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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.20 no.3 São Paulo Sept./Dec. 2018

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v20n3p228-239 

ARTIGOS
PSICOLOGIA SOCIAL

 

Transformações institucionais contemporâneas: uma análise sobre as relações não presenciais

 

 

Paulo Roberto de Carvalho

Universidade Estadual de Londrina - UEL, PR, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A Psicologia Social destaca a análise das instituições que distribuem funções e operam a socialização. No período atual, uma abordagem histórica da rede institucional revela que as instituições foram transformadas por um mesmo processo: a emergência e consolidação de relações não presenciais. O presente estudo objetivou analisar as instituições buscando compreender como se dão e quais são as mudanças nas funções que as sociedades capitalistas lhes atribuem, focalizando a família, a escola, a prisão e as organizações laborais. A metodologia adotada foi qualitativa, que se caracteriza pelo estudo aprofundado dos acontecimentos sociais, considerando os discursos e as práticas de seus agentes. Como resultado, a pesquisa delineou as principais mudanças no âmbito institucional que as sociedades modernas enfrentam.

Palavras-chave: instituições; transformação social; Psicologia; contemporaneidade; tecnologia.


 

 

Introdução

A Psicologia Social, como campo de conhecimento que abarca em suas investigações tanto os sujeitos individuais quanto os processos coletivos, sempre reservou um lugar de destaque para as instituições sociais, que são consideradas mediadoras entre as determinações coletivas, sejam elas estatais ou culturais, e os sujeitos individuais. De modo preliminar, as instituições podem ser compreendidas como conjuntos de normas e procedimentos a serem seguidos para obtenção de determinados resultados no âmbito social. Assim, com a família se processa a socialização primária, complementada na escola que dá continuidade a esse percurso pela socialização secundária. Essa configuração ampla, uma "forma geral" institucional, por sua vez, ganha suporte material para execução de suas funções por meio dos estabelecimentos institucionais: a escola, o hospital, a prisão e outros. O espaço de cada uma dessas instituições agrupa sujeitos a serem transformados num dado período, fazendo com que, nesse compartilhamento do meio, constitua-se um território que poderá ser objeto de investimento afetivo e desejado por parte dos sujeitos que ali permanecerão.

O território institucional, assim, ganha consistência ao agrupar no mesmo espaço e por certo tempo um conjunto de indivíduos que constrói relações entre si e com o estabelecimento institucional. Se considerarmos que, tal como observa Foucault (1996), as instituições sucedem-se umas às outras produzindo modificações nos sujeitos, será possível admitir que no meio institucional produz-se, de maneira continuada, um modo de vida ou ainda um tipo de existência. Foucault (1996) coloca em destaque que o que está em questão é a adequação do humano ao ordenamento social vigente e ao arranjo produtivo a ele correspondente. Produz-se, então, o tipo de vida demandada pela sociedade capitalista atual, o que incorpora expectativas de produtividade e de aceitação acrítica de todo o conjunto de normas que compõe e regula o meio social.

Diferentes autores (Donzelot, 1986; Ariès, 1981; Foucault, 1998, 2014), com distintas concepções teórico-metodológicas, tematizaram a problemática institucional sobre diversos ângulos, mas sempre dando destaque às funções políticas que recobrem as instituições. Também é uma constante nesses estudos o enfoque histórico aplicado ao âmbito institucional. Nessas abordagens, as instituições executam funções formativas, educativas, punitivas, de promoção da saúde e outras, além de participarem ativamente no processo de socialização dos indivíduos. Como efeito desse processo, identifica-se nas instituições seu papel estratégico na produção do indivíduo dócil e submisso (Foucault, 1998) dentro daquilo que pode ser caracterizado como um processo de conformação social (Carvalho, Mansano, & Cunha, 2011). Tal processo tem como horizonte a diminuição das possíveis formas de resistência e contestação dirigida aos modos de organização das sociedades.

