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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.20 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2018

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v20n1p85-97 

ARTIGOS
PSICOLOGIA SOCIAL

 

O medo como dispositivo biopolítico

 

 

Sonia Regina Vargas MansanoI; Marcos NalliII

IUniversidade Estadual de Londrina, PR, Brasil
IIUniversidade Estadual de Londrina, PR, Brasil

Endereço de correspondência

 

 


RESUMO

O medo pode ser compreendido como um componente de subjetivação que atravessa a história da humanidade ganhando diferentes contornos e sendo expresso nas relações afetivas, laborais, sexuais e sociais. O presente artigo busca problematizar o medo como um dispositivo biopolítico que pode ser compreendido como um conjunto de práticas, normas, edificações e hábitos que participam da produção dos modos de existência. A investigação foi dividida em três momentos: primeiro, o medo é abordado em uma perspectiva psicanalítica, com foco na psicodinâmica dos mecanismos de defesa; em seguida, são analisadas as maneiras como o medo cumpre funções sociais específicas, sendo difundido em relações que despotencializam e enfraquecem o sujeito e as coletividades; por fim, é explorada a articulação entre medo e biopoder, enfatizando sua disseminação estratégica. Ao final do estudo, constata-se que o medo é compartilhado como uma estratégia de sobrevivência que pode culminar na experimentação de outras possibilidades de existência.

Palavras-chave: medo; subjetividade; biopolítica; contemporaneidade; modos de vida.


 

 

Introdução

O historiador Jean Delumeau (1989, p. 59) observou com uma precisão inequívoca que "o distante, a novidade e a alteridade provocam medo. Mas temia-se do mesmo modo o próximo, isto é, o vizinho". Certamente, o círculo de referências e de experiências vividas e compartilhadas era bem mais estreito antes (o que para a análise de Delumeau corresponde à Europa entre os anos 1300 e 1800) do que atualmente. Em pleno século XXI, no entanto, vivemos com medo por motivos praticamente semelhantes.

Continuamos a temer o próximo, nosso vizinho, nosso patrão, nosso colega de trabalho ou de estudos e mesmo os nossos parentes, pois não sabemos o que eles são capazes de fazer e por quais motivos. Hoje, nós estamos expostos, não o outro, o nosso desconhecido mais próximo. Uma estratégia praticamente defensiva consiste em nos escondermos ao máximo, para nos protegermos de maneira imunitária (Brossat, 2003; Esposito, 2008, 2009), ainda que, contraditoriamente, nos exponhamos de modo desenfreado e impudico nas redes sociais que nos incitam e propiciam a vã promessa de proteção e seguridade. Se o medo disseminado e compartilhado coletivamente não é uma novidade, há que se admitir que sua natureza e feição não são monolíticas, unas e coesas, assim como não o é nossa gana de autopreservação e proteção: queremos ser inatingíveis, estabelecendo para isso aqueles que haverão de ser os intocáveis, os párias sociais.

Estudos recentes (Ferraz, 2017; Beck, 2011; Stengers, 2015) demonstram o quanto o medo está associado a situações do cotidiano que já se consolidaram como inevitáveis, como é o caso da violência urbana e dos desastres ecológicos; e também associam o medo a situações que não necessariamente são materializadas (Glassner, 2003), mas que acabam sendo amplamente disseminadas por dispositivos de comunicação que colocam populações inteiras em alerta diante de riscos e ameaças.

O presente artigo tem por objetivo problematizar o medo como um componente de subjetivação que atravessa a história da humanidade admitindo múltiplos contornos. Na contemporaneidade, especificamente, ele ganha uma configuração particular à medida que se torna desmesurado, sendo potencializado pelos avanços médicos, tecnológicos e securitários acessíveis a grande parte da população. Assim, questionamos:

