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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.20 no.2 São Paulo May/Aug. 2018

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v20n2p213-224 

ARTIGOS
PSICOLOGIA SOCIAL

 

Sobrepeso e controle de peso: pensamento leigo e suas dimensões normativas

 

 

Ana Maria JustoI; Brigido Vizeu CamargoII; Andréa Barbará da Silva BousfieldIII

IUniversidade Federal do Espírito Santo, UFES, ES, Brasil
IIUniversidade Federal de Santa Catarina, UFSC, SC, Brasil
IIIUniversidade Federal de Santa Catarina, UFSC, SC, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, pretende-se descrever as representações sociais (RS) ligadas ao excesso de peso e às práticas de controle do peso corporal. Realizaram-se 40 entrevistas semidiretivas. Participaram 20 homens e 20 mulheres, entre 30 e 57 anos, com e sem excesso de peso. A análise dos dados envolveu classificação hierárquica descendente com o auxílio do software IRaMuTeQ. Os resultados organizam-se em cinco classes lexicais que ilustram dimensões representacionais, refletindo diferentes formas de internalização dos padrões corporais. A gordura é tratada com distanciamento afetivo e parece difícil falar em excesso de peso sem abordar sua origem comportamental e necessidade de mudança. As RS das práticas de controle de peso ancoram-se em nor- mas de saúde. A alimentação é saliente e revela a polaridade controle versus descontrole. O ideal de saúde, pautado na responsabilização individual, reitera a culpabilização do indivíduo acima do peso pela sua condição, o que fortalece os estereótipos, dificultando o controle do peso.

Palavras-chave: representações sociais; corpo; sobrepeso; controle de peso; normas sociais.


 

 

Introdução

O Brasil, que poucas décadas atrás investia em campanhas de combate à fome, hoje desenvolve programas que visam controlar o aumento de peso excessivo da população. O número de pessoas obesas tem aumentado significativamente. No Brasil, o percentual de obesos era de 18% em 2014 (Brasil, 2015), e atualmente metade da população encontra-se com o peso acima do considerado saudável, o que pode resultar em fortes implicações à saúde e à qualidade de vida, sobretudo quando se constata a grande dificuldade das pessoas em controlar o peso ou emagrecer. O sobrepeso e a obesidade vêm ao debate em nossa sociedade como questões de saúde pública, embora nem sempre tenha sido assim. As mudanças no estilo e na expectativa de vida ocorridas nos dois últimos séculos repercutiram em uma transição epidemiológica, influenciaram diretamente os padrões corporais e configuram-se como um fenômeno social (Ferreira & Benicio, 2015).

O corpo humano, como um objeto da saúde, insere-se inevitavelmente em sistemas sociais históricos e culturalmente situados que se constroem a partir da interação e comunicação interpessoal e grupal. Mais do que um objeto natural, o corpo humano pode ser entendido como uma estrutura picossociocultural e funciona como um veículo simbólico, permitindo interação social. As representações, assim, assumem um papel importante na elaboração de maneiras coletivas de ver e viver o corpo, difundindo modelos de pensamento e de comportamento a ele relacionados (Jodelet, 1994).

Utiliza-se neste estudo a teoria das representações sociais (TRS) como grade de leitura para o fenômeno em questão. Segundo Vala e Castro (2013), a TRS é uma abordagem teórica voltada aos processos por meio dos quais os indivíduos em interação social absorvem as inovações e constroem explicações acerca dos objetos sociais. As representações sociais (RS) consistem num tipo de pensamento leigo ou do senso comum e são formadas para tornar familiar o incomum, permitindo que se dê sentido aos fatos novos ou desconhecidos (Moscovici, 2012). Envolvem os saberes que se fazem nas relações e práticas cotidianas de indivíduos e grupos, servindo como guias para a ação e para a leitura da realidade, na medida em que caracterizam pertenças e definem proximidades e diferenças (Jodelet, 2001). Elas possibilitam que se dê sentido ao comportamento, considerando as pertenças grupais. Além de guiarem o comportamento, elas o significam (Vala & Castro, 2013; Wagner, 2015).

