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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.19 no.3 São Paulo dez. 2017

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v19n3p192-208 

ARTIGOS
AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

 

Avaliação psicológica de jogadores de videogame, tabuleiro e live: personalidade, raciocínio e percepção emocional

 

Evaluación psicológica de los jogadores de videojuegos, tableros y live: personalidad, raciocinio y percepción emocional

 

 

Fabiano Koich MiguelI; Lucas de Francisco CarvalhoII; Thainã Eloá Silva DionísioIII

IUniversidade Estadual de Londrina, PR, Brasil
IIUniversidade São Francisco, SP, Brasil
IIIUniversidade Estadual de Londrina, PR, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa teve por objetivo investigar a relação entre preferência por jogos e características psicológicas: raciocínio abstrato e verbal, percepção de emoções e traços patológicos de personalidade. Para tanto, 164 pessoas participaram do estudo, predominantemente mulheres (75%) com idade média de 18,93 (DP = 6,36), e a maioria possuía ensino médio completo ou graduação. Os indivíduos responderam a um questionário de preferências de jogos, ao Teste Informatizado de Percepção de Emoções Primárias (PEP), ao Inventário Dimensional Clínico da Personalidade (IDCP) e a dois subtestes da Bateria de Provas de Raciocínio (BPR-5). Os resultados indicaram correlações coerentes com a maioria das medidas, de modo que a maior parte das magnitudes foi significativa, variando entre 0,16 (Distorção de raiva vs. Interesse em jogos violentos) e 0,41 (Percepção emocional vs. Quantas vezes por mês se reúne com outras pessoas para jogar). Além disso, a importância atribuída a ser um usuário de jogos foi predita principalmente por três traços da personalidade: Grandiosidade, Evitação a críticas e Impulsividade. Foi possível encontrar tendências de associação entre características psicológicas e a preferência por jogos, de modo que atribuir maior importância ao ato de jogar mostrou-se associado à maior frequência de comportamentos excêntricos, desconfiança quanto às intenções dos outros e evitação a críticas. As relações encontradas foram discutidas, o que possibilitou concluir que parece existir um perfil típico para pessoas que demonstram alta tendência para o ato de jogar.

Palavras-chave: jogos; recreação; traços de personalidade; inteligência emocional; medidas de inteligência.


RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo investigar la relación entre la preferencia por los juegos y las características psicológicas: el razonamiento abstracto y verbal, la percepción de las emociones y rasgos de personalidad patológicos. Para ello, 164 personas participaron en el estudio, en su mayoría mujeres (75%) con una edad media de 18,93 (SD = 6,36), con nivel de educación secundaria y graduación, en su mayoría. Respondieron a un cuestionario de preferencias de juego, la Prueba Computarizada de Percepión de las Emociones Primarias (PEP), el Inventario Dimensional Clínico de la Personalidad (IDCP) y dúas pruebas de la Batería de Pruebas de Razonamiento (BPR-5). Los resultados mostraron correlaciones coherentes con la mayoría de las mediciones, siendo la mayoría de magnitudes significativas, variando de .16 (Distorsión de ira x Interés en juegos violentos) a .41 (Percepción emocional x Frecuencia mensual de jugar con otras personas). Además, la importancia atribuida a ser un jugador fue predicha por tres rasgos de personalidad: Grandiosidad, Evitación de la crítica e Impulsividad. Encontramos tendencias de asociación entre las características psicológicas y la preferencia del juego, de tal forma que atribuir mayor importancia al juego se asoció con una mayor frecuencia de conductas excéntricas, sospechas hacia las intenciones de los demás y evitar críticas. Las relaciones que encontramos son discutidas, y llegamos a la conclusión de que parece que hay un perfil típico para las personas que demuestren tendencia alta para los juegos.

Palabras-claves: juegos; recreación; rasgos de personalidad; inteligencia emocional; medidas de inteligencia.


 

 

Introdução

Jogos e videogames são frequentemente utilizados como atividade de lazer. Como toda atividade humana, envolvem aspectos psicológicos. Pesquisas vêm demonstrando que certos tipos de videogame estão relacionados a melhor raciocínio espacial (Feng, Spence, & Pratt, 2007), maior velocidade de processamento e memória visual de curto prazo (McDermott, Bavelier, & Green, 2014), maior capacidade de raciocínio abstrato e resolução de problemas (Suziedelyte, 2015), entre outros. Na literatura, pode-se encontrar sugestões para que jogos de videogame sejam utilizados para desenvolver o desenvolvimento neurológico, como na pesquisa de Kühn, Gleich, Lorenz, Lindenberger, & Gallinat (2014). Os autores compararam um grupo controle com um grupo que treinou por dois meses em um jogo de plataforma, e os resultados indicaram aumento significativo de matéria cerebral em áreas responsáveis por localização espacial, planejamento, memória de trabalho e desempenho motor.