Quais os novos contornos do medo? Como ele é propagado no social? Qual sua condição de possibilidade? E, principalmente, a quais funções sociais e afetivas ele responde? Para analisar tais questões, adotamos o seguinte trajeto: primeiro, examinaremos o medo como um mecanismo de defesa a partir de uma perspectiva psicanalítica. Em seguida, analisaremos as maneiras como o medo, delineado como um componente de subjetivação, cumpre algumas funções sociais, sendo difundido em relações que despotencializam e enfraquecem tanto o sujeito quanto as coletividades. Seguiremos o estudo fazendo uma articulação entre medo e biopoder, enfatizando como sua disseminação ganha contornos estratégicos num contexto biopolítico. Por fim, já nas considerações finais, o estudo mostrará que, longe de ficar confinado na individualidade defensiva ou nos dispositivos de controle, o medo pode ser analisado a partir de um viés crítico. Assim, o estudo justifica-se por analisar o medo com um componente subjetivo multifacetado que, apesar de muito próximo, como experiência compartilhada há longa data, guarda dimensões desconhecidas e inesperadas.

Medo e mecanismos de defesa: uma perspectiva psicanalítica

Do ponto de vista da história da Psicologia, podemos encontrar uma referência relevante aos nossos propósitos no pensamento de Anna Freud. Em 1946, a autora publica o livro intitulado O ego e os mecanismos de defesa [Das Ich und die Abwehrmechanismen], em que dedica a primeira parte a apresentar o que ela chama de "teoria dos mecanismos de defesa". Nesse trabalho, ela articula considerações sobre a condição do ego [das Ich] como objeto de observação à ciência e à técnica psicanalítica, bem como sua importância para o trabalho do analista. No contexto deste estudo, o que interessa é a relação entre o ego [das Ich] e os chamados mecanismos de defesa.

No que tange à prática analítica, o interesse da autora pelo tema se coloca pelo entendimento de que os mecanismos criam dificuldades à realização e ao cumprimento do escopo da análise, uma vez que "[...] as instâncias do ego consideram como um perigo ameaçador as investidas do analista" (Freud, 1975, p. 30). Isso denota a relação defensiva do ego diante de algo que toma como perigo e ameaça- real ou fictícia, não importa muito -, e tal ameaça se afigura como exterior ao ego.

O tema da defesa, segundo Anna Freud, não é novo, pois ele já se fazia presente nas pesquisas de Sigmund Freud, pelo menos desde 1894, como no trabalho sobre As psiconeuroses de defesa, ainda que de modo vago, sendo retomado com maior precisão e consistência em Inibição, sintoma e angústia (1926), de acordo com os estudos de Gay (1989) e Young-Bruehl (1992). No entanto, o texto de Anna Freud, pelo modo como ela retrata a estrutura e a dinâmica psíquicas, certamente reverbera outros textos de seu pai, principalmente no que tange à psicologia do ego, já esboçada em Além do princípio do prazer (1920), no qual, como é sabido, Sigmund Freud apresenta a primeira formulação sistemática da metapsicologia, admitindo, ainda que esquematicamente, a existência de dois princípios norteadores ou diretrizes das ações humanas: princípio de prazer- Eros- e o controverso princípio, ou pulsão de morte (TodestriebI)- Tânatos. Tais considerações perpassam seus estudos em O Mal-estar na civilização (1930), Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (apresentado três anos mais tarde), ou Esboço de psicanálise, que vem à lume em 1940, tal como descrito por Gay (1989) e Young-Bruehl (1992).

Do ponto de vista psicanalítico, os mecanismos de defesa do ego não se dirigem exclusivamente a perigos de origem externa à subjetividade (como a investida psicanalítica), ainda que obedeçam a uma dinâmica de defesa beligerante às ameaças tidas como estranhas. Para a autora, não é o sujeito como um todo que emprega algum modo de defesa, outrora classificado (Freud, 1975), mas é o ego [das Ich] que busca se defender contra os perigos instintuais- que são sempre os mesmos, ainda que os motivos que permitam considerá-los como perigosos possam variar.

Para buscar garantir a integridade e a síntese- harmônica, equilibrada, saudável- do sujeito, o ego [das Ich] tem de se valer de mecanismos de defesa diante das ameaças e dos perigos advindos dos instintos pulsionais, cujo único móvel e télos são a sua pronta satisfação. Por sua vez, o ego por si mesmo sequer "considera como perigosa a pulsão que combate" (Freud, 1975, p. 52): se ele combate a pulsão, é pelo fato de que sua satisfação, pura e simples, pode ter consequências ameaçadoras ao ego.

