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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.18 no.3 São Paulo dez. 2016

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v18n3p66-80 

ARTIGOS
AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

 

Qualidade de vida de familiares de pacientes com esquizofrenia: Escala S-CGQoL1

 

Quality of life of family members of patients with schizophrenia: s-CGQoL scale

 

Calidad de vida de familiares de pacientes com esquizofrenia: escala s-CGQoL

 

 

Marina BandeiraI; Vitor Neves GuimarãesII

IUniversidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei - MG - Brasil
IIBolsista de Iniciação Científica do curso de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei - MG - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi fazer a adaptação transcultural para o Brasil da Schizophrenia Caregiver Quality of Life Questionnaire (S-CGQoL). A escala original possui 25 itens distribuídos em sete subescalas, cada item contendo seis alternativas de resposta. Procedimento: 1. Tradução, por dois tradutores independentes. 2. Retradução das duas versões por dois outros tradutores independentes. 3. Avaliação das versões por uma Comissão de Especialistas. 4. Estudo Piloto em amostra da população-alvo. Participaram vinte e quatro cuidadores de pacientes com diagnóstico de esquizofrenia, selecionados aleatoriamente de um serviço de saúde mental. Foram feitas reformulações no formato de aplicação e na redação dos itens, quando necessário, de forma a garantir a equivalência semântica com a escala original, sua adaptação ao contexto cultural brasileiro e a facilidade de compreensão pela população-alvo. Conclui-se que essa escala está adequada para avaliar a qualidade de vida de cuidadores de pacientes com esquizofrenia, após sua validação.

Palavras-chave: qualidade de vida; cuidadores familiares; esquizofrenia; escala; adaptação transcultural.


ABSTRACT

This research aims at making a cross-cultural adaptation of the Schizophrenia Caregiver Quality of Life Questionnaire (S-CGQoL) to the Brazilian context. The scale has 25 items distributed in seven subscales, with six response options. Procedure: 1. Translations of the scale by two independent translators 2. Back-translation of the two versions, by two other independent translators. 3. Review of the versions by an Expert Committee. 4. Pre-test study with a sample of the target population. Participated in this research. 24 caregivers of patients with schizophrenia randomly selected from a mental health service. Reformulations were made in the application format and the presentation of the items in order to assure its semantic equivalence with the original scale, its adaptation to the Brazilian context and its applicability to the target population.We have concluded that this scale is appropriate for the evaluation of the quality of life of family caregivers of schizophrenic patients after a validation study.

Keywords: quality of life; family caregivers; schizophrenia; rating scales; crosscultural adaptation.


RESUMEN

La principal meta de esta investigación fue realizar la adaptación cultural para el contexto brasileño de la Schizophrenia Caregiver Quality of Life Questionnaire (S-CGQoL). La escala tiene 25 ítems distribuidos en siete subescalas, cada ítem presenta seis alternativas de respuesta. Procedimiento: 1. Traducción, por dos traductores independientes. 2. Traducción inversa de las dos versiones por otros dos traductores independientes. 3. Evaluación de las versiones por un Comité de Expertos. 4. Estudio exploratorio con un muestro de la población objetivo. Participaron 24 cuidadores de pacientes esquizofrénicos de un servicio de salud mental seleccionados al azar. Para garantizar la equivalencia semántica con la escala original, su adaptación al contexto brasileño y comprensión del publico, fueron realizadas reformulaciones en la forma aplicación de la escala y en la redacción de ítems. Concluyese que tal inventario, seguido de la validación, este adecuado para evaluar la calidad de vida de los familiares que auxilian en el cuidado de los pacientes con esquizofrenia.

Palabras clave: calidad de vida; cuidadores familiares; esquizofrenia; escala; adaptación transcultural.


 

 

Introdução

A qualidade de vida (QV) de familiares cuidadores de pacientes psiquiátricos tem sofrido um impacto constante das consequências resultantes do papel de cuidador. A prestação de cuidados cotidianos aos pacientes requer a realização de tarefas adicionais, como o controle da medicação, da higiene e da ocupação do tempo, o preparo da alimentação, a supervisão dos comportamentos problemáticos, além das preocupações com o paciente e o peso financeiro, resultando em mudanças importantes na vida social e profissional destes familiares. Ocorre um sentimento de sobrecarga, aumentado pela falta de preparo dos familiares para o desempenho desse papel, de suporte efetivo dos serviços de saúde mental, carência de informações sobre a doença e o tratamento do paciente e falta de orientações sobre as estratégias mais adequadas a serem adotadas nos cuidados cotidianos e momentos de crise (Lauber, Eichenberger, Luginbühl, Keller, & Rössler, 2003; Barroso, 2014).