O enfoque histórico-crítico ressalta que um dos efeitos que podem ser categoricamente atribuídos às instituições é a reprodução dos valores e da hierarquia social dominante, fazendo dos sujeitos defensores do status quo e do ordenamento social vigente. Em função dessa visão histórica, tem-se também que as instituições podem ser analisadas longitudinalmente, ou seja, nas suas variações ao longo do tempo. Outra decorrência é que as instituições podem ser datadas: elas nascem, desenvolvem-se e, por vezes, esgotam-se no cumprimento de suas funções sociais. Como tudo o mais no meio social e histórico, as instituições podem acabar sendo substituídas por outras, mais adequadas ao momento histórico, porque são mais efetivas no exercício dos poderes. Tomando em consideração esse contexto, o objetivo do presente estudo consiste em analisar as transformações ocorridas e em curso nas instituições sociais decorrentes do surgimento e da consolidação da rede mundial de computadores que coloca em evidência as relações não presenciais.

 

Desenvolvimento

O século XX, com seu acelerado avanço tecnológico, provocou transformações irreversíveis em todos os domínios da vida humana, e isso se estende às instituições sociais. A família nuclear burguesa, modelo familiar tornado hegemônico em todos os estratos sociais, viu sua importância como instituição legitimadora do capitalismo crescer. Analisando o período, Guattari (1997, p. 48) descreve esse processo, enfatizando as funções políticas que o meio familiar vai desempenhar:

Ao longo do século XX, os poderes vigentes adquirem um “cuidado maior" com a codificação e o controle da vida doméstica do casal conjugal e da família nuclear. Em resumo, reterritorializando a família em grande escala (pela mídia, os serviços de assistência, os salários indiretos...) tentar-se-á aburguesar ao máximo a subjetividade operária.

Tal como considera Guattari (1997), o meio institucional familiar passa por transformações que o inscrevem, com novas funções, numa sociedade sob o efeito permanente dos meios de comunicação. Que outras mudanças nos modos de vida instituídos poderemos identificar em função da emergência das sociedades comunicacionais?

No decorrer desse século, também a escola sofreu consideráveis transformações no que diz respeito a seu papel na formação e na educação. A escolarização não cessou de ampliar sua esfera de atuação, estendendo-se ao longo de toda a vida dos sujeitos (Mioto, 2015). Evidentemente, esse aumento do tempo de escolarização responde ao considerável desenvolvimento tecnológico então experimentado, que solicita a formação ampliada e a capacitação de uma mão de obra cada vez mais especializada. Como observa Deleuze (1992, p. 225), a escola vincula-se cada vez mais ao contexto do mercado: "No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, introdução da 'empresa' em todos os níveis de escolaridade".

É possível relacionar a ascensão da escola com uma diminuição relativa dos poderes dos pais sobre seus filhos, particularmente, a partir do momento em que a escola adota o regime de tempo integral (Lima & Chapadeiro, 2015). Donzelot (1986) analisou esse processo no qual família e escola compartilham funções ou alternam-se nos suprimentos de determinadas demandas sociais. O autor assinala que a escola se tornou uma instituição de referência da vida familiar, o que teve por efeito operar uma normalização da família, em consonância com as novas exigências das sociedades capitalistas, particularmente no que diz respeito à trajetória profissional das crianças. Tomando em perspectiva a abertura do meio familiar às demandas do ordenamento social capitalista, o autor considera:

Em suma, podereis mostrar as qualidades que os pais devem adquirir para se transformarem em verdadeiros educadores, capazes de corrigir, pela intensidade de sua ação, a carreira escolar de seus filhos, de melhorar suas oportunidades numa época em que, justamente, o nivelamento escolar os ameaça (Donzelot, 1986, p. 186).