Orientados pelas RS que os indivíduos têm sobre o corpo, estes aderem a diferentes práticas de modificação e cuidado com ele. Por práticas de controle de peso, entendem-se, no presente estudo, aquelas ações cotidianas que visam à redução ou manutenção do peso, ou seja, práticas por meio das quais as pessoas buscam emagrecer ou manter seu peso de modo a não engordar. Especialmente no que se refere ao emagrecimento, o controle de peso consiste num fenômeno complexo e com insucesso recorrente, que, muito além do estabelecimento de balanços energéticos negativos, exige que se estabeleçam modificações comportamentais de modo a interferir de maneira efetiva e definitiva nos hábitos de vida (Leão et al., 2015).

Portanto, com o amparo da psicologia social - mais especificamente da TRS -, buscou-se aprofundar o conhecimento acerca desse fenômeno social que envolve as crenças e normas que interferem na relação das pessoas com seu corpo e nas práticas relativas a ele. Ao mesmo tempo que o acúmulo excessivo de peso pode trazer agravantes à saúde, também são evidentes as repercussões psicossociais, na sua maior parte negativas, já identificadas na literatura (Araújo, Pena, & Freitas, 2015). As normas estéticas e de saúde ressaltam a importância de um corpo magro e ativo. No entanto, parece haver outras crenças ou dimensões do conhecimento socialmente partilhadas que contradizem tais normas e corroboram a prevalência do excesso de peso na população. Nesse sentido, no presente artigo pretende-se explorar e descrever o conhecimento leigo sobre o excesso de peso, relacionando-o com as RS relativas às práticas de controle do peso corporal.

 

Método

Realizou-se um estudo de casos de natureza exploratória e descritiva, a partir de entrevistas semidiretivas.

Participantes

Participaram deste estudo 20 homens e 20 mulheres, trabalhadores administrativos da Região Sul do Brasil, com idade entre 30 e 57 anos [M = 38 anos e 5 meses; DP = 7 anos e 9 meses]. Como critérios de inclusão consideraram-se: idade de 30 a 59 anos, concordância em participar e residir na região da capital. Como critério de exclusão adotou-se o seguinte critério: exercer atividade profissional relacionada à área da saúde, educação física ou ao tema do estudo. Todos os participantes tiveram o índice de massa corporal (IMC) calculado a partir do peso e da altura autorreferidos ao pesquisador durante a entrevista e então foram divididos em dois grupos pareados: com excesso de peso e sem excesso de peso. Estabelece-se que pessoas com IMC igual ou superior a 25 estão com sobrepeso, e aquelas com IMC igual ou superior a 30 são consideradas obesas. Segundo o Ministério da Saúde (2017), "excesso de peso" é a nomenclatura utilizada para definir a condição vivida por ambos. Assim, o grupo de participantes com excesso de peso teve média de IMC de 31,44 [DP = 6,60] e o grupo de participantes sem excesso de peso teve média de IMC igual a 22,67 [DP = 2,62].

Técnicas e instrumentos para coleta dos dados

Utilizou-se a técnica de entrevista semidiretiva (Ghiglione & Matalon, 1993) desenvolvida a partir de perguntas norteadoras, que buscaram contribuir para os objetivos de pesquisa. As questões guia foram:

1) O que você pensa sobre o excesso de peso corporal?

2) O que você acha das pessoas que estão acima do peso?

3) Em sua opinião, o que define que uma pessoa é gorda?

4) E o que você acha que a sociedade pensa a respeito disso?

5) O que você pensa sobre as práticas de controle de peso?

6) Você procura fazer algo para controlar seu peso? O quê?

Ao final da entrevista, os participantes respondiam a uma escala de silhuetas (Kakeshita, Silva, Zanatta, & Almeida, 2009) com validade e fidedignidade adequadas à população brasileira, para avaliação da autoimagem e imagem ideal, e informavam seu peso e altura (para cálculo do IMC), assim como esclareciam algumas questões para a caracterização da amostra.

Procedimentos

Os participantes foram contatados nos locais de trabalho vinculados a instituições públicas federais e municipais de uma capital da Região Sul do Brasil. Por conveniência e disponibilidade em contribuir para o estudo, selecionaram-se três instituições de ensino e um órgão executivo municipal. Em um contato inicial, realizava-se o convite para participar da pesquisa, e as entrevistas ocorriam em horário previamente agendado, assegurando sempre um ambiente que preservasse o sigilo das informações do entrevistado. Todas as entrevistas de pesquisa foram gravadas e transcritas. A pesquisa obteve parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (Parecer n. 334.570 e Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) n. 16904213.6.0000.0121), e todas as diretrizes éticas foram seguidas.

