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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.20 no.2 São Paulo maio/ago. 2018

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v20n2p309-324 

ARTIGOS
PSICOLOGIA CLÍNICA

 

Crenças sobre o câncer infantil: percepção de sobreviventes e mães

 

 

Elisa Kern de CastroI; Franciele Cristiane PelosoII; Luisa VitalIII; Maria Júlia ArmiliatoIV

IUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos, RS, Brasil
IIUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos, RS, Brasil
IIIUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos, RS, Brasil
IVUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos, RS, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As crenças sobre a doença referem-se a esquemas mentais que as pessoas constroem a partir de sua experiência direta ou indireta e que se relacionam com o seu comportamento em saúde e autorregulação. Em sobreviventes de câncer infantil, as crenças ajudam a compreender seus comportamentos no período pós-tratamento. Objetivou-se examinar as crenças sobre o câncer infantil em 27 sobreviventes e 49 mães que responderam a questionários sociodemográficos e de percepção da doença numa plataforma on-line. Os resultados apontaram que as mães perceberam o câncer infantil como uma doença crônica, com sintomas cíclicos, com consequências e representação emocional mais negativas que os sobreviventes. Ainda, as mães referiram compreender os aspectos relacionados à doença e acreditam no controle pessoal e do tratamento num nível mais elevado que os sobreviventes. Conclui-se que o fato de os sobreviventes perceberem o câncer infantil de maneira mais positiva pode indicar uma ressignificação da experiência de forma adaptativa.

Palavras-chave: câncer; câncer em crianças; crenças em saúde; autorregulação; percepção da doença.


 

 

Introdução

O câncer infantil representa um conjunto de doenças que têm em comum a proliferação descontrolada de células anormais em qualquer local do organismo. A doença representa a primeira causa de morte por doença (7%) entre crianças de 1 a 19 anos, e espera-se a ocorrência de 12.600 novos casos entre crianças e adolescentes no ano de 2018, apenas no Brasil. Os tipos de tumor mais frequentes durante a infância são os linfomas, as neoplasias no sistema nervoso central (SNC) e as leucemias. As possibilidades de cura atingem 70% dos pacientes em âmbito mundial, porém, especialmente pelas diferenças regionais na oferta de serviços especializados, a média de sobrevida ainda está abaixo do esperado no Brasil. O tratamento pode incluir quimioterapia, radioterapia, cirurgia e transplante de medula óssea (Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva [Inca], 2017).

Uma forma de compreender os possíveis efeitos da experiência do câncer na infância seria por meio da investigação das crenças que cada indivíduo possui sobre essa vivência. O Modelo de Autorregulação do Senso Comum - MSC (Leventhal, Nerenz, & Steele, 1984) é utilizado para compreender como as crenças ou percepções subjetivas que cada pessoa mantém sobre determinada doença interferem na saúde dos indivíduos. De acordo com esse modelo, as pessoas organizam seus pensamentos sobre uma doença ou uma ameaça de doença por meio de esquemas mentais que são construídos ao longo da vida. Diante de uma ameaça à saúde, o indivíduo recorrerá aos seus esquemas para identificar e avaliar as suas possibilidades de cura e/ou restabelecimento do estado de saúde, bem como quais comportamentos deverá adotar para enfrentá-la (Leventhal et al., 1984; Leventhal, Leventhal, & Breland, 2011). O MSC é estruturado a partir de nove dimensões: 1. identidade (sintomas); 2. duração cíclica; 3. duração crônica/aguda; 4. causas (o que a pessoa acredita que causou a doença); 5. consequências (reais e imaginárias); 6. controle pessoal (aquilo que o indivíduo pode fazer para ajudar no controle e/ou na cura da doença); 7. controle do tratamento (quanto a pessoa acredita no tratamento); 8. coerência da doença (quanto o indivíduo entende sua doença); 9. representação emocional (impacto emocional que a doença pode trazer) (Moss-Morris et al., 2002; Phillips, Leventhal, & Leventhal, 2012).