De qualquer modo, a relação defensiva do ego a tais perigos, quando têm origem instintual, envolve riscos que são externos ao ego, ainda que paradoxalmente inerentes à subjetividade. Para desfazer o nó górdio desse paradoxo, é preciso admitir que a externalidade ou a internalidade da ameaça depende do ângulo. Dito de outro modo, a partir de que feixe de relações o perigo se coloca: se a perspectiva relacional é a da interação do ego com seu id, então os perigos instintuais são externos ao ego; mas se a perspectiva é a de um quadro relacional mais amplo e que envolve outras forças (há esquematicamente ao menos, além do ego e do id [das Es], o superego [das Über-Ich]), é preciso admitir que o perigo é de origem interna.

Assim, não é a externalidade do perigo que denota seu caráter ameaçador, mas a possibilidade de desagregação e de desarticulação da estrutura psíquica do indivíduo, seja ela encarada em uma perspectiva de externalidade, seja de internalidade. Cabe então ao ego, esquematicamente, a função de propiciar alguma proteção e defesa e, assim, "evitar todo sofrimento vindo seja de dentro, seja de fora" (Freud, 1975, p. 87). No entanto, ao desconsiderar o traço de externalidade como relevante, o que se deve entender daí não é uma negligência imprudente, e sim uma lide bem mais complexa com o perigo, cujo limiar entre o externo e o interno não se coloca por conta de sua porosidade: a ameaça externa e o perigo interno são difíceis de discernir, são profundamente indistintos entre si. Ora, se não se pode discernir com a devida precisão um do outro é porque o interno e o externo se inserem, se mesclam um ao outro. O perigo e a ameaça ao sujeito, como estrutura e rede de forças opositivas, são-lhe imanentes de modo fulcral, independentemente de seu motivador original.

Laplanche e Pontalis (1991) reconhecem a importância dos estudos de Freud sobre os mecanismos de defesa, mostrando os diversos ângulos por meio dos quais ele foi analisado. Os autores também sublinham a relevância dos estudos de Anna Freud, que deu sequência e consistência ao conceito, tratando-o de maneira mais contextualizada a partir dos casos clínicos. Eles afirmam:

[...] partindo de exemplos concretos, [Anna] dedica-se a descrever a variedade, a complexidade e a extensão dos mecanismos de defesa, mostrando principalmente como o objetivo defensivo pode utilizar as diversas atividades (fantasia, atividade intelectual), como a defesa pode incidir não apenas em reivindicações pulsionais, mas em tudo o que pode suscitar um desenvolvimento de angústia: emoções, situações, exigências do superego, etc. (Laplanche & Pontalis, 1991, p. 278).

O valor de considerar, exemplarmente, a concepção psicanalítica dos mecanismos de defesa, em especial nos estudos de Anna Freud, reside no fato de que ela reverbera um movimento contínuo e disseminado de reação defensiva a qualquer investida. Isso se estende também a qualquer fenômeno que possa ser considerado, de fato ou em fantasia, um risco ou um perigo. Ora, se avançarmos para a análise da contemporaneidade capitalista, poderemos constatar que tal investida, plural e multifacetada, foi multiplicada, intensificada e ganhou uma configuração que não se restringe mais aos quadros neuróticos estudados por Anna e Freud. Aliás, há que se admitir que, de certo modo, Sigmund Freud já anteviu que não era algo restrito às estruturas da psi-que, e sim que, de algum modo, se relacionava diretamente também à sua face social: ele sustentou, não uma única vez, o fato de que a Primeira (principalmente) e a Segunda Guerra Mundial confirmam "empiricamente" a evidência de sua teoria, de que para além do princípio de prazer coexiste na psique humana o princípio de morte. Por analogia, o mesmo se pode dizer do mecanismo de defesa, tal como exposto por Anna Freud: de modo mais sutil que a pulsão de morte (Sigmund Freud), os mecanismos de defesa (Anna Freud) evidenciam um modo todo próprio de a subjetividade operar diante da realidade circundante, cujos conflitos beligerantes das duas grandes guerras apenas confirmam in extremis sua patência e fatualidade.

