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Psicologia: teoria e prática

versión impresa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.21 no.1 São Paulo enero/abr. 2019

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v21n1p220-235 

ARTIGOS
DESENVOLVIMENTO HUMANO

 

Relações entre projetos de vida, tarefas domésticas e desempenho escolar em adolescentes

 

 

Fredericko WichmannI; Letícia L. Dellazzana-ZanonII; Lia Beatriz de L. FreitasIII; Marco Antônio P. TeixeiraIV

IInstituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
IIFaculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas)
IIIInstituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
IVInstituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo investigou relações entre projetos de vida, tarefas domésticas e prejuízos no desempenho escolar em adolescentes. Participaram 113 adolescentes brasileiros, de 14 a 16 anos, alunos de escolas municipais. Foram utilizados uma ficha de dados biossociodemográficos, o Questionário de Tarefas Domésticas e de Cuidado entre Irmãos (QTDCI) e um depoimento escrito sobre projetos de vida. Os resultados indicaram diferença significativa para a relação entre tarefas domésticas e projetos relacionados a bens materiais (t = -2,88, p = 0,00), e nenhuma diferença significativa nas variáveis de desempenho escolar. Contudo, quando estratificada a amostra por sexo, encontraram-se relações diferentes, e prejuízo escolar apenas no grupo feminino (t = -3,13, p = 0,00). Concluiu-se que há relações entre as variáveis investigadas, o que justifica a realização de novos estudos, e que se deve considerar a variável sexo quando se analisam essas relações.

Palavras-chave: projetos de vida; tarefas domésticas; gênero; adolescência; desenvolvimento.


 

 

1. Introdução

Este estudo buscou investigar relações entre projetos de vida, tarefas domésticas e prejuízos no desempenho escolar em adolescentes.

A elaboração de projetos de vida é uma importante tarefa do desenvolvimento. Esses projetos são construídos de diferentes modos ao longo de todas as fases do desenvolvimento humano, mas é na adolescência que se tornam uma possibilidade concreta, considerando-se os avanços cognitivos, afetivos e morais próprios desse período (Dellazzana-Zanon & Freitas, 2015). Estudos sugerem que os projetos de vida são fundamentais para a adolescência e estão associados a melhores índices de bem-estar psicológico e de conquistas na vida adulta, além de possuírem papel relevante para a formação de autoconceito (Massey, Gebhardt, & Garnefski, 2008).

O interesse científico pelos projetos de vida pode ser considerado recente (Lewis, Turiano, Payne, & Hill, 2016). Em uma revisão da literatura, Dellazzana-Zanon e Freitas (2015) observaram que a maior parte dos estudos revisados (63,6%) não apresenta uma definição explícita de projeto de vida. Entre as pesquisas que apresentaram uma definição clara, observaram-se diferenças entre os conceitos. Neste artigo, considera-se projeto de vida "um conjunto de anseios que se pretende realizar por meio de etapas a serem ultrapassadas rumo a um ideal pretendido, o que permite a organização e a orientação em direção à sua realização no futuro" (Silveira, Machado, Zappe, & Dias, 2015, p. 53).

Estudos apresentam evidências de que fatores contextuais, como ambiente, família, pares, atividades, são decisivos para a constituição dos projetos de vida (Massey et al., 2008). Todavia, poucos estudos empíricos investigam que fatores são esses, sobretudo em amostras de populações vulneráveis. Nesse sentido, pesquisas que considerem diferenças socioeconômicas na construção de projetos de vidas devem ser realizadas (Bronk, 2014).

Um possível fator de influência que se faz presente principalmente em famílias de baixo nível socioeconômico é a realização de tarefas domésticas. Há uma discussão a respeito de quais atividades devem ser incluídas nessa categoria, bem como dos limites que separam a realização de tarefas domésticas na infância e na adolescência, considerada parte da vivência familiar, do trabalho doméstico infantil, proibido para menores de 18 anos (Patriota & Alberto, 2014).

