nelas são atualizadas.

Palavras-chave: sustentabilidade; afeto; espaço urbano; natureza; psicologia.


Abstract

The issue of sustainability has been discussed in various social spheres like governments, public and private organizations, and universities; to a large extent the debate gets space in conversations in the everyday life of ordinary people. It is noticeable that in the last century the concern with nature across the borders of countries and won global relevance, being widely debated at international conferences. In this theoretical research, sought to examine the interface between nature and social relations lived in urban space. For this purpose, sought to develop conceptually the notion of “affective sustainability”, showing that the concern with nature involves, necessarily, the affective relationships that build towards the environment, but also in relation to people, knowledge and ways of life. As a result, it can be said that the cities are faced with a great challenge: look at the ways of living that are updated.

Keywords: sustainability; affect; urban space; nature; psychology.


Resumen

La cuestión de la sostenibilidad ha sido discutida en diversas esferas sociales como los gobiernos, organizaciones públicas y privadas, universidades y, en gran parte, el debate fue diseminado en las conversaciones en la vida diaria de los ciudadanos. Es evidente que en el siglo pasado la preocupación con la naturaleza cruzó las fronteras de los países y ganó relevancia mundial, siendo ampliamente debatida en conferencias internacionales. Esta investigación teórica, intentó examinar las interfaces entre la naturaleza y las relaciones sociales vividas en el espacio urbano. Para ello, buscó desarrollar conceptualmente la noción de «sostenibilidad afectiva», mostrando que la preocupación con la naturaleza implica, necesariamente, las relaciones afectivas que hemos construido en relación al medio ambiente, sino también en relación con la gente, conocimiento y formas de vida. Como resultado, puede decirse que las ciudades se enfrentan a un gran desafío: mirar las formas de vida que se actualizan.

Palabras clave: sostenibilidad; afecto; espacio urbano; naturaleza; psicología.


 

 

É notável que o Brasil aparece aos olhos das demais nações como um país de grande beleza e de diferentes reservas ambientais. Toda essa riqueza natural, entretanto, não foi suficiente para concretizar uma preocupação sistemática com a preservação da natureza em nosso país. Em nome do desenvolvimento econômico, desmatamos, no decorrer do século passado, boa parte da Mata Atlântica, além de termos avançado na exploração agrícola e na urbanização, por vezes desorganizada, em todas as regiões brasileiras, fato que também trouxe prejuízos à natureza. Ainda assim, somos o país que tem uma das maiores coberturas vegetais nativas do mundo e uma legislação ambiental considerada avançada, apesar de nem sempre mostrar-se eficiente em sua função de detectar, fiscalizar e impedir a devastação. A exploração do meio natural colocou-nos, historicamente, diante de problemas ecológicos que, desde o final do século passado, passaram a ser considerados com mais atenção nas análises empreendidas por governos, organizações públicas e privadas e universidades. Tal preocupação ganhou espaço também junto aos cidadãos comuns que, aos poucos, vão se sensibilizando com a depredação da natureza.

Paralelo a esse quadro, contamos com um aumento demográfico significativo. Diante dos problemas básicos a serem enfrentados cotidianamente pela população urbana, que está bastante preocupada com a própria sobrevivência (na busca por emprego, moradia, segurança, saúde e educação), as práticas de cuidado com a natureza ficam em segundo plano. Somadas a esse distanciamento, as exigências advindas do campo profissional, que envolvem, entre outros aspectos, o tempo, a energia, o conhecimento, a criatividade e o afeto do trabalhador, acabam por dificultar uma análise mais crítica e situada do que estamos fazendo com a natureza e, por extensão, com as relações sociais e afetivas experimentadas nas cidades. Estudos sobre o espaço urbano (Santos, 2012; Bertini, 2014; Harvey, 2013) evidenciam o quanto as cidades se consolidam como verdadeiros desafios políticos a serem enfrentados no século XXI. Harvey (2013, p. 32) salienta: “O direito à cidade não pode ser simplesmente concebido como um direito individual. Ele demanda um esforço coletivo e a formação de direitos políticos ao redor de solidariedades sociais”. Para esse autor, é no espaço urbano que as relações sociais e afetivas podem ou não ser consolidadas; possibilidade essa que, por si só, gera uma série de questões incômodas sobre os modos de existência subjetiva que somos capazes de colocar em circulação neste tempo histórico.

