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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.20 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2018

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v20n1p155-167 

ARTIGOS
DESENVOLVIMENTO HUMANO

 

Memória de trabalho, senso numérico e desempenho em aritmética

 

 

Luciana Vellinho Corso

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, RS, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As relações entre a memória de trabalho (MT) e o desempenho em matemática são discutidas na literatura, contudo são controversos os resultados sobre quais componentes da MT exercem maior influência à competência numérica. As relações entre o senso numérico (SN) e a MT são mais recentes. O presente estudo objetivou correlacionar (Spearman) a MT (componente executivo central- informação numérica e não numérica; e componente fonológico- repetição de dígitos, frases, relatos), o desempenho aritmético (subteste aritmético TDE) e o desempenho em SN (Teste de Conhecimento Numérico). Participaram 79 alunos, do 4º ao 7º ano do Ensino Fundamental, com desempenho aritmético baixo e mediano. Melhor desempenho no executivo central correlacionou-se a uma melhor performance no SN e na aritmética, e o mesmo não foi evidenciado para o componente fonológico. Implicações educacionais derivam da ampliação de conhecimentos nessa área. É ressaltada a importância de maior uniformidade nos instrumentos que avaliam esses domínios.

Palavras-chave: memória de trabalho; componente executivo central; componente fonológico; senso numérico; desempenho aritmético.


 

 

Introdução

Tanto o senso numérico como a memória de trabalho são habilidades de vital importância para a competência em matemática (Jordan, Glutting, & Ramineni, 2010; Passolunghi & Lanfranchi, 2012; Passolunghi, Mammarella, & Altoè, 2008). As relações entre a memória de trabalho e o desempenho em matemática têm sido bastante discutidas na literatura (Andersson, 2008; Andersson & Lyxell, 2007; McLean & Hitch, 1999; Passolunghi & Lanfranchi, 2012), no entanto, são recentes as investigações que tratam da associação entre a memória de trabalho e o senso numérico (Friso-van den Bos, Van Der Ven, Kroesbergen, & Van Luit, 2013; Lee et al., 2012).

O aprendizado da matemática requer tanto competências numéricas (competências de domínio específico) quanto competências de base (competências de domínio geral). Neste artigo, daremos papel de destaque ao senso numérico (como competência numérica) e à memória de trabalho (como competência de base) por serem as competências que têm ganhado destaque crescente na literatura (Andersson & Lyxell, 2007; Jordan et al., 2010; Passolunghi & Lanfranchi, 2012). Inicialmente, mostramos os avanços das pesquisas em senso numérico e em memória de trabalho, apontando consensos e controvérsias que giram em torno das discussões dessas temáticas. A seguir, destacamos alguns estudos que relacionam a memória de trabalho e o desempenho em matemática, assim como em senso numérico. Por fim, apresentamos a pesquisa realizada.

Senso numérico

Um crescente corpo de pesquisas aponta que um senso numérico pouco desenvolvido é uma das características que acompanham os alunos que enfrentam dificuldades na matemática e que problemas com o senso numérico podem ser identificados desde cedo na educação infantil (Jordan et al., 2010; Kroesbergen, Van Luit, Van Lieshout, Van Loosbroek, & Van de Rijt, 2009; Passolunghi & Lanfranchi, 2012).

Não há consenso em relação ao conceito de senso numérico. Sua definição e caracterização têm sido objeto de debate desde o final da década de 1980 e início da década de 1990. As contribuições de estudiosos como Sowder e Shapelle (1989) e Greeno (1991) repercutem nas pesquisas atuais sobre o tema. Os autores apontam o senso numérico como um constructo complexo e multifacetado que não se refere a um corpo de conhecimento ou uma unidade curricular apenas, mas sim a uma forma de pensar que possibilita a capacidade de usar habilidades matemáticas para enfrentar as necessidades diárias. Spinillo (2014) reflete essa visão quando destaca que "tal forma de pensar" deve permear as situações de ensino em relação a todos os campos da matemática e em todos os segmentos da escolarização.