Ao examinar, na sequência, os impactos que a aquisição tecnológica provocou no meio institucional familiar, Donzelot (1986) se detém sobre o elemento precursor de um conjunto de transformações irreversíveis: o surgimento e a consolidação das transmissões radiofônicas produzindo efeitos no até então fechado meio familiar. Primeiramente, as ondas do rádio operam uma abertura ao difundirem conteúdos que podem ser traduzidos como valores, ideias, modos de sentir e pensar, bastante diferentes daqueles que circulavam no interior familiar pela ação educadora dos pais. Mas também foi por meio do rádio que a própria configuração fechada da família começou a ser colocada em questão. Diferentes programas radiofônicos adotaram como prática a exibição de depoimentos referidos à vida privada, num processo denominado pelo autor de "confissão". Este consiste, então, em falar em público ou, ao menos, para aqueles que estão fora do núcleo familiar, sobre a vida privada, seus problemas e dilemas. A confissão caracteriza-se pelo relato voluntário no qual a intimidade é exposta e revelada. Como prática difundida pelo rádio, a confissão tornou-se um procedimento usual e colaborou decisivamente para que a família passasse de instituição fechada à aberta. Como observa Donzelot (1986, pp. 188-189), a "forma-confissão é fácil de ser observada em todos os técnicos de relação, quer pratiquem em consultórios particulares, em instituições públicas ou através das ondas radiofônicas".

Dando seguimento a esse processo, a segunda metade do século XX universalizou as transmissões televisivas com temática familiar, mantendo assim a exposição da vida privada que caracterizava a confissão, agora com o aporte da exibição de imagens de uma intimidade até então reclusa (Franca & Souza, 2016). A aquisição de um aparato tecnológico capaz de universalizar a transmissão por meio eletromagnético efetivamente inaugura uma nova etapa nas sociedades ocidentais do século XX. A partir dela, os humanos já não estão obrigados às relações presenciais, podendo acessar o vivido por outrem por meio de imagem e som, conectando-se a uma realidade remota ou mesmo com uma pseudorrealidade, fictícia, produzida artisticamente na forma de programação televisiva.

As aquisições tecnológicas foram naturalizadas ao se inscreverem na vida cotidiana de uma parcela significativa de seres humanos em todo o planeta. Com ela, tornaram-se expostas as diferenças de valor, de concepção de mundo, de convicção religiosa. Nesse contexto, o apelo à modernidade se contrapôs às resistências vindas dos segmentos mais conservadores que, acertadamente, relacionavam a chegada da era das comunicações com o declínio dos valores morais tradicionais.

A introdução das sociedades na era das interações sociais não presenciais produziu subsequentemente uma série de transformações inusitadas. Os meios de comunicação, até então, eram somente o rádio e a televisão. O movimento subsequente ocorre já nas últimas décadas do século XX, quando são popularizados os primeiros computadores pessoais que, em seguida, foram conectados em rede. Nesse novo cenário, outra ruptura se produziu: ocorre que, nas modalidades de radiodifusão, a comunicação se dá sempre de modo centralizado, uma vez que os conteúdos são difundidos a partir de um único polo emissor para o conjunto dos ouvintes e espectadores. Já com a consolidação da rede mundial de computadores, essa configuração centralizada e centralizadora da comunicação sofre uma mudança brusca. Com a inserção de bilhões de seres humanos nos procedimentos corriqueiros de emitir e receber dados, nas formas de imagem, som e texto, a arquitetura das interações não presenciais amplia-se significativamente. Os efeitos desse processo seguramente ainda não são completamente conhecidos. Para o nosso objeto de investigação, ou seja, as alterações institucionais ocorridas no século XX, também é cabível considerar que uma série de efetua-ções irreversíveis aconteceu.

Cabe considerar que as instituições sociais estavam organizadas exclusivamente sobre a interação presencial entre seus agentes e aqueles sobre os quais as práticas institucionais incidem. Nesse campo, de fato, ocorre uma mudança de paradigma, uma vez que, para Foucault (1998), a organização do espaço institucional era toda voltada para a interação presencial. Nela, as instituições se dividiam em salas, que podem ser de aula, celas e consultórios, atendendo, assim, a uma distribuição dos corpos que propiciava a interação presencial. Nesse formato, ainda parcialmente vigente, é que as instituições intervêm sobre a vida dos sujeitos, produzindo sobre os corpos a adequação para uma inserção plena deles no ordenamento social e econômico.