As representações prévias provenientes da cultura sobre o câncer, somadas às vivências singulares do indivíduo, exercerão um papel fundamental na forma como se irá perceber e enfrentar a doença (Phillips et al., 2012). No caso do câncer infantil, o impacto da doença afeta fortemente os familiares da criança e especialmente a mãe, que é uma fonte importante de cuidado durante o tratamento e que pode ter sua saúde mental afetada (Bemis et al., 2015; Lawrenz, Peuker, & Castro, 2016). É comum, após o término do tratamento, que o sobrevivente e seus familiares vivenciem sentimentos ambivalentes pela alegria da superação e pelo medo da recidiva (Hosoda, 2014).

As crenças sobre o câncer infantil no período pós-tratamento e suas repercussões na vida, tanto dos sobreviventes quanto de seus familiares, ainda têm sido pouco exploradas. Um estudo (Wenninger et al., 2013) avaliou a percepção da doença em 167 sobreviventes de câncer infantil para compreender seu enfrentamento e sua saúde psicológica. Os resultados apontaram que os sobreviventes apresentaram uma visão pouco otimista do futuro, com consequências e representação emocional negativas da doença. Os maiores níveis de sofrimento foram encontrados nas sobreviventes do sexo feminino, que não tinham um relacionamento afetivo estável e que apresentavam efeitos colaterais do tratamento. Outro estudo com 16 mães de sobreviventes de câncer infantil identificou correlações entre algumas dimensões da percepção da doença e sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). A representação emocional negativa do câncer infantil foi a dimensão que mais teve relação com sintomas de TEPT, em especial sintomas de revivência e evitação. Maior controle pessoal foi associado a menores sintomas de evitação (Lawrenz et al., 2016). Apenas um estudo até momento relacionou a percepção da doença de cuidadores e filhos (Juth, Silver, & Sender, 2015), porém os filhos eram adolescentes ainda na fase do tratamento para o câncer. Os resultados apontaram que a percepção subjetiva de gravidade da doença esteve associada aos indicadores objetivos. A percepção subjetiva da gravidade da doença dos adolescentes esteve associada à sua saúde mental e também à saúde mental de seus cuidadores.

Assim, considerando que a experiência do câncer infantil repercute na vida dos envolvidos em médio e longo prazos, o presente artigo busca examinar as crenças sobre o câncer infantil em sobreviventes da doença e em mães.

 

Método

Delineamento: trata-se de um estudo ex post facto.

Participantes

Participaram do estudo 27 sobreviventes de câncer infantil (idade média = 23,1 anos; DP = 4,61) e 49 mães de sobreviventes de câncer infantil (idade média = 43,8 anos; DP = 9,7), vinculados ao Instituto do Câncer Infantil do Rio Grande do Sul (ICI-RS). Os critérios para inclusão na amostra dos sobreviventes foram os seguintes: ter passado pela experiência do câncer infantil, estar em período de remissão da doença há pelo menos um ano e ter mais de 18 anos no momento da coleta de dados. Quanto às mães, deveriam ter passado pela experiência do câncer infantil com um dos filhos e ter sido uma das cuidadoras no período do tratamento da doença. Não foram incluídos pacientes em tratamento ativo do câncer infantil no momento da pesquisa.

Os participantes foram acessados por meio de divulgação da pesquisa nas redes sociais do ICI-RS e da universidade, além de contatos telefônicos da lista disponibilizada de sobreviventes da instituição. A participação foi realizada por meio de uma plataforma on-line. Em função do anonimato dos participantes, não foi possível identificar quantas duplas de mães e filhos havia na amostra.

Instrumentos

Ficha de dados sociodemográficos e clínicos - versão para o sobrevivente de câncer infantil: questões relativas aos dados sociodemográficos (sexo, idade, estado civil, escolaridade etc.) e informações sobre a doença e o tratamento (dados sobre diagnóstico, tratamento e remissão do câncer infantil).

Revised Illness Perception Questionnaire - IPQ-R (Moss-Morris et al., 2002): avalia as crenças ou percepções sobre a doença de pessoas que têm ou tiveram alguma doença. O instrumento está divido em três seções:

1) Identidade da doença: uma lista de sintomas na qual a pessoa deve responder se determinado sintoma está ou não relacionado à doença.