Contudo, não são apenas habilidades cognitivas que se associam aos jogos, mas também aspectos afetivos e de personalidade. Por exemplo, ao comparar pessoas que ficaram três dias jogando videogames agressivos e pessoas que jogaram videogames não agressivos, Hasan, Bègue, Scharkow & Bushman (2013) constataram que o primeiro grupo demonstrou aumento significativo na frequência de comportamentos agressivos, enquanto o segundo grupo mostrou uma diminuição não significativa nos comportamentos agressivos. Outras pesquisas que chegaram a resultados semelhantes sugerem que a exposição à violência nos jogos pode levar à redução de sensibilização e a comportamentos e pensamentos agressivos (Anderson et al., 2010; Engelhardt, Bartholow, Kerr, & Bushman, 2011). Em contraste, outras pesquisas têm sugerido que a utilização de jogos pró-sociais pode aumentar a frequência de comportamentos socialmente valorizados (Greitemeyer & Osswald, 2011).

Com relação a traços de personalidade, Peever, Johnson & Gardner (2012), com base no modelo dos cinco grandes fatores, encontraram que extroversão se associou à preferência por jogos mais casuais e festivos; introversão, a jogos de Role-Playing Game (RPG) e de estratégia; conscienciosidade, a jogos de esporte, de luta e de simulação; abertura a novas experiências, a jogos de ação e de plataforma. Em outra pesquisa (Chory & Goodboy, 2011), constatou-se que a preferência por jogos violentos estava associada à maior abertura e à menor agradabilidade.

A pesquisa de Herodotou, Kambouri e Winters (2011) investigou características de inteligência emocional segundo a teoria de traços, ou seja, mais associada à personalidade e avaliada por autorrelato. Participaram do estudo jovens que jogavam videogameon-line de múltiplos usuários. Os resultados indicaram que o traço inteligência emocional se correlacionou significativamente com preferências sociais no jogo, como ajudar outros usuários e bater papo, oposto a preferências de sucesso, como adquirir poder e competir. O traço inteligência emocional também se correlacionou com menor quantidade de horas dedicadas ao jogo. Todas as correlações foram de magnitude 0,16 ou inferior.

Quanto à frequência, um estudo longitudinal de dois anos (Gentile et al., 2011) encontrou que o uso patológico do videogame estava associado a menores níveis de habilidades sociais e rendimento escolar. Além disso, a frequência elevada estava associada a maiores níveis de impulsividade, depressão e ansiedade.

Diante da escassez de pesquisas brasileiras nessa área, e buscando contribuir para o mapeamento do impacto dos jogos em variáveis psicológicas, o presente estudo teve por objetivo estudar a relação entre preferência por jogos com características psicológicas. Mais especificamente, o estudo verificou o quanto a importância dada aos jogos, o tempo dedicado ao jogo e a preferência por tipos específicos de jogos estavam relacionados a raciocínio abstrato e verbal, percepção de emoções nos outros e traços patológicos de personalidade.

Levando em conta as pesquisas apresentadas, entende-se que diversas características psicológicas poderiam estar associadas à preferência por certos tipos de jogos. Nesse sentido, este estudo buscou ampliar o rol de características psicológicas. Para isso, foram selecionados instrumentos para avaliar diversos aspectos, como: capacidade de perceber emoções, inteligência e traços de personalidade. O teste para avaliar a percepção emocional teve como resultado o nível geral de percepção, os níveis específicos de identificação de cada uma das oito emoções básicas (alegria, amor, medo, surpresa, tristeza, nojo, raiva e curiosidade) e o nível geral de distorção, que indica erros na atribuição das emoções (Miguel & Primi, 2014). O teste de inteligência avaliou a capacidade de raciocínio abstrato (compreender relações entre conceitos sem aprendizado anterior) e raciocínio verbal (compreender relações entre palavras) (Primi & Almeida, 2000). Os traços de personalidade avaliados foram: dependência (sentimento de inferioridade e necessidade dos outros para tomar decisões), agressividade (interesse pela violência e comportamentos agressivos), instabilidade do humor (oscilações bruscas no estado de humor), excentricidade (percepção de si como sendo diferente), necessidade de atenção (busca por situações em que se sinta valorizado), desconfiança (suspeitar das intenções dos outros), grandiosidade (sentimento de superioridade e importância maior que os outros), isolamento (afastar-se da vivência social), evitação a críticas (constrangimento com situações sociais), autossacrifício (disponibilizar-se aos outros mais do que a si próprio), conscienciosidade (preocupação com detalhes e perfeição) e impulsividade (comportamentos aventureiros e imprudentes) (Carvalho & Primi, 2015).