A sobrecarga sentida pelos cuidadores produz consequências graves, pois reduz a sua qualidade de vida e pode resultar em elevados níveis de estresse e transtornos psicopatológicos, como ansiedade e depressão (Glosman, 2004; Richieri, Boyer, Reine, Loundu, Auquier, Lançon, & Simeoni, 2011; Rascon, Caraveo, & Valencia, 2010). Nestas condições, eles não conseguem fornecer adequadamente os cuidados necessários aos pacientes na vida cotidiana, comprometendo a sua adesão ao tratamento psiquiátrico, a frequência aos serviços de saúde mental e a continuidade do tratamento. Essas consequências são ainda mais contundentes no caso de pacientes que apresentam transtornos graves e persistentes, como a esquizofrenia (Vasudeva, Sekhar, & Rao, 2013; Caqueo-Urizar, Gutiérrez-Maldonado, & Miranda-Castilho, 2009). Considerando as dificuldades apontadas, preservar a qualidade de vida destes cuidadores constitui uma questão importante não somente para o seu próprio bem-estar, mas também para garantir bons cuidados prestados aos pacientes.

Os estudos sobre os cuidadores de pacientes psiquiátricos têm abordado a avaliação da sua sobrecarga, mas poucos avaliam a sua qualidade de vida. Porém, esses dois conceitos estão relacionados, pois a sobrecarga devido ao papel de cuidador resulta em uma diminuição da qualidade de vida (Caqueo-Urizar et al., 2009). O conceito de QV tem sido utilizado na avaliação das incapacidades (disabilities) e foi estendido à avaliação dos cuidadores de pacientes incapacitados em geral. Possui diferentes definições e pouco acordo entre estudiosos, embora haja um consenso de que é um construto multidimensional. Na avaliação da QV, alguns autores destacam os parâmetros externos observáveis de bem-estar econômico e físico e outros abordam os aspectos subjetivos referentes a uma autoavaliação do bem-estar e das condições de saúde e de vida em geral (Glozman, 2004). No caso dos cuidadores de pacientes psiquiátricos, a avaliação subjetiva da QV se refere à percepção sobre o impacto do papel do cuidador em suas vidas e em seu bem-estar psicológico, assim como sua satisfação com a vida, envolvendo fatores emocionais, sociais, familiares, ocupacionais, de lazer, dentre outros (Glozman, 2004).

Na revisão de literatura realizada por Caqueo-Urizar et al. (2009), destacam-se vários fatores associados à diminuição da qualidade de vida dos cuidadores de pacientes com esquizofrenia, como: a manifestação dos sintomas psicóticos dos pacientes, a sobrecarga emocional e estresse crônico dos cuidadores, o sentimento de exaustão, a falta de suporte social, a sobrecarga financeira e as perturbações na vida familiar, que inclui os conflitos entre os membros da família. Os cuidadores sofrem com estresse, ansiedade, depressão e deterioração do sistema imune, o que os torna vulneráveis a doenças infectocontagiosas, culminando em altas taxas de mortalidade. Os estressores na vida dos cuidadores são diretos (referentes à própria atividade de prestar cuidados ao paciente) e indiretos (referentes às consequências em outros domínios de sua vida). Assim, podem ocorrer perturbações na sua vida profissional, alguns tendo de abandonar o emprego, ou mudar mudar de emprego de fazer mudanças no horário de trabalho devido ao papel de cuidador. O estresse destes cuidadores, muitas vezes, deve-se a três fatores simultâneos: o seu emprego, as tarefas domésticas e os cuidados prestados ao paciente. Os autores destacam a necessidade dos serviços de saúde mental oferecerem intervenções de suporte para os familiares (Glazmon, 2004; Caqueo-Urizar et al. 2009).