2) Duração cíclica, duração aguda/crônica, consequências, controle pessoal, con

trole do tratamento, coerência da doença e representação emocional: pergun

tas com respostas em formato de escala Likert de um a cinco pontos, em que

a pessoa responde o quanto concorda com a afirmação.

3) Causas da doença: também numa escala likert de cinco pontos em que a pessoa mostra seu grau de concordância.

Quanto mais a pessoa pontua no instrumento, mais negativa é a crença ou percepção sobre a doença. No final do instrumento, o participante também deve listar as três principais causas que acredita ter contribuído para o surgimento da doença. O instrumento original está em inglês e a versão em português do Brasil utilizada neste estudo já foi utilizada em outra pesquisa no país (Castro, Aretz, Lawrenz, Romeiro, & Haas, 2015).

Revised Illness Perception Questionnaire for Healthy People - IPQ-RH (Figueiras & Alves, 2007): é o instrumento correspondente ao IPQ-R para avaliar a percepção da doença em indivíduos saudáveis. As seções e escalas são as mesmas do IPQ-R. O instrumento original está em português de Portugal, e a versão adaptada ao Brasil utilizada neste estudo já foi utilizada em outras pesquisas (Castro, Peuker, Lawrenz, & Figueiras, 2015; Lawrenz et al., 2016).

 

Procedimentos

Coleta de dados

A coleta de dados foi feita por meio de formulário on-line autoaplicável, e a busca pelos participantes se deu de forma reativa e ativa. A busca reativa ocorreu por meio da divulgação do site da pesquisa nas páginas web do ICI-RS e da Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica, e por folders disponibilizados na recepção do ICI-RS. A busca ativa pelos participantes foi realizada a partir de uma lista disponibilizada no ICI-RS, que continha o cadastro de famílias que haviam solicitado algum tipo de atendimento na instituição. Com base nessa lista, realizaram-se ligações telefônicas no intuito de convidar as pessoas a responder à pesquisa, cujo link era enviado posteriormente por E-mail. No período de busca ativa da pesquisa, que ocorreu em 2015 e 2016, contataram-se 95 famílias das 130 que estavam disponíveis na lista. Entretanto, por conta da condição de anonimato da pesquisa, não é possível saber quantas famílias responderam ao instrumento em função do telefonema e quantas em função da divulgação nas páginas mencionadas. Assim que o participante entrava no site, era apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), no qual ele deveria manifestar a concordância em participar ou não da pesquisa; apenas depois dessa etapa, a pessoa poderia ter acesso ao formulário on-line. Sem o acordo do participante, a coleta era encerrada automaticamente.

Análise de dados

Os dados foram analisados no programa estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 22.0. Realizaram-se análises descritivas (frequência, porcentagem, média, desvio padrão) dos dados sociodemográficos e clínicos de sobreviventes de câncer infantil e mães. Efetuaram-se a frequência e porcentagem dos sintomas atribuídos ao câncer infantil de sobreviventes e mães. Para a análise das atribuições causais mencionadas espontaneamente pelos participantes, utilizou-se a categorização desenvolvida por Peuker et al. (2016; 2015). Em seguida, calcularam-se também a frequência e porcentagem das respostas por grupo. Para a estatística inferencial, trabalhou-se com escores z para padronizar as respostas dos pacientes que responderam ao IPQ-R e IPQ-RH. Verificou-se que a distribuição da amostra não era normal para a maioria das variáveis (teste Shapiro-Wilk), o que levou à opção de usar o teste U de Mann Whitney para examinar possíveis discrepâncias nas crenças de mães e sobreviventes. Além disso, foi realizado o teste qui-quadrado para verificar diferenças significativas de atribuição causal e de sintomatologia entre os grupos. Considerou-se o nível de significância p < 0,05, e foi calculado o tamanho do efeito (d de Cohen).

 

Considerações éticas

O presente projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, com anuência do ICI-RS (CAAE n. 13962113.8.1001.5344). Os procedimentos éticos com seres humanos adotados estão de acordo com a Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. As páginas da web que continham as informações coletadas foram protegidas por senha para garantir a privacidade e segurança das informações.