Com base nos construtos avaliados pelos testes anteriormente mencionados e seus comportamentos tipicamente manifestos, as seguintes hipóteses foram elaboradas: h1 - Atribuir maior importância ao jogo estaria relacionado com maior excentricidade, necessidade de atenção, desconfiança, isolamento e evitação a críticas; h2 - Mais tempo dedicado ao jogo estaria relacionado com maiores níveis de raciocínio, menor capacidade de perceber as emoções nos outros e menor percepção de alegria; h3 - Interesse em jogos de raciocínio (que exigem estratégia e planejamento) estaria relacionado com maiores níveis de raciocínio; h4 - Interesse em jogos de ação (que envolvem movimento e energia) estaria relacionado com maiores níveis de impulsividade; h5 - Interesse em jogos violentos (que envolvem luta, destruição e morbidez) estaria relacionado com maiores níveis de percepção de raiva, com traços de agressividade, desconfiança e impulsividade; h6 - Interesse em RPG live (uma modalidade pouco comum, em que o jogo acontece por meio da representação e da vivência dos jogadores) estaria relacionado com maiores níveis de excentricidade e grandiosidade; h7 - Interesse apenas por jogos on-line (que ocorrem a distância, pela internet) estaria relacionado com maiores níveis de isolamento; h8 - A frequência mensal em que se reúne com outras pessoas para jogar estaria relacionada com maiores níveis de percepção emocional e percepção de alegria, e menor nível de distorção emocional geral e isolamento.

 

Método

Participantes

Participaram da pesquisa 164 pessoas, com média de idade 18,93 (DP = 6,36; mínimo 14 e máximo 59), sendo 123 (75%) do sexo feminino. Com relação ao nível educacional, 57,0% possuía ensino médio completo, 27,6% possuía ensino superior, 11,7% possuía ensino fundamental e 3,7% possuía pós-graduação.

Instrumentos

Questionário de Preferências de Jogos: O questionário foi desenvolvido especificamente para esta pesquisa e apresenta diversas perguntas relacionadas à preferência por jogos. A primeira pergunta é "Quão importante é o jogo na sua vida?", com a possibilidade de respostas em uma escala Likert de 0 a 10. A segunda, "Há quanto tempo você joga regularmente?", exige a resposta em anos. A terceira pergunta é "Assinale quantas horas por semana você joga", com opções de resposta de 5 em 5 horas, até a opção final - acima de 35 horas. A quarta pergunta, "Assinale o(s) tipo(s) de jogo(s) que você costuma jogar", tem três opções de resposta (on-line, mesa/live, console), acompanhadas de exemplos de jogos atuais e clássicos, podendo ser assinalada mais de uma opção. A quinta pergunta é "Que gênero(s)/estilo(s) de jogo você prefere ou mais costuma jogar?", com uma lista de diversos estilos de jogos também acompanhados de exemplos atuais e clássicos, podendo ser assinalada mais de uma opção. Como não foram identificadas referências que apontassem a quantidade específica de estilos de jogos, foram listados os seguintes estilos com base em consultas a sites de internet (por exemplo, Costa, 2014). As opções foram: plataforma, first person shooter (FPS), third person shooter (TPS), RPG liveaction (teatralizado), RPG eletrônico, ação, aventura, luta, terror, arcade (fliperama), open world (mundo aberto), simulação, estratégia, multiplayer (vários jogadores), indie games (jogos eletrônicos independentes), old school (sistemas antigos). A sexta pergunta, "Você possui grupos de pessoas que jogam o(s) mesmo(s) jogo(s) com você?", tem quatro opções de resposta: não; sim, jogamos off-line (pessoalmente); sim, jogamos on-line, com pessoas que conheço pessoalmente; sim, jogamos on-line, com pessoas que não conheço pessoalmente. Era possível assinalar mais de uma das opções com "sim". A sétima pergunta é "Você costuma se reunir com outras pessoas para jogar?", com a opção de responder "não" ou "sim", e, caso respondesse sim, é preciso informar quantas vezes se reunia por mês. Houve também uma pergunta aberta - "Você gostaria de deixar algum comentário sobre sua experiência de jogar?" -, porém poucos participantes responderam a ela, não sendo possível categorizar as respostas.

