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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.18 no.3 São Paulo dez. 2016

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v18n3p54-65 

ARTIGOS
AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

 

Questionário sobre violência intrafamiliar: confiabilidade de um instrumento sobre crenças

 

Intrafamilial violence questionnaire: reliability of an instrument about attitudes

 

Cuestionario sobre violencia intrafamiliar: confiabilidad de un instrumento sobre creencias

 

 

Isa Maria de Souza Fernandes FerrariI; Sidnei Rinaldo Priolo FilhoII; Rachel de Faria BrinoII

IUniversidade Federal de São Carlos, São Carlos - SP - Brasil. Bolsista de Iniciação Científica CNPq
IIUniversidade Federal de São Carlos, São Carlos - SP - Brasil. Bolsista de Doutorado, processo n. 2013/01611-3, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo visa analisar a confiabilidade do "Questionário sobre Crenças a Respeito da Violência Intrafamiliar". Participaram 41 estudantes de medicina e de enfermagem de uma universidade no interior de São Paulo e 39 profissionais autônomos. Testes de confiabilidade apresentaram alpha de Cronbach adequado (0,868), com resultados mais elevados retirando as questões com baixa correlação (0,894) indicando boa mensuração das crenças pelo instrumento. O teste Anova indicou que as respostas estavam relacionadas com a atividade do participante, com os estudantes classificando um maior número de afirmações de maneira adequada. Entendendo a importância de se compreender as crenças sobre violência intrafamiliar que permeiam as práticas dos profissionais da saúde, essa pesquisa investiga um instrumento para aplicação prática e clínica da avaliação de crenças em profissionais e estudantes da área da saúde.

Palavras-chave: violência doméstica; validade dos testes; questionários; estudantes; pessoal de saúde.

 


ABSTRACT

This study aims to analyze the reliability of the "Questionnaire on Beliefs about Family Violence". Participated 41 medical and nursing students attending a university in São Paulo and 39 professionals. Reliability tests showed adequate Cronbach's alpha (0.868), with higher results removing low correlation questions (0.894) indicating good measure of beliefs by the instrument. The Anova test showed that responses were associated with the participant's activity, with students having a greater number of adequate answers. Understanding the importance of attitudes about intrafamilial violence of health care professionals, this research investigates an instrument for clinical and practical purposes on professionals and students.

Keywords: domestic violence; validity of the tests; questionnaires; students; health personnel.


RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo analizar la confiabilidad del "Cuestionario sobre Creencias de la Violencia Intrafamiliar". Participaron 41 estudiantes de medicina y de enfermería de una universidad de São Paulo y 39 profesionales. Pruebas de confiabilidad mostraron un adecuado alfa de Cronbach (0,868), con resultados más altos quitando preguntas de correlación baja (0,894) lo que indica una buena medida de las creencias por el instrumento. La prueba de Anova mostró que las respuestas se asociaron con la actividad del participante, y los estudiantes tenían un mayor número de respuestas adecuadas. Comprehendiendo la importancia de las creencias sobre violencia en la familia por los profesionales de la salud, esa investigación investiga un instrumento para profesionales y estudiantes con propósitos prácticos y clínicos.

Palabras clave: violencia doméstica; validez de las pruebas; cuestionarios; estudiantes; personal de salud.


 

 

Introdução

A qualidade de vida e a saúde estão intimamente relacionadas com a violência, direta e indiretamente. A violência não é somente uma questão de saúde pública ou um problema médico, mas afeta fortemente a saúde, podendo provocar morte, lesões, traumas físicos, agravos mentais emocionais diminuindo a qualidade de vida (Minayo, 2006). O Ministério da Saúde (2001) aponta a necessidade de serviços adequados a lidar com o fenômeno da violência, os quais só serão possíveis com maior conhecimento sobre as respostas sociais sobre a violência intrafamiliar. Williams (2003) destaca, ainda, que prevenir e combater a violência intrafamiliar também significa prevenir a ocorrência ou o agravamento de deficiências, seja em termos de prevenção primária, secundária ou terciária, enfatizando assim a importância da área da saúde em relação ao tema.