Essa dinâmica vale tanto para os processos de natureza educacional como para as instituições prisionais, mas encontra-se também em hospitais, creches, fábricas e asilos. Sem tecnologia avançada de comunicação, o modelo institucional era todo ele dependente da interação presencial. O ordenamento jurídico legal e a regulamentação interna de cada instituição, que sancionavam as práticas nelas instituídas, também se remetiam exclusivamente ao presencial. Quando se consolidam os dispositivos tecnológicos de comunicação informatizada, que viabiliza intervenções institucionais a distância, as instituições recebem suporte material e imaterial para o advento dessa nova realidade. As últimas décadas do século XX assistiram a um processo de gradativa ampliação da área de efetuação das instituições sociais que reformularam procedimentos e regulamentações. Estas passam a contar também com a normatização jurídico-legal que sancionam as novas práticas, que agora são não presenciais. Que consequências podem ser assinaladas em função da ocorrência desse processo?

Analisemos algumas das principais instituições presentes na sociedade moderna por esse critério da inclusão entre seus procedimentos de práticas executadas a distância e mediadas pelo aparato tecnológico informatizado de comunicação. Comecemos pela escola, essa instituição mais recentemente tornada onipresente e cuja importância não cessou de crescer. Como se sabe, uma parcela significativa da educação de nível superior em países como o Brasil hoje se realiza a distância. São milhões de estudantes que obtêm seus diplomas de graduação e pós-graduação sem ter frequentado, em sentido estrito, a sala de aula (Chaquime & Mill, 2016).

As transformações decorrentes da mudança de paradigma aqui são bastante visíveis. Professor e estudante encontram-se a distância, mas também a socialização vivida na sala de aula sob o modelo presencial deixa de existir. Guattari (1992, p. 31) observa que as instituições engendravam territórios de convivência que deixarão de existir "sobretudo no contexto contemporâneo onde o primado dos fluxos informativos engendrados maquinicamente ameaça conduzir a uma dissolução generalizada das antigas territorialidades existenciais". As colocações do autor são incisivas: estamos em meio a uma mutação acelerada provocada pelo advento das relações não presenciais que tem o potencial de tornar arcaicas as práticas institucionais e seus territórios afetivos correspondentes. Uma mudança dessa magnitude só pode ser compreendida se avaliada historicamente, tendo em vista o longo período que essas instituições (como a família) cumpriram funções sociais e deram forma aos modos de vida compartilhados (Zani & Mansano, 2017).

Essa é somente mais uma das questões que a transformação dos espaços institucionais nos coloca. A escolarização básica e intermediária, que aparentemente se mantém dependente do presencial, também foi profundamente modificada. Todos, em uma sala de aula, têm seus dispositivos eletrônicos conectados à rede mundial de computadores. Os conteúdos disseminados no processo educacional, antes apresentados pelo professor, hoje vêm de qualquer ponto do planeta, bastando para isso que tenham sido disponibilizados por outro usuário da rede. A função social do professor tornou-se outra, mais relacionada à seleção e organização do material pesquisado pelos alunos sobre o tema em questão (Rosa & Trevisan, 2016).

Passando ao âmbito das instituições e dos estabelecimentos prisionais (Foucault, 1996), também estão presentes em todas as sociedades ocidentais, a emergência do não presencial foi absorvida como um recurso para o enfrentamento da problemática crônica de superlotação dessas instituições. Foram criados e sancionados legalmente dispositivos de monitoramento a distância pelos quais o sujeito é vigiado e localizado em caráter permanente. Premidos pelos custos, um grande número de países rapidamente aderiu à modalidade do aprisionamento não presencial, caracterizado por Deleuze (1992, p. 225) como parte do cenário contemporâneo: “No regime das prisões: a busca por penas 'substitutivas', ao menos para a pequena delinquência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa em certas horas". Nesse caso, o distanciamento entre apenados provocado pelo advento do não presencial foi considerado um ganho adicional pelos gestores do sistema carcerário, uma vez que o convívio e os vínculos construídos presencialmente entre prisioneiros eram identificados como fatores que contribuíam para a manutenção da criminalidade.

Também a instituição familiar, que ao longo do século XX tornou-se aberta e cujos membros já admitem expor suas existências privadas, adota cada vez mais a interação não presencial. Isso se dá principalmente em função do distanciamento provocado pelo mercado de trabalho, que oferece uma posição satisfatória ao sujeito num contexto distante de sua moradia. Para o trabalho ou para o estudo, pais e filhos deslocam-se pela cidade, pelo país e pelo mundo. Resulta daí que as vivências afetivas e relacionais do grupo familiar passam a se dar também no modo do não presencial. Pelas câmeras e telas do computador, os sujeitos do grupo que antigamente se definia por habitar o mesmo espaço agora se veem e se falam a distância, exercendo seus papéis de pai, mãe, filho ou filha por meio do aparato digital.