 

Resultados

Caracterização da amostra

Entre os sobreviventes, 59,3% (N = 16) eram mulheres, e 40,7% (N = 11), homens; 48,1% (N = 13) eram casados ou tinham companheiro; e a idade média no momento da pesquisa era de 23,1 anos (DP = 4,61). Quanto à escolaridade, 55,5% (N = 15) tinham ensino superior; e o restante, 44,5% (N = 12), ensino médio. O diagnóstico ocorreu, em média, 14 anos atrás (DP = 7,04), e os participantes tinham, em média, 9 anos (DP = 5,3) na época do diagnóstico. O tratamento durou, em média, 2,46 anos (DP = 2,33), e 55,6% (N = 15) deixaram de estudar durante parte desse período. Os participantes estavam em remissão clínica da doença havia 11,04 anos (DP = 7,51), em média. Em relação ao tipo de câncer desses sobreviventes, 44,4% (N = 12) foram diagnosticados com leucemia, 18,5% (N = 5) com linfoma, 3,7% (N = 1) com tumor SNC e 33,4% (N = 9) com outros tipos de câncer. Quanto ao tratamento, todos (N = 27) haviam realizado quimioterapia, 48,1% (N = 13) radioterapia, 70,4% (N = 19) cirurgia e 11,5% (N = 3) transplante de medula óssea. Dos participantes, 22,2% (N = 6) tiveram recidiva da doença, e 25,9% (N = 7) ficaram com sequelas físicas decorrentes do câncer ou do tratamento.

As mães apresentaram idade média atual de 43,8 anos (DP = 9,7), e 69,4% (N = 34) eram casadas ou tinham companheiro. Quanto à escolaridade, 34,7% (N = 17) tinham ensino fundamental; 40,8% (N = 20), ensino médio; e 24,5% (N = 12), ensino superior. Em média, as mães tinham 33,9 anos de idade (DP = 9,24) no momento do diagnóstico do filho. O diagnóstico da doença do filho ocorreu, em média, há 9,7 anos (DP = 8,87), e o tratamento durou, em média, 2,27 anos (DP = 2,24). O filho está fora de tratamento, em média, há 7,5 anos (DP = 6,60). Entre as 49 mães participantes, 47 (95,9%) foram as principais cuidadoras dos filhos. Em relação ao tipo de câncer dos filhos dessas mães, 34,7% (N = 17) foram diagnosticados com leucemia, 18,4% (N = 9) com linfoma, 10,2% (N = 5) com tumor do SNC e 36,7% (N = 36) com outros tipos de câncer. Sobre o tratamento, 91,8% (N = 45) realizaram quimioterapia, 40,8% (N = 20) radioterapia, 53,1% (N = 26) cirurgia, 18,4% (N = 9) transplante de medula óssea e 4,1% (N = 2) outros tipos de tratamento. Entre eles, 20,4% (N = 10) tiveram recidiva da doença, e 30,6% (N = 15) ficaram com sequelas físicas decorrentes do câncer ou do tratamento.

Percepção da doença

Com relação às crenças sobre a doença, o teste U de Mann-Whitney revelou que houve diferenças nas crenças sobre a doença de sobreviventes e mães em todas as subescalas, e as mães tiveram maiores pontuações que os sobreviventes em todas elas, conforme Tabela 1. O tamanho de efeito para a maior parte das variáveis foi médio, mostrando que as mães consideraram a doença com sintomas mais cíclicos que os sobreviventes, com consequências e representação emocional mais negativas, porém acreditam mais no controle pessoal e no controle do tratamento que os sobreviventes. Verificou-se que as mães percebem a doença mais crônica que os sobreviventes e acreditam que a compreendem mais (coerência) que eles, embora o tamanho do efeito desse resultado seja baixo.

