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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.19 no.1 São Paulo abr. 2017

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v19n1p67-78 

ARTIGOS
PSICOLOGIA SOCIAL

 

Docência voluntária na aposentadoria: transição entre o trabalho e o não trabalho

 

Docencia voluntaria en la jubilación: transición entre el trabajo y el no trabajo

 

 

Edite KrawulskiI; Samantha de Toledo Martins BoehsII; Karla de Oliveira CruzIII; Paloma Fraga MedinaIV

IUniversidade Federal de Santa Catarina, SC, Brasil
IIUniversidade Federal do Paraná, PR, Brasil
IIIUniversidade Federal de Santa Catarina, SC, Brasil
IVUniversidade Federal de Santa Catarina, SC, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A atividade docente em instituições públicas federais possui particularidades que repercutem no momento da aposentadoria desses profissionais, levando muitos a permanecerem exercendo suas atividades de forma voluntária ao se aposentarem. O presente estudo foi desenvolvido com oito professores aposentados que permanecem em atividade profissional via adesão ao trabalho voluntário na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Evidenciou-se que a escolha por essa permanência se vincula ao significado atribuído ao trabalho docente e que tanto fatores de ordem pessoal quanto externos aos sujeitos influenciam tal decisão. Os resultados encontrados indicaram que a continuidade do exercício profissional docente se configura como forma de manutenção do modo habitual de viver e principalmente como uma transição em direção à desvinculação total das atividades desenvolvidas. Embora aposentados, os docentes exercem a docência voluntária como estratégia de bridge employment em direção ao desligamento definitivo do trabalho e da instituição.

Palavras-chave: aposentadoria; trabalho; docência; significado; voluntariado.


RESUMEN

La actividad docente en instituciones públicas federales tienen particularidades que influencian en el momento de es os profesionales retirase, llevan do muchos a permaneceren ejerciendo sus actividades de enseñanza de manera voluntaria. Este estudio fue desarrollado junto a 8 (ocho) profesores jubilados que permanecen en actividad profesional a través de la adhesión al trabajo voluntario en la Universidad Federal de Santa Catarina. Se ha evidenciado que la elección de esa permanencia se vincula al significado atribuido al trabajo docente y tal cual factores de orden personal como factores externos a los sujetos influencian tal decisión. Los resultados encontrados indicaran que la continuidad del ejercicio profesional de docencia se configura como forma de manutención de la manera habitual de vivir y principalmente como una transición en dirección a la desvinculación total de las actividades ejercidas. A pesar de jubilados, los docentes ejercen la docencia voluntaria como estrategia de bridge employment en dirección al alejamiento del trabajo y de la institución.

Palabras-claves: jubilación; trabajo; la enseñanza; significado; voluntariado.


 

 

Introdução

Na contemporaneidade, o trabalho possui elevado grau de centralidade na vida dos indivíduos, criando padrões de referência e influenciando diretamente na forma como eles se reconhecem e são reconhecidos. Trata-se de um fenômeno psicossocial que consiste em uma das principais fontes de significados e de identificações para os sujeitos; mais do que suprir necessidades de sobrevivência física, também proporciona realização e possibilita status econômico e social.

Em razão dessa preponderância, o desligamento do trabalho com a chegada da aposentadoria é um processo cercado de complexidade e desafios, tornando-se necessária, para muitos trabalhadores, uma fase de adaptação entre a atividade e o distanciamento da rotina de trabalho. Estudos com pessoas aposentadas têm sido cada vez mais relevantes no Brasil diante de um contexto social de significativo envelhecimento populacional, cuja estimativa para os próximos 50 anos é de um crescimento de quase 400% da população com mais de 65 anos, que chegará perto dos 58,4 milhões em 2060 (IBGE, 2014).

A aposentadoria pode ser considerada uma transição, que tem sido vivenciada por pessoas fisicamente ativas e em condições psicológicas de se manterem trabalhando e buscando outras atividades profissionais e que têm passado pelo processo de reflexão a respeito do que fazer da vida após o desligamento formal do trabalho (França & Soares, 2009; Duarte et al., 2010). De maneira geral, as expectativas e os comportamentos dos trabalhadores em relação à aposentadoria associam-se ao significado atribuído ao trabalho que realizam e aos vínculos com ele mantido no decorrer da trajetória profissional. Além de concorrer para a perda da identidade profissional, a possibilidade de não trabalho na aposentadoria pode vincular-se a sentimentos negativos e/ou ambivalentes, representando uma passagem para a solidão e para o tédio, ao se opor à positividade do trabalho na vida societária contemporânea (Selig & Valore, 2010; Moreira, 2011).