Foi tomando esse cenário em análise que delineamos o objetivo do presente artigo que consiste em ensaiar uma aproximação entre a Psicologia Social e o debate ecológico, valendo-nos, para isso, de algumas ferramentas conceituais que, em nosso entendimento, nos facultam analisar a complexa e multifacetada relação entre homem e natureza. Para isso, será focalizada a problemática dos modos de vida que ajudamos a construir nas cidades, buscando delinear e dar consistência à noção de sustentabilidade afetiva.

 

Delineando um campo problemático: algumas questões de método

O campo problemático no qual se desenvolve o presente estudo abarcou três momentos. Primeiramente, abordamos a noção de “sustentabilidade”, tal qual aparece nos estudos de Elkington (2001), Foladori (2002) e Faria (2014), no intuito de demonstrar as divergências conceituais e políticas presentes nessa noção que, em nossa perspectiva, ainda está sendo construída por meio das práticas ecológicas, das conferências mundiais sobre meio ambiente e dos estudos realizados nas universidades.

Em seguida, o artigo debruçou-se sobre o conceito de “afeto”, adotando a referência do filósofo holandês Baruch Espinosa (1983) e também tomando em consideração as análises de Gilles Deleuze (2002, 2009) sobre o tema e sobre a obra desse filósofo. A escolha por esses dois teóricos (um clássico e um contemporâneo) deveu-se à consistência teórica com a qual cada um deles trata o conceito, mas, sobretudo, à dimensão política que ambos assumem ao abordarem a questão dos afetos, resgatando o humano em sua potência de ação, conexão e transformação. Estudos realizados na área de Psicologia (Sawaia, 2009; Bertini, 2014) também compareceram na discussão desse conceito.

Por fim, fazendo uma aproximação entre a noção de sustentabilidade e o conceito de afeto, discutimos as relações sociais vividas especificamente na esfera urbana, recorrendo às considerações de Guattari (1997), Sennett (1998) e Harvey (2013) que diagnosticam o momento presente, caracterizando-o pela urbanidade e seus desdobramentos subjetivos.

O delineamento que fazemos desse campo problemático teórico nasceu da necessidade de aprofundamento tanto da noção de sustentabilidade quanto das articulações dessa com o conceito de afeto. Nesse sentido, a investigação serve como ponto de partida para a construção de novos saberes sobre um tema que é, ao mesmo tempo, emergente e urgente: a vida no planeta. Para Demo (2000, p. 20), a pesquisa teórica busca “reconstruir teoria, conceitos, ideias, ideologias, polêmicas, tendo em vista, em termos imediatos, aprimorar fundamentos teóricos”. Esse tipo de estratégia investigativa justifica-se por partir de uma problemática que atinge uma esfera específica da vida em sociedade, cuja exploração ainda demanda aprofundamento teórico e consistente, capaz de aproximar-se da realidade concreta. Assim, o campo de investigação conceitual aqui delimitado, que circunscreve o conceito de sustentabilidade afetiva, servirá como condição para caracterizar um dos diversos desafios que nos é colocado na contemporaneidade capitalista: a vida afetiva nas cidades.

 

Sustentabilidade: uma noção polêmica

A questão da sustentabilidade tem sido estudada por diferentes áreas de conhecimento. Entretanto, ela ainda não conta com um referencial teórico sistematizado que defina seus principais pressupostos. Isso se deve, em grande parte, à recente emergência histórica da noção de desenvolvimento sustentável, que advém de um relatório, elaborado no ano 1987 e apresentado à Organização das Nações Unidas (ONU) por meio do documento denominado “Nosso futuro comum” (Brundtland, 1991). O foco desse relatório era dirigido às gerações futuras e à preocupação em garantir-lhes acesso às riquezas naturais. Desde então, várias conferências internacionais foram realizadas com o intuito de firmar compromissos entre os países no combate à destruição ambiental e em favor do cuidado com o planeta. Entretanto, como os compromissos não estão sendo cumpridos de maneira consistente até o momento, eles são amplamente questionados (Misoczky & Böhm, 2012).