Um estudo feito por Padovani e Williams (2008) mostra indícios que reforçam a importância da prevenção da violência ante a emergência de sintomas psiquiátricos. Esses autores analisaram o histórico de violência intrafamiliar em pacientes psiquiátricos inseridos em tratamento de regime ambulatorial, tendo como objetivo identificar o tipo de violência vivenciada pelos usuários. Constatou-se que apenas um entre os 23 participantes não possuía histórico de violência intrafamiliar e 20 participantes indicaram histórico de maus- tratos físicos e psicológicos na infância. Adicionalmente, os três participantes que não sofreram maus-tratos físicos e psicológicos na infância tiveram um número menor de internações (Padovani e Williams, 2008). Outros problemas de saúde decorrentes da violência intrafamiliar são os distúrbios do sono, da alimentação, o aumento da ansiedade e depressão, ideação e tentativas de suicídio, entre outros problemas (Padovani & Williams, 2008; Sinclair, 1985; Saffioti, 1997).

Sendo a violência um problema de saúde com tantas consequências negativas para a população, é importante avaliar as crenças dos profissionais da saúde que lidam com as pessoas que sofrem e praticam a violência em seus relacionamentos. Alguns estudos (Almeida & Costa, 2010; Williams et al., 2000; Padovani & Williams, 2008) apontam que as crenças sobre violência intrafamiliar interferem na maneira como os profissionais lidam com as vítimas, influenciando, também, na qualidade do cuidado.

Sobre este tipo de violência recaem algumas crenças que tornam a violência intrafamiliar um "tabu" entre as pessoas. Crenças como a de que o lar é um lugar seguro e protetor para seus membros; que o lar é um espaço sagrado para a família e que não deve ser violado por intrusos; que o que acontece dentro de casa deve ficar dentro de casa; e que não devemos nos intrometer nos problemas dos outros. Essas crenças escondem a realidade de várias famílias, onde o lar é uma fonte de medo e dor, sendo que os maiores atingidos são as mulheres e as crianças (Sinclair, 1985).

A violência intrafamiliar engloba todas as formas de violência praticadas no âmbito familiar (violência física, sexual, psicológica, contra o patrimônio e negligência), sendo importante compreender as crenças específicas de cada uma de suas variantes a fim de identificar entraves nos atendimentos e acompanhamentos.

Segundo Taylor, Bradbury-Jones, Kroll e Duncan (2013), em uma pesquisa realizada com profissionais e mulheres vítimas de violência na Escócia, há pontos convergentes e divergentes entre as crenças sobre violência para esses grupos. As principais concordâncias estão relacionadas ao desconhecimento das vítimas em relação ao abuso, muitas vezes por não reconhecerem que os comportamentos agressivos são violações de seus direitos. As divergências entre os profissionais de saúde e as vítimas de violência residem no fato de que os profissionais responsabilizam as vítimas, acreditando que elas seriam cúmplices da violência sofrida. Dessa forma, é possível visualizar crenças compartilhadas de forma acertada e outras de maneira equivocada por profissionais que lidam diretamente com vítimas de violência intrafamiliar e pelas vítimas. Conhecer quais as crenças presentes entre os profissionais se mostra fundamental para subsidiar intervenções qualificadas para as vítimas e profissionais.

Ademais, estudos indicam falta de treinamento dos profissionais ao se depararem com um caso de violência intrafamiliar. De Santi, Nakano e Lettiere (2010) realizaram um estudo descritivo-exploratório sobre a percepção de mulheres em situação de violência acerca do suporte e apoio recebido em seu contexto social. A amostra da pesquisa foi de 57 mulheres vítimas de violência intrafamiliar do tipo lesão corporal dolosa, sendo utilizado como critério de seleção o fato de essas mulheres terem sofrido algum tipo de trauma facial. Os resultados apontaram que a família e os amigos são as primeiras instituições procuradas pela vítima como forma de impedir uma nova agressão. No entanto, nem sempre o apoio fornecido é adequado, pois podem emergir falas de culpabilização da vítima pela agressão ou uma vitimização da mulher, colocando-a num papel de total incapacidade diante do ocorrido. As mulheres só recorrem aos serviços de saúde dependendo de como percebem a gravidade da violência sofrida. A busca pela delegacia, segundo as mulheres entrevistadas, tem como objetivo a punição do agressor, a repreensão da conduta do parceiro e a procura por proteção para si e para os familiares. Dessa forma, pode-se observar que as crenças das mulheres, bem como as crenças esperadas por elas dos profissionais, influenciam na busca de ajuda e na resolução do caso. É importante notar que sem notificação ou busca de ajuda, a chance de quebra do ciclo da violência é menor, aumentando o risco para a vítima.