A instituição familiar foi, então, significativamente transformada pelo advento dos meios de comunicação. Por um lado, suas questões mais íntimas passaram a ser expostas e avaliadas nas veiculações midiáticas sob a forma da confissão, servindo como vetor de normalização das relações familiares. Por outro lado, a convivência entre seus membros tornou-se rarefeita e substituída, em parte, pelo contato não presencial. Efetivamente, a família contemporânea perdeu sua autonomia à medida que passou a atender às demandas sociais formuladas fora dela. Perdeu parcialmente, também, a capacidade de intervir na formação de seus membros, em função da diminuição da convivência, dada pela escassa relação presencial. Em função desse esvaziamento, Donzelot (1986, p. 203) vai caracterizar a família, em sua configuração atual, como um “simulacro funcional", ou seja, uma instituição que se mantém somente em aparência, como uma “constelação de imagens". Esse conjunto de imagens referido ao meio familiar dá sustentação à convicção compartilhada no meio social de que a instituição familiar segue desempenhando um papel insubstituível na socialização das novas gerações. Mas o fato incontestável é que a educação ocupa cada vez mais um espaço significativo nesse processo.

Ao adentrarmos no campo institucional da área da saúde, podemos constatar que também aí as interações não presenciais ocupam gradativamente o espaço até então exclusivo dos encontros de trabalho. São vários os procedimentos adotados, sempre justificados pela rapidez e eficiência com que se realizam. Tais práticas se distanciam cada vez mais da consulta médica. São exames de laboratório que vão, via internet, para o consultório do médico que os avalia e contata o paciente apenas quando necessário. O paciente não retorna à consulta, seguindo as orientações médicas recebidas pelo computador ou telefone.

No campo da saúde, pode-se dizer também que a atuação profissional a distância ganhou um perfil ainda mais claro. Por meio dela, o médico tem acesso direto ao corpo do paciente sem qualquer participação consciente dele. São, por exemplo, aparelhos celulares que monitoram sinais vitais transmitindo-os diretamente para o médico, que contata o paciente somente em caso de necessidade.

Por fim, a própria Psicologia que consolidou seu instrumental de intervenção psico-terapêutico com base na relação presencial sofre um abalo decorrente das tecnologias de comunicação. No Brasil, estão sendo testados em caráter experimental procedimentos de psicoterapia a distância, e cresce entre os profissionais a expectativa de que eles sejam regulamentados (Conselho Federal de Psicologia, 2012).

Se considerarmos que a contemporaneidade capitalista tem como horizonte a universalização do acesso aos meios eletrônicos de comunicação, somos obrigados a reconhecer que o gradativo abandono das relações presenciais para fins institucionais é algo que deve continuar ocorrendo. De que modo seria possível caracterizar esse processo ora em curso? Trata-se, segundo Guattari (1992), de reconhecer, no abandono relativo das relações nas instituições, o esvaziamento de sentido e de valor daquele espaço, o que assinala a possibilidade de vivermos, hoje, uma mutação. Esta tem o potencial de impactar radicalmente a rede de instituições que dá suporte para a vida em sociedade, tornando-a disfuncional.

Tal como se evidencia nas instituições já mencionadas, estamos diante de um conjunto de mutações que incidem sobre os modos de organização da vida no contemporâneo. Essa constatação dá suporte à formulação de uma série de problemas. Vejamos alguns:

• É possível falar em sociabilidade quando abordamos relações não presenciais?

• Esse tipo de relação tem o mesmo valor afetivo que os encontros?

• A intermediação operada pelo aparato tecnológico não cria as condições necessárias para uma vigilância remota dessas relações?

