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Psicologia: teoria e prática

versión impresa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.20 no.3 São Paulo sept./dic. 2018

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v20n3p153-166 

ARTIGOS
DESENVOLVIMENTO HUMANO

 

Formação do psicólogo sobre autismo: estudo transversal com estudantes de graduação

 

 

Leonidas Valverde da SilvaI; Felipe Alckmin-CarvalhoII; Maria Cristina Triguero Veloz TeixeiraI; Cristiane Silvestre PaulaI

IUniversidade Presbiteriana Mackenzie – UPM, SP, Brasil
IIUniversidade de São Paulo – USP, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVOS: descrever o nível de conhecimento sobre Transtorno do Espectro Autista (TEA) entre estudantes de Psicologia, comparar o nível de conhecimento entre alunos do primeiro e último ano e verificar se alunos que haviam realizado atividades de iniciação científica (IC) possuíam maior conhecimento sobre TEA. Participaram do estudo 295 alunos de duas universidades particulares da cidade de São Paulo que responderam de forma autoaplicável a um questionário estruturado com 16 perguntas sobre epidemiologia, sintomatologia, intervenções e serviços para TEA. O estudo indicou nível insatisfatório no conhecimento sobre TEA (< 50%), mas revelou progresso no decorrer do curso, tanto no cômputo geral quanto nas áreas investigadas. Estudantes que realizaram IC em saúde mental apresentaram melhor desempenho.
CONCLUSÕES: estudantes apresentaram evolução em seus conhecimentos no decorrer do curso, mas de forma insuficiente, indicando necessidade de revisão/reformulação dos currículos de Psicologia. Ainda é necessário que futuros trabalhos avaliem a qualidade de formação desses futuros profissionais.

Palavras-chave: Transtorno do Espectro Autista; estudantes universitários; capacitação; psicologia da saúde; desenvolvimento infantil.


 

 

Introdução

Os Transtornos do Espectro Autista (TEA) estão classificados como transtornos do neurodesenvolvimento com início precoce e curso crônico. São caracterizados por um desvio no desenvolvimento da sociabilidade e presença de padrões de comportamentos/pensamentos restritivos e estereotipados (American Psychiatric Association, 2013).

Apesar de o quadro dos TEA já estar bem estabelecido, a partir de publicações realizadas desde a década de 1940, a variabilidade da apresentação dos sinais e sintomas e o seu nível de gravidade são bastante variáveis. Somado a isso está o fato de que não existe um marcador biológico dos TEA, o que significa que sua identificação deve ser feita por uma apropriada avaliação clínica, preferencialmente em equipe multidisci-plinar, que levantará o perfil clínico, as potencialidades e os principais déficits da pessoa diagnosticada (Brentani et al., 2013). Na equipe multiprofissional, o psicólogo é um dos profissionais mais importantes na identificação, ao lado do médico (preferencialmente psiquiatra, pediatra ou neurologista), que é o profissional responsável por realizar o diagnóstico de casos de TEA (Bordini et al., 2014).

Por isso, uma qualificada formação em desenvolvimento típico e atípico é essencial para a boa prática da profissão do psicólogo. Nesse sentido, é esperado que o estudante de Psicologia seja capacitado para escutar as queixas dos pais relacionadas aos TEA, para reconhecer sinais e sintomas característicos, assim como os diferenciais do transtorno. Desse modo, diversos autores têm defendido a inclusão de disciplinas e conteúdos curriculares que contribuam para identificação e futura assistência de crianças, jovens e adultos com TEA, tanto na graduação em Psicologia quanto em outras formações na área da saúde (Paula, Belisásio, & Teixeira, 2016; Paula, Lauridsen-Ribeiro, Wissow, Bordin, & Evans-Lacko, 2012). É importante destacar que a formação em Psicologia no Brasil ocorre num modelo generalista e interdisciplinar, contemplado nas diretrizes curriculares nacionais de 2004 (atualizada em 2011), no qual o currículo deve incluir a possibilidade de escolhas de ênfases curriculares na modalidade de estágios e disciplinas para atender a diferentes demandas sociais (Ministério da Educação, 2011). Paralelamente a isso, estudos têm demonstrado o papel de destaque dos psicólogos no cenário nacional, sendo o Brasil um dos países que mais possuem esse tipo de profissional, tanto em comparação com a média mundial quanto com países da América do Sul, como Chile e Uruguai. Apesar de grande parte (aproximadamente 70%) não trabalhar no Sistema Único de Saúde (SUS), ainda assim o psicólogo pode ser encontrado na maioria dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) de todo o Brasil e no Estado de São Paulo em aproximadamente 14% das unidades básicas de saúde (Paula et al., 2012).