Andrade Nakamura, Paula, Nascimento, Bordin e Martin (2011) entrevistaram profissionais de uma das regiões mais violentas do Brasil. As principais questões apontadas pelos profissionais estavam relacionadas com dificuldades relativas a violência, como o medo de criminosos, falta de segurança para os profissionais e de apoio dentro das famílias em situação de violência. Para esses profissionais, as denúncias por parte dos profissionais não ocorrem pelo fato de que eles repetem os padrões culturais daquela população que aceita a punição física como prática corriqueira. Dessa maneira, as crenças dos profissionais podem ser afetadas pelo ambiente em que exercem a sua profissão, o que aponta a necessidade de identificar quais as principais crenças de cada grupo que trabalha com pessoas em situação de violência.

Em uma pesquisa com estudantes de medicina dos Estados Unidos, Aluko, Beck e Howard (2015) identificaram que os participantes julgavam necessário incluir na anamnese questões sobre violência intrafamiliar, porém acreditavam que não tinham treinamento e conhecimento suficientes para conseguir realizar investigações em casos suspeitos. Uma parcela dos estudantes afirmou, ainda, que com tantas responsabilidades, realizar investigações sobre violência seria mais uma atividade a ser feita durante as consultas, sendo esse um aspecto negativo na visão dos profissionais. Complementar a esses dados, apesar de os estudantes de medicina apontarem a necessidade da anamnese e de treinamentos, eles acreditavam que questionar sobre violência ofenderia os pacientes e não desejavam interferir nos conflitos dos casais, o que demonstra uma incongruência entre as necessidades apontadas e os desejos de prática por esses estudantes (Sprague , Kaloty, Madden, Dosanjh, Mathews, & Bandhari, 2013). A maior parte dos estudantes das áreas da Saúde canadenses estimou a prevalência da violência contra a mulher em menos de 10%, ou seja, os estudantes estimam números muito abaixo dos encontrados em pesquisas abrangentes realizadas no país, que apresentam prevalências de 25% a 39% da população feminina, de acordo com a região pesquisada (Sinha, 2012). Contudo, ainda mais alarmante é a porcentagem de estudantes canadenses (41%) que acredita que algumas pacientes possuem uma personalidade propícia para a violência, indicando a necessidade urgente de treinamento para esses profissionais.

Sendo assim, faz-se necessário aprofundar o conhecimento acerca das crenças sobre violência intrafamiliar mantidas por profissionais e estudantes da área de Saúde, havendo a necessidade de instrumentos confiáveis que mensurem tal constructo. Deste modo, almejando colaborar com maneiras confiáveis de obter tal conhecimento este estudo teve como objetivo verificar a confiabilidade de um questionário sobre crenças a respeito da violência intrafamiliar, identificando e comparando tais crenças em profissionais e estudantes das áreas de Medicina e Enfermagem.

 

Método

Participantes: Os participantes foram contatados de maneiras distintas. Os profissionais, por meio da diretoria de um equipamento de saúde, que realizou o convite para a participação, e, os estudantes, por meio do contato na própria universidade em que estudavam, durante as aulas. Participaram dessa pesquisa 80 pessoas, sendo 41 estudantes (20 cursando medicina e 21 cursando enfermagem) e 39 profissionais (16 médicos e 23 enfermeiros). Os estudantes eram provenientes dos cursos de medicina ou enfermagem de uma universidade localizada em município do interior do estado de São Paulo, sem identificação do período em que estavam cursando. Os profissionais eram médicos ou enfermeiros formados e com ao menos dois anos de experiência, sendo que estes trabalhavam na cidade de São Paulo na época da pesquisa. Não havia outros critérios de exclusão.

 

Procedimento

O local de aplicação do instrumento foi de escolha do próprio participante, sendo que este, após assinar o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, deveria preencher o questionário e entregá-lo ao pesquisador. Após a entrega do questionário, foi realizada uma devolutiva para o participante indicando quais as respostas adequadas e inadequadas, bem como a entrega de um material informativo básico sobre violência intrafamiliar.