Análise de dados

Os dados referentes à caracterização da amostra e do IMC foram submetidos à análise estatística descritiva. As questões referentes à entrevista foram organizadas em um corpus único bitemático (as questões de 1 a 4 compuseram a temática sobrepeso, e as questões 5 e 6, a temática controle de peso) submetido à análise textual básica, Classificação Hierárquica Descendente (CHD), realizada por meio do software IRaMuTeQ. A CHD indica contextos lexicais, associados ou não a variáveis descritivas dos produtores desse material, que, de acordo com Veloz, Nascimento-Schulze e Camargo (1999), podem ser considerados como aspectos de uma RS ou mesmo como indicadores de diferentes RS.

 

Resultados

O corpus "Entrevista" apresentou 175.333 ocorrências com 5.212 palavras distintas. A nuvem de palavras na parte superior esquerda da Figura 1 ilustra o corpus analisado, possibilitando identificar graficamente a saliência dos seus elementos principais, já que o tamanho e a centralidade das palavras são diretamente proporcionais à sua frequência.

A palavra "pessoa" foi a mais frequente nas entrevistas (n = 2.148), seguida de gordo (n = 1.339), gente (n = 994), coisa (n = 975) e comer (n = 901). Nota-se o papel central da ideia de "pessoa gorda" quando são abordados os temas sobrepeso ou controle do peso. Evidencia-se uma característica presente ao longo da maior parte das entrevistas que diz respeito ao distanciamento em relação ao fenômeno. Fala-se muito da pessoa gorda, num discurso que é usualmente em terceira pessoa e menos frequentemente a respeito de si próprio.

Salienta-se a prevalência da palavra gordo (n = 1.339) em relação a peso (n = 650), sobrepeso (n = 582), obesidade (n = 326) e obeso (n = 307). Gordo (ou gordinho) é a denominação utilizada ao longo das entrevistas pelos participantes para denominar as pessoas com excesso de peso. Outro destaque é o verbo de maior frequência: comer, seguido dos verbos saber (n = 721), dizer (n = 593), querer (n = 584) e falar (n = 572).

Após a análise lexical básica, o corpus "Entrevista" foi submetido a uma CHD, que desdobrou os 40 textos iniciais em 6.683 segmentos de texto e classificou 10.213 formas distintas que ocorreram numa frequência média de 22,91. A primeira partição distinguiu o sub-corpus que originou diretamente a classe "Comer" do restante do material textual (sub-corpus A). Numa segunda partição, o "sub-corpus A" foi dividido em dois sub-corpora: um relativo ao ser gordo e às suas implicações para a vida social (sub-corpus C) e outro que enfatiza as questões de saúde e práticas de emagrecimento (sub-corpus B). Na terceira e quarta partições, cada um desses sub-corpora foi dividido em duas classes distintas, de modo que se formaram ao total cinco classes: três associadas à temática do sobrepeso e duas associadas ao controle de peso corporal. A Figura 1 apresenta o dendograma com a decomposição do corpus nas cinco classes identificadas na análise, e, para cada classe, podem-se verificar as variáveis descritivas associadas, bem como as palavras mais significativas, ilustradas a partir de nuvens de palavras.

A classe "Comer" representa 15% do conteúdo analisado e esteve associada ao tema "Práticas de Controle de Peso", às mulheres e às pessoas com excesso de peso. Seu conteúdo gira em torno do comportamento alimentar e da descrição de alimentos, falando sobre o ato de comer a partir de antinomias. De um lado, o controle alimentar é expresso a partir de informações precisas a respeito dos alimentos considerados "saudáveis", e a adesão a uma prática alimentar adequada é vivida como algo gratificante e positivo. De outro lado, o hedonismo se mostra no descontrole alimentar, que acarreta acúmulo de gordura e aumento de peso. Comer é mais que nutrir o corpo e também um ato de prazer, de deixar-se levar pelas vontades, até chegar ao exagero. A alimentação depende do estado de espírito, reflete solidão e ansiedade vividas no cotidiano: "Porque tu podes ter esses momentos de estresse, momentos de ansiedade, que podem te gerar um certo descontrole na hora que tu vais te alimentar" (P12, mulher sem excesso de peso).