A contemporaneidade capitalista, principalmente marcada pela consolidação histórica do neoliberalismo, é regida por padrões de concorrência e circulação de mercadorias em ritmos e velocidades nunca dantes vistos, principalmente no ápice desta era de globalização. Tal momento é profundamente marcado por formas mais elaboradas, sutis e, por isso mesmo, dissimuladas de controle e travestidas de exercícios de suposta liberdade. Uma liberdade a ser gerida a partir da constituição do homo oeconomicus como objeto do modelo neoliberal de gestão e governo sempre no estrato real da sociedade civil.

Sociedade civil, portanto, como elemento de realidade transacional na história das tecnologias governamentais, realidade transacional que me parece plenamente correlativa dessa forma de tecnologia governamental chamada de liberalismo, isto é, uma tecnologia de governo que tem por objetivo sua própria autolimitação, na medida que é indexada à especificidade dos processos econômicos (Foucault, 2008, p. 404).

Tal indexação econômica da vida social e do governo apenas se coloca como limitadora do governo estatal. Mas, para isso, acaba engendrando outros tantos artifícios de controle e de governo das condutas da população em geral (Foucault, 1988) e dos indivíduos em particular, possibilitando não o exercício de uma liberdade frente às coações do Estado, mas uma subjetividade sujeitada (Candiotto, 2010). Esta assume, assim, uma feição profundamente policial e reguladora das seguranças e das inseguranças, tudo em nome da transparência, isto é, da desconfiança (Han, 2013). E a desconfiança, travestida pelo clamor de transparência, nada mais é que outra face do medo (Lemke, 2014).

O medo produz, assim, um modo de existência compartilhado e controlado, no qual as defesas se reconfiguram e se redistribuem no campo social, ora pelo fechamento narcísico, ora pela exposição exagerada da própria imagem. Estas últimas, quando analisadas de perto, também guardam traços de defesa, como veremos em seguida.

A (im)propriedade da subjetividade medrosa

Avançando para uma análise da contemporaneidade capitalista, é notável que o medo se tornou um componente de subjetivação amplamente disseminado no social. Quando esclarecem o que entendem por componentes de subjetivação, Guattari e Rolnik (1996, p. 135) assinalam: "qualquer problema importante, inclusive em nível mundial, está fundamentalmente vinculado às mutações da subjetividade nos diferentes níveis micropolíticos". O medo, quando compreendido como um componente de subjetivação, tem na sua propagação micropolítica localizada a condição de possibilidade para a produção de modos específicos de existência, que, por exemplo, cooperam para manter o sujeito vinculado ao universo do trabalho, da produção e do consumo, e também às relações amorosas e afetivas. Isso se estende para quaisquer outras formas de vínculos sociais que lhe parecem propiciar alguma sensação de segurança, confundida com conforto ou com prazer. Nesse sentido, podemos sustentar alguma transfiguração atual em relação ao identificado pela psicanálise: o prazer não está aqui, realmente, em uma relação de contraposição à morte ou ao desprazer, mas sim em uma implicação psíquico-social de supressão do desprazer, do desconforto, do incômodo e, portanto, da ameaça e do perigo atualizados pelo encontro com o outro.

Se na seção anterior caracterizamos o medo como um mecanismo de defesa, em sua dinâmica psicanalítica, cabe agora considerá-lo em sua dimensão microssocial como um componente subjetivo amplamente estimulado e compartilhado na coletividade que funciona, entre outros aspectos, para viabilizar a manutenção e a expansão de determinada organização social. Em Christopher Lasch (1984), encontramos parte dessa explicação quando ele descreve o que denomina de "mínimo eu". Para o autor, as múltiplas ameaças presentes no cotidiano relacional, que vão desde as epidemias, passando pelas guerras, a instabilidade econômica, a deterioração do meio ambiente e o terrorismo, geram um cenário no qual o sujeito está sempre se preparando para o pior desfecho. Nas palavras do autor, "a preocupação com o indivíduo, aparentemente tão característica de nossa época, assume a forma de uma preocupação com a sobrevivência" (Lasch, 1984, p. 9). Com isso, "o eu se contrai num núcleo defensivo, em guarda diante da adversidade. O equilíbrio emocional exige um eu mínimo" (Lasch, 1984, p. 9). Mas de qual equilíbrio estamos falando? Não seria ele mais uma peça que participa dessa produção contemporânea do medo, ganhando contornos idealizados?