Instrumento

Adaptou-se o "Crenças a Respeito de Violência Doméstica" de Williams (2010), que foi, então, denominado "Questionário sobre Crenças a Respeito da Violência Intrafamiliar". As adaptações realizadas foram feitas em dois sentidos. Primeiro, foram acrescentadas 15 questões sobre a violência contra a criança, de maneira que o questionário passasse a englobar de forma mais abrangente a violência intrafamiliar. A segunda modificação consistiu em alterações de algumas questões (referentes as questões 1, 6, 17 e 40 do questionário adaptado) de maneira a balancear a quantidade de questões verdadeiras e falsas. Algumas questões foram reelaboradas para que se tornassem mais claras, a fim de diminuir a tendência de respostas automatizadas em uma alternativa, conforme apontado por outros estudos (Giusto, 2011; Nunes, 2011).

Além disso, o questionário adaptado passou por uma análise semântica, a partir da opinião de cinco participantes em um teste piloto, sendo que estes participantes não tiveram seus dados utilizados na análise dos dados. Essa análise foi realizada para identificar possíveis questões confusas ou de difícil entendimento e analisar sugestões para melhoria do instrumento adaptado. Após as adaptações sugeridas, o "Questionário sobre Crenças a Respeito da Violência Intrafamiliar" constou de 45 questões acerca da violência intrafamiliar, nas quais o participante deveria escolher entre "verdadeiro ou falso", havendo possibilidade de justificar brevemente sua resposta.

Análise dos dados

As análises estatísticas foram realizadas com o Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) na sua versão 20. Foram executadas análises de confiabilidade do instrumento a fim de obter o de Cronbach do instrumento, bem como avaliar quais questões obtiveram os menores valores de correlação com o restante do instrumento. Diferenças entre o número de acertos dos participantes e média geral de acertos e por grupo foram analisadas com um modelo linear geral e teste Anova para verificar diferenças entre as respostas adequadas entre os grupos.

Cuidados éticos

O projeto foi submetido à análise pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos e, somente depois de obtida a aprovação, os participantes foram contatados para assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Em seguida, os questionários foram entregues em mãos aos participantes que, após assinar o TCLE, preencher o questionário e o entregá-lo ao pesquisador, obtiveram uma devolutiva com indicação de quais respostas estavam adequadas ou inadequadas e receberam um material informativo básico sobre violência intrafamiliar.

 

Resultados

Foi realizado um teste de confiabilidade e, com isso, pôde-se verificar um valor adequado do de Cronbach (0,868), demonstrando que o questionário avalia o constructo de crenças sobre a violência intrafamiliar proposto. Contudo, nove questões (3, 8, 20, 23, 29, 32, 39, 43 e 45) apresentaram valores baixos de correlação com o total da escala após o teste de confiabilidade. Dessa forma, foi realizado um novo teste sem utilizar os valores das questões com baixa correlação com o instrumento. Com isso, o valor do de Cronbach obtido foi ainda mais elevado (0,894), sendo ambos os resultados apresentados na Tabela 1. Segundo Tavakol e Dennick (2011), valores de alfa maiores que 0,90 podem indicar redundância e necessidade de diminuição do tamanho do instrumento, contudo, o valor obtido neste caso demonstra que o instrumento era adequado, tanto em confiabilidade, quanto em quantidade de itens.

O preenchimento do questionário foi satisfatório, sendo que nenhum item teve mais que 5% de dados faltantes. O que indica que a forma de preenchimento, bem como a duração do questionário estão adequados, tendo em vista que as taxas de desistência e respostas aleatórias tendem a aumentar conforme o tamanho e a inadequação do instrumento (Sahlqvist, Song, Bull, Adams, Preston, & Ogilvie, 2011).

O fato de o participante ser profissional ou estudante foi uma variável que influenciou as respostas dos participantes, sejam elas corretas ou não. Foi executado um Modelo Linear Geral que apresenta os dados na Tabela 2. O p-valor de 0,034 indica que a atividade exercida pelos participantes estava correlacionada com as suas respostas em relação aos itens.

O número de acertos dos participantes variou de 14 a 44, sendo a média geral de 36,2 acertos. A média de acertos entre os estudantes foi de 39,66, enquanto a dos profissionais foi de 32,53. Para efeitos de comparação das respostas, foi realizada a Anova que demonstrou uma diferença significativa entre as respostas corretas entre os grupos (F (1,78) =35,364; p < 0,001).

A Tabela 3 apresenta uma comparação entre as porcentagens das questões respondidas inadequadamente entre os estudantes e profissionais. Para essa comparação foram selecionadas as quatro questões que cada grupo respondeu com maior porcentagem de inadequação, sendo selecionadas quatro questões para comparação (questões 6, 7, 44 e 45).