Considerando o psicólogo, portanto, de alta relevância na identificação e tratamento de pessoas com problemas de saúde mental, incluindo os TEA, conhecer o tipo e a qualidade de sua formação se faz relevante, principalmente por conta da escassez de dados desse tipo na realidade brasileira. Um levantamento efetuado em um dos veículos de divulgação científica mais importantes do país que aborda a formação do psicólogo mostrou apenas dois estudos voltados à temática de formação em TEA, sendo um artigo teórico publicado 12 anos atrás (Souza et al., 2004) e outro recente com dados empíricos de uma amostra de estudantes de Psicologia de universidades públicas e particulares da cidade de São Paulo (Paula et al., 2016). O estudo publicado em 2016 demonstrou que 85 alunos do último ano do curso de Psicologia, tanto de faculdades públicas quanto de particulares, apresentavam um bom conhecimento geral em relação à identificação e assistência a pessoas com TEA, particularmente no que concerne aos equipamentos de saúde do SUS, sobre abordagens terapêuticas e uso de medicação. Entretanto, seu nível de conhecimento específico compatível com uma formação especializada em Psicologia, que inclui informações sobre o quadro clínico dos TEA, etiologia e dados epidemiológicos, ficou entre regular e baixo. Esse resultado deixa um alerta quanto ao preparo de alunos que em pouco tempo estarão no mercado de trabalho e não ajuda a compreender os ganhos de conhecimento sobre TEA, durante o processo de formação em Psicologia.

Dando continuidade à pesquisa citada, os objetivos do presente estudo são verificar o nível de conhecimentos clínicos e epidemiológicos sobre TEA entre alunos de Psicologia e compará-los em função do início e fim do curso. Como objetivo secundário, esta pesquisa investigará se a formação adicional em pesquisa, em formato de iniciação científica (IC) na área da saúde mental, está associada com o nível de conhecimento em TEA.

 

Método

O estudo foi do tipo seccional, com uma amostra de 295 alunos de cursos de graduação em Psicologia de duas universidades particulares de São Paulo, uma delas com 130 mil alunos e outra com 40 mil, dos quais 3.400 (2,6%) e 1.400 (3,5%) cursavam os cursos de Psicologia, respectivamente.

Os critérios de inclusão para participação no estudo foram: (i) estar devidamente matriculado no primeiro ou no quinto ano do curso de Psicologia das duas universidades paulistanas e (ii) ter mais de 18 anos de idade. A média de idade foi de 23 anos (DP = 7,1), 252 alunos (85,4%) eram do sexo feminino e 189 (64,1%) estavam no primeiro ano da graduação.

Instrumentos

Para os fins do estudo, foi elaborado um questionário que avaliou aspectos epidemiológicos, clínicos, de intervenção e uso de serviços de saúde mental no Brasil. Esse questionário derivou do estudo de Paula et al. (2016), com pequenos aprimoramentos a partir das limitações identificadas no estudo anterior.