O caráter social do comportamento alimentar mostra-se quando são mencionadas as influências dos familiares e amigos na compra, no preparo e na ingestão de alimentos, bem como os eventos sociais que ocorrem ao redor da mesa. O controle é difícil e o alimento, por vezes, é considerado o grande vilão. O descontrole está associado à culpa e ao desejo de fazer diferente, como fica evidente no excerto da entrevista que se segue, em que a participante mostra-se numa espécie de dilema entre o que gosta de comer e o que deve comer: "Deus me livre, eu não sou nenhuma olho grande de comer tudo pela frente, mas eu sei que eu tenho que saber me reeducar porque tudo que eu estou comendo agora eu não estou gastando" (P05, mulher com excesso de peso). Tal fala evidencia a contradição entre o controle e o descontrole dentro de um mesmo discurso.

O sub-corpus que originou as classes 1 e 5 é associado à temática do "Sobrepeso" e aborda o gordo e a gordura sob duas perspectivas distintas - que se associam inclusive a características socioidentitárias diferenciadas, mas que se constroem a partir de um ponto em comum: a norma social que liga a beleza à magreza e desaprova as pessoas acima do peso.

A classe "Contra os Padrões" foi a de maior associação com a temática do "Sobrepeso" e está associada aos homens, às pessoas satisfeitas com sua silhueta e aos que se percebem com excesso de peso. Nesse contexto lexical, fala-se dos "gordos" como pessoas que estão fora do padrão de beleza imposto socialmente e difundido pela mídia, como ilustra o seguinte excerto: "Mas nessa sociedade, com esse padrão de beleza que fica toda a hora na novela e na televisão é difícil, a pessoa vai assistir uma novela das oito e aqueles padrões de beleza já estão estereotipados" (P03, homem com excesso de peso). Assim, o que define o sobrepeso é a avaliação negativa que as pessoas gordas recebem da sociedade, cujo preconceito dificulta relações de trabalho e também as aproximações amorosas. Os gordos, por causa desse processo de discriminação social, têm sua autoestima diminuída e tornam-se alvo de brincadeiras de mau gosto ou piadas ligadas à sua condição corporal.

O discurso presente nos excertos de texto próprios dessa classe é caracterizado pelo predomínio da fala em terceira pessoa, tanto quando se fala dos padrões sociais (a sociedade preconceituosa) quanto se mencionam as pessoas com excesso de peso (o gordo, os gordinhos), ainda que a classe esteja significativamente associada àqueles que na escala de silhueta se identificaram com excesso de peso.

Na classe "Gordura é Problema", por sua vez, a norma corporal é internalizada, mencionada explicitamente a partir da primeira pessoa do singular. Salienta-se que essa classe, além de representar a temática "Sobrepeso", está associada às mulheres e às pessoas que demonstraram insatisfação corporal. O padrão de beleza corporal mostra-se claramente na fala dos participantes, que declaram aderir a essa norma, ressaltando a importância de manter um corpo magro e, para isso, recorrer às práticas de controle de peso. Aqui, a avaliação em termos do que é gordo/magro e belo/feio não é feita por terceiros, mas sim pelo próprio indivíduo, com o auxílio do feedback obtido a partir do tamanho de suas roupas ou de sua imagem no espelho. Perceber-se acima de um determinado limite de peso ou com gorduras localizadas evidentes é sentir-se gordo, o que, por sua vez, é sinônimo de desconforto: "Isso vai fazendo com que você se sinta com uma autoestima menor, a minha roupa não está servindo mais... estou ficando mais velha... que é o que me incomoda, a gordura localizada incomoda porque é uma coisa ali que você coloca uma roupa e já não fica bem" (P02, mulher sem excesso de peso).

"Gordo", assim como na classe anterior, também tem frequência saliente e é predominantemente representado como "ele". É considerado como alguém inadequado, com problemas físicos e emocionais, frequentemente associado às ideias de tristeza, apatia, lentidão, restrições e exclusão.