Ao definir senso numérico, alguns autores destacam a parte conceitual e abstrata do processamento numérico. Dehaene (2001), por exemplo, aponta que o senso numérico se refere à habilidade de representar e de manipular mentalmente os números e as quantidades. Outros pesquisadores (Jordan et al., 2010) utilizam definições que enfatizam o desempenho que é facilitado por aquela compreensão conceitual de número, do tipo a habilidade de contagem, a identificação de número, a estimativa, entre outros. Acreditamos que ambas as formas de definir senso numérico são complementares, já que, para se obter êxito na compreensão e na execução de tarefas que envolvem números, relações numéricas e de quantidades, faz-se necessária a compreensão abstrata do processamento numérico. Portanto, a compreensão de senso numérico que caracteriza esse artigo é a de que esse é um constructo geral, que engloba um conjunto de conceitos bastante amplo, o qual o aluno desenvolve gradativamente, a partir de suas interações com o meio social (Corso & Dorneles, 2010).

Naturalmente, a falta de consenso em relação à definição desse conceito acaba por tornar controversa a discussão sobre a melhor forma de avaliar e intervir nessa área. Estudos envolvendo esses temas têm despertado o interesse de pesquisadores e trazido resultados promissores. Pesquisas mostram que o senso numérico é um bom detector inicial de dificuldades na aritmética (Jordan et al., 2010; Passolunghi & Lanfranchi, 2012). Estudos a respeito do poder preditivo do senso numérico acabam por influenciar as investigações sobre intervenção nessa área (Jordan et al., 2010; Kuhn & Holling, 2014). Mais recentemente, os pesquisadores estão interessados na associação entre o senso numérico e os diferentes componentes do sistema de memória de trabalho (Friso-van den Bos et al., 2013; Kroesbergen et al., 2009; Lee et al., 2012). Mas a literatura que relaciona tais competências é ainda escassa e muitas questões em relação à essa associação precisam ser mais bem compreendidas, como: qual a extensão de envolvimento dos diferentes componentes da memória de trabalho nas tarefas de senso numérico? Existe um componente que desempenha um papel mais importante? O presente estudo buscou contribuir com essa discussão, investigando as associações entre dois componentes da memória de trabalho (executivo central e fonológico) e o desempenho em senso numérico.

Memória de trabalho

A memória de trabalho (MT) é um sistema de memória, de capacidade limitada, responsável por armazenar temporariamente a informação e, ao mesmo tempo, processá-la durante a atividade cognitiva. O modelo de MT de Baddeley e Hitch (1974) tem sido o mais usado na literatura para analisar o papel da memória de trabalho em tarefas de matemática. Esse modelo foi revisado por Baddeley (2000) e, atualmente, compreende quatro componentes: o executivo central, um controlador atencional responsável pela manipulação da informação; o componente fonológico, para armazenamento de informação verbal; e o componente visuoespacial, responsável pela retenção de informação visuoespacial. O buffer episódico é responsável pela integração da informação proveniente dos componentes fonológico e visuoespacial da MT com a memória de longo prazo.

Relação entre memória de trabalho e desempenho em matemática

Embora haja evidências de que a MT está criticamente envolvida com o desempenho em matemática (Andersson & Lyxell, 2007; McLean & Hitch, 1999; Passolunghi & Lanfranchi, 2012; Passolunghi et al., 2008), a literatura mostra resultados pouco conclusivos na hora de apontar quais componentes da MT estão mais fortemente associados à competência nesta área. Por exemplo, McLean e Hitch (1999) observaram que os alunos com dificuldades em matemática apresentam baixo desempenho em tarefas que avaliam o esboço visuoespacial. Andersson e Lyxell (2007), no entanto, não encontraram relação entre esse componente e as dificuldades em matemática. Pesquisas que associam o componente fonológico da MT e o desempenho matemático, por sua vez, apresentam tanto relações positivas (Andersson & Lyxell, 2007; Passolunghi et al., 2008) quanto negativas (Passolunghi & Lanfranchi, 2012). Quanto ao componente executivo central da MT, o cenário não é diferente, já que alguns estudos demonstram que alunos com dificuldades em matemática mostram defasagens nas tarefas que avaliam o executivo central (Andersson & Lyxell, 2007; Passolunghi & Lanfranchi, 2012), enquanto outros não demonstram tal associação (Andersson, 2008).

Ainda em relação ao executivo central, mesmo diante de resultados controversos, é importante destacar que vários estudos apontam esse componente como o mais prejudicado nos alunos que enfrentam problemas em matemática (Andersson & Lyxell, 2007; Friso-van den Bos et al., 2013; Kroesbergen et al., 2009; McLean & Hitch, 1999). Convém lembrar, como descrito em Andersson & Lyxell (2007), que o executivo central lida com tarefas de maior demanda cognitiva e, portanto, apresenta três funções específicas: a) atualização- fazer o processamento ativo e atualização de informações na MT; b) alternância- optar por uma tarefa, estratégia ou operação; c) inibição- impedir que informações irrelevantes entrem ou permaneçam na MT.