O estudo recente de Richieri et al. (2011) coloca em destaque a temática da qualidade de vida dos cuidadores de pacientes com esquizofrenia e apresenta um instrumento validado para avaliá-la: a S-CGQoL. Essa escala foi utilizada na América Latina (Caqueo-Urizar, Urzua, & Boyer, 2016) e na Indonésia (Winahyu, Kenchayat, & Charoensuk, 2014), relacionando QV com sobrecarga e características dos cuidadores. No Brasil, não foi encontrado, nas bases indexadas de periódicos científicos, nenhum instrumento de medida validado para avaliar este construto. Há, portanto, uma carência e a necessidade de validar um instrumento para aferir a qualidade de vida destes cuidadores no contexto brasileiro. O objetivo desta pesquisa foi fazer a adaptação transcultural para o Brasil da escala de medida da qualidade de vida dos familiares cuidadores de pacientes com esquizofrenia, elaborada e validada por Richieri et al. (2011).

 

Método

Delineamento da pesquisa

Trata-se de uma Pesquisa de Desenvolvimento, segundo a classificação de Contandriopoulos, Champagne, Potvin, Denis e Boyle (1994), cujo objetivo é desenvolver, aprimorar ou criar instrumentos ou intervenções. Os procedimentos de adaptação transcultural adotados seguiram os parâmetros indicados pela literatura da área, que visam preservar a equivalência do instrumento adaptado em relação ao original. Esses procedimentos visam, ainda, a adaptação do instrumento ao contexto cultural brasileiro a garantia de sua aplicabilidade e facilidade de compreensão pela população-alvo (Guillemin, Bombardier, & Beaton,1993; Reichenheim & Moraes, 2007; Herdman, Fox-Rushby, & Badia, 1998; Pasquali, 2010).

População-alvo

A população-alvo foi constituída pelos familiares cuidadores de pacientes psiquiátricos, atendidos em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de uma cidade de porte médio de Minas Gerais. Os critérios de inclusão foram: 1. ter, pelo menos, 18 anos de idade; 2. ser cuidador de um paciente com diagnóstico do espectro da esquizofrenia, de acordo com os critérios diagnósticos da CID-10 (Organização Mundial da Saúde, 1993); 3. cuidar do paciente há, pelo menos, 1 ano.

Amostra

A amostra foi selecionada aleatoriamente da população-alvo, utilizando-se o software Statistical Package for Social Sciences (SPSS). Foram selecionados 30 prontuários da população-alvo do serviço para a entrevista, considerados suficientes para este tipo de pesquisa (Pasquali, 2010). Como seis sujeitos se recusaram a participar da pesquisa, foram realizadas 24 entrevistas com os familiares cuidadores.

Instrumentos

Schizophrenia Caregiver Quality of Life Questionnaire (S-CGQoL): O instrumento original francês foi desenvolvido para avaliar a qualidade de vida de cuidadores de indivíduos com esquizofrenia. A elaboração dos itens foi feita a partir de entrevistas semiestruturadas com familiares cuidadores de pacientes com esquizofrenia e o conteúdo dos itens foi analisado por uma comissão de três especialistas. A escala S-CGQoL original é multidimensional e autoadministrada, contando com 25 itens distribuídos em sete subescalas: 1. Bem-estar Psicológico e Físico (cinco itens). 2. Sobrecarga Psicológica e Vida Cotidiana (sete itens). 3. Relações com o Cônjuge ou Companheiro (três itens). 4. Relacionamento com a Equipe de Profissionais (três itens). 5. Relacionamento com a Família (dois itens). 6. Relacionamento com Amigos (dois itens). 7. Sobrecarga Material (três itens). Para cada item, há seis alternativas de resposta, distribuídas em escala de tipo Likert, que variam de 0 (nunca ocorreu) a 5 (sempre ocorreu). Os itens avaliam a frequência com que as situações descritas ocorreram na vida do cuidador nos 12 meses anteriores à aplicação do instrumento. O escore global da escala é obtido calculando-se a média aritmética dos escores obtidos nos sete domínios. Os resultados são convertidos, posteriormente, em uma escala de 0 a 100, sendo que 0 representa o menor nível de qualidade de vida possível e 100 o maior nível de qualidade de vida possível (Richieri et al., 2011).