O questionário atualizado contém perguntas de múltipla escolha que podem ser classificadas em quatro categorias: (i) quatro questões sobre epidemiologia, incluindo prevalência geral na população e frequência segundo gênero; (ii) quatro questões sobre o quadro clínico do transtorno, como critérios diagnósticos e sinais/sintomas; (iii) quatro questões sobre abordagens terapêuticas medicamentosas e psicoterapêu-ticas baseadas em evidências; (iv) duas questões sobre serviços de saúde mental e equipes de atendimento em serviços brasileiros. Além dessas 14 perguntas, o questionário apresenta duas vinhetas. A primeira delas descreve o caso de um menino de 4 anos de idade cujos pais notavam desenvolvimento atípico desde a tenra infância, relatado ao pediatra que postergava o diagnóstico, sendo o de TEA estabelecido aos 3 anos de idade. A segunda vinheta descreve uma menina de 5 anos de idade nascida de parto prematuro, cujos pais não identificaram atrasos no desenvolvimento até seu ingresso na escola. Ao final de cada vinheta, há uma pergunta sobre as intervenções mais adequadas para cada caso. Assim, o questionário soma 16 perguntas de múltipla escolha e mais uma pergunta sobre a participação do aluno em projetos de IC. As duas versões do questionário foram respondidas individualmente seguindo o modelo autoaplicável.

Procedimentos de coleta e análise de dados

Os participantes da pesquisa foram convidados por meio de convite em sala de aula, assim como por convocações em redes sociais (Facebook e Twitter). A coleta de dados foi realizada nas dependências das instituições estudadas, conforme disponibilidade dos sujeitos. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e o projeto foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa Institucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie (Protocolo n. P025/11/12).

Análise estatística

Os dados foram compilados e analisados no programa SPSS, versão 19.0. Realizaram-se análises estatísticas descritivas para verificação de médias e desvio padrão do número de acertos. Análises estatísticas inferenciais bivariadas testaram as diferenças do nível de conhecimento entre os alunos em função do ano letivo que cursavam, controlando atividades acadêmicas extracurriculares ligadas à IC. Realizaram-se testes de diferença de média (teste t de Student) nas variáveis contínuas com distribuição normal e o teste não paramétrico de qui-quadrado nas variáveis categóricas, sendo calculada a significância de acordo com o teste de Pearson ou teste exato de Fisher, quando aplicável. Adotou-se o nível de probabilidade de 95% (p < 0,05) para a rejeição das hipóteses de nulidade.

 

Resultados

Quando se aglomeraram os alunos do primeiro e último anos dos cursos de Psicologia, verificou-se que os índices de acerto foram regulares, já que nenhuma das 16 questões do questionário utilizado na pesquisa atingiu um percentual de acertos superior a 50%, e, na metade delas, esse percentual de acertos foi inferior a 30%. Verificou-se um nível melhor de conhecimentos em função do número de acertos nas questões relacionadas aos sinais precoces de TEA (46,1%) e à abordagem terapêutica baseada em evidência (42,2%). Entretanto, foram baixos os índices de acertos em itens relacionados à epidemiologia (apenas 10,2% na distribuição por sexo e 5,4% sobre taxa de prevalência), à intervenção mais adequada em relação a um dos casos das vinhetas (9,9%) e às escalas de rastreamento disponíveis no Brasil (2,2%). Além disso, nota-se um descompasso entre os índices de acerto na pergunta teórica sobre abordagem terapêutica (42,2%) e sua aplicação na prática, ou seja, sobre as abordagens terapêuticas mais adequadas ante as duas vinhetas de casos de suspeita de TEA com acertos de 28,6% e 9,9% (Tabela 1).

Quando se comparou o desempenho entre os grupos de estudantes, como esperado, os alunos do quinto ano apresentaram melhor performance, já que a média total de acertos foi de 6,5 (DP = 2,4), enquanto a do primeiro ano foi de 3,4 (DP = 2,1), sendo essa diferença estatisticamente significativa (p < 0,01; IC 95%: 2,6-3,6).