Teste Informatizado de Percepção de Emoções Primárias (PEP): O PEP é um teste informatizado que avalia a capacidade de perceber emoções, assim como distorções na percepção, ou seja, atribuição inadequada de estados emocionais (por exemplo, atribuir nojo a uma expressão de alegria). Para isso, apresenta 38 vídeos sem som de pessoas expressando emoções, sendo os três primeiros usados como exemplos da tarefa. O participante deve assistir aos vídeos e responder qual ou quais emoções de uma lista de oito estão presentes em cada um: alegria, amor, medo, surpresa, tristeza, nojo, raiva e curiosidade. Nesta pesquisa, foram utilizadas a pontuação geral de percepção emocional, a pontuação geral de distorção e as pontuações de cada uma das oito emoções, ou seja, frequência de cada emoção. Estudos psicométricos com o PEP demonstraram adequada precisão e validade, e a capacidade de perceber emoções está relacionada com outras medidas de inteligência e percepção emocional, enquanto distorções e frequência individual de emoções estão relacionadas a características de personalidade (Miguel & Pessotto, 2016; Miguel & Primi, 2014).

Inventário Dimensional Clínico da Personalidade (IDCP): Trata-se de um instrumento de autorrelato para a avaliação de traços patológicos da personalidade construído por Carvalho e Primi (2015). É composto por 163 itens distribuídos em 12 dimensões: Dependência, Agressividade, Instabilidade de Humor, Excentricidade, Necessidade de Atenção, Desconfiança, Grandiosidade, Isolamento, Evitação a Críticas, Autossacrifício, Conscienciosidade e Impulsividade. As propriedades psicométricas do instrumento foram verificadas em diversos estudos (Carvalho & Primi, 2015; 2016), e foram encontradas evidências favoráveis de validade e índices adequados de fidedignidade.

Raciocínio Abstrato (RA) e Raciocínio Verbal (RV): Os dois testes foram extraídos da Bateria de Provas de Raciocínio (BPR-5; Primi & Almeida, 2000). Ambos consistem em tarefas em que o participante deve identificar a relação entre os estímulos apresentados para encontrar a solução correta; a prova RA utiliza figuras geométricas abstratas e a prova RV utiliza palavras.

Procedimentos

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Londrina (CAAE 20786713.8.000.5231). Todos os instrumentos utilizados foram incluídos em um sistema on-line desenvolvido para pesquisas com testes. Os participantes foram então convidados a responder à pesquisa por meio de convite pessoal ou redes sociais, sendo divulgado o link para o sistema on-line. Apenas pessoas com 18 anos ou mais foram convidadas, sem outros tipos de restrição (por exemplo, sexo, nível socioeconômico etc.). Os convites explicavam que o objetivo da pesquisa era compreender possíveis características psicológicas de usuários de jogos, sem especificar os tipos de jogos. Seguindo recomendações internacionais referentes à aplicação de testes on-line (ITC, 2005), os participantes inicialmente viam apenas o termo de consentimento livre e esclarecido e, caso concordassem, criavam um usuário no sistema por meio do e-mail. Após isso, os testes da pesquisa eram disponibilizados.

Como o sistema permitia escolher os testes a serem respondidos, nem todos os participantes responderam a todos os instrumentos. Além do questionário de preferências de jogos, 152 participantes responderam também ao PEP, 118 ao IDCP, 141 ao RA e 120 ao RV.

Análise de dados

Os escores das duas provas de raciocínio foram baseados na pontuação bruta do teste (Primi & Almeida, 2000). Já os escores dos fatores do IDCP foram calculados com base na escala T, ou seja, média 50 e desvio-padrão 10, utilizando como base de referência a amostra de não pacientes de Carvalho e Primi (2015).