É nessa perspectiva que sustentamos o argumento de que o medo, em sua configuração atual mais cristalizada, é instrumentalizado como componente subjetivo necessário para manter a engrenagem da ordem capitalista vigente que o torna onipresente: o medo nosso de cada dia. Uma subjetividade caracteristicamente medrosa está mais propícia a reafirmar no cotidiano práticas adaptativas, niilistas e massificadas, ainda que cada um desses componentes seja cinicamente descrito como índices de autonomia e de empreendedorismo (Carvalho, 2014). Entre os extremos de refugiar-se na intimidade ou expor-se nas redes sociais, aparentemente contraditórios, há uma combinação multifacetada que gera jogos complexos de inserção social, os quais são amplamente explorados pelo mercado.

A dificuldade de levar adiante uma análise crítica sobre o medo, ou qualquer outro componente subjetivo despotencializador, é analisada por Deleuze e Parnet (1998, p. 75), quando afirmam: "Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes. A tristeza, os afetos tristes são todos aqueles que diminuem nossa potência de agir". Mais adiante, eles associam as paixões tristes ao medo e sublinham que os poderes instituídos buscam "administrar nossos pequenos terrores íntimos", fato que nos lança em uma "longa lamentação universal" (Deleuze & Parnet, 1998, p. 75). Tal lamentação pode ser facilmente encontrada em enunciados do tipo: "Não adianta continuar lutando", "Você está sozinho", "Somos menores". O medo, definido como uma paixão triste, não apenas separa o sujeito de suas potências como é também instrumentalizado para colocar em curso a impotência necessária ao bom funcionamento da máquina produtiva. É por medo que são aceitas as condições precárias de trabalho.

É por medo que relações afetivas falidas perduram no tempo. É por medo que nos tornamos cúmplices de uma vida esvaziada de sentido e de intensidade em nome da segurança e da continuidade. Afinal, nesse ponto de vista, é melhor garantir o que se acredita possuir do que perdê-lo.

Vindo de fora, como uma força bruta, o medo coage e tende a minimizar, ou mesmo bloquear, um exercício clínico e crítico vital sobre o modo de vida que temos e que desejamos. Em nome da imagem idealizada de segurança, o medo novamente é acionado como um mecanismo de defesa, agora compartilhado no coletivo, que foi revisado e ampliado. Corre-se o risco de acolher ingenuamente tal defesa, aderindo de maneira naturalizada aos dispositivos de segurança e de controle disponíveis no mercado. Ao cristalizar o medo em uma imagem representada, reconhecida e assumida pelo coletivo, o que se perde são as singularidades que nele podem se atualizar. Essas são pouco ou nada consideradas em proveito de um medo-padrão que foi aos poucos transformado em nicho de mercado, sendo amplamente anexado a formas sutis ou ostensivas dos dispositivos de segurança. O mercado constatou que o medo favorece as negociações financeiras (Scheinvar, 2014).

Se pretendermos levar adiante uma análise sobre o medo desvinculada dessa perspectiva massificada, cabe questionar: O que se passa no corpo daquele que sente me-do? Quais componentes afetivos são nele atualizados? Que modos de vida são engendrados em meio à experiência do medo? Para responder parcialmente a essas questões, cabe apreciar quais são as singularidades que perpassam o corpo de quem tem medo e quais mundos são atualizados nesse conjunto complexo de afetos. Constata-se assim que, mesmo sendo compreendido como uma paixão triste, o medo contemporâneo não é de fácil apreensão. Ele expressa singularidades que, tal como analisado por Deleuze (2017), evocam signos a serem decifrados. São signos que, quando tocam o corpo, podem desencadear sensações e busca de explicações para o que é, ao menos em um primeiro momento, inominável, uma vez que os afetos aí vividos não cabem no frágil repertório das representações já conhecidas. Os signos do medo violentam pela ignorância que evidenciam em quem o experimenta. Há neles uma oportunidade de indagação e de experimentação sobre o vivido. Desse modo, ele não precisa ser simplesmente eliminado, tal como apregoado pelo mercado que oferece diversas opções para estancar magicamente a imagem massificada e disseminada de medo. O que salientamos aqui é que o medo pode oferecer uma oportunidade para acolher os sinais que vêm de fora e acionam a sensibilidade afetiva do corpo de quem os recebe. Somente essa abertura gera a possibilidade de analisar o que posso fazer com isso que me adveio como ameaça e como fazê-lo. Tal posicionamento é bem diferente de evitar, prescrever e consumir dispositivos de segurança.

