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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.20 no.2 São Paulo May/Aug. 2018

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v20n2p79-92 

ARTIGOS
AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

 

Relação entre uso de substâncias e qualidade de vida em uma amostra comunitária de adultos

 

 

Luiz Felipe Ayres BernardesI; Nelson Hauck FilhoII; Ana Paula Porto NoronhaIII

IUniversidade São Francisco, UFS, SP, Brasil
IIUniversidade São Francisco, UFS, SP, Brasil
IIIUniversidade São Francisco, UFS, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O uso contínuo e o abuso de substâncias psicoativas podem estar associados à ocorrência de diversos eventos negativos, impactando a qualidade de vida das pessoas. No presente estudo, foi investigada a relação entre nove distintas substâncias e os diferentes domínios da qualidade de vida avaliados pelo instrumento WHOQOL-bref. Os participantes foram 105 adultos de uma amostra comunitária (média de idade = 23,91, DP = 0,51; 57,14% mulheres). Os resultados revelaram prejuízos na qualidade de vida apenas para o uso de cocaína e de ansiolíticos, além de uma inesperada tendência de relacionamento positivo entre uso de estimulantes e qualidade de vida. Foram muito altas as prevalências para uso moderado de tabaco, álcool e maconha. Os resultados são discutidos à luz de estudos anteriores e sob a possibilidade da configuração idiossincrática da presente amostra.

Palavras-chave: drogas; psicopatologia; bem-estar; saúde; avaliação psicológica.


 

 

Introdução

Substâncias psicoativas são aquelas que alteram, de alguma maneira, o estado de consciência do usuário (Seibel, 2010). O uso contínuo e o abuso dessas substâncias estão relacionados à ocorrência de diversos eventos na vida das pessoas, como prejuízos na saúde e envolvimento em acidentes (Baylen & Rosenberg, 2006; Gramenzi et al., 2006; Van Dyke & Fillmore, 2015; Waziry, Jawad, Ballout, Al Akel, & Akl, 2016; Zador, Krawchuk, & Voas, 2000), condições psicopatológicas (Davis, Uezato, Newell, & Frazier, 2008; Klimas, Neary, McNicholas, Meagher, & Cullen, 2014; Sher & Trull, 2002), violência interpessoal (Choenni, Hammink, & van de Mheen, 2015; Shorey, Stuart, & Cornelius, 2011) e prejuízos sociais, laborais e acadêmicos (Galea, Nandi, & Vlahov, 2004). Em virtude dos efeitos negativos em diversas áreas da vida, o uso de substâncias tem o potencial de impactar a qualidade de vida (QV) geral das pessoas, isto é, a avaliação integrada que as pessoas fazem de suas metas, valores, recursos e vivências (Machado & Bandeira, 2012; Orley & Kuyken, 1993). QV é um construto subjetivo e multidimensional que envolve a percepção do indivíduo sobre suas preocupações, expectativas e padrões, sendo configurado como um conceito multidimensional (The WHOQOL Group, 1998). A presente investigação explora a relação entre o uso de substâncias e diferentes domínios da QV em uma amostra de adultos brasileiros.

Existem amplas evidências conectando o uso de substâncias à reduzida QV (cf. Zubaran & Foresti, 2009). Mais especificamente, o estado da arte da literatura revela que o uso de substâncias se associa a decréscimos nos mais variados domínios da QV, incluindo funcionamento físico, social, psicológico, laboral, acadêmico e financeiro (cf. Rudolf & Watts, 2009). Em alguns casos, os prejuízos podem ocorrer em domínios específicos. No caso do álcool, consequências negativas do uso crônico incluem doenças debilitantes (Gramenzi et al., 2006) e ainda prejuízos na rede de relacionamentos sociais do indivíduo (Martins, Ribeiro, Baracho, Feital, & Ribeiro, 2012). Quanto a outras substâncias, os danos podem ser mais difusos. Por exemplo, o uso constante de crack/cocaína parece impactar diversos domínios da QV (Narvaez et al., 2015). Além disso, usuários de cocaína parecem experienciar menor satisfação com a vida quando comparados àqueles que utilizam outros tipos de substâncias (Havassy & Arns, 1998). Em suma, existem diferenças quanto aos prejuízos acarretados pelo uso de cada substância, não sendo possível fazer generalizações a todos os tipos de usuários (Rudolf & Watts, 2009).