Embora não exista uma definição clara a respeito do conceito, a síntese de indicadores sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] (2015) inclui na categoria de afazeres domésticos o cumprimento das seguintes tarefas realizadas no domicílio: a) arrumar ou limpar toda ou parte da moradia; b) cozinhar ou preparar alimentos, passar roupa, lavar roupa ou louça, utilizando ou não aparelhos eletrodomésticos para executar essas tarefas para si ou para outro(s) morador(es); c) orientar ou dirigir trabalhadores na execução das tarefas domésticas; d) cuidar de filhos ou menores de idade; e) limpar o quintal ou terreno que circunda a residência. O último levantamento do IBGE constatou que, na faixa de 10 a 15 anos de idade, 37,6% dos meninos e 68,5% das meninas brasileiras declararam exercer tarefas domésticas. Os efeitos dessas atividades para o desenvolvimento, porém, não vêm recebendo a devida atenção.

Não existe consenso entre os pesquisadores sobre a participação dos jovens nas tarefas domésticas. De um lado, alguns autores sugerem que as tarefas domésticas podem acarretar prejuízos para o desenvolvimento. Os adolescentes que realizam tarefas domésticas, além de terem pouco tempo para atividades de lazer, sofrem prejuízos significativos no desempenho escolar, apresentando mais ausências e reprovações e menos tempo para a realização dos deveres escolares (Dellazzana-Zanon, Zanon, & Freitas, 2014). Esse fator relaciona-se também com os projetos de vida, pois se sabe que o desempenho escolar influencia as expectativas em relação ao futuro (Oyserman, Bybee, & Terry, 2006).

De outro lado, autores sugerem a existência de efeitos positivos na realização de tarefas domésticas na adolescência. Por representarem o primeiro tipo de "trabalho" com o qual a maioria das pessoas se depara, as tarefas domésticas, nas condições apropriadas, oferecem a oportunidade de experiências de realização e sucesso, exigem responsabilidade e independência, e estimulam o autocontrole e a persistência, sendo consideradas importantes para o desenvolvimento da autoeficácia (Riggio, Valenzuela, & Weuser, 2010). O estudo de Pestana et al. (2016), por exemplo, investigou se o desempenho escolar dos adolescentes seria influenciado por variáveis relacionadas com as atividades domésticas. Os autores constataram que os adolescentes que colaboram com os familiares em atividades domésticas apresentaram melhor desempenho escolar do que aqueles que não colaboram.

Quais seriam as razões para essas divergências em relação aos efeitos (positivos e negativos)? Além da quantidade de tempo despendido, Riggio et al. (2010) sugerem que a diferença está na qualidade das tarefas, nas razões dos pais para a atribuição delas, nas crenças da criança e do adolescente quanto a estar escolhendo ou sendo "forçado" à realização dessas tarefas, e na qualidade das relações parentais.

Outra razão importante pode estar associada à variável sexo. Parece haver consenso na literatura (Cunha, André, Aparício, Santos, & Nunes, 2016; Sousa & Guedes, 2016) de que há diferenças entre homens e mulheres no que diz respeito às tarefas domésticas. Sousa e Guedes (2016) explicam que, apesar das amplas mudanças na composição sexual do mercado de trabalho e das relações entre trabalho e família nas últimas décadas, os cuidados domésticos continuam sendo responsabilidade primariamente feminina. Em sua revisão sistemática da literatura, Cunha et al. (2016) encontraram que essa desigualdade é acentuada em famílias de nível socioeconômico baixo.

Em síntese, os estudos revisados indicam que: a) a elaboração de projetos de vida é uma importante tarefa do desenvolvimento, a qual pode sofrer influência de fatores contextuais; b) a realização de tarefas domésticas na adolescência é fenômeno recorrente no Brasil, cujos efeitos para o desenvolvimento ainda carecem de investigações; c) a realização de tarefas domésticas está relacionada com o desempenho escolar, o qual também se relaciona com projetos de vida; d) a realização de tarefas domésticas estabelece-se de forma diferente com os sexos masculino e feminino. Diante disso, formularam-se as seguintes hipóteses: (H1) o nível de realização de tarefas domésticas é diferente em grupos com e sem a presença de determinadas áreas de projetos de vida; (H2) o nível de realização de tarefas domésticas será maior nos grupos que apresentam prejuízo no desempenho escolar; (H3) há diferenças na realização de tarefas domésticas em função do sexo dos adolescentes. Os objetivos do estudo foram verificar associações entre projetos de vida, tarefas domésticas e prejuízos no desempenho escolar em adolescentes.

 

2. Métodos

Este estudo teve delineamento quantitativo, não experimental, em corte transversal. Com base nos estudos revisados, analisaram-se relações entre áreas de interesse de projetos de vida, nível de realização de tarefas domésticas e prejuízos no desempenho escolar em adolescentes (reprovação, expulsão ou abandono).