Observa-se na Tabela 2 que, de forma geral, os alunos do último ano tiveram desempenho melhor que os do primeiro ano, considerando cada pergunta do questionário, sendo essa diferença estatisticamente significativa em 14 das 16 questões. As duas questões em que não foram verificadas diferenças estaticamente significantes se referiam a falhas no desenvolvimento de crianças com TEA e à etiologia do transtorno. As diferenças mais expressivas foram encontradas nas questões sobre abordagem terapêutica mais recomendada para os TEA, em que os alunos do último ano apresentaram entre 9 e 20 vezes mais chances de acertar essa resposta, na comparação com os alunos do primeiro ano. Outra resposta que merece destaque foi a relacionada ao local/à unidade do sistema público de saúde mais adequado para assistência das pessoas com TEA, já que os alunos do último ano acertaram sete vezes mais que os alunos do primeiro ano (p < 0,01; RC = 7,28; IC 95%: 4,22-12,56).

Quando se avalia a atuação dos estudantes de Psicologia segundo os quatro domínios do questionário, nota-se que o melhor desempenho na amostra aconteceu em relação às duas perguntas sobre os serviços de saúde pública destinados às pessoas com TEA: Caps como unidade de atendimento mais especializado na rede pública de saúde e composição de equipe multidisciplinar. Já o pior resultado foi verificado no tema de epidemiologia (taxa de prevalência, distribuição por sexo, recorrência de TEA entre irmãos e proporção de Savants entre pessoas com TEA), com média de erros de 2,88 pontos (DP = 0,91) entre os alunos do primeiro ano e 3,53 (DP = 0,72) entre os do quinto ano. Os alunos do último ano apresentaram melhores resultados nos quatro domínios do questionário (Tabela 3).

Entre os alunos avaliados, apenas 11 (3,4%) haviam realizado IC, sendo apenas um deles especificamente sobre TEA. Comparou-se a média de acertos de alunos que fizeram IC na área de saúde mental (N = 7, 2,4%) à média daqueles que não desenvolveram nenhum projeto de pesquisa nessa área (N = 288; 97,6%). Os dados indicaram que o primeiro grupo obteve escores de acertos mais elevados na comparação com seus pares (7,5 x 4,4), e as diferenças foram estatisticamente significativas (t = -3,7; p = 0,008; IC 95%: -5,0-1,1).

 

Discussão

Esta pesquisa demostrou que nenhum dos 295 estudantes de Psicologia acertou acima de 50% das perguntas do questionário sobre conhecimentos em TEA, que abarcava assuntos fundamentais para a boa prática clínica, como dados epidemiológicos e clínicos, modelos de intervenção baseados em evidência e serviços de saúde mental disponíveis no SUS.

Identificou-se baixo índice de acertos em relação às abordagens terapêuticas mais recomendadas para TEA avaliadas por meio de duas vinhetas clínicas, sugerindo que a formação em Psicologia necessita se aprimorar, considerando a realidade das demandas de saúde da sociedade atual. Interessantemente, os índices de acerto foram mais altos quando essa pergunta tinha caráter mais teórico, ou seja, 42,2% dos sujeitos sabiam dizer que a abordagem comportamental é a que apresenta melhores evidências de eficácia no tratamento dos TEA (Brentani et al., 2013; Reichow, 2012). Com esses resultados, é possível concluir que o conteúdo mais geral sobre como tratar pacientes com TEA tem sido oferecido nos cursos de Psicologia, mas que falta a interface com a aplicação prática dele. Práticas baseadas em evidências têm sido confirmadas segundo diferentes modelos de intervenção em TEA, particularmente segundo abordagens comportamentais principalmente quando aplicadas nos primeiros anos de vida, como a Terapia Precoce Comportamental Intensiva (Early Intensive Behavior Intervention - EIBI) (Reichow, 2012). Os modelos que seguem a abordagem Treatment and Education of Autistic and Related Communication-Handicapped Children (Método TEACCH), o tratamento medicamentoso para alguns sintomas secundários dos TEA, como agitação (Brentani et al., 2013) e mais recentemente o Modelo Denver de estimulação precoce, conhecido como Early Start Denver Model (Vivanti et al., 2014), são alguns exemplos.