A conexão entre uso de substâncias e QV tem sido cada vez mais levada em conta em perspectivas atuais de avaliação e intervenção em saúde. A QV tem sido foco tanto na avaliação da dependência química (Zubaran & Foresti, 2009) quanto no tratamento dela (Laudet, 2011). Aumento na QV tem sido considerado critério para caracterizar o sucesso de uma intervenção na área (Pasareanu, Opsal, Vederhus, Kristensen, & Clausen, 2015). Isso justifica a proposta de investigações minuciosas que busquem entender de maneira mais aprofundada a relação entre o uso de substâncias específicas e os diferentes domínios da QV prejudicados ou inalterados. Com relação à relevância, estudos dessa natureza possuem o potencial de fornecer informações úteis para a tomada de decisão em intervenções na área da saúde, permitindo alocar recursos de maneira mais efetiva.

Um dos problemas relacionados a estudar o uso de substâncias e a QV é o fato de que uma parcela de indivíduos utiliza diversas substâncias (Conway et al., 2013). Devido à colinearidade entre a utilização de diferentes substâncias, a associação entre o uso de uma substância qualquer e um domínio da QV poderá resultar enviesada se não for feito o controle estatístico da sobreposição das variáveis em relação às das demais substâncias. Assim, uma estratégia para conhecer melhor a relação específica entre cada substância e os domínios da QV é mediante modelos multivariados que controlem a variância compartilhada entre o uso das diversas substâncias. Essa relação parcial com a QV, para além das relações bivariadas usualmente relatadas, pode ajudar a especificar melhor os prejuízos únicos associados a cada substância.

O presente estudo tem como objetivo investigar em que magnitude o uso de diversas substâncias lícitas e ilícitas impacta as dimensões da QV avaliadas pelo instrumento WHOQOL-bref. Buscou-se entender a contribuição parcial de cada substância na explicação da QV ao controlar o efeito do uso das demais drogas. Isso possibilita um entendimento mais específico do possível impacto do uso de substância nas diferentes dimensões da QV das pessoas. Secundariamente a esse objetivo, também se buscou investigar as prevalências, na amostra, de uso leve, moderado e pesado de nove distintas substâncias.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo 105 adultos com idades entre 18 e 55 anos (média = 23,91 anos, DP = 0,51; 57,14% mulheres), que responderam ao questionário on-line. Trata-se de uma amostra não probabilística de conveniência de indivíduos da população geral brasileira, tendo em vista que o link para participar da pesquisa foi disponibilizado em uma rede social (Facebook). O nível de escolaridade mais prevalente foi ensino superior incompleto (58,10%), enquanto a categoria de renda modal foi acima de R$ 8.000,00 (33,33%). Com relação à etnia, 88,57% dos participantes declararam-se brancos, 9,52%, pardos, 0,95%, negros e 0,95%, amarelos.

Instrumentos

Teste de triagem do envolvimento com álcool, cigarro e outras substâncias (Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test - ASSIST) (Henrique, De Micheli, Lacerda, Lacerda, & Formigoni, 2004; World Health Organization, 2002): utilizado para detecção do uso abusivo ou dependência de álcool, cigarro e outras substâncias psicoativas, esse teste contém oito questões sobre o uso de nove classes de substâncias psicoativas: tabaco, álcool, maconha, cocaína, estimulantes, sedativos, inalantes, alucinógenos e opiáceos. As questões abordam uso na vida (questão 1), uso nos últimos três meses (questão 2), fissura (questão 3), problemas relacionados ao uso (questão 4), preocupação a respeito do uso por parte de pessoas próximas ao usuário (questão 5), prejuízo na execução de tarefas esperadas (questão 6), tentativas malsucedidas de cessar ou reduzir o uso (questão 7) e uso de substâncias injetáveis (questão 8). Em todas as sete primeiras questões, o indivíduo deve assinalar um escore para cada substância, sendo uma resposta "sim" ou "não" à primeira e à última, e respostas em escala Likert de frequência nas demais questões (por exemplo, "nunca", "1 ou 2 vezes", "mensalmente", "semanalmente", "diariamente ou quase todos os dias"). Na presente amostra, a consistência interna do instrumento pelo coeficiente alfa foi 0,88, quando considerado o total de itens.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda alguns pontos de corte no instrumento, que podem ser utilizados para rastreio de possíveis transtornos. No caso da substância álcool, pontuações de 0 a 10 são classificadas como abstêmio ou uso leve, de 11 a 26 pontos, como uso moderado e 27 ou mais pontos como uso pesado. Para as demais substâncias, a sugestão da OMS é classificar como abstêmio ou uso leve de 0 a 3, como uso moderado de 4 a 26 e como uso pesado a partir de 27.