2.1 Participantes

Participaram deste estudo 113 adolescentes, 61,9% do sexo feminino matriculados em escolas públicas. Os critérios de inclusão utilizados foram: a) ter entre 14 e 16 anos; b) ser aluno da rede municipal de ensino de (nome da cidade); c) ter no mínimo um irmão mais novo coabitando. A média de idade dos participantes foi de 14,7 anos (DP = 0,8). Quanto à escolaridade, 4,4% frequentavam o 5º ano, 12,4% o 6º ano, 38,1% o 7º ano e 40,7%, o 8º ano do ensino fundamental (4,4% não responderam em que ano estudavam). Selecionaram-se participantes em escolas municipais, pois, conforme a literatura revisada, encontram-se adolescentes que realizam tarefas domésticas mais frequentemente no ensino público. Cabe dizer ainda que se restringiu a faixa etária para evitar projetos de vida muito distintos entre adolescentes mais novos e mais velhos.

No que diz respeito à estrutura familiar dos adolescentes investigados, 55% constituíam família nuclear, 20,7%, família reconstituída e 20,7%, família monoparental. Quanto à escolaridade dos pais, 57,7% das mães e 82,4% dos pais não possuíam ensino fundamental completo. Várias famílias (59,5%) recebiam algum tipo de assistência do governo. Em média, cada adolescente possuía quatro irmãos.

2.2 Instrumentos

Ficha de Dados Biossociodemográficos: instrumento desenvolvido especialmente para este estudo, com o objetivo de caracterizar a amostra por meio de dados biossociodemográficos e coletar informações concernentes aos objetivos da pesquisa, como estrutura familiar, escolaridade dos pais e os seguintes indicadores de prejuízo no desempenho escolar: a) reprovação; b) abandono; c) expulsão.

Questionário de Tarefas Domésticas e de Cuidado entre Irmãos (QTDCI): busca medir as variáveis de cuidado entre irmãos (quatro itens) e realização de tarefas domésticas (cinco itens - por exemplo, lavar roupas, cozinhar) e é respondido por meio de uma escala de tipo Likert de cinco pontos: 1) nunca; 2) um ou dois dias na semana; 3) três ou quatro dias na semana; 4) cinco ou seis dias na semana; 5) sempre. O QTDCI foi adaptado do Household Responsibilities Questionnaire (Riggio et al., 2010) para a população brasileira por Dellazzana-Zanon et al. (2014). Os dois fatores, referentes a cuidado de irmãos e tarefas domésticas, apresentaram coeficientes alfa adequados de 0,75 e de 0,69, respectivamente.

Depoimento escrito sobre projetos de vida (D'Aurea-Tardeli, 2008): consiste em uma questão aberta de autorrelato. Solicita que os participantes redijam um depoimento a partir de uma hipotética situação-problema: "Pense na pessoa que você é hoje. Imagine você mesmo daqui a 10 anos. Descreva como você desejaria que estivesse sua vida".

2.3 Procedimento de coleta de dados

Coletaram-se os dados em oito escolas municipais de (nome da cidade), contemplando as quatro regiões da rede municipal de ensino da cidade. A coleta de dados foi realizada nas dependências das próprias escolas, em pequenos grupos. O nível de realização de tarefas domésticas foi obtido mediante o somatório de pontos dos cinco itens referentes a tarefas domésticas do QTDCI, considerando-se a quantidade de tarefas realizadas e a sua frequência. Na ficha de dados biossociodemográficos, obtiveram-se indicadores de prejuízos no desempenho escolar: a) reprovação; b) abandono; c) expulsão.