O medo pode funcionar, então, como um operador para engendrar outras conexões com a vida e com o mundo. Nesse caso, as forças advindas do fora são dobradas a serviço da vida. Há um deslocamento do sentido defensivo do medo, composto pelo fechamento e pela impotência, em favor de uma experimentação das potências do corpo.

No entanto, como dar esse destino afirmativo ao que vem de fora e que, por diminuir a potência, amedronta e impotencializa? As obras de Deleuze (2017) e de Deleuze e Parnet (1998) oferecem uma pista, insistindo em diversos momentos, que cabe acreditar nas forças do fora como algo vivo, mutante e desafiador do existir. Refugiados no medo instituído, somente o ressentimento e a retração consumista encontram espaço de manifestação. Reconectados ao mundo como mobilização de forças díspares, é possível acionar o corpo para manter-se atento às forças e às suas efetuações, ainda que esse movimento possa evocar as paixões mais tristes, despotencializadoras e incômodas. Tal possibilidade exige um exercício clínico que acontece no cotidiano dos encontros e por meio do qual nos fazemos sujeitos. Cabe ressaltar que aqui a noção de encontro não se reduz a mera inter-relação de corpos; ela envolve aquilo que desloca, rompe, incomoda e exige do sujeito uma decifração dos signos emergentes. Há, nesse caso, uma clínica crítica que acolhe os afetos e os desejos e os coloca na produção incessante de uma existência em aberto.

Medo e biopolítica

Nosso tempo vive e experimenta os temores de modos bem diversos do que o tempo de nossos antepassados. Daí a contraposição inicial a Jean Delumeau, que se volta, como historiador, a um período bem específico, e que não é certamente o nosso, ainda que as linhas de nosso copertencimento vigorem de alguma forma; o que não quer dizer que já não façamos, vivamos, falemos e experimentemos o mundo que nos rodeia diferentemente.

Agora o medo se objetiva, ganha contorno e volume próprios, independentemente de seu objeto. Ele já não é mais adstrito à nossa individualidade, não é mais apenas de foro íntimo e privado, não diz mais respeito apenas a quem o sente. Isso porque o medo se tornou moeda corrente em nossas sociedades. O capitalismo global não apenas internacionalizou os veículos de transmissão das informações e as vias de comercialização de mercadorias, como também internacionalizou a moeda como fantasma e como símbolo de si mesma. O dinheiro já não é mais apenas símbolo de alguma mercadoria, base material pela qual se determinava a riqueza ou a pobreza de alguém, de um povo ou de um país. O dinheiro tornou-se signo vazio que remete exclusivamente a si próprio; é uma cifra ou um conjunto de bits nas telas dos computadores, nas bolsas de valores dos corretores e dos acionistas. Mas não foi apenas o dinheiro que o capitalismo internacionalizou, esvaziando-o de referência; isso se deu, talvez de modo insuspeitado e imprevisto, com o medo: ele também deixou de ser meio, ou mesmo reação diante de algo, para se tornar a "coisa em si" (Žižek, 2014, p. 267), símile ao que já ocorre no sistema de comunicação entre corretores em uma bolsa de valores. É assim que podemos assistir, atônitos e apavorados, quase que em tempo real, a ataques terroristas pelo mundo afora ou a ataques beligerantes das potências mundiais contras outros países, muitas vezes sob os auspícios de ajuda humanitária ou mesmo de modo bem mais próximo nos arroubos de violência, quer policial, quer de facções criminosas, em quaisquer cidades do país, mas também no meio rural, e mesmo em nosso quintal. Tudo pode nos amedrontar: do fanatismo terrorista à dengue ou à chicungunha, passando pelas violências humanas e pelos desastres, naturais ou induzidos. Temos a consciência perpetuada e disseminada em níveis globais e locais de que vivemos em tempos de catástrofes iminentes (Stengers, 2015).