Questionário abreviado de avaliação da qualidade de vida - WHOQOL-bref (The WHOQOL Group, 1998). Trata-se de um instrumento de autorrelato que contém 26 itens que avaliam aspectos gerais (dois itens) e específicos (24 itens) da QV das pessoas. Os itens específicos são distribuídos em quatro domínios: físico, psicológico, relações sociais e meio ambiente. Todos os itens são pontuados em uma escala Likert de 1 a 5 pontos. No presente estudo, a consistência interna do WHOQOL-bref foi avaliada por meio do coeficiente alfa, sendo 0,84 para a escala total, 0,73 para o domínio físico, 0,76 para psicológico, 0,80 para relações sociais e 0,77 para meio ambiente.

Procedimentos

O projeto foi, previamente, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade São Francisco. Realizou-se a coleta de dados por meio do recurso Google Docs, que permitiu a criação de um questionário on-line no qual se disponibilizaram os instrumentos para aplicação. O link foi divulgado em uma rede social (Facebook), na página principal do primeiro autor, e permaneceu disponível por 15 dias. O texto que antecedia o link informava a natureza acadêmica da pesquisa e sua autorização pelo Comitê de Ética em Pesquisa, além do caráter voluntário dela. Ao acessar, cada participante se deparou com um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que descrevia os objetivos e a natureza do estudo, e, somente após confirmação de ter 18 anos ou mais e estar de acordo com o termo de consentimento, os participantes tiveram acesso aos instrumentos de pesquisa.

Análises dos dados

Na descrição dos dados, empregaram-se estatísticas descritivas (média, frequência, desvio padrão). O pressuposto da normalidade dos dados foi investigado por meio do teste Komogorov-Smirnov, que revelou desvios significativos da normalidade em algumas das variáveis, como mostra a Tabela 1. Com base nesse resultado, empregaram-se estratégias de análise robustas, a fim de minimizar vieses nas estimativas paramétricas dos modelos (Erceg-Hurn & Mirosevich, 2008). O relacionamento linear entre as variáveis do presente estudo foi investigado a partir de duas abordagens: bivariada e multivariada. Para o primeiro caso, o coeficiente ordinal rho de Spearman foi empregado para quantificar a força de associação entre as variáveis. Para o segundo caso, empregaram-se regressões lineares multivariadas combinadas ao método de reamostragem (bootstrap) para predizer as dimensões da QV a partir das nove subescalas do instrumento ASSIST (tabaco, álcool, maconha, cocaína, estimulantes, sedativos, inalantes, alucinógenos e opiáceos). A reamostragem tende a produzir melhores aproximações em relação à distribuição teórica na qual se baseiam os testes estatísticos (F e t) empregados no procedimento da análise de regressão multivariada (Erceg-Hurn & Mirosevich, 2008). Tendo em vista o reduzido tamanho amostral (n = 109), possíveis desvios da normalidade e a grande quantidade de preditores em cada modelo (nove), optou-se por relatar o coeficiente R2 ajustado para quantificar a variância explicada de cada variável dependente. Esse coeficiente tende a ser menos enviesado em tamanhos amostrais pequenos. As análises foram conduzidas por meio do programa IBM SPSS 20.

 

Resultados

A análise descritiva das variáveis é apresentada na Tabela 1. Especificamente, a amostra apresentou uma tendência a reduzidos escores nas subescalas do instrumento ASSIST (assimetria positiva) e uma tendência a altos escores nas dimensões do instrumento WHOQOL-bref (assimetria negativa). As substâncias do ASSIST com maior variabilidade (desvio padrão) de escores endossados foram maconha, tabaco e álcool, em ordem decrescente.