Estudos mostram comprometimentos das diferentes funções do executivo central em alunos com problemas na matemática; por exemplo, dificuldades com o controle inibitório são apontadas por McLean e Hitch (1999) e problemas com a função de atualização são evidenciados por Friso-van den Bos et al. (2013). Também foi um dos focos desse estudo investigar a associação entre a memória de trabalho, em seus componentes fonológico e executivo central, e o desempenho em aritmética. A pesquisa envolveu apenas a função de atualização do executivo central.

Relação entre memória de trabalho e senso numérico

Mais recentemente, pesquisas têm investigado as associações entre os diferentes componentes da MT e o desempenho em senso numérico. Entre os componentes da MT, o executivo central, com suas distintas funções, tem sido o mais estudado. Não há consenso a respeito do papel que cada função do executivo central exerce no senso numérico. Alguns estudos sugerem que a inibição desempenha um papel importante no sentido de predizer o desempenho em senso numérico (Kroesbergen et al., 2009), mas tal resultado não foi verificado no estudo de Lee et al. (2012). A função de atualização é a mais usualmente apontada como preditora de senso numérico (Kroesbergen et al., 2009; Lee et al., 2012).

Friso-van den Bos et al. (2013) realizou uma metanálise envolvendo15 estudos com crianças de 4 a 12 anos. Os estudos compreendiam, pelo menos, uma medida de senso numérico e uma, ou mais, das funções do componente executivo central da MT sendo avaliadas (atualização, inibição, alternância). O autor encontrou uma associação entre o senso numérico e as funções de atualização e inibição, e a atualização demonstrou a maior correlação com o senso numérico.

A partir do exposto anteriormente, o presente estudo tem como objetivos: a) verificar se há correlação entre a capacidade da MT (através do componente executivo central- função de atualização) e o desempenho em aritmética e em senso numérico; b) investigar se há correlação entre a capacidade da MT (através do componente fonológico) e o desempenho em aritmética e em senso numérico. O estudo busca contribuir para a literatura, uma vez que, apesar de as investigações neste campo estarem em evidência há algum tempo (em especial, as associações entre a MT e o desempenho aritmético, mas menos no que se refere às associações entre MT e senso numérico), os resultados são ainda controversos e pouco conclusivos. Portanto, a ampliação de conhecimento nessa área faz-se muito necessária. Tem-se como hipótese que a capacidade da MT, através dos componentes executivo central e fonológico, correlaciona-se tanto com o desempenho aritmético quanto com o desempenho em senso numérico dos alunos participantes deste estudo.

 

Método

Participantes

Participaram da pesquisa 79 alunos, entre 10 e 14 anos de idade (36 meninas e 43 meninos), cursando do 4º ao 7º ano do Ensino Fundamental de cinco escolas públicas do município de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. A média de idade foi de 11,9 anos (Tabela 1). As escolas estão localizadas em bairros vizinhos e apresentam semelhança na metodologia de ensino e nas características socioeconômicas. Foram três os critérios utilizados para a composição da amostra. O primeiro foi a indicação pelo professor de alunos com desempenho na média ou abaixo da média em matemática. O segundo foi o desempenho dos alunos no subteste de matemática do Teste de Desempenho Escolar (TDE) de Stein (1994). Foram selecionados os alunos que apresentaram os escores em aritmética situados na média e inferiores à média em relação aos escores esperados para as respectivas séries. O terceiro critério foi o desempenho nas subprovas de Cubos e Vocabulário da escala Wechsler de inteligência para crianças WISC-IV (Wechsler, 2013). Como critério de exclusão, considerou-se, além do não preenchimento dos três aspectos citados anteriormente, a presença de deficiência sensorial e o diagnóstico de transtorno do neurodesenvolvimento. Dos 120 alunos que foram encaminhados pelos professores, 79 atenderam aos critérios de inclusão/exclusão do estudo. A autorização dos pais de todos os alunos participantes foi obtida por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e do Termo de Dissentimento. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na Tabela 2, constam os dados de descrição da amostra.

Instrumentos utilizados

Aritmética- Subteste de aritmética do TDE (SA-TDE)- Teste de Desempenho Escolar de Stein (1994), instrumento padronizado para a região sul do Brasil, composto por 38 questões envolvendo cálculos aritméticos com grau de dificuldade crescente.