Ao repensar suas trajetórias pessoal e profissional no momento da aposentadoria, o sujeito realiza escolhas que conduzem à continuidade ou à ruptura com os padrões de comportamento adotados e com os caminhos trilhados no decorrer da vida. Essas escolhas ganham contornos singulares em determinadas profissões, cujas peculiaridades repercutem nos vínculos estabelecidos pelos sujeitos com seu exercício laboral e, consequentemente, no processo de desvinculação (ou não) do trabalho ao aposentar-se.

O trabalho docente se constitui como um dos exercícios profissionais no qual a aposentadoria não necessariamente representa o desligamento das atividades e o encerramento da carreira. O reconhecimento alcançado, o status construído, a vinculação a agências de fomento e/ou a grupos de pesquisa ou mesmo o desejo de continuidade, comumente associado a uma dependência emocional gerada pela própria natureza do trabalho realizado são alguns dos aspectos que motivam docentes do magistério superior aposentados a permanecerem no trabalho (Silva, 2010; Guimarães, Soares, & Casagrande, 2012; Krawulski & Ribeiro, 2013). Esses aspectos independem da aposentadoria ter decorrido de planejamento e escolha pessoal ou do limite de 70 anos no serviço público federal, alterado para 75 anos, pela Lei Complementarn. 152/2015 (Brasil, 2015).

A permanência trabalhando na mesma instituição após a aposentadoria tem se concretizado em algumas universidades por meio da concessão de bolsas seniores ou, na maioria dos casos, por meio do trabalho voluntário, em que pese a polêmica em torno da contrapartida financeira a essa modalidade de trabalho (Guimarães, Soares, & Casagrande, 2012). Na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), campo da pesquisa aqui apresentada, essa permanência é formalizada por meio da adesão a um Programa de Serviço Voluntário instituído por Resolução específica aprovada pelo Conselho Universitário. Esse dispositivo legal define a atividade voluntária como aquela que depende da vontade espontânea, podendo estar relacionada ao ensino, à pesquisa, à extensão ou a outras de natureza técnico-administrativa, assistencial, cultural, artística, esportiva ou recreativa, e cujo exercício requer a prévia apresentação e aprovação de um plano de trabalho. Em pesquisa anterior, Krawulski e Ribeiro (2013) levantaram que 64 professores firmaram termo de adesão a essa modalidade de trabalho na instituição no período entre 2008 e 2012, e esse número vem crescendo nos anos subsequentes.

Quais fatores influenciam a decisão pela permanência no trabalho docente na instituição após a aposentadoria? A identidade profissional desses docentes se encontra tão sobreposta à sua identidade pessoal que não conseguem se afastar em definitivo do trabalho nem da instituição após terem se aposentado? A dificuldade de se desvencilhar do papel docente guarda relação com a trajetória profissional e com o alto grau de envolvimento e de tempo dedicados ao trabalho? Os níveis elevados de exigências, sobretudo daqueles que atuam na pós-graduação, tornam a centralidade do trabalho tão alta na vida desses profissionais que os espaços para outras esferas de realização inexistem ou são exíguos em suas vidas? O status e o reconhecimento, somados ao fato de muitos serem intelectualmente referências em suas áreas, fazem com que se sintam descaracterizados e frente a um vazio quando se afastam do meio acadêmico?

Em que medida e de que modo a própria universidade se beneficia da decisão dos docentes de permanecerem trabalhando de forma voluntária após se aposentarem? Tomando por referências estas questões, o presente artigo objetivou compreender o significado do trabalho docente e a sua relação com a permanência no exercício profissional após a aposentadoria via trabalho voluntário, bem como as principais motivações que ensejam essa continuidade.