A outra parte do corpus, formada pelas classes 3 e 4, tem a saúde como plano de fundo, e a representação do excesso de peso como um malefício à saúde justifica a necessidade das práticas de controle do peso. A classe "Questão de Saúde" está associada à temática do sobrepeso, aos homens, às pessoas sem excesso de peso e que se percebem sem excesso de peso. Ela trata de uma representação mais objetiva, na qual o excesso de peso decorre de hábitos inadequados, principalmente o sedentarismo e os exageros alimentares, como também de dificuldades emocionais e/ou de uma rotina de trabalho exigente demais: "Acho que o sobrepeso está ligado basicamente a três coisas: alimentação, atividade física e o que eu posso chamar de saúde mental" (P18, homem com excesso de peso). A atribuição de causalidade faz parte dessa classe, que enumera os agentes causadores do excesso de peso, sendo manifesta a interdependência entre esses agentes causais no discurso dos participantes.

O sobrepeso é associado diretamente a problemas de saúde, sejam problemas atuais ou que venham a aparecer futuramente, e considerado um fator de risco para doenças cardiovasculares: "Eu tenho, eu sou bastante preocupado com isso, eu tenho uma preocupação tanto comigo como com os outros com a questão do sobrepeso porque eu associo muito o sobrepeso a problemas de saúde" (P41, homem sem excesso de peso). Para além das doenças propriamente ditas, as limitações funcionais estão também presentes nessa classe, expressando atitudes negativas a respeito do sobrepeso, justificadas pelos inúmeros prejuízos à saúde e à qualidade de vida das pessoas que se encontram nessa condição.

Por fim, a classe "Perder Peso", associada à temática das "Práticas de Controle de Peso" e aos homens, fala sobre a necessidade de manter a qualidade de vida com o auxílio do controle de peso: "Perder peso, fazer atividade física para ter qualidade de vida adequada, acompanhar o ritmo do dia a dia que não é fácil manter a saúde em dia para pelo menos viver até os 80 anos com uma boa qualidade de vida" (P18, homem sem excesso de peso).

A necessidade de controle sustenta-se na ideia de que existem certos padrões ou limites de peso impostos tanto pela medicina e quanto pelas próprias pessoas para sentirem-se bem. O peso corporal deve ser controlado, o que pode se dar tanto pela manutenção como pela perda ponderal. É recorrente o uso da expressão "conseguir emagrecer", e verifica-se que o emagrecimento é imbuído de uma responsabilização individual, pois, conforme a fala dos participantes, "tem que ter força de vontade" e "tem jeito para tudo".

O controle de peso e o sucesso no emagrecimento são viabilizados a partir de dois caminhos: aderir a hábitos "saudáveis" ou recorrer a tratamentos com auxílio de profissionais especializados. A primeira opção configura-se no âmbito individual e está baseada nas informações que são difundidas pela mídia a respeito de saúde e controle de peso. Trata-se principalmente de aderir a uma rotina de exercícios, em que prevalecem as caminhadas e a ida à academia, com prática de musculação. Alguns participantes salientam a importância de escolher uma atividade física que esteja associada ao prazer: "Eu acho que, se tu ajustar a tua dieta e se propuser a fazer alguma atividade física e reduzir, eu acho que consegue grandes ganhos, grandes perdas de peso" (P38, homem sem excesso de peso).

Apesar de a combinação exercício-alimentação aparecer como forma de controlar o peso, ganham destaque nessa classe as falas relativas a um emagrecimento que se am-para em profissionais especializados, mais especificamente no acompanhamento médico, já que pode ser perigoso buscar emagrecer sem haver esse tipo de acompanhamento, especialmente nos casos em que é necessário perder muitos quilos, como se evidencia no trecho a seguir: "Aí já parte para uma questão médica, a questão de acompanhamento médico para que você consiga perder peso ou até mesmo um extremo, que chegue a fazer uma redução do estômago" (P03, homem com excesso de peso).

O controle de peso é considerado nessa classe como positivo e necessário, quase que unanimemente. Quem já adere às práticas ressalta seus benefícios. Por sua vez, aqueles que não aderem mostram a intenção de promover essa mudança de hábitos num futuro próximo. Tal intenção de controlar o peso se justifica aqui pela lógica de prevenção de doenças e promoção de saúde.