Senso Numérico - Teste de Conhecimento Numérico (TCN) (Okamoto & Case, 1996) composto por uma série de questões estruturadas em quatro níveis de complexidade, sendo apresentadas do mais simples ao mais complexo. O instrumento possibilita avaliar o conhecimento de conceitos e operações aritméticas básicos da criança, como também avaliar sua compreensão em relação àqueles conceitos e operações.

Memória de Trabalho - O estudo avaliou o componente executivo central e o componente fonológico da memória de trabalho. O componente executivo central (função de atualização) foi medido por meio de duas tarefas distintas: tarefa com informação não numérica (adaptada de Hecht et al., 2001) e tarefa com informação numérica (tarefa adaptada de Yuill et al., 1989). Na primeira, os alunos respondem "sim" ou "não" para conjuntos de 2 a 4 questões e, em seguida, repetem a última palavra de cada uma das questões. Por exemplo, no conjunto de 2 questões, "As mesas caminham?" e "As lâmpadas correm?", as respostas corretas seriam "não" para cada pergunta e ainda "caminham" e "correm". Na segunda tarefa, os alunos leem em voz alta séries crescentes de grupos de três dígitos e, ao final de cada série, devem recordar, em ordem, o último dígito de cada grupo. Por exemplo, para os grupos (2 5 7) e (1 6 8), devem ser recordados os dígitos "7" e "8". O componente fonológico foi avaliado através da memória fonológica para dígitos, frases e relatos (adaptada de Golbert, 1988).

Procedimento

As tarefas foram aplicadas individualmente pela pesquisadora em um espaço disponibilizado pelas escolas. As provas de cubos e vocabulário do WISC foram aplicadas por um psicólogo. A ordem de apresentação das tarefas foi a mesma para todos os sujeitos. Foram necessários três períodos de 50 minutos, por aluno, para a realização das tarefas.

Análise de dados

Inicialmente, foi analisada a distribuição das variáveis que compreendem este estudo pelos testes de normalidade de Kolmogorov-Smirnov e Shapiro-Wilk. Os resultados indicaram que as variáveis não seguem distribuição normal e, portanto, foi utilizada estatística não paramétrica para a análise dos dados. A seguir, foi realizado o teste de correlação de Spearman ao nível de significância de 5% para evidenciarmos as correlações entre as variáveis em discussão neste estudo: memória de trabalho (componente fonológico e executivo central), desempenho aritmético e desempenho em senso numérico.

 

Resultados

Primeiramente, foram explorados os aspectos descritivos das variáveis do presente estudo. As informações encontradas estão apresentadas na Tabela 1. Verifica-se que todas as variáveis apresentaram distribuição significativamente desviante da normalidade, ainda que com medidas de assimetria não muito expressivas. Esse resultado, em particular, sustenta o uso de um estimador robusto na testagem do modelo hipotetizado, como feito no presente estudo.

O estudo apontou correlação significativa entre os instrumentos que avaliaram o desempenho aritmético e o senso numérico (r = 0,562; p = 0,001), sugerindo consistência interna dos instrumentos utilizados na pesquisa para mensurar a competência numérica (SA-TDE e TCN). Foi encontrada uma correlação significativa entre as duas tarefas que avaliaram o componente executivo central da MT e o desempenho em senso numérico (MT1 r = 0,408, p = 0,001; MT2 r = 0,340, p = 0,002). Do mesmo modo, foi evidenciada uma correlação significativa entre aquelas tarefas e o desempenho aritmético (MT1 r = 0,268, p = 0,017; MT2 r = 0,335, p = 0,003). O componente fonológico da MT, porém, não revelou uma correlação significativa em nenhuma das três tarefas utilizadas para avaliar essa variável e o senso numérico, assim como não revelou uma correlação significativa com o desempenho aritmético. As correlações entre as medidas estão apresentadas na Tabela 3.

 

Discussão

O estudo objetivou investigar as associações entre a MT (componente executivo central e fonológico) e a competência numérica avaliada através de duas tarefas: uma de senso numérico (TCN) e a outra de desempenho aritmético (SA-TDE).

Conforme esperado, observou-se uma correlação significativa entre as tarefas de senso numérico e desempenho aritmético, evidenciando uma consistência interna dos instrumentos utilizados para mensurar a competência numérica. Tal resultado corrobora as pesquisas que apontam o papel crítico que o senso numérico desempenha para a competência aritmética (Jordan et al., 2010; Lee et al., 2012; Passolunghi & Lanfranchi, 2012).