Em relação à sintomatologia atribuída ao câncer infantil (dimensão identidade), para sobreviventes e mães, os principais sintomas foram semelhantes. Observaram-se, por meio do teste qui-quadrado, diferenças significativas entre os grupos nos sintomas dores de garganta e de cabeça, em que as mães relataram mais frequentemente esses sintomas que os sobreviventes. Nos demais sintomas, não houve diferenças significativas. A fadiga, a perda de forças, as dores e a perda de peso foram os principais sintomas atribuídos ao câncer infantil, conforme pode ser visto na Tabela 2.

Por fim, com relação às crenças sobre as causas da doença, por meio do teste qui-quadrado, observaram-se diferenças significativas entre os grupos nas causas "tipo de alimentação" e "um micróbrio ou vírus", em que as mães atribuíram mais essas causas ao câncer infantil que os sobreviventes. Não foram observadas diferenças significativas nas demais causas. Além disso, as causas que obtiveram maior número de atribuições pelos sobreviventes foram "alterações nas defesas do organismo", "hereditariedade" e "destino ou má sorte". As mães fizeram mais atribuições às seguintes causas: "alterações nas defesas do organismo", "tipo de alimentação" e "hereditariedade" (Tabela 3).

Na sessão do instrumento em que é solicitado que o indivíduo diga abertamente quais são as três principais causas do câncer, observou-se que a maior parte dos participantes atribuiu a etiologia da doença aos fatores de risco biológicos, como a hereditariedade e o mau funcionamento do organismo, conforme Tabela 4.

 

Discussão

O principal resultado deste estudo apontou que as crenças sobre o câncer infantil de mães e sobreviventes possuem discrepâncias importantes, uma vez que as mães têm crenças mais negativas sobre a doença que os sobreviventes. Apesar de a percepção de sintomas e causas ser semelhante entre mães e sobreviventes, elas acreditam que o câncer infantil é uma doença mais crônica, com sintomas mais cíclicos, com mais consequências graves e representação emocional negativa que os sobreviventes. Entretanto, também acreditam que entendem mais sobre a doença (coerência) e percebem que têm mais controle pessoal, além de estarem convencidas de que o tratamento controla a doença.

As experiências diante de uma situação de doença podem variar muito por causa das características e dos recursos individuais dos envolvidos, da gravidade da doença, do tipo de tratamento realizado, além de características do ambiente (apoio recebido da família e da equipe de saúde, nível educacional etc.) (Bemis et al., 2015; Hosoda, 2014). O período pós-tratamento do câncer infantil é sempre de muitas incertezas e dúvidas sobre o futuro, e o pouco conhecimento que se tem até o momento sobre os sobreviventes versa sobre sintomas psicológicos e problemas de ajustamento, e não sobre variáveis que possam ajudar a compreender sua adaptação a essa nova etapa pós-tratamento (Wakefield et al., 2010). Sabe-se que, até o momento, mães apresentam mais sintomas psicológicos que sobreviventes de câncer infantil, incluindo o TEPT (Castro, Armiliato, Vital, Peloso, & Souza, 2017; Pai et al., 2007), porém os motivos que levam a isso ainda precisam ser mais bem explorados. Há evidências de que o risco iminente de morte de um filho na infância, somado às demandas da doença e do tratamento e a outros fatores, acaba por sobrecarregar exageradamente essas mães que ficam com sua saúde mental afetada.

A percepção da cronicidade do câncer infantil, de sintomas cíclicos menos acentuados e de representação emocional menos negativa nos sobreviventes que nas mães pode estar relacionada à ideia de estilo repressivo de enfrentamento (Myers, 2010). A revisão realizada por Myers (2010) mostrou que pessoas acometidas por doenças graves, como o câncer infantil, dissociam suas reações somáticas do distress emocional, expressam pouco o afeto negativo e tendem a evitar informações negativas sobre si mesmas quando avaliadas por meio de questionários autoaplicáveis. Seus mecanismos ainda precisam estar mais bem esclarecidos, contudo há alguns indícios de que sobreviventes de câncer infantil possam desenvolver esse estilo de enfrentamento, que pode estar também associado à resiliência (Howard Sharp, Rowe, Russel, Long, & Phipps, 2015). Ou seja, a repressão do distress emocional associado à doença pode gerar maior adaptação aparente e resiliência. Portanto, é possível que, aplicada essa ideia às crenças sobre as doenças, os sobreviventes tenham crenças mais positivas sobre a doença que suas mães porque reprimem ou minimizam sua experiência de adoecimento.