O medo perdeu há muito a necessidade de ter um objeto pelo qual se determinaria a sua natureza e feição, que o justificaria e o legitimaria. Descobrimos, enfim, que o medo não precisa de legitimidade: experimenta-se, amedronta-se e se angustia, por senti-lo demais ou de menos (Ginsburg, 2014). De alguma forma, o medo se avizinhou do demasiado que exaspera: ou pela presença do que temer ou de não se saber bem o que temer. Não é, portanto, a presença de um objeto ou qualquer fenômeno, natural, econômico, social, político, religioso, tecnológico que dá ao medo, à experiência existencial do medo, sua forma, seu volume, sua estridência. Um fato óbvio é que um mesmo objeto provoca medo em uns e é nada amedrontador para outros.

De qualquer modo, como experiência à subjetividade, o medo tem papel capital, como já observamos na seção anterior, sendo um componente subjetivo que ganhou contornos de onipresença. Mas já não se trata de uma subjetivação que pode ser pensada em termos exclusivos de uma vida privada, íntima, e sim de uma subjetivação que é um processo social pelo qual a subjetividade há de se constituir em um moto continuo, ainda que com tropeços, solavancos e sustos. A própria subjetivação já é um fenômeno que reclama algum tipo de coletividade e, por conseguinte, uma coletividade que é, em essência, política.

Os tempos atuais são marcados por estruturas, modelos e estratégias de ação que se nomeiam, talvez para simplificar o processo de nomeação dos acontecimentos hodiernos, a biopolítica. A biopolítica, conforme a formulação feita por Foucault (1999) e que tem balizado toda a discussão atual sobre a temática (Cascais, 2016), é a política sobre a vida voltada a todos os fenômenos que, direta ou indiretamente, dizem respeito à vida humana, desde o seu nascimento até a sua morte (e mesmo depois desse acontecimento fatídico, uma vez que há de se decidir o que fazer com o cadáver); desde suas necessidades fisiológicas até suas necessidades mais "nobres" mas tão vitais quanto aquelas, como traços próprios às demandas da população (Foucault,1999); desde nosso corpo até nossa "alma". E no que diz respeito à nossa "alma"- expressão pela qual podemos nos referir a toda nossa vida afetiva -, um dos gigantes que nos incitam ou que emperram nossa potência subjetiva, nossa capacidade de agir no mundo no qual estamos inseridos, é o medo. Tanto o é que, por medo, reclamamos o tempo todo por segurança; e é em relação direta com nossos medos e nosso desejo quase insano por segurança que a biopolítica se faz relevante. Diz Žižek:

[...] as duas características da atual constelação político-ideológica- o surgimento do controle e da regulação biopolítica, o excessivo temor narcisista de perseguição- são, na verdade, dois lados da mesma moeda. De um lado, o próprio desenvolvimento da personalidade narcisística tendendo à "autorrealização" leva ao crescente autocontrole (atividade física, sexo seguro, comida saudável etc.), isto é, os sujeitos tratam a si mesmos como objetos da biopolítica; de outro, o alvo declarado da biopolítica estatal é a felicidade individual e a vida prazerosa, a abolição de todos os choques traumáticos que possam impedir a autorrealização - a felicidade é "uma mercadoria importada dos Estados Unidos na década de 1950", como explicou certa vez a atriz Francesca Annis (Žižek, 2014, p. 393).