 

Discussão

O excesso de peso objetifica-se na figura da pessoa gorda - ou gordinho, que é a denominação utilizada pelos participantes. A valorização da magreza é hegemônica e o sobrepeso considerado um desvio à norma. Entretanto, a análise das RS mostra que as teorias leigas sobre o assunto revelam duas dimensões normativas distintas.

De um lado, há aqueles que consideram como ponto central o padrão social que é difundido largamente pela mídia (Justo, Camargo, & Marcon, 2013). Nesse contexto, o que define o sobrepeso não é o excesso de peso em si, mas a avaliação proveniente da comparação em relação aos padrões que as pessoas recebem da sociedade. Tal representação pauta-se em normas descritivas e subjetivas, ligadas diretamente a uma pressão externa em relação ao que é desejável ou não (Aronson, Wilson, & Akert, 2015).

Todavia, a outra dimensão se refere a uma norma pessoal (Bertoldo & Castro, 2016), em que o controle da silhueta é internalizado e perceber-se acima de um determinado limite de peso reflete em desconforto com o próprio corpo. Trata-se de um julgamento que é feito pelo próprio indivíduo e depende menos do feedback ou da pressão externa, estando atrelado a normas já internalizadas. Nesse sentido, concordamos com Wagner (2015) quando sugere que o conceito de RS possibilita a integração entre níveis individuais e sociais na compreensão das condutas humanas.

São expressos nas entrevistas dois posicionamentos distintos: contrário ou favorável à norma estética vigente, que implicam também dois modos distintos de avaliar as pessoas com excesso de peso, os "gordos". Um dos papéis da RS é explicar os fenômenos relevantes ao contexto social, e, nesse sentido, a atribuição causal é inerente ao ato de representar um objeto. Por que as coisas são do jeito que são? Toda a resposta envolve teorias de senso comum e consequentemente RS. Aqui se apresentam duas formas de explicar o fenômeno do sobrepeso. A primeira, que se refere à classe "Contra os Padrões", ressalta a atribuição externa ao fenômeno: é a sociedade que impõe padrões estéticos extremamente rígidos, que configuram prejuízo aos gordos. Por sua vez, a segunda explicação, típica da classe "Gordura é Problema", evidencia uma atribuição interna, em que os gordos seriam os responsáveis por sua condição atual, pessoas com problemas e que acabam por gerar problemas ainda mais graves em virtude da sua condição atual.

Quando se consideram essas duas maneiras de expressão da norma corporal, observa-se que elas não estiveram associadas à condição corporal atual (IMC), mas sim ao sexo e à imagem corporal. A primeira é característica dos homens e daqueles com maior satisfação corporal; e a segunda, das mulheres e daqueles menos satisfeitos com seu corpo. Ambos participam de um mesmo contexto social, porém as mulheres teriam maior tendência a internalizar as normas, pois sofrem uma maior e repetida pressão social em relação ao corpo (Morin & Dany, 2010). Destaca-se ainda que, nos últimos anos, essa internalização expressa-se por meio de normas de saúde, mais valorizadas que as estéticas (Justo, Camargo, & Alves, 2014) e amplamente disseminadas pela mídia, tão ou mais severas que os padrões de beleza a indicar ideais de corpo e de comportamentos.

É quase inexistente no discurso a identificação pessoal com a categoria social em questão. Ou seja, o gordo é ele. A articulação entre identidade e diferença é forma elementar do pensamento natural e social (Jodelet, 1998). A gordura em excesso é atribuída ao outro, ao "não eu", e, portanto, deve permanecer como fenômeno estranho, ou afastado, pois veicula características opostas àquelas que exprimem o que é associado à identidade. Em termos afetivos, tal deslocamento do "eu" para o "ele" implica um distanciamento em relação ao objeto em questão.