É possível observar nessa tabela que apenas na questão 6 a porcentagem de erro do grupo dos estudantes (63,41%) supera a porcentagem de erro do grupo dos profissionais (61,53%). A diferença entre as porcentagens é maior na questão 44, sendo que os profissionais apresentaram 89,74% de erro e os estudantes 29,26%. A questão 7 apresentou a maior taxa de erros com 92,30% entre os profissionais, e a questão 45 coloca-se em terceiro lugar em maior porcentagem de erro pelos profissionais, com 74,25%. Ainda para a questão 7, os estudantes apresentaram 31,7% de erro.

 

Discussão

A análise estatística apresentou a confiabilidade do instrumento, considerada boa (0,868). Contudo, ao retirar as questões com baixa correlação, o valor da confiabilidade foi ainda maior (0,894), indicando que as questões retiradas da segunda análise necessitam de ajustes ou devem ser excluídas do questionário. De qualquer maneira, os dois testes apresentam resultados satisfatórios comprovando a validade do instrumento como medida do constructo de crenças sobre violência intrafamiliar. Considerando as peculiaridades culturais de cada país, é fundamental o uso de instrumentos adaptados e validados, lacuna que a presente pesquisa busca preencher em relação a um instrumento sobre crenças acerca da violência intrafamiliar com confiabilidade alta, criado no Brasil.

O presente instrumento já foi aplicado em outras pesquisas publicadas com diferentes populações (policiais e agressores conjugais), no entanto, era necessária uma avaliação de sua confiabilidade de maneira sistemática (Padovani & Williams, 2002; Williams et al., 2000). Os resultados obtidos demonstraram que as crenças são avaliadas de maneira satisfatória com o presente instrumento, favorecendo o seu uso com profissionais e estudantes a respeito da violência intrafamiliar.

Pesquisas realizadas sobre essa temática têm feito uso de questionários abertos ou entrevistas, que são mais demoradas e custosas que a aplicação de um questionário (Almeida & Costa, 2008; Aluko et al., 2015; Andrade et al., 2011; De Santi et al., 2010; Sprague et al., 2013; Taylor et al., 2013; Williams et al., 2000). Dessa forma, a utilização de um questionário confiável é útil não somente para a prática clínica, mas também para futuras pesquisas.

Para verificar a variedade entre as respostas dos grupos (profissional x estudantes) foi realizado um modelo linear geral que encontrou diferenças significativas. O teste Anova apontou que os estudantes tiveram um desempenho significativamente superior aos profissionais no questionário. Contudo, verificou-se um desempenho satisfatório nos dois grupos, considerando que a média de acertos para o grupo dos estudantes foi de 88%, e a dos profissionais, de 72,30%. Uma possível hipótese explicativa para tais resultados é a de que os profissionais tinham formações diversas, não haven-do controle sobre a instituição de ensino na qual se formaram ou especializações realizadas, o que representa maior probabilidade de terem experiências e históricos diferentes entre si em relação ao tema, enquanto o grupo de estudantes pertencia a uma única universidade, o que torna mais provável que tais indivíduos possuam uma formação aproximadamente equivalente entre si. Além disso, os estudantes também poderiam estar mais em contato com a temática, por meio do ambiente acadêmico, o que explicaria o melhor desempenho deste grupo em relação ao grupo de profissionais, que, apesar de estar atuando na prática, pode ter menos contato com estudos, atualizações e capacitações.

Houve também diferenças entre os grupos no que se refere às questões mais respondidas de maneira inadequada. Entre os estudantes, a questão com maior porcentagem de respostas inadequadas foi a de número 6 ("O consumo de álcool é a principal causa de o homem bater na mulher e nos filhos"), e a segunda questão com maior porcentagem de inadequação foi a de número 7 ("Em geral, crianças que chegam aos hospitais e prontos-socorros com fraturas e machucados graves, foram vítimas de acidentes domésticos"). É possível levantar a hipótese de que a afirmação 6 possui uma relação específica com os estudantes universitários, e que, para este grupo, o álcool é o maior facilitador da ocorrência de diversas maneiras de violência, o que pode ser indicação de que os participantes tenham generalizado para situações de violência intrafamiliar as relações entre álcool e violência observadas em seus ambientes (Wechsler & Nelson, 2008). Essa crença de que o álcool possui uma relação de causa-efeito com a violência pode desviar o foco da influência sociocultural e seu papel na normalização e perpetuação da violência. Dessa forma, é necessário que as crenças sobre violência intrafamiliar possam ser revistas e modificadas e, juntamente com elas, possam ser alterados os comportamentos relacionados, tanto nos agressores, quanto na sociedade que os cria e que acolhe as vítimas desta violência.