 

Método

Para atingir o objetivo do artigo, foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa, desenvolvida junto a docentes aposentados da UFSC que continuam parcial ou totalmente no exercício de suas atividades profissionais mediante vinculação formal ao Programa de Serviços Voluntários existente na instituição. Essa investigação sucedeu uma pesquisa documental que mapeou a incidência de adesão ao trabalho voluntário por docentes aposentados considerando sua distribuição de acordo com as diferentes unidades acadêmicas da instituição (Krawulski & Ribeiro, 2013). O projeto foi previamente submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSC e aprovado conforme Parecer n. 430.378, de 21 de outubro de 2013.

Participantes

Participaram da pesquisa oito docentes, selecionados de forma intencional, observados os critérios previamente delineados, de inclusão na amostra de participantes vinculados a diferentes unidades acadêmicas da instituição e que estivessem exercendo a docência em caráter voluntário há, no mínimo, um ano. Dos oito entrevistados quatro são homens e quatro são mulheres, com idades entre 57 e 73 anos, sendo seis brasileiros e dois estrangeiros. Sete são casados e uma é viúva, seis têm filhos e os outros dois têm enteados, e quatro são avós. Cinco possuem pós-doutorado, dois possuem doutorado e um possui mestrado. Quatro dos participantes atuam como docentes voluntários exclusivamente na pós-graduação, dois o fazem apenas na graduação e outros dois estão inseridos em ambos os níveis de ensino. Quanto à atuação, três são da área de ciências humanas e sociais, dois da área tecnológica, dois das ciências da saúde e um da educação. Visando garantir a condição de anonimato aos participantes, optou-se por designá-los com nomes de pássaros, respeitando-se o critério de gênero.

Instrumento e Procedimentos

Como instrumento para levantamento de dados foi utilizada uma entrevista semiestruturada, com roteiro previamente elaborado e dividido em quatro grandes áreas: a trajetória profissional na docência, o processo de aposentadoria, o exercício do trabalho voluntário, a docência voluntária e as estratégias de continuidade do ciclo de vida laboral. A apresentação das questões aos participantes foi feita com flexibilidade e privilegiando o diálogo.

O convite para participação na pesquisa foi dirigido via e-mail ou estabelecido por telefone. Todos assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e as entrevistas, com duração variando entre 40 a 90 minutos, foram gravadas em áudio e depois transcritas. Os dados foram analisados por meio da análise de conteúdo (Bardin, 2011).

 

Resultados e Discussão

Os resultados foram analisados a partir de dois eixos temáticos: 1) significado do trabalho docente e permanência no trabalho após a aposentadoria; 2) motivos que levam à docência voluntária após a aposentadoria.

1. O significado do trabalho docente e a permanência no trabalho após a aposentadoria

Segundo Coutinho, Dal Magro e Budde (2011), a docência se constitui como prática criativa que propicia reconhecimento e identidade, além de, por meio das relações afetivas estabelecidas nos contextos de trabalho, permitir trocas, inserção social e autorrealização. Tais aspectos são contemplados de diferentes maneiras pelos participantes, cujos discursos são reiteradamente permeados pelos sabores e dissabores vivenciados na prática docente cotidiana.

As falas de Pelicano e Coruja retratam essas dimensões, destacando especialmente sua relação com a identidade e a realização pessoal: "a vida como professor para mim é muito importante, não é uma coisa aleatória; me sinto de repente como se faltasse parte de mim sem ensinar" (Pelicano) /"eu faço o que gosto, acho que faço meio egoisticamente, porque eu preciso!" (Coruja).

O ato de lecionar reúne em si a contribuição para a construção do conhecimento por parte dos estudantes e, ao mesmo tempo, o aperfeiçoamento do saber do próprio professor, construído ao longo de sua vida pessoal e profissional (Enricone & Grillo, 2007). Pelicano se refere tanto à relação estabelecida com os alunos quanto com o próprio saber: "Eu gosto normalmente de estudar, de ler, mas o diálogo com os alunos, do nível que forem, [...] é uma coisa que me interessa muito". Curió ressalta: "Eu acho gratificante ter à sua frente uma rede de interessados que são seus alunos e que formam verdadeiras malhas e que repassam para os outros". Dessa forma, o fascínio pelo estudo e o prazer de estar com os estudantes, sendo sujeito de mudança na vida de outros, torna a docência prazerosa (Martins & Honório, 2014), gerando significados ao trabalho docente.