As propriedades psicométricas da escala original foram avaliadas com base nos dados de uma amostra de 246 cuidadores de pacientes com esquizofrenia selecionados em seis hospitais psiquiátricos da França. A validade de construto da escala foi avaliada por meio da Análise dos Componentes Principais, com rotação Varimax, adotando-se um critério mínimo de 0,40 para as cargas fatoriais dos itens. A estrutura fatorial com os sete domínios, citados anteriormente, foi responsável por 74,4% da variância dos dados. A escala apresentou validade convergente, tendo-se obtido uma correlação significativa positiva com a escala de qualidade geral de vida SF-36 (r =0,42; p < 0,01) e uma correlação significativa negativa (r =-0,21; p < 0,01) com a escala de gravidade da sintomatologia PANSS (Positive and Negative Syndrom Scale) (Kay, Opler, & Lindenmeayer, 1988), tal como esperado teoricamente. A escala apresentou, também, boa consistência interna, tendo-se obtido valores de alfa Cronbach entre =0,79 e =0,92. As subescalas 1 a 7 (descritas anteriormente) tiveram os seguintes valores de alfa: 0,92; 0,88; 0.80; 0.92; 0.87; 0.85; 0.79. As médias e os desvios-padrão destas subescalas foram: 53,9 (18.5); 62.8 (16.4); 19.5 (21.9); 63.0 (20.7); 57.9 (22.8); 62.9 (20.7) e 69.1 (22.4).

Questionário sociodemográfico: No presente trabalho, foi utilizado um questionário que visa avaliar as variáveis sociodemográficas e de condições de vida dos familiares entrevistados, tais como sexo, idade, estado civil, escolaridade e trabalho. Foram, também, avaliadas as características clínicas dos pacientes sob seus cuidados, como comorbidade, tempo de doença, se o paciente já esteve ou não internado em instituição psiquiátrica e o número de crises ocorridas nos últimos 12 meses.

Procedimento

O projeto foi previamente aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa com Sujeitos Humanos da instituição onde foi realizada a pesquisa (Protocolo 007/2013) e pela coordenação do serviço de saúde mental. A adaptação do instrumento francês ao contexto brasileiro foi igualmente aprovada pela autora da escala original. Os familiares foram contatados para a realização de entrevistas, para a aplicação dos instrumentos de medida, tendo sido agendado um horário de acordo com a sua disponibilidade. As entrevistas foram realizadas conforme descrito a seguir, na etapa intitulada Estudo Piloto. Foi apresentado, a cada entrevistado, o Termo de Consentimento Livre e Informado, e, somente após a sua assinatura, era iniciada a entrevista de coleta de dados. As entrevistas com os sujeitos tiveram duração aproximada de 40 minutos e foram realizadas em seus domicílios ou no Serviço de Psicologia Aplicada da universidade no qual se deu a pesquisa, de acordo com a conveniência dos sujeitos. O procedimento de adaptação transcultural da escala foi feito seguindo-se as etapas descritas a seguir, recomendadas por Guillemin et al. (1993).

1ª Etapa - Tradução: O instrumento original em francês foi traduzido, de forma independente, por dois tradutores bilíngues de língua materna portuguesa, obtendo-se duas traduções em português (T1 e T2).

2ª Etapa - Retradução: As duas versões em português foram retraduzidas para o francês, também de forma independente, por outros dois tradutores bilíngues de língua materna francesa, obtendo-se duas versões (R1 e R2).

3ª Etapa - Revisão por uma Comissão de Especialistas: A Comissão de Especialistas era multidisciplinar, composta por duas professoras universitárias bilíngues, pesquisadoras da área de saúde mental e uma professora de francês. Esta Comissão fez uma comparação entre a versão original da escala e as quatro versões descritas anteriormente, incluindo as instruções do instrumento, os itens e as alternativas de resposta. Foram avaliadas as versões da escala em função de sua equivalência semântica em relação à escala original. Estas comparações foram feitas com base na seguinte categorização: nada alterado (NA), pouco alterado (PA), muito alterado (MA) e completamente alterado (CA).