Na década de 1990, o sociólogo britânico John Elkington (2001) elaborou, em outras bases, a noção de sustentabilidade desdobrando-a em três dimensões: ambiental, social e econômica. O chamado Triple Bottom Line criou alguns parâmetros para efetivar uma avaliação mais sistemática sobre a intervenção empresarial na natureza. Nessa nova tentativa, buscou-se levar a noção de sustentabilidade para perto da realidade empresarial, objetivando minimizar as críticas que recaem sobre as empresas no que se refere à prioridade de obtenção do lucro em relação aos danos causados para a sociedade e para o meio ambiente. Ocorre que, desde sua criação, o tripé da sustentabilidade acabou enfatizando as questões econômicas com vistas a justificar o crescimento econômico e desconsiderando, em larga medida, a ação destrutiva dos grandes agentes poluidores do planeta. Com isso, o termo sustentabilidade passou a ser amplamente difundido pelas empresas e pela mídia como forma de “maquiar” as ações poluidoras e destrutivas (Misoczky & Böhm, 2012).

Percebendo esse movimento e adotando perspectivas política e conceitual diferentes, outra vertente de pesquisadores buscou combater essa dimensão capitalista da noção de sustentabilidade, chamando a atenção para as implicações éticas e políticas que são atualizadas na relação entre homem e natureza. Tais estudiosos evidenciaram que uma intervenção contextualizada e precisa nesse campo colocaria em questão os próprios valores disseminados pelo capitalismo, que deram suporte para destruição da natureza de maneira incisiva (Foladori, 2001; Leff, 2010; Faria, 2014). Assim, ganhou consistência uma abordagem situada e politizada que contesta a dimensão ideológica e tecnicista historicamente presente no referido conceito. Foladori (2001, p. 112) considera:

[...] apesar dos importantes avanços tanto no âmbito teórico quanto em sua implementação prática, o desenvolvimento sustentável continua basicamente atrelado a um desempenho técnico, dentro das regras do jogo do sistema de mercado capitalista, sem atingir nem questionar as relações de propriedade e apropriação capitalistas, que geram pobreza, diferenciação social e injustiça [...]. Esses mecanismos e as agências que os promovem podem conduzir a melhorias locais de alto impacto sobre a população. São também essenciais para efeitos de direitos humanos, assim como solucionam problemas localizados de fome ou doenças específicas. Porém, atuam sobre as consequências de um processo de diferenciação e injustiça social, produto das relações de mercado capitalistas.

Como se pode notar, a noção de sustentabilidade está envolvida com uma série de polêmicas que, a nosso ver, estão servindo, em alguma medida, para promover debates e delinear seus principais pressupostos. Um estudo recentemente elaborado por Faria (2014) aborda tanto as referências tradicionais dessa noção quanto aquelas que se propõem a um exame mais criterioso sobre a preservação da vida no planeta, englobando uma análise das práticas empresariais, governamentais e da sociedade civil. Nesse estudo, o autor faz menção à necessidade de ampliar a compreensão da sustentabilidade, estendendo-a para além da tríade (ambiental, social e econômica) e abarcando também dimensões como a política, o espaço urbano e a cultura. Em suas palavras, um estudo acerca da sustentabilidade necessita:

[...] expressar a emancipação dos sujeitos [...], promovendo a conscientização crescente da necessidade de uma sociedade em que os interesses coletivos prevaleçam sobre os particulares e em que os indivíduos sejam sujeitos de sua própria história, escrevendo-a coletivamente (Faria, 2014, p. 13).

Nessa diversidade de abordagens sobre a questão ambiental, é notável que o espaço urbano ganhou relevância e tornou-se, ao mesmo tempo, um campo problemático desafiador e uma oportunidade para colocar em curso um exercício político de debates, enfrentando as dificuldades advindas das relações socioafetivas e da relação com o meio ambiente urbano. Estamos diante de um problema ecológico que, seja pela via do afeto, seja pela via da natureza, evidencia os limites e as possibilidades das ações políticas e coletivas.