Contudo, se a felicidade foi produto de exportação a partir dos anos 1950, há que se reconhecer que sob seu manto não se tem qualquer afeto intensificador e promotor da subjetividade. A felicidade desde então exportada é apenas o rótulo torpe para uma sensação narcotizada diante da mínima possibilidade - e, portanto, nem mesmo de sua ocorrência efetiva- de qualquer agrura a que se lhe poderia atingir. Nesse sentido, o que se exportou, e a mídia hollywoodiana foi bastante pródiga, foram doses nada homeopáticas de narcóticos culturais, cuja finalidade não foi outra senão amortecer nossa potência subjetiva. Em nome da segurança, da felicidade tão almejada, em nome de escaparmos totalmente de quaisquer situações que nos atemorizam, sujeitamo-nos a estratégias biopolíticas de narcose e torpor; é quando a biopolítica se transforma em narcopolítica.

De todo modo, é sempre a subjetividade que é visceralmente afetada, correndo talvez o maior dentre todos os perigos: o de ser despotencializada, esvaziada de sua potência e de seu devir inerente. E isso devido a um fator aparentemente simples, mas profundamente pernicioso: o de buscarmos sempre nos proteger de tudo que de al-gum modo nos aflige e nos assusta, vindo de fora ou de dentro, pouco importa, pois se nota com alguma facilidade que a fronteira que os separa é muito tênue e porosa, ao ponto de uma imiscuir no outro quase imperceptivelmente. É preciso pensar de outro modo nossa íntima relação com nossos medos e nossa ânsia narcísica por proteção, a fim de que possamos encontrar vias mais benfazejas de realização, atualização e criação de subjetividades.

 

Considerações finais

Há que se evitar o medo? O medo é apenas despotencialização de nossa subjetividade? Esvaziamento de nosso ser? Há muitos séculos, Aristóteles já nos ensinou que a coragem é a justa medida entre o destemor total e o temor completo. Ou seja, para ser efetivamente corajoso, urge que se tenha lá algum medo. O medo não está em uma oposição à coragem. Ao contrário, ter medo pode até ser um componente interessante à medida que dá contornos à nossa coragem. Ser corajoso é saber reconhecer os perigos e saber avaliá-los em sua realidade efetiva, e isso só o fazemos pela sensação de medo.

Buscamos mostrar neste estudo, portanto, que vivemos uma época que exacerbou o medo em sua dimensão despotencializadora, fazendo de nós existências profundamente receosas de tudo o que nos cerca: tememos pela simples possibilidade de que podemos ter medo. É o medo sem objeto que consideramos antes. Talvez uma forma de reconsiderarmos nossos temores seja recuperar algo como a animalidade inerente a eles. Qualquer animal experimenta e enfrenta a sensação de medo, mas ela não lhe é um desmobilizador, e sim um modulador, entre outros possíveis de sua ação e realização de si diante do mundo que o cerca - ele faz parte de seu contexto, o ajuda a viver e a sobreviver.

Conosco não deveria ser diferente. Eis, talvez, o interessante: em vez de nos descobrirmos desprotegidos, vemos que nossas possibilidades são bem mais amplas. Não que sejamos onipotentes, mas nossa subjetividade pode atualizar virtualidades quase infinitas, tudo na confluência com outras subjetividades, ainda que, é verdade, não sejam necessariamente pacíficas, antes até conflituosas. Mas toda relação agônica de conflito implica uma negação e uma anulação do outro? Não parece ser necessariamente o caso. Para isso, basta levar em conta que a condição de alteridade e de diferença não é uma relação opositiva de contradição - ou eu ou o outro -, mas uma relação múltipla e sem síntese conclusiva.

 

Referências

Beck, U. (2011). Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Brossat, A. (2003). La démocratie immunitaire. Paris: La Dispute.         [ Links ]

Candiotto, C. (2010, jan.-abr.). A governamentalidade política no pensamento de Foucault. Filosofia Unisinos, 11(1),33-43. doi:10.4013/fsu.2010.111.03        [ Links ]

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Endereço para correspondência:
Sonia Regina Vargas Mansano
Universidade Estadual de Londrina. Centro de Ciências Biológicas. Departamento de Psicologia Social e Institucional. PR 445, Km 180
CEP: 86051-990. Londrina- PR
E-mail: mansano@uel.br

Submissão: 17.5.2017
Aceite: 1.11.2017

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