Para além do mero assinalamento dessas mutações, cabe caracterizá-las em termos dos efeitos políticos que produzem, mais particularmente, das formas de dominação e controle que se apoiam nas tecnologias universalizadas (Mansano, 2009). Um dos efeitos que decisivamente se fazem presentes é a aceitação passiva e não crítica do cenário emergente na forma de uma naturalização das rupturas, que o senso comum se encarrega de denominar de modernidade, convocando assim implicitamente para a inserção nos novos modos, sob pena de ser identificado como obsoleto.

As instituições analisadas (família, escola, prisão e organizações laborais) evidenciam a consistência do processo ora em curso. Entretanto, o mesmo movimento pode ser identificado em inúmeros outros contextos institucionais. Em cada um deles, é possível compreender quais práticas e procedimentos adotados estão em declínio e quais são emergentes, permitindo-nos identificar as novas configurações institucionais.

A emergência do não presencial e sua disseminação em diferentes contextos institucionais prefiguram novos modos de vida, nos quais a mediação feita pelo aparato tecnológico substitui a presença física do sujeito. Em decorrência disso, o conjunto de instituições que historicamente cumpriam funções no modo presencial começa a dar sinais de disfuncionamento e obsolescência. A constatação de que uma crise generalizada das instituições está em curso, em função do vertiginoso avanço tecnológico que a época atual incorpora, pode nos conduzir, no entanto, a outro tipo de problemática, aquela das relações de poder e dos seus regimes de efetuação. É o que considera Deleuze (1992, p. 220) ao assinalar que a mudança em curso tem implicações bastante amplas e de natureza política:

Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um "interior", em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir a sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares.

Trata-se de um deslocamento significativo na compreensão das transformações sociais e institucionais a que hoje assistimos. Mais do que uma modernização continuada do aparato tecnológico, as sociedades capitalistas contemporâneas engendram hoje um dispositivo voltado para efetuação de novas formas de controle a serem utilizadas por sobre as populações nos quatro cantos do planeta. Sobre a crise que se experimenta em cada uma das instituições sociais, Deleuze (1992, p. 225) observa: "São exemplos frágeis, mas que permitiriam compreender melhor o que se entende por crise das instituições, isto é, a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação". O aparato tecnológico que viabiliza a emergência das novas formas de controle já pode ser encontrado em uma infinidade de situações da vida cotidiana. Para nos mantermos no aspecto mais evidente do controle, basta assinalar a onipresença da vigilância por câmeras que se distribui pelo tecido social, sendo operadas por diferentes instâncias de poder, o que dispensa a utilização de qualquer estratégia presencial para o monitoramento (Nascimento & Justo, 2016).

Cabe considerar, no entanto, que, se a emergência histórica do não presencial traz consigo a consolidação de novas formas de poder, nem por isso encontramos em Deleuze (1992) algum tipo de fatalismo ou resignação. Ao contrário, ele observa: "não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas" (Deleuze, 1992, p. 220). Uma colocação como essa evidencia um problema político crucial para a contemporaneidade:

• Como resistir aos modos nascentes de dominação embutidos na modernização tecnológica e no advento do não presencial?

• Como reverter, ainda que em escala microscópica, a implantação de um regime de poder que se assenta nessas novas condições de vida?

Guattari (1992), que manteve com Deleuze uma interlocução permanente, entrevê uma possível resistência ao movimento aparentemente inexorável das transformações institucionais contemporâneas. Se os espaços institucionais disciplinares foram lançados na disfuncionalidade, se já não servem para dar suporte para os modos de vida do período atual, não caberia engendrar outros tipos de espaços adequados a uma sociabilidade também outra, a ser também inventada? Para o autor, é necessário reverter o isolamento e o solipsismo que gradativamente se inscrevem no cotidiano relacional que hoje experimentamos. A resistência, por sua vez, comporta reinvenção das sociabilidades presenciais. A arquitetura das instituições tradicionais, hoje obsoleta, convoca-nos a

Construir dando chances a mutações virtuais que levarão as gerações futuras a viver, sentir e pensar diferentemente de hoje em dia, tendo em vista as imensas modificações, em particular de ordem tecnológica, que nossa época conhece. O ideal seria modificar a programação dos espaços construídos, em razão das transformações institucionais e funcionais que o futuro lhe reserva (Guattari, 1992, p. 176).