Quando se aborda o excesso de peso dentro do escopo da saúde, remete-se à terceira dimensão representacional expressa no estudo. Na CHD, verificou-se que esta é a mais próxima das práticas de controle de peso, a dimensão pragmática da RS. São manifestas atitudes negativas a respeito do sobrepeso, justificadas pelos inúmeros prejuízos à saúde e à qualidade de vida das pessoas que se encontram nessa condição. A ideia presente nessa dimensão representacional remete ao tradicional ditado "Mens sana in corpore sano", que associa a necessidade de uma mente saudável em um corpo sadio. Nesse ínterim, verifica-se uma noção de saúde mental manifesta no corpo. Tal relação aparece tanto por parte das pessoas sem excesso de peso, que consideram que os gordos são pessoas com problemas, quanto das pessoas com excesso de peso, que identificam aspectos emocionais atrelados ao seu ganho de peso.

Vale salientar que a noção de saúde depende de um prisma de leitura da realidade que só pode ser compreendido a partir de uma contextualização social e cultural. Saúde e doença, mais do que estados físicos do indivíduo, implicam normas e valores, e, como tal, são dependentes da cultura e dos conhecimentos partilhados por um grupo ou uma sociedade (Herzlich, 2017). A saúde é um valor fundamental na sociedade ocidental associado à metáfora do autocontrole (Joffe, 2015). Ou seja, saúde não é resultado de sorte, hereditariedade ou educação, mas resulta da adesão aos comportamentos promotores de saúde. Consequentemente, há um veredicto moral que associa a falta de saúde à inabilidade de exercitar esse controle. O peso corporal torna-se o símbolo e sinal de autocontrole, já que ele permite inferir rapidamente, a partir de estereótipos, o estado de saúde.

Parece difícil pensar em excesso de peso sem falar da sua origem comportamental ligada ao consumo alimentar, que remete diretamente ao controle de peso. Muito além dos aspectos nutricionais e funcionais, a alimentação envolve a cultura e reflete também aspectos morais e ideológicos (Fischler, 2013). Ela ocupa parte importante das entrevistas e revela antinomias que se mostram no binômio controle-descontrole. Essa polaridade organiza um pensamento dilemático em relação à alimentação, propondo um confronto de ideias que pode ser compreendido a partir do conceito de themata, criando uma fonte de tensão (Vala & Castro, 2013). Quando se pensa a alimentação em função da dicotomia controle versus descontrole, ela se polariza em termos de bem ou mal. Com isso, a noção do prazer alimentar é identificada como algo errado, associado ao sentimento de culpa, tal qual propõe Fischler (2013). O prazer ligado ao excesso alimentar também caracteriza o descontrole e envolve o uso de metáforas. A "boa" alimentação, por sua vez, é controlada e leva em conta os componentes dos alimentos, em detrimento do sabor ou do modo de preparo das refeições, ideia que remete a uma alimentação "medicalizada", que, nas palavras de Fischler (2013), tor-na-se artificial e desnaturalizada, já que as informações e o conhecimento técnico-científico preponderam sobre aspectos sensoriais.

As RS emergentes no estudo manifestam duas dimensões distintas da norma social, refletindo diferentes graus de internalização dos padrões corporais. A gordura é usualmente tratada por meio de um distanciamento afetivo, o que pode ter influência direta no aumento de peso populacional. Embora se trate de um assunto a respeito do qual as pessoas estejam implicadas, seu caráter aversivo resulta na não identificação com essa condição. Ou seja, embora o excesso de peso seja unanimemente considerado prejudicial à saúde, as pessoas não se percebem em risco. Reitera-se que, dentro de uma perspectiva psicossocial, não é a partir do corpo real ou físico, mas sim a partir do corpo simbólico, que se estabelecem os pensamentos, os afetos e as ações.

No que se refere à população de participantes deste estudo, claramente não há dificuldades no que diz respeito às informações sobre saúde e nutrição, mas em relação à pressão social que envolve o "ser gordo". Pondera-se que as campanhas que insistem em ressaltar os aspectos negativos do excesso de peso para a saúde correm o risco de produzir menor efeito à mudança de comportamento da população, uma vez que, por causa da pressão normativa excessiva, a identificação com essa condição corporal é dificultada. Portanto, são necessárias campanhas que não apenas consolidem a norma, mas que a flexibilizem, aproximando-a das pessoas "reais".

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Ana Maria Justo
Rua Natalina Daher Carneiro, 176, ap301-B
Vitória, ES. CEP: 29060-490
E-mail: justoanamaria@gmail.com

Submissão: 17.7.2017
Aceite: 4.4.2018