Alguns participantes associam a docência à juventude e à vitalidade, bem como ao pleno exercício de suas capacidades e potencialidades, e em função desse significado optam por permanecerem trabalhando após se aposentarem. Pavão, afirma que se sente "muito mais ativo que os ativos", referindo-se aos que ainda não se aposentaram, e completa "a universidade é uma alma de juventude, porque você se mistura com o jovem, [eles] são contagiosos, [...] deixam você ficar jovem, se comportar como jovem".

A universidade, representada socialmente como um espaço diferenciado na produção de conhecimento, parece conceder, por si só, certo valor e importância àqueles que nela atuam, especialmente aos professores. Esse valor social se relaciona com a identidade institucional, muitas vezes incorporada de maneira expressiva pelos docentes. As participações em eventos científicos, em bancas e na produção de artigos/livros carregam consigo o nome da universidade e seu respaldo na comunidade acadêmica, esses fazeres contribuindo efetivamente para a significação do papel de docente. Ao comentar sobre o prestígio nacional e internacional da UFSC, Curió ressalta o reconhecimento externo que recebe como docente da instituição: é "um orgulho para a gente. A gente se sente feliz", contando ainda sobre o hábito que possui de usar um broche com o brasão da Universidade. Para além da identificação e do entusiasmo proporcionados pela docência, as universidades, sobretudo nos últimos anos, têm sido pressionadas a contribuir na competitividade da economia, revertendo-se esse direcionamento em pressões aos docentes, que precisam subordinar-se aos ditames do mercado e atuar em contextos de reordenação de práticas segundo as lógicas mercantil e de competências (Lopes, 2006). O processo de reestruturação produtiva ocasionou a racionalização do tempo e a valorização da qualificação, além de exigir a multifuncionalidade e eficiência do trabalhador e um aumento constante da produtividade, aspectos que atingiram também os docentes em seu trabalho cotidiano (Coutinho, Dal Magro, & Budde, 2011).

A lógica da competitividade instaurada se expressa por indicadores de produção de artigos, de orientações e de projetos, que resultam na agregação de múltiplas tarefas e na intensificação da carga de trabalho docente, caracterizando a "universidade produtiva" (Lopes, 2006). Andorinha retrata especialmente essa sobrecarga: "Nos últimos anos, minha dedicação estava passando dos limites; eu chegava na Universidade sete da manhã e saía daqui sete, oito horas da noite... ainda levava coisa para fazer em casa. Então, minha vida era trabalhar". Tendo em vista a carga excessiva de trabalho, tornam-se escassos o tempo e a energia para dedicação a outras atividades da vida no decorrer da carreira.

Esse contexto de trabalho intensificado gera o paradoxo do prazer-sofrimento vivenciado pelo professor universitário: de um lado, tem-se a satisfação resultante da produção de conhecimento e o reconhecimento possibilitado pela atividade e, de outro, condições e relações de trabalho pautadas por extensas jornadas e excessiva carga, pressão para a publicação de artigos, elevado número de aulas e exigência de participação em reuniões e funções administrativas, o que afeta sua saúde física e mental (Coutinho, Dal Magro, & Budde, 2011). O desgaste decorrente do desempenho dessas outras atividades é referido por Sabiá: "o grande problema são as atividades administrativas [...]. é uma carga muito grande, e se eu fosse contar os anos que mais me desgastaram, foram estes e não os no magistério ou outro trabalho".

Em que pesem os aspectos negativos da realidade do trabalho docente atual, referidos por todos os participantes, o significado de seu trabalho foi construído pautado pelas características e aspectos positivos que se sobressaem nas narrativas, o que dificulta, para muitos professores, o desligamento completo das atividades por ocasião da aposentadoria. O cotidiano laboral docente, exatamente por suas características, ou apesar delas, molda de tal forma o profissional que ele constrói sua trajetória e sua própria vida em torno da prática docente, caracterizando a denominada centralidade ocupada pelo trabalho em suas vidas (Guimarães, Soares, & Casagrande, 2012). O fenômeno se dá de tal modo e com tal intensidade que, ao aproximar-se do momento que o conduziria ao final de sua carreira, não vislumbra perspectivas outras para sua vida que não permanecer exercendo a docência, em muitos casos, de forma voluntária. Múltiplas razões estão no cerne da escolha por essa permanência.