Como o TEA não possui um marcador biológico único, o diagnóstico é clínico, devendo ser realizado com base nos manuais de classificação internacionais, como o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM) e a Classificação Internacional de Doenças (CID) (Paula et al., 2012). Existem vários instrumentos de rastreio para a realização do diagnóstico em crianças, traduzidos e adaptados para a realidade brasileira: Autism Behavior Checklist (ABC), Autistic Traits Assessment Scale (ATA), Autism Screening Questionnaire (ASQ); Childhood Autism Rating Scale (CARS); Modified Checklist for Autism in Toddlers (M-CHAT) (Backes, Mônego, Bosa, & Bandeira, 2014), Observação Estruturada para Rastreamento de Autismo (OERA) (Paula et al., 2017) e Autism Mental Status Examination (AMSE) (Galdino, Pegoraro, Saad, Grodberg, & Celeri, 2018). Paralelamente, há instrumentos diagnósticos considerados "padrão ouro", com destaque para a Autism Diagnostic Interview-Revised (ADI-R) (Lord, Rutter, & Le Conteur, 1994) e o Autism Diagnostic Observation Schedule-Generic (ADOS) (Lord, Rutter, Dilavore, & Risi, 1999). O ADI-R já foi validado no Brasil, porém o ADOS, apesar de já existir a versão em português, ainda está em processo de validação (Marques & Bosa, 2015). Vale ressaltar que, mesmo após a validação, o uso dos instrumentos ADOS e ADI-R é recomendado em situações específicas, pois exige a compra de material diretamente com a editora norte-americana, além de treinamento especializado de alto custo e de longa duração, o que limita seu uso em larga escala.

Outro dado de destaque nos resultados da pesquisa foi a falta de conhecimentos sobre escalas de identificação de TEA disponíveis no Brasil, uma vez que 97,8% dos participantes desconheciam essa informação. O psicólogo terá, tanto na clínica privada quanto no trabalho no SUS, como uma de suas atribuições essenciais detectar sinais/sintomas de TEA o mais precocemente possível. Por isso, é imprescindível que ele conheça as ferramentas validadas que auxiliam nesse processo. Dados indicam que os estudantes de Psicologia, assim como os psicólogos formados, não têm conhecimento e/ou hábito de utilizar medidas mais sistematizadas em suas atividades diárias. Estudo anterior que avaliou a prática com testes psicológicos em uma amostra de 214 psicólogos revelou que uma parcela significativa, 29,9% (N = 64), não utiliza sistematicamente esses instrumentos de avaliação (Noronha, 2002). Ao mesmo tempo, é importante lembrar ainda que são diversos os estudos publicados no Brasil sobre instrumentos de rastreamento de TEA adaptados para nossa realidade e apresentando boas propriedades psicométricas (Backes et al., 2014; Zaqueu, Teixeira, Alckmin-Carvalho, & Paula, 2015). Esses instrumentos têm sido também divulgados em protocolos e documentos gratuitos do governo, mas, ao que tudo indica, não estão atingindo os estudantes de Psicologia. Esses resultados encontrados com a amostra de São Paulo servem de alerta para a formação local e em outras regiões do país, pois se sabe que o treinamento mais especializado não costuma ser foco de grande parte dos cursos de Psicologia, assim como em outras áreas de saúde.