Em seguida, a Comissão de Especialistas fez as modificações necessárias na redação dos itens, de forma a adaptá-los ao contexto cultural brasileiro, por meio da utilização de uma linguagem simples, adequada ao nosso meio. Tomou-se o cuidado de garantir a equivalência dos termos nos seus sentidos denotativos e conotativos, para evitar distorções ou reações negativas das pessoas às palavras utilizadas, dificuldades que podem acontecer quando se restringe o procedimento a traduções literais (Cassep-Borges, Balbinotti, & Teodoro, 2010). O formato de aplicação da escala também foi analisado e modificado, visando adaptá-la ao nível educacional da população-alvo no contexto brasileiro. A avaliação da redação dos itens foi feita com base, também, nas recomendações de Pasquali (2010), segundo as quais os itens de uma escala devem respeitar os seguintes critérios: definir uma ação (comportamental), permitir apenas uma resposta certa ou errada (objetividade), expressar apenas uma ideia (simplicidade), conter frases curtas e sem afirmações negativas ou dupla negação (clareza) e não ter e expressões pueris (credibilidade). Esta etapa resultou em uma versão preliminar da escala brasileira.

4ª Etapa - Estudo Piloto: A versão preliminar da escala foi aplicada à amostra de familiares, a fim de verificar a facilidade de compreensão do instrumento, utilizando a Técnica de Sondagem (Guillemin et al., 1993). Com base nessa técnica, solicitava-se aos entrevistados que reformulassem cada item da escala, utilizando suas próprias palavras, de forma a demonstrar o que haviam entendido. Foi pedido, ainda, que eles dessem exemplos das situações descritas nos itens da escala que tivessem ocorrido em sua vida como cuidador. Quando eram observadas dificuldades de compreensão, estas eram discutidas e as observações dos sujeitos serviam de base para modificações nos itens, após consultada a Comissão de Especialistas. No final desta etapa, obteve-se a versão final da escala brasileira.

Análise de dados

Os dados referentes às características sociodemográficas da amostra foram analisados por meio da estatística descritiva, calculando-se a média, os desvios-padrão e a porcentagem. Os dados referentes às traduções, retraduções e versões da escala foram analisados pela Comissão de Especialistas, conforme descrito anteriormente.

 

Resultados

Descrição da amostra

Os familiares entrevistados tinham uma média de idade de 50,8 anos (DP =18,4), sendo 54,2% do sexo feminino e 45,8% do sexo masculino. O estado civil mais frequente (45%) era de casados. Quanto à escolaridade, a maioria (56,6%) era analfabeta (16,67%) ou tinha o ensino fundamental incompleto (33,3%) ou completo (16,67%). Metade dos cuidadores declarou ser aposentada e 45% possuíam trabalho regular ou eventual. A maioria dos entrevistados (70%) possuía uma renda entre 1 a 2 salários mínimos (R$ 724,00) e não recebia benefícios provenientes de instâncias governamentais. A maioria (58,3%) relatou possuir alguma doença que interferia na sua tarefa de cuidar do paciente. Dentre essas doenças, as mais comuns foram problemas do sistema circulatório (46,6%).

Todos os pacientes pelos quais os cuidadores eram responsáveis possuíam o diagnóstico de transtorno do espectro da esquizofrenia (F20), sem comorbidades. A idade média dos pacientes era de 38,9 anos (DP =11,9), sendo que a idade média em que ocorreu a primeira manifestação do transtorno foi 24,6 anos (DP =11,5). O tempo médio de duração do transtorno psiquiátrico era de 13,9 anos (DP=11,4) e o tempo médio de tratamento foi de 11,4 anos (DP= 10,0).

Avaliação pela Comissão de Especialistas

A Tabela 1 apresenta os resultados do processo de adaptação transcultural da escala. Na primeira coluna, estão descritos os itens da escala original; na segunda, a versão preliminar resultante da avaliação da Comissão de Especialistas; e, na última coluna, a versão final, confeccionada após o Estudo Piloto.

A primeira modificação feita na escala pela Comissão de Especialistas foi o formato de instrumento autoadministrado, adotado na versão francesa, para o de entrevista, na versão adaptada. Considerou-se que a aplicação em entrevista seria mais adequada para a população-alvo brasileira, tendo em vista o baixo nível educacional dos cuidadores de pacientes psiquiátricos atendidos nos serviços públicos de saúde mental. A Comissão considerou que, neste caso, a aplicação por entrevista contribuiria para a qualidade dos dados coletados nas pesquisas futuras, preservando a validade dos resultados. Em consequência, as instruções da escala foram modificadas para corresponder ao novo formato de aplicação.