2.4 Procedimento de análise de dados

Para analisar o depoimento escrito sobre projetos de vida, utilizou-se o método de análise de conteúdo (Laville & Dionne, 1999). Optou-se pelo modelo misto de categorização, no qual se parte de categorias a priori, que podem ser modificadas ao longo do processo de exploração dos dados, em função do que a análise indicar. Agruparam-se os projetos em cinco grandes categorias, que dizem respeito a áreas de interesse dos projetos de vida dos adolescentes: a) carreira; b) família; c) bens materiais; d) vida boa; e) virtudes. A presença ou a ausência de cada categoria foi codificada como 0, quando o projeto não foi citado, ou 1, quando o projeto foi citado. A categoria "carreira" incluiu projetos de vida relacionados a trabalho e estudo. A categoria "família" foi formada pelos projetos que mencionam a família de origem (por exemplo, morar próximo de pais ou irmãos) ou a constituição de nova família (cônjuge ou filhos). A categoria "bens materiais" incluiu projetos que mencionam a aquisição de bens (por exemplo, casa, moto, viagens etc.), abarcando também os projetos relativos à independência e ao alcance de estabilidade financeira. A categoria "vida boa" foi constituída de projetos ligados à aspiração de felicidade própria ou da família. A categoria "virtudes" foi formada pelos projetos de vida relacionados à generosidade (dar coisas ou ajudar alguém) ou a outras virtudes. Os projetos que não puderam ser classificados em nenhuma dessas categorias (por exemplo, namorar e ficar longe das drogas) foram codificados como "outros". Dois juízes trabalharam de forma independente na codificação das respostas. A confiabilidade interjuízes foi estimada por meio do coeficiente Kappa, e as medidas obtidas variaram entre 0,78 e 1.

Para a investigação das três hipóteses do estudo, realizaram-se comparações (testes t de Student) entre grupos. Para testar a hipótese 1, comparou-se a média dos escores do QTDCI entre os grupos com e sem a presença de uma das áreas de interesse dos projetos de vida. Quanto à hipótese 2, comparou-se a média dos escores do QTDCI entre os grupos com e sem a presença de prejuízos no desempenho escolar. Para verificar a hipótese 3, realizaram-se as mesmas análises após a separação da amostra por sexo.

 

3. Resultados

A hipótese de que o nível de realização de tarefas domésticas apresentaria relação com as áreas de interesse dos projetos de vida dos adolescentes (hipótese 1) foi parcialmente confirmada. Verificou-se diferença significativa apenas entre a média dos grupos com e sem a presença de projetos relacionados a bens materiais (Tabela 3.1), ou seja, os adolescentes que citaram bens materiais em seus projetos apresentaram escores significativamente maiores no QTDCI. A hipótese 2 investigou a relação entre o nível de realização de tarefas domésticas e o desempenho escolar dos adolescentes. Os resultados para a amostra geral, porém, não indicaram diferenças significativas entre os grupos com e sem a presença de indicadores de prejuízo no desempenho escolar (reprovação, abandono e expulsão). A hipótese 3 sugeria que essas análises fossem realizadas novamente, estratificando-se a amostra pela variável sexo.

 

 

Quanto à relação entre o nível de realização das tarefas domésticas e as áreas de interesse dos projetos de vida (hipótese 1), verificou-se que o grupo masculino apresentou resultados diferentes do grupo feminino. Enquanto adolescentes do sexo feminino apresentaram diferença significativa entre a média dos grupos com e sem a presença de projetos relacionados a bens materiais, adolescentes do sexo masculino apresentaram diferenças significativas para as áreas relacionadas a virtudes e à vida boa (Tabela 3.2). Esses resultados indicam que, para eles, maior nível de tarefas domésticas relaciona-se a maior tendência a elaborar projetos de vida referentes a virtudes e à vida boa, enquanto, para elas, mais tarefas domésticas relacionam-se a uma maior tendência a elaborar projetos de vida voltados à conquista de bens materiais. Não se verificaram diferenças significativas nas demais áreas de interesse dos participantes de cada grupo.

 

 

Quanto à relação entre o nível de realização de tarefas domésticas e o desempenho escolar (hipótese 2), após a estratificação da amostra, encontraram-se diferenças significativas entre as médias de nível de tarefas domésticas dos grupos com e sem reprovação (ter sido reprovado ao menos uma vez), mas apenas na amostra feminina (Tabela 3.3). Esses resultados sugerem que, quanto maior o nível de realização de tarefas domésticas, maior a possibilidade de reprovação na escola, mas apenas para elas.

 

 

4. Discussão

Este estudo investigou as relações entre projetos de vida, tarefas domésticas e prejuízos no desempenho escolar em adolescentes. Os resultados sugerem que os projetos de vida dos adolescentes podem estar associados com a realização de tarefas domésticas, e que essa associação pode ser mediada por uma relação diferente dos sexos com as tarefas domésticas. De forma geral, esses achados vão ao encontro das ideias de que: a) é preciso levar-se em conta o contexto cultural dos adolescentes para se compreender seus projetos de vida (Bronk, 2014; Dellazzana-Zanon et al., 2014); b) a realização de atividades é um fator contextual que pode influenciar a elaboração dos projetos (Massey et al., 2008).