2. Os motivos que levam à docência voluntária na aposentadoria

A permanência no trabalho após a aposentadoria por parte de docentes universitários federais em geral não possui como mote principal a necessidade financeira. Pesquisas apontam que essa permanência está ancorada antes no sentimento de reconhecimento proporcionado pelas atividades, como também na busca pela preservação e vivência da saúde, do intelecto ativo e da contribuição para a formação de outras pessoas (Moreira, 2011; Ribeiro & Smeha, 2009). A "dependência emocional" do trabalho, associada ao desejo de dar continuidade a atividades em curso, com menor sobrecarga e mais qualidade de vida no trabalho também é ressaltada (Guimarães, Soares, & Casagrande, 2012).

Os motivos para a continuidade do trabalho identificados nos discursos dos participantes dizem respeito a fatores referentes ao próprio sujeito e também a fatores externos. Dentre as razões de ordem pessoal estão aquelas que lhes proporcionam algum retorno direto, como a manutenção social do status e do reconhecimento como docente da UFSC, a ocupação do tempo ocioso e ainda os sentimentos de utilidade e juventude associados a essa permanência.

Elementos como o status derivado do exercício da profissão e o reconhecimento pelo trabalho realizado impactam diretamente na identidade pessoal e na própria percepção de si desses docentes, como alguém que construiu um legado, concretizou sonhos, alcançou o sucesso e criou seu próprio espaço na esfera profissional. Pavão evoca números para expressar esses elementos: "[...] eu tenho mais de 400 trabalhos publicados, cinco livros, orientei não me lembro quantos doutores e mestres, trabalhos de conclusão de curso, uns 200, 400".

A decisão pela permanência no trabalho na universidade como voluntário está imbricada pela satisfação com a profissão, o que permite atribuir à trajetória pessoal um valor eminentemente positivo (Krawulski, Favretto, Cruz, Medina, & Ribeiro, 2015). Nessa perspectiva, enquanto a continuidade na carreira for marcada pelos sentimentos de reconhecimento e de realização, a perspectiva da aposentadoria é percebida como vazio, perda e ruptura.

Permanecer trabalhando na instituição via voluntariado parece ser uma estratégia, então, de vivenciar um período transicional entre o trabalho e o não trabalho, conforme apontou o estudo de Guimarães, Soares, & Casagrande (2012). Andorinha explicita essa noção ao ressaltar a necessidade de "compreender que o trabalho voluntário é um sair e não um permanecer; [...] é você ainda dar uma contribuição, mas com a ideia de sair". Para Cegonha, "ele [o trabalho voluntário] é importante para o professor para não entrar nesse vazio existencial de não fazer mais nada". Segundo essa participante, a opção pela docência voluntária na sequência de sua aposentadoria é um "estágio probatório" para aproximar-se mais paulatinamente do momento do desligamento do trabalho na instituição.

Percebeu-se que o exercício docente voluntário se configura, portanto, como um período de continuidade e transição que possibilita ao aposentado refazer planos, tecer novas escolhas e reestabelecer-se em outros espaços e fazeres enquanto ainda mantêm um vínculo com a carreira até então construída e também com a instituição que a favoreceu. Essa continuidade pode ser compreendida a partir do conceito de bridge employment, fase de transição na qual trabalhadores mais velhos estão começando a se desengajar psicologicamente da força de trabalho, mas ainda não estão totalmente prontos para começarem a vida com a ausência total das responsabilidades de trabalho (Wang, Adams, Beehr, & Shultz, 2009).

Alguns aspectos concretos justificam a necessidade dessa transição, como o preenchimento do tempo, por exemplo, uma vez que a chegada da aposentadoria e a possibilidade de possuir uma agenda mais flexível e aberta criam um paradoxo para esses profissionais: ela é desejada, como descanso merecido após anos de dedicação, porém também temida, por trazer consigo incertezas e readequações iminentes. Questões relativas à ocupação e à flexibilização do tempo se fazem presentes nas falas dos participantes. Curió associa sua continuidade na docência voluntária como uma estratégia para ocupar o tempo livre: "Eu fico uma hora no meu computador e 'deu pra bola'. Eu tenho que sair, mas meu espaço de saída é muito pequeno. É ir ao banco, ir à lotérica, ir à padaria". Alguns, porém, ressaltam a flexibilidade de horários como possibilidade de dedicação a outras atividades como viagens, atividades de lazer, cuidados com a saúde, entre outros.