Em seguida, realizou-se uma análise mais detalhada das variáveis do ASSIST, com o propósito de investigar as prevalências de abstêmio ou uso leve, uso moderado ou uso pesado para cada substância. Os achados estão descritos na Tabela 2. Pode-se perceber que as substâncias mais relatadas foram tabaco, álcool e maconha, com prevalências bastante similares nas três categorias (exceto por não ter havido nenhum caso de uso pesado para maconha). Para as demais substâncias, a maioria dos casos foi classificada na categoria abstêmio ou uso leve, alguns casos (entre 2% e 17,2%) na categoria uso moderado e nenhum caso (exceto hipnóticos, com um caso) na categoria uso pesado.

A etapa seguinte foi a avaliação bivariada das relações lineares entre as variáveis por meio do coeficiente ordinal de Spearman. Os resultados estão disponíveis na Tabela 3. Observa-se que, de maneira geral, as correlações entre o uso de substâncias e a QV foram de magnitude bastante pequena, ainda que a tendência tenha sido um padrão de relacionamento negativo. Os coeficientes mais expressivos ocorreram para a correlação entre o uso de cocaína e a dimensão ambiente do WHOQOL (rho = −0,31) e entre o uso de sedativos e todas as dimensões do WHOQOL, físico (rho = −0,30), psicológico (rho = −0,26), social (rho = −0,22), ambiente (rho = −0,23) e total (rho = −0,25). Mesmo a correlação entre os escores totais de ambos os instrumentos - variáveis essas com maior variância em comparação às demais - revelou-se de baixa magnitude (rho = −0,14).

Embora os coeficientes de correlação sejam informativos sobre a relação entre as variáveis estudadas, trata-se de um tipo de análise bivariada que não controla os tamanhos de efeito pela variância compartilhada com outras variáveis potencialmente relacionadas. Assim, análises de regressão linear multivariada foram conduzidas para estimar a relação parcial única de cada substância com as dimensões da QV. Foram cinco os modelos multivariados de regressão linear: quatro predizendo cada dimensão do WHOQOL-bref (físico, psicológico, social e ambiente) e um predizendo o escore total do WHOQOL-bref. Em cada modelo, os preditores foram as variáveis do ASSIST, ou seja, os escores totais de uso das substâncias tabaco, álcool, maconha, cocaína, estimulantes, inalantes, sedativos, alucinógenos e opiáceos. A inspeção da redundância entre os preditores a partir do coeficiente de tolerância não revelou nenhum valor abaixo de 0,10, não sendo, portanto, necessário excluir variáveis do modelo.

Os resultados dessas análises se encontram na Tabela 4. De maneira geral, o uso de substâncias se mostrou capaz de explicar uma parcela ínfima da variância das dimensões da QV, entre 3% (social e total) e 11% (ambiente). Apenas o modelo predizendo a dimensão ambiente se mostrou significativo, sendo os preditores com betas significativamente distintos de 0 o uso de cocaína (−0,35) e de sedativos (−0,27). É também digno de nota que o uso de sedativos apresentou um padrão consistente de relacionamento negativo (de pequeno a moderado) com as dimensões do WHOQOL-bref, mesmo após controlar a influência do uso das demais substâncias.

 

Discussão

O presente estudo possui dois conjuntos de achados principais. O primeiro deles, central ao objetivo do presente trabalho, diz respeito às associações lineares encontradas entre o uso de substâncias e a QV. O segundo, por sua vez, diz respeito às prevalências de uso leve/abstinência, uso moderado e uso pesado encontradas.