Em uma primeira análise, observou-se que maiores níveis de realização de tarefas domésticas estavam associados apenas à presença de projetos relacionados a bens materiais. É possível que a necessidade de realização de um nível elevado de tarefas domésticas, durante a adolescência, implique maior preocupação com aspectos materiais no futuro. Cabe salientar que o interesse dos adolescentes por bens materiais não tem, necessariamente, uma conotação negativa. Csikszentmihalyi e Rochberg-Halton (1981) explicam que existem formas distintas de materialismo: o instrumental e o terminal. O materialismo terminal é aquele em que a busca pela posse material não tem outro fim senão a própria posse, com a intenção de gerar inveja ou admiração alheia ou de servir como símbolo de status. Os autores argumentaram, entretanto, que as posses materiais podem exercer influências positivas na vida do indivíduo quando elas possuem o caráter instrumental, ou seja, quando funcionam como meios para a busca e a sustentação de valores pessoais e objetivos de vida.

Em uma segunda análise, porém, encontrou-se que as relações entre projetos e tarefas domésticas se comportam de forma diferente para elas e para eles. Mesmo quando o nível de realização de tarefas domésticas é equivalente, as relações que se estabelecem entre os fatores investigados foram distintas. Enquanto nas adolescentes do sexo feminino foram encontradas diferenças significativas na área de bens materiais, os adolescentes do sexo masculino apresentaram diferenças significativas em outras duas áreas de interesse: vida boa e virtudes.

Com relação a elas, esse dado vai ao encontro de diversas pesquisas que relatam diferenças entre as identidades masculina e feminina no fenômeno do materialismo (Ladeira, Santini, & Araújo, 2016), com crianças e adolescentes do sexo feminino sentindo as atividades de compra como algo mais prazeroso. A maioria dos bens materiais mencionados pelas participantes da presente amostra, contudo, faz falta na vida delas e de suas famílias - casa própria e carro, por exemplo -, o que caracterizaria o materialismo de tipo instrumental de que falavam Csikszentmihalyi e Rochberg-Halton (1981).

A respeito da associação entre tarefas e projetos de vida boa, poder-se-ia pensar que os adolescentes do sexo masculino que realizam mais tarefas domésticas têm maior tendência a incluírem em seus projetos de vida aspirações quanto à felicidade própria ou da família. Contudo, uma análise mais minuciosa das respostas dos adolescentes que foram incluídas nessa categoria verificou que, em sua maioria, tratam-se de respostas pouco elaboradas (por exemplo, "ser feliz"), que podem significar mais a ausência de um projeto de vida com aspirações e objetivos do que a presença de uma verdadeira aspiração ética. Futuros estudos são necessários para compreender o porquê dessa relação com tarefas domésticas e a razão pela qual ela surgiu apenas para eles.

Para que se entenda a associação entre tarefas domésticas e virtudes, cabe destacar que, nessa categoria, predominaram os projetos de vida relacionados à generosidade (por exemplo, "ajudar os outros"). Essa relação pode ser compreendida a partir da lógica da solidariedade. O estudo de Grusec, Goodnow e Cohen (1996) sugeriu que a realização de tarefas domésticas pode acarretar maior preocupação com o outro. O fato de os adolescentes serem solidários no presente, ajudando nas tarefas domésticas, pode fazer diferença naquilo que eles almejam para o futuro. Segundo Amazonas, Damasceno, Terto e Silva (2003), essa lógica é típica de famílias de nível socioeconômico baixo. De acordo com as autoras, as famílias de baixa renda deparam-se com a necessidade de desenvolver estratégias de sobrevivência, nas quais toda a rede familiar precisa colaborar para a manutenção do grupo. Para isso, os membros da família promovem uma relação de solidariedade, a qual "reordena valores e subordina realizações pessoais a interesses ou necessidades do grupo familiar" (Amazonas et al., 2003, p. 13).

Porém, deve-se observar que a relação com a generosidade encontrada nesta amostra está atrelada à variável sexo, estando presente apenas nos adolescentes de sexo masculino. Tais resultados não devem ser interpretados no sentido de que meninos são mais generosos que meninas, mas sim de que as tarefas domésticas têm influência nessa relação apenas para eles. Pelo fato de o papel social do homem estar culturalmente mais associado ao trabalho remunerado a fim de prover o sustento da família, existe uma construção simbólica do trabalho doméstico como uma responsabilidade feminina (Sousa & Guedes, 2016). Dessa forma, pode-se entender que, quando executam tarefas domésticas, os homens tendem a interpretar que estão ajudando naquilo que não seria uma obrigação. Tal interpretação poderia explicar a intenção de reprodução dessa "generosidade" em seus projetos de vida.