O cuidado com a saúde, em especial, foi outro aspecto também relacionado à escolha por permanecer trabalhando, o que expressa uma associação da aposentadoria com o adoecimento e uma percepção do trabalho como "remédio" que mantém a saúde. A fala de Coruja é simbólica nesse sentido:

"O meu marido sempre reclamou [sobre sua decisão de permanecer trabalhando como voluntária]: mas como que tu vais trabalhar sem ganhar nada, isso não existe! Aí eu disse: olha, não é que eu não vou ganhar nada, eu não vou pagar psicólogo! Porque se eu ficar em casa sem fazer nada, eu vou pagar psicólogo e ainda vou ter que tomar um monte de baga! Não, eu vou deixar de gastar!!!" (Coruja).

Considerado sob essa perspectiva, o trabalho docente possibilita a manutenção das capacidades e atividades intelectuais, estimulando-as e prevenindo possíveis problemas de saúde (Ribeiro & Smeha, 2009). A permanência no trabalho via docência voluntária como estratégia de manutenção da juventude e do afastamento do estigma da aposentadoria como fenômeno associado à velhice foi reiterada pelos participantes: "é impressionante, você nunca envelhece aqui, jamais!" (Pavão) /"[...] se ficasse em casa, eu ia fechar meu bloco de memória, ministrando aula, sou obrigado a fazer leitura, a estar atualizado" (Curió).

Como fatores externos motivadores da decisão pela continuidade no trabalho docente voluntário, foram aludidas contribuições da permanência para a sociedade em geral, para a Universidade e também especificamente para os programas de pós-graduação com os quais a maioria dos participantes continua mantendo vinculação. A própria definição de trabalho voluntário expressa o aspecto relativo à contribuição social do trabalho docente. Nessa direção, Gaivota afirma: "acredito que para bastante gente eu fiz a diferença, e isso é trabalho voluntário, ele tem uma expressão bem importante não só para o meu prazer, mas na contribuição de pessoas para a sociedade". Andorinha é ainda mais incisiva: "tenho 60 anos e espero viver mais uns 15, 20 anos. Eu acho que é um ônus muito grande pagar um professor aposentado que vai ficar só passeando nessa vida". A concepção de continuar disponibilizando conhecimento à sociedade enquanto ainda se tem condições para tanto fica evidente nesses discursos.

A contribuição especificamente à própria universidade também permeou falas abordando razões da escolha pelo trabalho voluntário. Pavão, por exemplo, denomina de "crime acadêmico" o afastamento de professores tão experientes e sábios após a aposentadoria. Em sua concepção, alguém como ele, que "tem um conhecimento tão profundo e tão rico" não pode levar esse conhecimento "para o túmulo". Ele cita ainda o auxílio prestado a outros professores quando esses precisam se ausentar por algum motivo, a divulgação da Universidade em suas participações em eventos e atividades acadêmicas dentro e fora do país, além do próprio renome pessoal, vinculando à universidade suas conquistas e contribuições no meio científico como razões para permanecer na docência voluntária após ter se aposentado. Na avaliação de Pelicano, "os departamentos, de modo geral, têm a ganhar com professores voluntários, porque somos pessoas de muita experiência, retirados da profissão antes do tempo, uns anos mais ainda poderíamos trabalhar, então reforçamos os quadros docentes".

A questão da continuidade da contribuição à universidade remete também aos vínculos com a pós-graduação. De fato, a possibilidade de continuar atuando no programa de pós-graduação ao qual se vinculavam anteriormente à aposentadoria, como também o compromisso com grupo(s) de pesquisa que, em muitos casos, ajudaram a criar, bem como continuar a contribuir para a produção do conhecimento científico, com publicações consideradas decisivas para a boa avaliação dos cursos pela Capes foram motivações apontadas como preponderantes para a permanência.

Cegonha relata sua disponibilidade para continuar vinculada à pós-graduação: "eu estava com um currículo bom, estava com um monte de artigos para sair. Eu disse para o mestrado: enquanto o meu currículo servir para vocês eu fico". Sabiá, por sua vez, afirma: "Eu sou muito importante para o programa de pós-graduação porque eu tenho bolsa do CNPQ, porque eu oriento, etc. [...]. Quando a Capes vai avaliar, ela vai olhar quantos PQs tem, quantos professores têm pós-doutorado", deixando claro que as vantagens da permanência não interessam somente a ele.