Foi evidenciada uma correlação significativa entre as duas tarefas que avaliaram o componente executivo central da MT e o senso numérico, reforçando o fato de que lidar com as propostas que englobam contagem, realização de operações, estimativas e cálculo mental (tarefas que compuseram o TCN) requer o envolvimento da MT, nesse caso, especialmente através do sistema executivo central, uma vez que uma relação positiva não foi encontrada entre o componente fonológico da MT e a medida de senso numérico. Esse resultado converge com outras pesquisas que demons-tram a forte associação entre o executivo central (função de atualização) e o senso numérico (Lee et al., 2012). Na mesma linha, Friso-van den Bos et al. (2013) evidenciou que, entre as funções do executivo central, a atualização tem a maior correlação com o senso numérico.

Quanto às associações entre a MT e o desempenho aritmético, nossos resultados corroboram aqueles que enfatizam a associação positiva entre essas variáveis (Passolunghi & Lanfranchi, 2012; Passolunghi et al., 2008), reforçando que a MT está criticamente envolvida com uma variedade de habilidades numéricas e aritméticas. Neste estudo, essa associação positiva refere-se ao componente executivo central da MT (nas duas tarefas envolvidas), mas não ao fonológico.

Portanto, na amostra pesquisada, observou-se que um melhor desempenho no componente executivo central da MT está associado a um melhor desempenho na competência numérica (senso numérico e aritmética). Esse resultado sugere que tais habilidades envolvem o armazenamento e o processamento simultâneo da informação na MT, ou seja, requerem integrar a informação que está sendo codificada com o conhecimento já armazenado na memória de longo prazo. Durante a contagem, por exemplo, na execução de um cálculo aritmético simples, são necessárias a manutenção e o processamento de resultados intermediários na MT até que se possa chegar ao resultado final do cálculo. O componente executivo central da MT parece ser bastante requisitado enquanto os alunos ainda não adquiriram um automatismo referente a muitas das competências necessárias para se ter sucesso na matemática (por exemplo, a recuperação automática de fatos aritméticos básicos), automatismo este, espera-se, que à medida que o aluno progride na escola, seja alcançado. No entanto, a transição de um monitoramento mais consciente do aluno (usando estratégias de contagem mais iniciais, por exemplo) para um automatismo no cálculo, passa por um processo que, até estar mais maduro, vai requerer uma demanda maior da MT. É possível que os alunos de nossa amostra, composta por desempenho baixo e mediano em aritmética, ainda se mostrem pouco automáticos e, por assim ser, apoiam-se de forma mais intensa na MT, nesse caso, por meio do componente executivo central. Convém lembrar, no entanto, que o estudo não avaliou os tipos de estratégias e os procedimentos de contagem usados pelos alunos para que pudéssemos confirmar essa interpretação.

No entanto, contrariamente ao que hipotetizamos, no estudo não foi encontrada uma associação entre o componente fonológico da MT (responsável pela retenção de números durante o processo aritmético) e a competência numérica (senso numérico e aritmética). Embora algumas pesquisas apontem a correlação de todos os componentes da MT com o desempenho matemático (Friso-van den Bos et al., 2013)- mesmo que destacando uma associação maior com o componente executivo central -, outros estudos também não encontraram uma correlação entre o componente fonológico e a competência numérica (Passolunghi & Lanfranchi, 2012).

Meyer, Salimpoor, Wu, Geary, e Menon (2010) lembram que a variação na força da associação entre os diferentes componentes da MT e a competência numérica pode ser explicada por questões metodológicas do tipo: a variação nas idades dos sujeitos, as distintas tarefas para medir desempenho matemático e as diferentes medidas de MT encontradas na literatura. O presente estudo usou tarefas informais de pesquisa para mensurar o componente fonológico da MT. Talvez tais tarefas não tenham sido sensíveis o suficiente para avaliar esse componente. Meyer et al. (2010) destacam a importância de as pesquisas utilizarem instrumentos padronizados para avaliar a MT em seus diversos componentes.