Nesse sentido, tornou-se relevante incluir outro ângulo para compreender a noção de sustentabilidade: sua etimologia. O verbo “sustentar” vem do latim sustentare e significa “suportar, suster; defender, proteger; favorecer, apoiar; consolar; manter, conservar, cuidar; auxiliar, vir em socorro; alimentar, manter; sofrer, suportar, resistir a; diferir, adiar” (Houaiss, 2014). Essa ampla variedade de significações, que engloba até divergências, permitiu-nos limitar a acepção do termo, para o contexto deste estudo, levando-nos a priorizar, especificamente, os sentidos de favorecer e apoiar.

A partir desse direcionamento, buscamos estendê-lo para as diferentes dimensões da existência, incluindo aí o objeto do presente estudo: a natureza e as relações afetivas que nos atravessam. Diante dessa decisão, coube-nos questionar: O que haveria para sustentar, em termos afetivos, na vida social que acontece no espaço urbano? Qual a importância atribuída à natureza, em relação aos afetos experimentados na relação com a cidade? Dessa maneira, exploraremos, em seguida, o conceito de afeto e suas implicações para o espaço urbano.

 

Afeto: as variações dos corpos nos encontros

A noção de afeto adotada nesta pesquisa tem como referência a obra Ética III de Espinosa (1983) e as obras de Deleuze (2002, 2009) sobre o referido filósofo, na condição de seu comentador. A partir desse delineamento, buscamos explorar três ângulos de análise que permitirão compreender esse conceito de maneira mais consistente.

Primeiramente, Espinosa (1983, p. 176) parte da noção de afecções e as compreende como “afecções do corpo, pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada”. Focalizando a análise no corpo, temos algo a ser examinado: De qual corpo falamos? Trata-se de um corpo sensível, permanentemente afetado por outros corpos que estão ao seu redor. Temos, então, uma infinidade de corpos que compõem algo maior a que Espinosa denomina natureza.

Avançando em sua análise, Espinosa (1983, p. 176) agrega outra caracterização: “o corpo pode ser afetado de numerosas maneiras pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída”. Deparamos, então, com um segundo ângulo a ser analisado: a potência de agir. Se o que afeta o corpo e o faz variar são os encontros vividos cotidianamente, pode-se notar que a sua potência não é definida de uma vez por todas; ela sofre variações que, na leitura de Deleuze (2002, p. 33) sobre Espinosa, permite conceber o indivíduo, a cada momento, como “um grau de potência”. Assim, um corpo pode experimentar graus de maior ou menor potência dependendo das afecções que vive. Deleuze (2009, p. 47) acrescenta: “Quando sou afetado de tristeza, minha potência de agir diminui; isto é, eu estou ainda mais separado dessa potência. Quando sou afetado de alegria, ela aumenta; isto é, eu estou menos separado dessa potência”. Por meio dos encontros, o corpo experimenta uma “espécie de linha melódica de variação contínua” (Deleuze, 2009, p. 26). É nesse sentido que a noção de afeto, em Espinosa, está diretamente ligada ao estudo da potência do corpo que varia conforme os encontros e suas intensidades. Advém daí uma de suas constatações que ganha contornos instigantes: “Ninguém, na verdade, até o momento, determinou o que pode um corpo” (Espinosa, 1983, p. 178).

Partindo dessa ignorância é que chegamos ao terceiro ângulo a ser analisado neste estudo sobre o conceito de afeto. Grande parte dos encontros que vivemos acontece ao acaso. Isso leva os nossos interlocutores a questionar como cada corpo age para desvencilhar-se dos encontros que diminuem a sua potência e como ele pode se esforçar para se envolver com bons encontros, que aumentam sua potência. Essa é uma das maiores provocações colocadas pelos autores. Trata-se do que Deleuze (2009, p. 51) chama de “um trabalho de vida”, ou seja, um exercício que busca “compreender de maneira vital em que tal ou tal corpo desconvém e não mais convém” (Deleuze, 2009, p. 51). Ora, o que o autor nos desafia a realizar, então, é uma análise “do ponto de vista da composição de suas relações, e não mais do ponto de vista do acaso dos encontros” (Deleuze, 2009, p. 51). Sob essa perspectiva, os afetos deixam de ser vividos apenas por seus efeitos imediatos e torna-se possível caminhar em direção à compreensão das composições e decomposições que os encontros precipitam nos corpos. Isso é feito à medida que vamos compreendendo as causas das variações provocadas no corpo e nos modos de viver.