Em seguida, foram comparadas as duas versões traduzidas (T1 e T2) e as retraduzidas (R1 e R2) em relação à escala original, visando identificar e corrigir possíveis inconsistências de tradução e produzir uma versão brasileira com equivalência semântica em relação à escala original, porém adaptada para o contexto brasileiro. Nas comparações realizadas, dos 25 itens da escala original, 22 estavam inalterados ou pouco alterados, o que corresponde a 88% dos itens que tiveram seu significado preservado. Os três itens que apresentaram maior alteração em relação à escala original foram o 3, o 8 e o 13. No item 3, a frase "a manqué d'energie?" foi traduzida, tanto em T1 quanto em T2, como "se sentiu sem energia?" e foi retraduzida como "sentiez vous sans energie?". A tradução foi mantida. No item 8, a palavra "gêné" foi traduzida, respectivamente, como incomodado (T1) e constrangido (T2). Optou-se pela tradução T1, para preservar o uso de palavras mais comuns no contexto brasileiro. No item 13, a palavra "soutenu" foi traduzida como "teve suporte" (T1) e "foi apoiado" (T2). Novamente, a Comissão optou por preservar a tradução que fosse mais adequada ao contexto brasileiro, prevalecendo a tradução T2.

Durante a avaliação pela Comissão de Especialistas, outras modificações foram realizadas na redação de vários itens, visando a sua adaptação ao contexto brasileiro. No item 2, optou-se pelo uso da palavra "mentalmente" em vez de "moralmente". No item 4, a palavra "exausto" foi substituída por "esgotado". No item 6, a expressão "coisas que você considerava importantes" foi substituída por "coisas de que você gostava muito". No item 7, a palavra "saídas" foi substituída por "passear" e a palavra "jardinagem" foi eliminada, devido à pouca popularidade desta atividade no contexto brasileiro. No item 9, a palavra "outras" foi removida de forma que a redação final foi "teve o sentimento de não ter dedicado o tempo necessário às pessoas de sua família?". Nos itens 10 e 11, a palavra "sentimento" foi substituída por "sensação", considerada mais próxima da linguagem coloquial. Assim, o item 10 foi modificado para "sensação de falta de liberdade" e o item 11 para "sensação de viver apenas para as tarefas do dia a dia". No item 13, usou-se a palavra "apoio" para substituir "suporte" na frase "teve ajuda ou apoio do seu companheiro?". Nos itens 16, 17 e 18, as expressões "profissionais dos serviços", "equipe de acompanhamento" e "profissionais" foram respectivamente substituídas por "médicos, enfermeiros...". No item 23, optou-se por "atividades burocráticas" ao invés de "atividades administrativas", na frase "encontrou dificuldades nas atividades burocráticas relacionadas à doença do seu familiar?". Todas as modificações e adaptações feitas na escala foram decididas por consenso entre os membros da Comissão de Especialistas. No final deste processo, obteve-se a versão preliminar da escala brasileira.

Estudo Piloto

O Estudo Piloto tinha o objetivo de garantir que a redação dos itens da escala fosse de fácil compreensão para a população-alvo, com base na opinião dos próprios sujeitos. Para tal, foram realizadas entrevistas com a amostra dos cuidadores aplicando-se a versão preliminar da escala brasileira, por meio da Técnica de Sondagem.

No que se refere à redação dos itens, somente quatro causaram dificuldades de compreensão nas entrevistas, quais sejam os itens 16, 17, 18 e 23. Nos itens 16 a 18, as palavras "médicos, enfermeiros..." foram substituídas por "funcionários dos serviços de saúde (médicos, enfermeiros...)". A opção pelo uso desta expressão foi feita para evitar que os sujeitos respondessem avaliando apenas os médicos e os enfermeiros, como tendia a acontecer, e não todos os funcionários do serviço. A respeito do item 23, referente às "atividades burocráticas" do papel de cuidador, foram incluídos exemplos, visando tornar claro o seu significado. A redação final do item foi "encontrou dificuldades nas atividades burocráticas relacionadas à doença de seu familiar (ex. conseguir perícias, benefícios, medicamentos gratuitos, documentos pessoais, mexer com papelada)?".

Quanto às alternativas de resposta às questões da escala e às instruções iniciais, não foram observadas dificuldades de compreensão por parte dos sujeitos. Estas, portanto, foram preservadas em sua redação, pela Comissão de Especialistas.