Verificou-se também que a grande maioria dos participantes deste estudo (89,8%) não tinha conhecimento sobre os dados epidemiológicos dos TEA, incluindo taxa de prevalência, incidência por gênero e ocorrência de TEA entre irmãos de pessoas diagnosticadas com o transtorno. Dados epidemiológicos são essenciais para o planejamento de serviços de diagnóstico e intervenções, assim como para a formação de recursos humanos (Paula et al., 2012). Psicólogos que não possuem esses conhecimentos podem ser considerados despreparados para atuação no sistema público de saúde e de educação. Ao mesmo tempo, é preocupante que psicólogos não estejam informados sobre os estudos recentes que indicam risco aumentado entre familiares de pessoas com TEA (Zwaigenbaum et al., 2009).

Considerando a importância da atuação do psicólogo na assistência às famílias de crianças com TEA, espera-se que esse profissional desenvolva, durante sua formação, habilidades para o tratamento da criança e para o manejo das demandas da família, pois estudos apontam o papel central dos pais na identificação e no cuidado dos filhos com TEA (Bordini et al., 2014; Zanon, Backes, & Bosa, 2014). Dessa forma, uma das sugestões decorrentes do presente estudo é que na formação do psicólogo, em disciplinas como psicopatologia, psicologia da saúde e disciplinas no campo da pesquisa, seja incluído o tema da epidemiologia dos TEA.

Quando comparamos a performance dos alunos participante da presente pesquisa, segundo seus estágios da graduação, verifica-se que os estudantes do último ano tiveram um desempenho melhor que os do primeiro ano, com diferenças estatisticamente significativas em 14 das 16 questões do questionário aplicado. O resultado é positivo, pois mostra um aumento de conhecimentos, provavelmente atrelado à aquisição de conhecimentos científicos sobre TEA e decorrente do conteúdo fornecido por professores e/ou por outras atividades acadêmico-universitárias. Contudo, quando se verifica a proporção de acertos, nota-se que nenhum dos 295 participantes do estudo acertou mais de 12 das 16 questões do questionário. Em se tratando de um transtorno que exige um conhecimento acurado de marcos esperados do desenvolvimento para sua identificação precoce (Zanon et al., 2014), assim como o importante papel dos psicólogos na assistência as pessoas com TEA, os resultados ainda estão aquém do esperado. Infelizmente esse resultado não está em desarmonia com a literatura, que, de forma geral, indica certa insatisfação quanto à formação geral em Psicologia no Brasil, que tem sido considerada deficitária tanto no que se refere à formação técnica quanto, e principalmente, à formação epistemológico-científica (Lisboa & Barbosa, 2009). Lisboa e Barbosa (2009) analisaram o conteúdo curricular de 396 cursos de todas as regiões do país e constataram que o grande aumento numérico de faculdades de Psicologia desde a década de 1990 não tem acompanhado a melhora na qualidade. Esse déficit não parece ser exclusivo da formação em Psicologia, já que uma pesquisa encontrou a mesma lacuna na formação de alunos de Medicina de uma faculdade no Rio Grande do Sul (Muller, 2012).

De forma geral, os dados desta pesquisa indicam que se faz necessário aprimorar o conteúdo programático nos cursos de graduação em Psicologia, considerando a construção de modelos curriculares que potencializam articulações entre teoria e prática (Abdalla, Batista, & Batista, 2008), sem desconsiderar novas descobertas da ciência quanto à abordagem e intervenção de problemas de saúde mental. Ao concluírem sua formação, os alunos de Psicologia poderão ter na vida profissional uma robusta participação nos sistemas públicos de saúde e de educação, portanto, espera-se que estejam capacitados a identificar os sinais precoces dos TEA, assim como outros transtornos infantis.