Em recente estudo sobre as transformações da cidade e seus desdobramentos subjetivos, Bertini faz um aprofundamento sobre o conceito de afeto, tomando por base os estudos de Espinosa e Deleuze. Bertini (2014, p. 69) assinala:

Experimentar uma cidade, andar nas ruas, mover-se nos transportes coletivos ou individuais é entrar em contato com uma multiplicidade de afetos tão variáveis que o citadino não encontra sempre uma solução estável. Medo, alegria, amor, ódio pertencem a um conjunto instável que acompanha o conhecimento do urbano ao longo de temporalidades históricas.

Diante dessa diversidade de afetos detectados por Bertini nos meios urbanos, retornamos a Espinosa e Deleuze, que sugerem um desafio: deixar de viver ao acaso dos encontros para caminhar em direção à análise das causas e dos efeitos deles em nosso corpo e em nossa existência. É preciso ressaltar, entretanto, que para esses autores não se trata de fazer uma simples análise linear de causa e efeito. O que está em jogo, de acordo com Deleuze, é uma apreciação ética e política que envolve “as maneiras de viver” (citado por Deleuze, 2014, p. 52). Maneiras essas capazes de sustentar e favorecer a tensão permanentemente colocada pela multiplicidade afetiva urbana. Isso nos permite, a partir de agora, ensaiar uma aproximação entre sustentabilidade afetiva e espaço urbano.

 

Sustentabilidade Afetiva: um desafio para as cidades

Analisando esses dois conceitos separadamente, sustentabilidade e afeto, acumulamos condições para ensaiar sua aproximação tendo como norteador a análise da vida nas cidades. Assim, podemos colocar a questão: Em que medida a potência de um corpo varia nesse espaço de múltiplos encontros? O que haveria para sustentar quando tomamos em análise os afetos que são experimentados nas cidades? Como poderíamos nos assenhorar desses afetos, coparticipando da construção de nossa vida?

Em uma análise sobre as cidades, Guattari (1992, p. 170) assinala que o “devir da humanidade parece inseparável do devir urbano”. Ele faz, então, uma consideração interessante sobre um duplo aspecto presente na existência contemporânea: ao mesmo tempo que tudo flui ao nosso redor: pessoas, carros, sonoridades, publicidades, cores, informações; vivemos a ameaça de uma paralisia. Para deixar isso mais claro, Guattari (1992, p. 169) oferece-nos o exemplo dos turistas, dizendo que eles “fazem viagens quase imóveis, sendo depositados nos mesmos tipos de cabines de avião, de pullman, de quartos de hotel e vendo desfilar diante de seus olhos paisagens que já encontraram cem vezes em suas telas de televisão, ou em prospectos turísticos”. Como turista, é possível percorrer o mundo superando distâncias; mas, na experimentação viva dos encontros, corre-se o risco de permanecer nos territórios amplamente conhecidos e protegidos, de hotéis e restaurantes, apreciando atrações formatadas e guiados em percursos turísticos supostamente seguros.

A sustentabilidade afetiva que, como vimos, parte de uma concepção do corpo em sua dimensão variável e transitória também pode ser utilizada como ferramenta conceitual para compreensão dos impasses urbanos. O fato é que no modo de vida urbano atual, tanto a natureza, principalmente em razão dos poluentes gerados pelos meios de transporte, quanto a vida humana, que está cada vez mais presa nas redes de produção de riquezas e deslocamento, encontram-se em risco. Assim, Guattari (1992, p. 172) afirma:

O drama urbanístico que se esboça no horizonte deste fim de milênio é apenas um aspecto de uma crise muito mais fundamental que envolve o próprio futuro da espécie humana neste planeta. Sem uma reorientação radical dos meios e sobretudo das finalidades da produção, é o conjunto da biosfera que ficará desequilibrado e que evoluirá para um estado de incompatibilidade total com a vida humana e, aliás, mais geralmente, com toda forma de vida animal e vegetal. Essa reorientação implica, com urgência, uma inflexão da industrialização [...], uma limitação da circulação de automóveis ou a invenção de meios de transporte não poluentes, o fim dos grandes desflorestamentos.