 

Discussão

Neste trabalho, foi feita a adaptação transcultural da escala S-CGQoL para a avaliação da qualidade de vida de cuidadores de pacientes com transtorno de esquizofrenia, originalmente construída e validada na França. Ao avaliar as versões traduzidas e retraduzidas da escala, comparando-as com a versão original, a Comissão de Especialistas realizou alterações na redação dos itens, quando necessário, a fim de garantir a equivalência da versão brasileira em relação ao instrumento original. Foi importante a utilização dos critérios recomendados na literatura para a construção de itens de instrumentos psicométricos, pois eles serviram de parâmetros para garantir que a redação tivesse clareza e simplicidade, evitando mal-entendidos (Pasquali, 2010). O trabalho da Comissão de Especialistas foi importante também para adaptar a redação dos itens ao contexto cultural brasileiro, selecionando palavras simples de uso cotidiano, pois se recomenda que a redação dos itens seja de fácil compreensão pelos extratos mais baixos da população (Cassepp-Borges, Balbinotti, & Teodoro, 2010; Pasquali, 2010).

A mudança do formato de aplicação do instrumento, de autoadministrado para entrevista, foi efetuada devido às características sociodemográficas da população-alvo à qual se destina esta escala, geralmente pessoas com baixo nível de escolaridade, que frequentam os serviços públicos de saúde mental. Segundo Herdman et al. (1998), o formato autoadministrado pode comprometer a efetividade de instrumentos de medida, quando utilizados em populações com baixo nível de escolaridade. Perreault e Leichner (1993) também apontaram que questionários autoadministrados não são apropriados para usuários de serviços públicos de saúde mental, tendo recomendado o formato de entrevista, na qual as questões são lidas e as respostas são anotadas pelo entrevistador.

Durante o Estudo Piloto, o uso da Técnica de Sondagem foi muito útil para avaliar a opinião dos familiares sobre a redação dos itens da escala. Esta técnica permite detectar palavras que suscitam dúvidas e introduzir modificações necessárias para garantir a fácil compreensão do instrumento pela população-alvo (Guillemin et al., 1993). A técnica é útil, ainda, para detectar possíveis reações negativas em resposta aos significados conotativos de palavras usadas nos itens. No presente trabalho, esta técnica permitiu detectar a necessidade de incluir exemplos no final de quatro questões. É importante assegurar uma boa compreensão dos itens pela população-alvo, pois dificuldades de entendimento das questões pelos sujeitos de uma pesquisa podem provocar inconsistências na análise dos dados e comprometer as qualidades psicométricas da escala e os resultados das pesquisas (Pasquali, 2010). A Técnica de Sondagem já se mostrou importante para alcançar este objetivo na adaptação transcultural de outra escala (Moreira, Bandeira, Pollo, & Oliveira, 2014).

Os procedimentos adotados, neste estudo, permitiram garantir a equivalência da versão brasileira em relação à escala original, contribuindo para a comparabilidade dos resultados de pesquisas transculturais futuras que utilizarão esta escala, conforme recomendações de Vallerand (1989). Permitiram, ainda, obter uma escala adaptada ao contexto cultural brasileiro e de fácil compreensão para a população-alvo à qual se destina.

Pesquisas futuras deverão avaliar as qualidades psicométricas dessa escala, referentes à sua validade e fidedignidade, tornando-a apta a ser utilizada em estudos sobre a QV de familiares cuidadores de pacientes com esquizofrenia. Tendo em vista a sobrecarga a que estes cuidadores estão submetidos na vida cotidiana (Vasudeva et al., 2013), que pode resultar em transtornos psicopatológicos, como ansiedade e depressão (Rascon et al. 2010), torna-se necessário ter acesso a um instrumento de medida visando avaliar a qualidade de vida destes familiares. Esta avaliação contribuirá para estimar o impacto do papel de cuidador, as variáveis associadas à qualidade de vida dos familiares e suas relações com o tratamento dos pacientes.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Marina Bandeira, Universidade Federal de São João del-Rei
Praça Dom Helvécio, 74
São João del-Rei - Minas Gerais - MG - Brasil. CEP: 36301-160
E-mail: bandeira@ufsj.edu.br

Submissão: 7.6.2015
Aceitação: 21.9.2016

 

 

1 Esta pesquisa recebeu financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).

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