Sabe-se que a formação em Psicologia no Brasil é de caráter generalista e interdis-ciplinar a partir de um núcleo comum estabelecido nas diretrizes curriculares nacionais. De um lado, trata-se de uma formação do profissional com atuação em diferentes contextos, considerando as necessidades sociais e os direitos humanos, tendo em vista a promoção da qualidade de vida dos indivíduos, grupos, organizações e comunidades (Ministério da Educação, 2011). De outro, os diferentes cursos de graduação têm autonomia de escolha sobre as orientações teórico-metodológicas que embasa-rão a formação do futuro profissional da área (Silva Baptista, 2010). Essa dualidade gera conflitos na formação a depender da escolha teórico-metodológica que é enfatizada no curso, pois nem sempre todas as áreas de atuação profissional de um psicólogo poderão ser cobertas durante a graduação. Além disso, nota-se certa resistência no método de ensino baseado em evidência científica para estudantes de Psicologia no Brasil, mesmo que, desde 2008, autores venham identificando lacunas nas diretrizes sobre a atuação do psicólogo no campo da saúde mental, sugerindo um núcleo comum mais adaptado às demandas atuais da sociedade (Ribeiro & Luzio, 2008).

O último resultado desta pesquisa destacou a relevância da pesquisa durante a graduação, já que os estudantes que haviam feito IC na área de saúde mental obtiveram melhor desempenho na comparação com os que não haviam desenvolvido nenhum projeto de pesquisa nessa área (7,5 acertos versus 4,4 acertos; p < 0,01). Em 2014, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) distribuiu 49.045 bolsas, considerando todas as modalidades (mestrado, doutorado, IC etc.), das quais 41,11% foram destinadas à IC (20.164). Conforme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio da Teixeira - Inep (2014), nesse mesmo ano o número de alunos matriculados no curso de Psicologia no Brasil era de 179.892, e o número de bolsas concedidas a esses estudantes consistiu em 2.625 (1,45%). Esses dados revelam que uma parcela mínima desses alunos, ainda menor que a identificada em nossa amostra, passa por essa experiência, evidenciando a necessidade da ampliação de investimentos nesse campo com programas de incentivo à pesquisa durante a graduação.

Além disso, em conformidade com os resultados da presente pesquisa, autores apontam que a realização de IC é um fator que contribui para a formação integral do psicólogo. Segundo Cruces e Maluf (2007), a necessidade de melhor qualificação prevista nas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia tem estimulado o aumento da produção de pesquisa na graduação. Todavia, ainda não é suficiente para atender à demanda de profissionais que se formam a cada ano, haja vista a baixa relação aluno/bolsa no programa de financiamento do CNPq.

Em conclusão, esta pesquisa traz novas contribuições para seu campo do conhecimento, mas possui algumas limitações:

(1) Os participantes foram selecionados por conveniência, e a amostra não é representativa dos estudantes de universidades particulares da cidade de São Paulo. Desse modo, os achados deste estudo devem ser avaliados com cautela, uma vez que podem não representar o nível de conhecimento de TEA de universitários de outras instituições de ensino. (2) O questionário desenvolvido pelos autores não apresenta, até o momento, evidências de validade, o que diminui a validade interna do estudo. Portanto, recomenda-se que futuras pesquisas incluam a validação desse questionário para medida de nível de conhecimento sobre TEA. (3) A avaliação dos conhecimentos sobre TEA de modo indireto, por meio de questionário, não garante que os conhecimentos descritos sobre o tema sejam decorrentes do conteúdo programático dos cursos ou de outras fontes de informação. (4) Não foram coletados dados sobre o tipo de atividade e o período de tempo dedicado pelos alunos que haviam concluído seus projetos de IC. Seria interessante que novas pesquisas incluíssem esses detalhes que ajudariam a melhor compreender o papel da IC no nível de conhecimento desses estudantes na comparação com os colegas que não haviam passado por essa experiência acadêmica.

As limitações aqui citadas não desmerecem os resultados obtidos, mas devem ser incluídas em futuros estudos, mantendo assim o ciclo das novas contribuições para campo dos TEA.

 

Referências

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Mailling address:
Cristiane Silvestre de Paula
Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, Universidade Presbiteriana Mackenzie
Rua da Consolação, 930, prédio 28
São Paulo, SP. CEP: 01302-000
E-mail: csilvestrep09@gmail.com

Submissão: 6.7.2017
Aceite: 4.6.2018

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