Como vimos no início deste ensaio com Espinosa, natureza e vida social aparecem como dois aspectos da existência que são politicamente indissociáveis: nossas ações afetam a natureza e a natureza nos afeta de maneira recorrente. Assim, não há exterioridade entre esses dois elementos. Diz Guattari (1992, p. 173):

Não seria exagero enfatizar que a tomada de consciência ecológica futura não deverá se contentar com a preocupação com fatores ambientais, mas deverá também ter como objeto devastações ecológicas no campo social e no domínio mental. Sem transformação das mentalidades e dos hábitos coletivos haverá apenas medidas ilusórias relativas ao meio material.

O que a história construída nas cidades nos ensina é precisamente essa dimensão afetiva indissociável entre humano e natureza. Torna-se, então, relevante ponderar que qualquer ação política ligada ao meio ambiente, seja na esfera governamental ou privada, seja nas práticas microssociais cotidianas, precisa considerar que homem e natureza compõem uma mesma biosfera, ainda que, para Espinosa, cada um deles se manifeste por atributos (formas) diferentes. As agressões recíprocas incidem sobre a vida geral do planeta.

Decorrente dessa dupla agressão, outro aspecto a ser considerado é que o espaço urbano está cada vez mais marcado por medo, desconfiança e ameaça. Praças, ruas, parques e avenidas, utilizados quase exclusivamente para o deslocamento diurno de trabalhadores, sofreram um duplo golpe: por um lado, há pouca atenção ao pedestre que tende a ocupar esse espaço público exclusivamente para deslocar-se; por outro, a rua, historicamente caracterizada como espaço de encontros, tornou-se, em nossos dias, sinônimo de perigo, sendo cada vez mais evitada e temida. O refúgio naquilo que Sennett (1998, p. 411) chamou de “tiranias da intimidade” acaba servindo como mais uma justificativa para o distanciamento do espaço público urbano e para a despotencialização de uma vida compartilhada. Em nome de uma suposta segurança, expomo-nos a um risco maior: o de transformar um espaço, que é público e compartilhado, em espaço de mero deslocamento. Note-se que, com esse grau de distanciamento das questões que afetam a vida pública, a preocupação com a natureza e o planeta praticamente some do debate coletivo. Sobre isso, Sennett (1998, p. 26) assinala:

A visão intimista é impulsionada na proporção em que o domínio público é abandonado, por estar vazio. No mais físico dos níveis, o ambiente incita a pensar no domínio público como desprovido de sentido. É o que acontece na organização do espaço urbano. Arquitetos que projetam arranha-céus e outros edifícios de grande porte e alta densidade se vêem forçados a trabalhar com idéias a respeito da vida pública, no seu estado atual, e de fato se incluem entre os poucos profissionais que por necessidade expressam e tornam esses códigos manifestos para outrem.

A regularidade afetiva disseminada nas relações sociais como uma exigência de “boa conduta”, com a finalidade de apaziguar e disciplinar a variação afetiva dos corpos, consegue até contê-los momentaneamente. Mas o efeito dessa contenção pode explodir em atos que ganham contornos desmesurados. Esses, quando analisados de maneira recortada e descontextualizada, chocam a população e colaboram para disseminar ainda mais o medo, a sensação de insegurança e o isolamento defensivo. Isso evidencia o quanto estamos nos distanciando do exercício político de uma vida pública, com seus confrontos, debates, negociações, variações e alianças. Esse fato, de acordo com Sawaia (2009), pode nos lançar na insegurança e na exclusão social. É diante desses problemas de convivência urbana entre os humanos e desses para com a natureza que afirmamos o quanto a existência nas cidades está se tornando afetivamente insustentável. Isso é intensificado quando o espaço urbano, com suas variações afetivas, sociais, econômicas, culturais e ambientais, torna-se um campo de batalha pela definição e apropriação de direitos individuais. Harvey (2013, p. 34) faz alusão à outra dimensão desse direito, precisamente aquela que diz respeito à coletividade:

O direito inalienável à cidade repousa sobre a capacidade de forçar a abertura de modo que o caldeirão da vida urbana possa se tornar o lugar catalítico de onde novas concepções e configurações da vida urbana possam ser pensadas e da qual novas e menos danosas concepções de direitos possam ser reconstruídas. O direito à cidade não é um presente. Ele tem de ser tomado pelo movimento político.