Diferenças entre os sexos na relação com as tarefas domésticas também foram observadas na associação com prejuízo no desempenho escolar. Os resultados apontam para uma associação negativa entre essas duas variáveis, o que contraria os dados encontrados por Pestana et al. (2016). Essa associação negativa, porém, só foi encontrada para as adolescentes do sexo feminino, o que significa que, apenas para elas, quanto maior a frequência das tarefas domésticas, maior a tendência a já ter sido reprovada em pelo menos alguma série escolar.

Cabe destacar que a presente amostra já se encontra defasada como um todo. É esperado que adolescentes de 14 anos estejam no 9º ano do ensino fundamental, mas os adolescentes pesquisados frequentam séries anteriores. Dellazzana e Freitas (2010) constataram que essa distorção entre a idade e a série escolar tende a ser alta entre adolescentes de nível socioeconômico baixo. Segundo as autoras, a baixa renda familiar relaciona-se com menor acesso à educação infantil e com maiores índices de reprovação. Tal constatação, porém, não explica a diferença encontrada entre meninos e meninas na relação entre tarefas e prejuízo no desempenho escolar.

Uma possibilidade explicativa para essa diferença entre os sexos é o fato de o instrumento utilizado para medir o nível de realização de tarefas domésticas considerar a frequência da realização das tarefas (quantas vezes por semana), e não o tempo despendido nelas. Conforme os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2015), as adolescentes do sexo feminino dedicam, em média, cerca de 60% mais tempo a esse tipo de atividade (12,6 horas semanais para elas, contra 7,9 horas para eles).

Outra possível explicação é a maior frequência de cuidado entre irmãos em adolescentes do sexo feminino, conforme constatado por Dellazzana e Freitas (2010). De acordo com as autoras, adolescentes que têm responsabilidades no cuidado de seus irmãos menores tendem a faltar mais dias de aula, ter menos tempo para dedicar aos estudos e apresentar maiores índices de evasão escolar.

É importante assinalar algumas limitações deste estudo: a) a amostra é pequena, o que prejudica a generalização dos resultados; b) o delineamento estatístico adotado não permite atribuições de causa e efeito entre os fenômenos estudados; c) o instrumento utilizado para a coleta dos dados referentes aos projetos de vida - uma questão única, de autorrelato - não permite acessar mais informações a respeito do nível de elaboração dos projetos e das reais motivações subjacentes a eles; d) o QTDCI avalia a frequência da realização das tarefas domésticas (quantas vezes por semana), e não a quantidade de tempo despendida, o que pode ser uma variável explicativa importante para as diferenças encontradas entre os sexos.

Apesar disso, este trabalho trouxe contribuições importantes para a psicologia do desenvolvimento, tanto em relação à temática dos projetos de vida quanto à das tarefas domésticas. Com relação aos projetos de vida, houve avanço na compreensão de quais atividades cotidianas podem influenciar as áreas de interesse dos projetos elaborados pelos adolescentes. Quanto às tarefas domésticas, avançou-se no entendimento das possíveis consequências dessas atividades - tanto para os projetos de vida quanto para o desempenho escolar -, reafirmando que esse fenômeno ainda repercute questões negativas da desigualdade de gênero em nossa sociedade.

Os resultados apresentados mostram a necessidade de realizar estudos futuros com amostras mais robustas que permitam generalização de resultados. Além disso, para melhor compreensão das relações aqui encontradas, sugere-se que a quantidade de tempo despendido nas tarefas domésticas seja incluída como variável, e que estudos qualitativos sejam realizados para a compreensão das crenças dos adolescentes quanto à realização de tarefas e da relação destas com seus projetos de vida.

 

Referências

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Endereço de correspondência:
Fredericko Wichmann
LAPEGE/UFRGS, Instituto de Psicologia
Rua Ramiro Barcelos, 2600, sala 118
Porto Alegre, RS, Brasil, CEP 90035-003
E-mail: frederickow@hotmail.com

Submissão: 08/05/2018
Aceite: 20/12/2018

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