Em relação à percepção de coerência (compreensão) sobre o câncer infantil, os sobreviventes consideraram conhecer menos sobre a doença do que as mães. Como eles passaram pela doença quando ainda eram crianças, as lembranças da doença na infância podem ter sido ressignificadas pelo indivíduo; e suas memórias e cognições, modificadas (Clanton et al., 2011; Wengenroth et al., 2015). É possível também que os sobreviventes tenham sido poupados, na infância, de algumas informações sobre a doença e o tratamento, o que os levaria a crer que não entendem tão bem o que ocorreu. Por sua vez, as mães foram as principais cuidadoras do filho durante o período da enfermidade, precisaram agir de forma ativa e tiveram que buscar ajuda para a saúde da criança, marcar consultas, obter esclarecimentos e tomar decisões sobre o tratamento, o que as leva a crer que entendem sobre o que se passou.

Quanto à crença de que a doença teve consequências mais negativas para as mães do que para os sobreviventes, isso pode estar relacionado não só ao sofrimento pela doença de seus filhos, mas também a outras questões correlatas, como dificuldades financeiras, necessidade de abandono de atividades cotidianas do trabalho e dificuldades familiares tanto com marido quanto com o cuidado aos outros filhos no período do tratamento da criança enferma, já relatadas na literatura (Pai et al., 2007). Portanto, se o câncer infantil pode ser considerado um evento traumático (Castro et al., 2017), essas dificuldades decorrentes da situação também são estressores importantes que podem levar à percepção de mais consequências negativas da doença para a mãe que para o sobrevivente.

Em relação à percepção de controle pessoal e do tratamento, as mães demonstraram maior crença de controle do que os sobreviventes, possivelmente porque o resultado do tratamento foi positivo e seus filhos são considerados em remissão da doença ou curados. Já os sobreviventes, por terem estado doentes na infância, podem não ter entendimento ou noção do seu papel e responsabilidade para o sucesso do tratamento. Entretanto, é presumível que mães que perderam seus filhos de câncer infantil tenham a percepção dessas dimensões diminuídas.

A representação emocional decorrente da doença foi mais negativa nas mães do que nos sobreviventes, o que significa que as mães se consideraram mais impactadas emocionalmente pelo câncer do que seus filhos. Esse resultado pode estar relacionado ao enfrentamento repressivo adaptativo que alguns sobreviventes podem apresentar, já mencionado anteriormente (Myers, 2010; Howard Sharp et al., 2015). O tempo transcorrido desde o diagnóstico do câncer infantil até o momento da realização do estudo (nesse caso, em média, 14 anos) é um período suficientemente longo na vida de um adulto jovem. Nesse período, ele pode ter dado um novo sentido à sua experiência da infância, desenvolvendo mecanismos de defesa e de aumento de autocontrole sobre a sua consciência do momento do evento estressor vivido como uma forma de adaptação para seguir com sua vida (Myers, 2010). No entanto, a sobrecarga de responsabilidades e cuidado que as mães tiveram com o cuidado do filho doente, somada ao sentimento de culpa que muitas delas têm por não conseguirem proteger o filho do sofrimento causado pela doença (Pai et al., 2007), pode ajudar a entender esse resultado. O diagnóstico de câncer põe em risco real a vida da criança, e as mães, ao compreenderem esse risco, poderiam ter essa representação emocional mais negativa que, após o fim do tratamento, em geral está associada ao medo de uma possível recidiva.