Tanto as análises correlacionais quanto as regressões multivariadas apresentaram resultados mistos no que se refere ao possível efeito do uso de substâncias na QV dos indivíduos. Mais especificamente, apenas o uso de cocaína e de sedativos esteve relacionado às dimensões do WHOQOL. No caso da cocaína, foi encontrada uma relação linear negativa de magnitude, na faixa de pequena a moderada (β= −0,35), com o domínio ambiente. Esse achado revela que, na presente amostra, o uso de cocaína esteve associado a uma maior percepção negativa da qualidade do ambiente de vida do indivíduo, incluindo sua segurança e seus recursos em geral (financeiros, saúde, transporte, residência). Outros estudos relataram que o uso de cocaína tende a impactar a saúde mental (Haasen, Prinzleve, Gossop, Fischer, & Casas, 2005), especialmente entre indivíduos com histórico prévio de depressão (Helmus, Downey, Wang, Rhodes, & Schuster, 2001) e durante a abstinência após uso intenso (Brown et al., 1998). Não obstante, no presente estudo, o prejuízo se revelou específico ao domínio ambiente, e não à saúde física, aos afetos positivos e negativos ou às relações com outras pessoas significativas. Um aspecto digno de nota, não obstante, é a composição da amostra do presente estudo, que incluiu quase 90% de indivíduos brancos, sendo também um terço com renda acima de R$ 8.000,00. Assim, é possível que os prejuízos experienciados por esses indivíduos sejam atenuados pela disponibilidade de alguns recursos dos quais não dispõe a maioria da população. Esse resultado, portanto, deve ser visto com ressalva. Sendo um delineamento correlacional, não se pode negar também um possível efeito reverso, responsável pelo relacionamento entre essas variáveis. Ou seja, ambientes desestruturados e com poucos incentivos ao desenvolvimento pessoal e profissional podem facilitar o consumo de cocaína.

Um preditor que merece uma análise pormenorizada é o uso de sedativos. Essa categoria de substâncias esteve negativamente relacionada a todos os domínios do WHOQOL - físico, psicológico, social e ambiente, além do escore total no instrumento. Uma possibilidade é que, dentre as substâncias analisadas, essa foi a mais prejudicial à QV das pessoas da amostra. Não obstante, a modelagem empregada no presente estudo não revela, por si, a natureza do verdadeiro efeito causal que conecta ambas as variáveis. Nesse caso, é possível que o prejuízo na QV entre os usuários de ansiolíticos e sedativos seja prévio ao contato com a substância. De fato, há evidências de que os principais motivos que levam as pessoas a usar esse tipo de medicamento incluem uma reduzida QV, envolvendo diversos aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais (Zagozdzon, Kolarzyk, & Marcinkowski, 2013). Os achados aqui relatados, portanto, indicam uma associação consistente, mas não permitem estabelecer o direcionamento causal da relação, sendo possível que a reduzida QV seja exatamente o motivo que leva esses usuários a procurar medicamentos ansiolíticos e sedativos. É também possível que o uso dessas substâncias, quando sem o devido acompanhamento médico, por meio da automedicação, seja parcialmente responsável por uma queda na QV, efeito que poderia ser abordado em novas pesquisas.

O padrão associativo do uso de substâncias estimulantes também merece uma análise à parte. Todos os coeficientes de regressão padronizados foram positivos, mas de baixa magnitude (0,13-0,30), além de não alcançarem significância estatística. Como a falta de significância indica que o intervalo de confiança para os tamanhos de efeito incluiu o zero, as associações podem se dever ao acaso. Todavia, é possível também que essas relações positivas de baixa magnitude, de fato, existam, mas não foram detectadas apenas em função do reduzido poder estatístico e tamanho amostral. Nesse caso, embora inesperadas, as associações positivas podem ser dever à composição idiossincrática da amostra, composta por jovens, majoritariamente, brancos e com condição econômica favorável. Assim sendo, a situação econômica pode ser a variável exógena responsável por ambos os fenômenos, ou seja, ter dinheiro para comprar estimulantes e ter condições de vida favoráveis. Essa variável confundidora precisaria de controles adequados em investigações com amostras ampliadas em que houvesse maior diversidade socioeconômica. Ressalta-se que, existindo endogenia (isto é, uso de estimulantes e QV estando associados em função de serem ambos influenciados pelo nível socioeconômico), a relação entre as variáveis pode se mostrar nula ou mesmo inversa (Antonakis, Bendahan, Jacquart, & Lalive, 2010). Esse deve ser um aspecto ainda a ser mais bem investigado.