No caso do PEP, além do escore geral de percepção emocional, foram também estudadas as distorções, que são atribuições incoerentes de estados emocionais (por exemplo, atribuir nojo a um vídeo de uma pessoa alegre e sorrindo). Estudos anteriores (Miguel & Pessotto, 2016) mostraram que essas distorções se associaram a traços de personalidade em vez de aspectos cognitivos, e distorção geral no teste estava associada à menor capacidade de perceber adequadamente a realidade, distorções de alegria estavam associadas à maior sociabilidade, e distorções de raiva estavam associadas a pensamentos e comportamentos agressivos. Os escores de percepção geral e distorção geral foram calculados em escala z (média 0, desvio-padrão 1). Já as distorções específicas das emoções foram calculadas de acordo com a frequência em que apareceram, subtraídos da frequência real no teste. Desse modo, por exemplo, um escore de 0 para distorção de raiva indica que o participante identificou o número correto de expressões de raiva no PEP. Um escore de -3 indica que o participante deixou de identificar 3 expressões de raiva. Já um escore de +5 indica que o participante identificou 5 expressões de raiva a mais do que verdadeiramente estão presentes no teste.

As pontuações em estilos de jogos foram calculadas pela frequência de jogos que o participante assinalou. Assim, jogos de raciocínio representaram a soma de RPG eletrônico, simulação e estratégia. Jogos de ação representaram a soma de plataforma, FPS, TPS, ação, aventura, luta, terror, arcade e open world. Jogos violentos representaram a soma de FPS, luta e terror. Para as pontuações escalares, foram utilizadas correlações de Pearson para estudar a associação com os testes psicológicos. Para as pontuações categóricas dicotômicas, foram utilizados testes t de Student e d de Cohen, considerando como efeito não desprezível a partir de 0,20 (Cohen, 1992). Além disso, foi utilizada a análise de regressão logística para a predição do quanto jogar é importante na vida da pessoa, com base nas dimensões do IDCP. A variável importância foi dicotomizada utilizando o quartil inferior e superior. Também foi utilizada a ANOVA por medidas repetidas para os dois grupos formados, com base nos quartis extremos quanto ao nível de importância, buscando entender a interação das dimensões do IDCP em relação ao perfil de jogadores que consideram jogar pouco importante e que consideram jogar extremamente importante.

 

Resultados

Inicialmente foram realizadas as estatísticas descritivas dos participantes, apresentadas na Tabela 1. Pode-se perceber que houve ampla variabilidade dos resultados referentes ao questionário sobre preferências de jogos, indicando vários níveis de importância atribuída aos jogos, tempo que dedica jogando etc. Com relação aos resultados do IDCP, as pontuações mostraram-se ao redor da média normativa do teste (50,0), sugerindo que os participantes se distribuíram adequadamente ao longo dos traços de personalidade. Igualmente, os escores de RA e de RV mostraram que os participantes desta pesquisa tenderam a apresentar desempenho médio próximo da expectativa normativa (Primi & Almeida, 2000). Com relação aos escores gerais do PEP (percepção e distorção), a proximidade de zero e desvios padrão próximo de 1 indicam distribuição próxima da normativa. A emoção de alegria foi percebida com frequência média menor do que o teste realmente apresenta, enquanto a frequência de raiva aproximou-se do esperado no teste.

De acordo com os objetivos desta pesquisa e segundo as hipóteses apresentadas, foram realizadas correlações entre algumas das medidas utilizadas e parte das variáveis relacionadas às preferências por jogos. Os resultados encontram-se na Tabela 2:

Observa-se que, de 23 análises, 15 foram significativas (65%), com magnitudes variando entre 0,16 (Dist. raiva vs. Total de jogos violentos que se interessa) e 0,41 (PEP geral vs. Quantas vezes por mês se reúne com outras pessoas para jogar). Complementando esses dados, foi utilizada a análise de regressão logística para predição do quanto jogar é importante na vida da pessoa, a partir das 12 dimensões de personalidade. A Tabela 3 apresenta os resultados:

Foram significativas e mantidas três do total de 12 dimensões do IDCP: Grandiosidade, Evitação a críticas e Impulsividade. Juntas, essas variáveis são capazes de predizer 47% (r2Nagelkerke = 0,47) da importância do jogar na vida do participante. Além disso, as dimensões do IDCP foram capazes de predizer aproximadamente 78% dos casos nos grupos (mais e menos importância). Ainda sobre a variável relativa à importância do jogar, procedeu-se à ANOVA por medidas repetidas para os dois grupos com base nos quartis extremos, cujos resultados encontram-se na Tabela 4:

Com exceção das dimensões Autossacrifício e Conscienciosidade, os grupos apresentaram diferenças expressivas (d > 0,20) nas dimensões do IDCP; além disso, foram encontradas diferenças baixas (Instabilidade de Humor, Desconfiança, Grandiosidade e Isolamento), moderadas (Dependência, Agressividade e Necessidade de Atenção) e altas (Excentricidade, Evitação à Críticas e Impulsividade). A Figura 1 ilustra o perfil dos grupos, assinalando as diferenças nos fatores do IDCP de acordo com a importância dada ao jogo:

Por último, foram verificadas diferenças entre grupos em medidas dicotômicas utilizadas no questionário, por meio do teste t. Os dados estão apresentados na Tabela 5. Como pode ser observado, duas das três comparações apresentaram diferenças expressivas, com exceção da dimensão Excentricidade quanto aos grupos de RPG live, ainda que as diferenças sejam baixas.

 

Discussão

O objetivo desta pesquisa foi investigar relações entre medidas psicológicas (personalidade, percepção emocional e raciocínio) com preferências por jogar. Com base na literatura, hipóteses foram estabelecidas. Levando-se em conta os resultados obtidos, foi possível confirmar as hipóteses h3 (jogos de raciocínio com nível intelectual), h4 (jogos de ação com impulsividade), h5 (jogos violentos com percepção de raiva, agressividade, desconfiança e impulsividade) e h7 (jogos on-line com isolamento). Foram confirmadas parcialmente as hipóteses h1 (importância ao jogo com excentricidade, necessidade de atenção, desconfiança, isolamento e evitação a críticas), h2 (maior tempo de jogo com nível intelectual), h6 (RPG live com excentricidade e grandiosidade) e h8 (frequência de reuniões com pessoas para jogar com percepção emocional, alegria, menos distorção e menos isolamento). Com a análise das correlações realizadas, foi possível encontrar associações entre as características psicológicas mencionadas e a preferência por jogos específicos, tal qual já observado em estudos anteriores (Anderson et al., 2010; Chory & Goodboy, 2011; Engelhardt et al., 2011; Feng et al., 2007; Hasan et al., 2013; Herodotou et al., 2011; Peever et al., 2012; Suziedelyte, 2015). Dessa maneira, como previsto nas hipóteses, atribuir mais importância ao ato de jogar mostrou-se associado à maior frequência de comportamentos excêntricos, desconfiança quanto às intenções dos outros e evitação a críticas. Embora a correlação com Isolamento não tenha sido significativa, houve uma tendência a não necessitar de atenção por parte dos outros, sendo mais independente, para as pessoas que atribuíram maior importância ao ato de jogar.

O tempo (em anos) que o participante se dedica aos jogos correlacionou-se significativamente com o raciocínio verbal e a percepção geral de emoções, mas não com raciocínio abstrato. Embora esse resultado possa sugerir um possível desenvolvimento dessas capacidades devido ao tempo de jogo, é possível também que o raciocínio verbal e a percepção de emoções simplesmente estejam correlacionados com a idade, pois são inteligências cristalizadas (Schneider & McGrew, 2012). De fato, uma correlação exploratória feita entre idade e tempo dedicado aos jogos resultou em r = 0,61 (p < 0,001), indicando que os dois estão bastante associados.

A variável horas por semana dedicadas ao jogo trouxe outro olhar sobre essa relação. Não houve correlações significativas com as duas medidas de raciocínio, nem com a percepção de emoções, o que, a princípio, parecia contradizer os estudos anteriores sobre desenvolvimento cognitivo relacionado à frequência dos jogos (Feng et al., 2007; Kühn et al., 2014; McDermott et al., 2014; Suziedelyte, 2015). Contudo, examinando-se as correlações com a preferência por jogos de raciocínio, estas mostraram-se significativas. Esses resultados sugerem que apenas dedicar horas semanais ao jogo não está relacionado à maior capacidade cognitiva, mas sim à preferência por jogos que estimulam o raciocínio.