O fato de as mães atribuírem a causa do câncer infantil ao tipo de alimentação e micróbio/vírus, de maneira mais frequente que os sobreviventes, mostra que suas crenças a respeito da doença se distanciam da realidade. Segundo a American Cancer Society (ACS, 2017a, 2017b), em crianças, os fatores de risco com evidências científicas comprovadas são exposição à radiação, inalação indireta e de fumo e mutações genéticas que ocorrem no início da vida da criança ou durante o desenvolvimento embrionário. Dessa maneira, pode-se perceber que as mães, mesmo tendo passado pela experiência da doença do filho e tendo recebido informações a respeito da equipe que o tratou, ainda atribuem o câncer infantil a causas de maneira equivocada. Além dis-so, as mães e os sobreviventes apontaram que o câncer infantil tem como causas principais fatores biológicos, como alterações nas defesas do organismo e hereditariedade. Porém, chama a atenção que, apesar de fatores como estresse psicológico e o mau estado emocional não terem sido considerados as principais causas, eles receberam menção tanto pelos sobreviventes quanto pelas mães. Há evidências de que o estresse pode diminuir a imunidade do organismo e/ou levar ao desenvolvimento de hábitos pouco saudáveis, como má alimentação e uso de álcool e drogas, e que esses fatores estão atrelados às doenças oncológicas (Ashford et al., 2015). Porém, quanto à etiologia do câncer infantil, não é clara essa relação (Inca, 2017). Não se exclui a relação do estresse com o desenvolvimento de câncer, a qual está em constante investigação, contudo, é importante destacar que, especificamente com relação ao câncer infantil, essa associação ainda não foi encontrada.

Sobre a sintomatologia do câncer infantil, tanto mães quanto sobreviventes apontaram que os principais sintomas são a fadiga, perda de forças e peso e dores. Encontrou-se diferença significativa na sintomatologia dores de cabeça e de garganta entre os dois grupos. As mães acreditam que esses sintomas estão mais relacionados ao câncer infantil que os próprios filhos. De fato, esses sintomas são frequentes no câncer infantil, cuja aparição depende também do tipo de câncer e do estado geral da criança (Inca, 2017). É possível que as lembranças que as mães têm sobre dores e mal-estar que as crianças sentiam durante o tratamento tenham relação com esse tipo de atribuição de sintomatologia à doença.

Com base nos resultados deste estudo, conclui-se que as crenças sobre o câncer infantil de sobreviventes foram mais positivas que as das mães. É possível que esse resultado esteja associado à saúde mental das mães de sobreviventes, pois, conforme já relatado na literatura, elas apresentaram mais sintomas psicológicos que os filhos (Castro et al., 2017). Também o fato de que o estudo ser sobre câncer infantil pode ter relação com esse resultado, pois as memórias dos sobreviventes sobre o ocorrido podem ter sido afetadas pelo próprio crescimento e amadurecimento inerentes do ciclo vital. Contudo, essas relações precisarão ser esclarecidas em futuros estudos, bem como a associação entre percepção sobre o câncer infantil e dificuldades encontradas pelas mães e pelos sobreviventes durante o tratamento, como acesso aos serviços de saúde, dificuldades familiares com marido e outros filhos, no trabalho, entre outros.

O estudo é pioneiro no assunto ao examinar as crenças sobre o câncer infantil entre mães e sobreviventes da doença. Nesse sentido, suas contribuições são relevantes e apontam para a necessidade de compreender o que pensam sobreviventes e mães sobre a doença, a fim de ajudá-los a enfrentar situações de suas vidas e o medo da recidiva, além de contribuir para terem uma vida com maior qualidade. O estudo também contribui ao mostrar e reforçar a necessidade de um atendimento psicológico especializado às equipes de oncologia pediátrica para que possam ajudar crianças e familiares a lidar com a doença e minimizar o sofrimento.

O estudo possui as seguintes limitações: número pequeno de participantes, coleta de dados realizada via on-line e falta de pareamento de duplas de mães e filhos que participaram da pesquisa. Contudo, os resultados são bastante elucidativos para dar uma direção para que futuros estudos investiguem a questão mais a fundo, relacionando as crenças sobre a doença com saúde mental, a fim de elaborar intervenções que ajudem sobreviventes e mães a ter qualidade de vida.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Elisa Kern de Castro
Avenida Unisinos, 950, Cristo Rei
São Leopoldo, RS, Brasil. CEP: 93022-000
E-mail: elisakc@unisinos.br

Submissão: 3.11.2017
Aceite: 2.5.2018