No grupo dos profissionais, a questão com maior porcentagem de respostas inadequadas foi a afirmação 7, seguida pela questão 44 ("A mulher que apanha do marido pode largar dele, basta querer"). O fato de a questão 7 aparecer com grande porcentagem de respostas inadequadas nos dois grupos é preocupante, pois indica que os participantes não consideram que as três principais causas de hospitalização e ferimentos graves em crianças sejam provenientes da violência intrafamiliar, sendo assim, tais sujeitos podem não se preocupar em observar e investigar sinais que indiquem que a criança é vítima de violência, permitindo que essa atuação se perpetue (Center of Disease Control and Prevention, 2013). Tal negligência vai contra ao artigo 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Câmara dos Deputados, 2010), que aponta a importância do profissional para com a saúde e bem-estar daqueles a quem presta seus serviços, e pontua que, desse modo, até mesmo a suspeita de violência deve ser relatada às autoridades competentes, sendo prevista pena caso isso não ocorra.

A questão 44, por sua vez, refere-se a uma crença errônea que tende a culpabilizar a mulher pela situação de violência a qual esta está submetida, ignorando diversos fatores como necessidade de proteção adequada, dependência econômica, filhos, os sentimentos da mulher pelo marido, entre outros. No estudo feito por Nunes (2011), em que se aplicou o questionário a policiais da Delegacia da Mulher, tal crença também aparece como uma das mais inadequadas. Segundo Sinclair (1985), a mulher permanece com o agressor para preservar a relação e não a violência. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS-WHO) (2005), alguns fatores devem ser considerados em casos de violência contra a mulher, como seu nível de educação, sua autonomia financeira, seu nível de empoderamento, outras situações de vitimização, o suporte social que está presente para a mulher e histórico familiar de violência.

Apesar de os resultados obtidos pelo grupo dos estudantes indicarem que estes estão mais bem preparados para lidar com a temática da violência intrafamiliar, os resultados dos profissionais indicam uma queda neste preparo, sendo que esta pode representar uma tendência a exibir um pior desempenho ao lidar com a problemática da violência com o passar dos anos, após a saída da graduação e a entrada no mercado de trabalho. Caso tal hipótese seja confirmada, faz-se necessário delinear intervenções capazes de não só manter o desempenho obtido na graduação, como incrementá-lo, pois na prática do atendimento às vítimas de violência é que este se mostra mais importante, uma vez que cabe a esses profissionais atenderem, acolherem e encaminharem corretamente as vítimas de violência intrafamiliar. Assim, sugere-se um investimento maior em capacitação e campanhas de conscientização sobre o tema, de maneira a assegurar que o profissional de saúde esteja em contato com a temática em questão e capacitado para intervir.

A falta de contato do profissional com a temática e seu menor conhecimento sobre o assunto representa um alerta à sociedade brasileira, pois o conhecimento e a notificação dos casos de violência nos serviços de saúde pública é um importante instrumento de planejamento de políticas públicas contra a violência, de modo que, para se valer da Lei federal 10.778/2003 (que estabelece a notificação compulsória em território nacional dos casos de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde pública ou privada, com o intuito de obter dados para pesquisas e intervenções na área), é preciso que o profissional da saúde esteja capacitado a identificar, acolher e encaminhar os casos de violência contra a mulher que chegam até ele.

Para estudos posteriores, sugere-se a utilização de um número maior de participantes, além de pesquisas com profissionais de outras áreas de atuação, como educação, com outros profissionais de saúde, como fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e educadores físicos, com estudantes em diferentes períodos de formação e diferentes áreas de atuação e a validação da adaptação do "Questionário sobre Crenças a Respeito De Violência Doméstica" (Williams, 2010) que, apesar de ter sido adaptado em função de sugestões feitas em outras pesquisas (Nunes, 2011; Giusto, 2011), deve ser analisado com o intuito de formar um instrumento validado para a análise das crenças sobre a violência intrafamiliar.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Rachel de Faria Brino
Universidade Federal de São Carlos
Rodovia Washington Luis, km 235
São Carlos - SP - Brasil
E-mail:brino@ufscar.br

Submissão: 8.3.2015
Aceitação: 14.9.2016

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