A resistência possível, ao mesmo tempo que necessária para a época em que vivemos, tem como direção o resgate das sociabilidades em uma paisagem institucional reinventada, que possibilite a emergência de novos modos de expressão da afetivi-dade, seja ela inscrita no presencial ou não. Como assinala Guattari (1997, p. 16): "A questão será literalmente reconstruir o conjunto das modalidades do ser em grupo. E não somente pelas intervenções 'comunicacionais', mas também por mutações existenciais".

Ao apontar a necessidade de reconstrução dos modos de vida grupais, bem como de criação de novos espaços institucionais de convivência, Guattari (1997), fazendo uma análise crítica do contemporâneo, evidencia o fato de que o advento do não presencial produziu um impacto severo na sociabilidade que se experimentava nos espaços institucionalizados. As possibilidades de encontro entre diferentes sujeitos no cotidiano foram diminuídas em decorrência da ascensão do não presencial, o que pode implicar um empobrecimento afetivo e contribuir para o isolamento e a solidão, sob diferentes formas, em escala populacional (Fonseca, 2013).

Da análise proposta por Guattari (1997) é possível extrair que a resistência, como operação de natureza política, consiste em confrontar as determinações dos poderes sem, no entanto, adotar um posicionamento refratário, de negação das mudanças ocorridas. Cabe acolher as mudanças abruptas que o capitalismo imprimiu na existência de todos, reinventando ao mesmo tempo uma sociabilidade voltada para os novos modos de expressão de afeto.

 

Considerações finais

Com certa frequência, a contemporaneidade capitalista é descrita como um período de transformações vertiginosas, que recolocam a vida em sociedade em condições anteriormente desconhecidas. É possível considerar que, no âmbito das instituições sociais, tais descrições são pertinentes e assinalam, ao menos parcialmente, a complexidade do tempo histórico atual. Todavia, a pluralidade de registros dessa natureza comporta também uma certa dose de naturalização, pela qual o que há de extraordinário nas rupturas e transformações ocorridas no meio social converte-se rapidamente em algo ordinário, mais uma mudança à qual é necessário adaptar-se e inscrever-se no processo que caracterizamos como conformação social. Entretanto, pensar historicamente os modos de vida em sociedade que estão se afirmando, tal como a prevalência das relações não presenciais, passa necessariamente por reverter essa naturalização, resgatando e dando destaque para a condição extraordinária e complexa que é a marca da época atual. Será nessa condição que a vida em sociedade vai continuar se produzindo.

A abordagem histórica é a condição mínima para que, em meio às sociedades em transformação, possamos identificar os novos modos da coerção social e da normalização que, até agora, eram executadas nas instituições sob o modo presencial. Seguramente, esses procedimentos não deixarão de existir em função da emergência das relações não presenciais. A normalização e a coerção, sob o modo da conformação social, podem, inclusive, tornar-se mais efetivas no cenário que se descortina.

Se no passado a produção social do sujeito dócil, adequado e submisso passava necessariamente pela intervenção continuada e presencial de pais, professores e outros agentes das instituições, caracterizando-os assim como mediadores das funções sociais, na contemporaneidade capitalística uma nova configuração ganha forma e nela as instâncias de poder atuam apelando diretamente ao indivíduo, contornando a mediação institucional.

Às instituições sociais restaram dois destinos possíveis: ou serão redefinidas pela atribuição de novas funções estratégicas para o controle das coletividades ou experimentarão a agonia de um esvaziamento continuado (Deleuze, 1992). Se isso vier a acontecer, é porque os poderes vigentes já não dependem mais das instituições para o exercício efetivo da dominação sobre as populações, agora consideradas como aglomerados de indivíduos.

 

Referências

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Endereço de correspondência:
Paulo Roberto de Carvalho
Universidade Estadual de Londrina, campus universitário, Centro de Ciências Biológicas, Departamento de Psicologia Social e Institucional
Rodovia 445, km 180
Londrina, PR, Brasil. CEP: 86051-990
E-mail: paulor@uel.br

Submissão: 17.1.2018
Aceite: 27.7.2018

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