Cabe examinar, então, o quanto estamos dispostos, enquanto cidadãos, a acolher e praticar esse exercício político difícil que envolve debate, confronto, uso e apropriação do espaço urbano, do afeto e da natureza.

 

Considerações finais

Chegando ao término deste trabalho, uma questão insiste: Em que tipo de cidade desejamos viver e o que estamos fazendo para construí-la? A sistemática adesão populacional a uma organização socioeconômica capitalista trouxe muitas conquistas e, junto com elas, problemas de difícil trato, como a desigualdade social, a dificuldade de acesso às riquezas e a depredação sistemática da natureza. Neste estudo, destacamos os efeitos produzidos pela busca incessante de lucro que atravessam a vida urbana com seus desdobramentos subjetivos de velocidade, intolerância e restrição do uso do espaço público.

Partindo da análise do termo sustentar, advinda dos conhecimentos elaborados por distintas áreas de conhecimento que tematizam a relação entre o homem e a natureza, bem como do conceito de afeto em uma perspectiva espinosana, abordamos uma problemática que vem se evidenciando na contemporaneidade: a relação com o espaço urbano. O que este estudo buscou evidenciar, portanto, é que o conceito de sustentabilidade afetiva pode servir como uma ferramenta conceitual que: 1. parte de uma concepção de homem e de natureza que considera o quanto os corpos são potentes para afetar e serem afetados nos encontros que experimentam cotidianamente; 2. analisa os impactos dessa variação de afetos na natureza e nas relações sociais; 3. colabora para compreender a crescente indiferença, historicamente construída, para com as questões do meio ambiente e das relações afetivas; 4. abre-se para um campo político de debate multidisciplinar sobre o que desejamos construir como vida comum, compartilhada.

A análise dos modos de vida inventados e disseminados nas cidades serviu para dar visibilidade à insustentabilidade afetiva que ora vivemos em relação às questões da vida pública e dos problemas ambientais. Vale ressaltar que qualquer movimento nessa direção dependerá de estranhamento, insatisfação e intolerância para com a existência que temos atualmente. Acompanhamos as considerações de Harvey para quem esse empreendimento de construção coletiva não está dado; ele demanda uma série de lutas, algumas delas já em curso, pela reapropriação do espaço urbano, esteja ela em nível afetivo, social ou ambiental.

Será que teremos de esperar a história didaticamente nos mostrar, por meio das catástrofes naturais e sociais, que a vida nas cidades e, por extensão, no planeta inspira cuidados, atenção e principalmente uma implicação política e ética para com os afetos e a produção dos modos de viver? Tais questões evidenciam a importância da sustentabilidade afetiva como um conceito emergente que aqui foi delineado e que pode vir a contribuir para a compreensão da vida urbana, enfatizando a delicada interface entre homens e natureza. Ao mesmo tempo, tal ferramenta conceitual enseja novos estudos direcionados à micropolítica afetiva cotidianamente atualizada no espaço complexo das cidades. Afinal, como ficou demonstrado, afeto, natureza e espaço urbano são, antes de tudo, questões de ordem política.

De todo modo, ainda que parcialmente, acreditamos que a presente investigação criou condições para escutar, acolher e problematizar o alerta feito por Guattari (1992, p. 178): “ou a humanidade [...] reinventará seu devir urbano, ou será condenada a perecer sob o peso de seu próprio imobilismo, que ameaça atualmente torná-la impotente face aos extraordinários desafios com os quais a história a confronta”.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Sonia Regina Vargas Mansano
Universidade Estadual de Londrina, Campus Universitário
PR 445, Km 380
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Submissão: 11.10.2014
Aceitação: 19.11.2015

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