Ademais, maior quantidade de horas jogando está correlacionada com a menor atribuição de alegria às expressões emocionais, o que pode estar relacionado ao menor interesse no contato com os outros, segundo outras pesquisas com percepção emocional (Miguel & Pessotto, 2016). Esse resultado indica, por um lado, uma propensão ao isolamento social e à pouca vivência de alegria devido ao grande número de horas em atividade de jogo. Por outro, a percepção emocional associou-se significativamente à maior frequência de encontrar-se pessoalmente com outras pessoas para jogar, o que é um indicador de que a experiência pessoal está associada ao desenvolvimento da capacidade de perceber emoções. Tomando-se junto esses resultados, é provável que a tendência ao isolamento possa ser compensada por meio de jogos que requerem reuniões sociais.

Além disso, a preferência por estilos particulares de jogos mostrou-se associada a características psicológicas, como hipotetizado. Quanto maior a preferência por jogos de ação, maior o nível de impulsividade e descontrole emocional. Quanto maior a preferência por jogos violentos, maior a frequência de pensamentos agressivos, corroborando dados prévios (Chory & Goodboy, 2011; Hasan et al., 2013), além de maior desconfiança da intenção de outras pessoas, impulsividade e atribuição de emoções de raiva às outras pessoas. Além disso, as pessoas mais impulsivas foram aquelas que relataram preferência por jogos de ação e violência, o que faz sentido considerando a relação da dimensão Impulsividade com funcionamentos sádico e antissocial (Carvalho & Primi, 2015; 2016). Pessoas que preferem RPG live tiveram maiores escores em Grandiosidade, ou seja, indivíduos que tendem a querer se destacar entre os outros, serem admirados, de acordo com os traços avaliados pela dimensão (Carvalho & Primi, 2015). Esse resultado demonstra uma associação entre a prática de uma atividade pouco comum (RPG live) e a visão de si próprio como mais importante e destacado. Já os participantes que preferem jogar apenas on-line demonstraram nível maior de isolamento e afastamento social. Sugere-se que em futuras pesquisas esse aspecto seja aprofundado, considerando resultados como os de Greitemeyer e Osswald (2011), já que jogos on-line podem ser mais ou menos pró-sociais, a depender das tarefas implicadas.

Ainda, no que se refere ao perfil dos traços de personalidade dos participantes que dão maior importância ao jogo em comparação com os participantes que dão menor importância, observou-se que o primeiro grupo tem tendência a demonstrar maior frequência de dependência, comportamentos e pensamentos agressivos, modos excêntricos de agir e pensar, buscam evitar situações em que possam ser expor a críticas e maior impulsividade, junto de menor necessidade de atenção por parte dos outros. Essas características, presentes em um mesmo perfil, sugerem pessoas com tendências introvertidas evidentes, além de poucas habilidades sociais e maior dificuldade no manejo das emoções (em comparação ao outro grupo).

Ao se tomar o conjunto de dados encontrados nesta pesquisa, embora algumas relações possam indicar saúde (como frequência de encontros sociais para jogar com maior nível de percepção emocional), outras relações sugeriram dificuldades (como preferência por jogos violentos e traços de agressividade). Embora haja estudos experimentais com utilização de jogos violentos, os resultados da presente pesquisa não permitem estabelecer uma relação causal entre a preferência por jogos e as características psicológicas. Os estudos nessa área poderiam se beneficiar de pesquisas experimentais ou longitudinais, a fim de melhor compreender os aspectos psicológicos implicados nessa atividade tão comum atualmente. No entanto, os resultados apontam possíveis problemas emocionais e sociais que jogadores podem sofrer. Nesse sentido, pessoas que se dedicam muito ao jogo, especialmente aquelas que jogam isoladamente, podem apresentar dificuldades de interação social e tendência ao isolamento.

Como limitação do estudo, pode-se apontar o número de participantes, que pode não ser representativo da população. Outras pesquisas poderiam ampliar a amostra e verificar a estabilidade dos resultados encontrados aqui. Além disso, estudos futuros poderiam verificar se a predominância de mulheres nesta pesquisa (75%) foi uma característica peculiar da amostra ou se reflete a distribuição brasileira de jogadores. Além disso, outras categorias de jogos poderiam ser estudadas, como cartas, jogos de tabuleiro etc. Esta pesquisa focou predominantemente em jogos de videogame e RPG live.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Fabiano Koich Miguel
Departamento de Psicologia e Psicanálise - CCB/UEL, Campus Universitário
Caixa Postal 10011
Londrina (PR), Brasil. CEP: 86057-970
E-mail: fabiano@avalpsi.com.br

Submissão: 11.9.2015
Aceite: 18.8.2017

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