Ainda considerando os aspectos metodológicos das pesquisas sobre MT, Friso-van den Bos et al. (2013) observam que as correlações entre os diferentes componentes da MT e a competência numérica são mais influenciadas pelas características das medidas matemáticas dos estudos (testes mais amplos ou mais específicos envolvendo apenas determinada habilidade matemática) e o tipo de amostra (alunos com ou sem dificuldades em matemática, por exemplo) do que pela medida de MT ou pela idade dos sujeitos. Quanto às características dos testes utilizados, nosso estudo envolveu instrumentos mais amplos que tendem a produzir correlações maiores do que os testes mais específicos (Friso-van den Bos et al., 2013), isso porque as avaliações mais amplas da matemática exigem que o aluno tenha que alternar as várias operações e os modelos mentais para dar conta dos desafios impostos pela tarefa, recrutando de forma mais intensa os diferentes componentes da memória de trabalho. Por exemplo, o SA-TDE envolveu cálculos contendo diferentes operações e o TCN compreendeu distintos aspectos desse domínio. Quanto ao tipo de amostra, associações estatísticas maiores são encontradas em grupos de alunos que enfrentam dificuldades em matemática (Andersson & Lyxell, 2007; McLean & Hitch, 1999; Passolunghi et al., 2008). Este estudo incluiu alunos com desempenho em aritmética na média e abaixo da média. É possível que, se nossa amostra incluísse apenas alunos com baixo desempenho nessa área, tivéssemos encontrado uma correlação significativa entre os componentes fonológico da MT e as medidas utilizadas de senso numérico e desempenho aritmético.

A investigação das associações entre a MT, o senso numérico e o desempenho em aritmética traz importantes implicações educacionais. Maior conhecimento sobre as habilidades cognitivas subjacentes à aprendizagem da matemática pode ajudar os professores na elaboração de currículos em que as demandas da MT estejam adequadas às possibilidades dos alunos, considerando a faixa etária e o nível de exigência da tarefa.

Cabe destacar que a forma como o processo de ensino é conduzido irá influenciar diretamente o efeito que o déficit cognitivo tem na aprendizagem. Por exemplo, os alunos que são muito lentos para calcular acabam por sobrecarregar a MT e, por assim ser, aumentam a chance de erro no cálculo. Tais alunos necessitam de intervenções pautadas no ensino de estratégias eficazes, do tipo decomposição e recuperação imediata de fatos básicos, para que possam apoiar-se enquanto resolvem os cálculos mais complexos. Nesse caso, o ensino de estratégias é usado para compensar a dificuldade de MT do aluno.

Pesquisas sugerem que a capacidade da MT pode ser ampliada através de estratégias específicas de intervenção por meio de jogos no computador (Kuhn & Holling, 2014). No entanto, os resultados desses trabalhos são ainda controversos (Melby-Lervag & Hulme, 2013). O estudo interventivo de Kuhn e Holling (2014) comparou as habilidades matemáticas de alunos sem dificuldades na matemática, do pré para o pós-teste, que receberam intervenção em MT ou em senso numérico. Ambas as intervenções provocaram melhora nas habilidades matemáticas dos alunos em comparação ao grupo de controle. A combinação de intervenções em MT com as subáreas específicas da matemática nas quais o aluno demonstra atrasos tem sido destacada (Melby-Lervag & Hulme, 2013). Intervenções desse tipo podem trazer resultados promissores.

O presente estudo apresenta como limitação a não inclusão do componente visuoespacial da MT e das funções de inibição e alternância do executivo central, o que poderia enriquecer as análises. Apontamos, também, o fato de o estudo não apresentar um número mais homogêneo de alunos representando os diferentes anos escolares, em especial, no caso do 4º e do 6º ano. Entretanto, convém lembrar que o objetivo do estudo não envolveu a correlação ao longo de cada ano escolar entre as variáveis em questão, mas sim a busca de correlação no contexto desta amostra formada por alunos de diferentes níveis de escolaridade. Tal fato gerou a necessidade de tratamento estatístico não paramétrico e possibilitou evidenciar correlações positivas e significativas entre as competências numéricas avaliadas e a MT no grupo que compôs a amostra deste estudo.

Por fim, a presente pesquisa contribuiu para a discussão sobre a associação entre MT, senso numérico e desempenho em aritmética. Como apontamos ao longo do trabalho, existem ainda muitas contradições na literatura correlacionando esses três domínios, o que gera a necessidade de mais pesquisas. Sabemos que as controvérsias existentes oferecem um grande desafio para a investigação nessa área, assim como a necessidade de atenção metodológica para os estudos futuros, em especial no que diz respeito à busca de maior uniformidade nos instrumentos que avaliam tanto as competências numéricas como as de base, possibilitando, desse modo, a geração de dados de pesquisa possíveis de serem comparados e validados.

 

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Endereço para correspondência:
Luciana Vellinho Corso
Rua Marques do Pombal, 1577/202
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. CEP 90540-001
E-mail: l.corso@terra.com.br

Submissão: 26.10.2016
Aceite: 6.11.2017

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