O segundo resultado diz respeito às estimativas de prevalência de uso encontradas para cada substância do questionário ASSIST. Embora a maioria das estimativas de prevalência seja coerente com os resultados relatados em estudos prévios (Medeiros, Rediess, Hauck Filho, Martins, & Mazoni, 2012; Peuker, Fogaça, & Bizarro, 2006; Wagner & Andrade, 2008), são as exceções que chamam a atenção. Verifica-se que uma parcela bastante elevada - acima de 50% - foi classificada na categoria de uso de nível moderado do ASSIST para as substâncias tabaco, álcool e maconha. Embora seja relativamente mais comum o abuso de álcool entre jovens quando comparados a outros indivíduos (cf. Peuker et al., 2006), o uso moderado dessas três substâncias ficou muito acima do relatado em outros estudos (Medeiros et al., 2012; Wagner & Andrade, 2008). Apenas para ilustrar, na pesquisa de Medeiros et al. (2012), com uma amostra universitária do Rio Grande do Sul, a proporção de estudantes incluídos nessa mesma categoria do ASSIST foi de 19,2% para tabaco, 12,9% para álcool e 7,4% para maconha. Os índices aqui encontrados, portanto, chamam a atenção por destoarem do padrão típico de uso de substâncias entre jovens brasileiros. São necessários novos estudos com amostras maiores e mais representativas, a fim de verificar se essa é uma tendência para determinados grupos populacionais ou uma idiossincrasia da presente amostra.

Uma importante limitação do presente estudo é a composição amostral, como já mencionado. Há evidências de que a condição socioeconômica atua como um moderador na relação entre traços de personalidade e uso de substâncias (Sutin, Evans, & Zonderman, 2013). Ou seja, características que são fatores de risco em algumas parcelas da população podem não ser em outras, por haver a disponibilidade de recursos que amenizam sua influência negativa. A título de agenda de pesquisa, seria importante, portanto, buscar replicar o presente estudo com amostras economicamente mais diversificadas, a fim de constatar se os efeitos e as prevalências aqui encontrados se sustentam em outros contextos. Além disso, seria desejável investigar se os efeitos aqui relatados se mantêm quando se investiga o fenômeno em amostras de outras regiões do Brasil. De maneira geral, amostras ampliadas em estudos futuros serão uma peça central para julgar a consistência das estimativas paramétricas aqui relatadas.

Outra limitação digna de nota se deve ao não controle de outras variáveis que podem interferir na relação entre uso de substâncias e QV. Especificamente, a presença de transtornos mentais pode impactar essa relação, motivo pelo qual esse aspecto deve ser contemplado em investigações futuras. Por exemplo, quando se controla a presença de transtornos mentais, é possível que alguns coeficientes de regressão se mostrem maiores do que aqueles aqui relatados, caso existam efeitos de supressão (Maasen & Bakker, 2001). Um efeito de supressão ocorre quando a relação entre as variáveis X e Y é atenuada em função da omissão da variável Z no modelo. Se a presença de algum transtorno mental atuar como variável supressora, então os resultados poderão ser um pouco diferentes no teste do mesmo modelo em uma amostra mista comunitária e de pacientes psiquiátricos. No presente estudo, não houve o controle no sentido de diferenciar indivíduos com ou sem história de transtornos mentais ou outras condições médicas. Por isso, investigar a estabilidade dos parâmetros do mode-lo aqui relatados em amostras de outros tipos ainda se faz necessário.

Vale mencionar que se deve ter cautela na interpretação dos achados do presente estudo como se fossem evidência causal de relação entre as variáveis. Os coeficientes aqui relatados caracterizam a relação parcial entre os preditores e as variáveis dependentes no contexto do modelo, mas não necessariamente refletem a verdadeira natureza e o fluxo causal atuando sobre essas variáveis. É perfeitamente possível que exista uma relação bidirecional, de mútua influência, entre uso de substâncias e QV. Tentativas de generalização dos resultados aqui descritos devem ser feitas tendo essa importante limitação em vista.

O estudo representa uma contribuição à literatura nacional sobre o uso de substâncias e a QV, identificando associações específicas entre o uso de determinadas drogas e prejuízos em dimensões da QV. Mesmo sob a possibilidade de uma amostra idiossincrática, os achados aqui relatados ilustram a importância de investigar em maior profundidade as associações entre as variáveis em diversos grupos populacionais sem incorrer em generalizações inválidas.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Luiz Felipe Ayres Bernardes
Rua Major Querino Pereira de Morais, 124, Centro
Itapetininga, SP, Brasil. CEP: 18200-060
E-mail: luizbernardes.psi@gmail.com

Submissão: 19.7.2016
Aceite: 2.5.2018