Evidencia-se um paradoxo entre os professores que se vinculam à pós-graduação, especialmente entre os que recebem bolsa de produtividade oriunda de agências de fomento: apesar da condição voluntária de seu trabalho teoricamente ensejar uma escolha mais flexível do que e do quanto fazer, na prática, para se manterem no quadro de docentes da pós-graduação e cumprirem demais requisitos derivados da condição de bolsistas, não conseguem ter uma carga horária diminuída. Andorinha relata: "Eu fiz o vínculo de voluntário só com a pós-graduação. Eu dou disciplinas, oriento, faço pesquisa, mantenho meus contatos internacionais, porque a pós precisa disso e, assim, todas as atividades da pós eu mantive" [...]. Então dizer para ti que eu trabalho 16 horas por semana, é mentira. Umas trinta eu trabalho fácil!".

É inegável que os programas de pós-graduação são beneficiados com a participação de aposentados voluntários em seu quadro docente, e muitos, inclusive, dependem desses profissionais para manter seus padrões de desempenho e produtividade acadêmica junto às agências avaliadoras. Entretanto, cabe às universidades a tarefa de criar estratégias de gestão que possibilitem a diminuição sistemática das exigências de publicação para os professores que estejam se aproximando do período da aposentadoria, redistribuindo tais exigências para os docentes mais jovens. Torna-se necessário também que as exigências excessivas em termos de produtividade sejam rediscutidas em agências de fomento como Capes e CNPQ com a finalidade de exacerbar a qualidade das publicações e não a quantidade, como tem sido feito atualmente.

 

Conclusão

Tendo em vista que os padrões de dedicação excessiva ao trabalho com a finalidade de cumprir as exigências de produtividade, especialmente derivadas dos programas de pós-graduação, gera por anos a fio a falta de tempo para os docentes se dedicarem a outras atividades da vida externas ao trabalho. Dessa forma, a docência voluntária, após a aposentadoria, caracteriza-se como uma estratégia de continuidade dos padrões de comportamento com os quais os sujeitos estavam acostumados, o que gera sentimentos de segurança e reconhecimento de si pela manutenção de uma identidade construída no/pelo trabalho.

O exercício da atividade docente após a aposentadoria, via trabalho voluntário, se configura como recurso de transição importante, já que a maioria dos docentes aposentou-se no ápice de sua carreira profissional e não vislumbrava a interrupção imediata dessa carreira. Como expressou uma participante da pesquisa, a atividade docente pode ser considerada como "um trabalho que não tem fim", justificando, assim, o profundo envolvimento desses profissionais com as tarefas cotidianas na instituição, o conjunto de motivos para permanecerem trabalhando e a própria necessidade do exercício da docência voluntária como transição gradual, em direção ao desligamento definitivo do trabalho docente na instituição.

Torna-se importante a criação de programas de preparação para a aposentadoria, destinados à comunidade docente, que estimulem a criação ou resgate os vínculos com grupos de convívio externos ao ambiente de trabalho, e que possibilitem, aos poucos, a desvinculação de uma identidade pessoal da identidade profissional. É relevante também, a criação de políticas nas universidades que propiciem de maneira remunerada a desvinculação sistemática dos trabalhadores mais velhos dos programas de pós-graduação, diminuindo, gradualmente, a carga horária e as exigências de produção.

As reflexões geradas pelo presente estudo propiciaram o aprofundamento das discussões a respeito dos motivos que levam a permanência no trabalho voluntário após a aposentadoria. Entretanto, ressalta-se que tais análises resultaram da pesquisa com um grupo específico de docentes aposentados de uma única universidade federal, o que de certa forma seria uma limitação. Sugere-se, então, que sejam realizados futuros estudos sobre o mesmo tema com docentes aposentados de outras universidades federais, particulares e também, estudos comparativos com docentes e profissionais aposentados de outras áreas de atuação.

 

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Endereço para correspondência:
Edite Krawulski
Rua Vereador Frederico Veras, 625 - Bairro Pantanal
88040200 - Florianópolis - SC.
E-mail: editekrawulski@gmail.com

Submissão: 16.6.2016
Aceitação: 3.4.2017

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