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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.21 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2019

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v21n1p297-311 

ARTIGOS
PSICOLOGIA CLÍNICA

 

Segredo familiar e os recursos artísticos-expressivos na psicoterapia familiar: um estudo teórico-clínico

 

 

Ricardo da S. FrancoI; Maíra B. SeiII

IDepartamento de Psicologia e Psicanálise, Universidade Estadual de Londrina (UEL)
IIDepartamento de Psicologia e Psicanálise, Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivou-se discutir o uso de recursos artísticos-expressivos na psicoterapia psicanalítica de casal e família por meio de um estudo teórico-clínico pautado no método clínico-qualitativo. O segredo familiar consiste em uma mensagem que não pode circular livremente na família por estar associado a uma situação traumática ou vergonhosa vivenciada por um dos membros da família, com sua revelação podendo colocar em risco a manutenção dos vínculos familiares. Sendo assim, tal mecanismo de defesa da dinâmica familiar implica uma das principais causas de desistência da psicoterapia por parte de casais e famílias. Para a discussão, foram utilizadas vinhetas clínicas de um caso atendido em um serviço-escola de psicologia de uma universidade pública. Observou-se que o uso de recursos artísticos-expressivos favoreceu a emergência de conteúdos inconscientes e o desenvolvimento do processo terapêutico.

Palavras-chave: terapia familiar; resistência; psicanálise; clínicas-escola; arte-terapia.


 

 

1. Introdução

Na perspectiva da psicanálise de casal e família, o inconsciente de cada sujeito configura-se a partir dos vínculos familiares e sociais, isto é, carrega em si marcas de outros inconscientes presentes no meio no qual vive (Vasconcelos & Lima, 2015). Tais marcas consistem em conteúdos psíquicos transmitidos de uma geração a outra e referem-se a afetos, crenças, mitos e fantasias (Santos & Ghazzi, 2012). O grupo familiar se organiza por meio de alianças inconscientes compostas por pactos e contratos variados entre seus membros, de modo a permitir o processo de transmissão psíquica geracional, com a partilha justamente dos conteúdos psíquicos e a definição do papel de cada membro na dinâmica da família (Kaës, 2014).

No que se refere à transmissão psíquica, ela divide-se em intergeracional e transgeracional. Com relação à intergeracionalidade, ela implica a transmissão de conteúdos conscientes e passíveis de elaboração, como: importância dada aos estudos, senso de justiça e honestidade, humildade, religiosidade, valorização da figura da mulher etc. (Scorsolini-Comin & Santos, 2016). A transgeracionalidade, por sua vez, incide na transmissão dos chamados conteúdos negativos, de difícil elaboração psíquica, pois são conteúdos traumáticos e sintomáticos, por exemplo: luto não elaborado, excessivo sentimento de vergonha, abuso sexual, violência doméstica, entre outros (Rehbein & Chatelard, 2013).

Os dois tipos de transmissão psíquica, em especial a transgeracional, contribuem para a criação e a instalação de mecanismos de defesa na dinâmica de funcionamento da família e um desses mecanismos refere-se ao segredo familiar (Melo, Magalhães, & Féres-Carneiro, 2014). Para Ramos (2006), todas as famílias possuem um segredo que consiste em uma mensagem, associada a uma situação traumática ou vergonhosa, que não pode circular livremente pelo grupo, sendo compartilhada em duplas ou subgrupos, para que o segredo permaneça no campo do não dito, podendo assumir uma função central naquela família.

Tal segredo é mantido por consequência das alianças inconscientes que surgem no espaço denominado continente metapsíquico familiar (Benghozi, 2009). Esse continente consiste em um envoltório psíquico que a família pode prover para os seus membros (Benghozi, 2009; Eiguer, 2014). Ou seja, é a capacidade de o grupo familiar acolher as projeções, os afetos, os ataques e favorecer o desenvolvimento emocional dos familiares (Kaës, 2014; Benghozi, 2009; Eiguer, 2014). Todavia, às vezes, esse envoltório não consegue ofertar para os seus membros um ambiente acolhedor.

Uma das alianças que acabam por dificultar que esse envoltório possibilite tal ambiente acolhedor se refere ao pacto denegativo. Conforme Trachtenberg e Chem (2013, p. 26) elucidam, pacto denegativo implica:

[...] um tipo de aliança inconsciente e fala de tudo aquilo que se impõe nos laços intersubjetivos relacionado ao negativo em suas várias formas. Poderíamos dizer que é a expressão do negativo no âmbito da intersubjetividade e se caracteriza por oferecer a cada sujeito do conjunto aquilo que tem como destino a repressão, a denegação, a recusa, a rejeição ou o enquistamento no espaço interno de um sujeito ou de vários sujeitos. O pacto denegativo, ou seja, um pacto baseado no trabalho do negativo, está presente no núcleo da origem e do funcionamento do conjunto (família, grupo social, leis etc.) e do sujeito singular.

Tendo em vista esses aspectos, somado ao fato de se trabalhar com mais de um indivíduo ao mesmo tempo, compreende-se haver maior complexidade na psicoterapia psicanalítica de casal e família em comparação à individual (Sei, 2011). Nesse sentido, a utilização de recursos artísticos-expressivos tende a favorecer a compreensão da dinâmica conjugal e familiar e o desenvolvimento do processo terapêutico (Franco, Almeida, & Sei, 2016; Machado, Féres-Carneiro, & Magalhães, 2011). Essa estratégia clínica permite o acesso aos conteúdos recalcados que tecem as tramas e as alianças inconscientes do casal e da família, pois funciona como um mediador do trabalho psíquico de figuração ao mobilizar o aparelho psíquico grupal e os continentes metapsíquicos que dão sustentação para a formação e a manutenção dos vínculos familiares (Benghozi, 2009; Eiguer, 2014). Permitem, ademais, uma reanálise do material em momentos posteriores tanto pelo terapeuta quanto pelos próprios pacientes, por se tratar de um material concreto produzido pelo grupo (Sei, 2011; Franco et al., 2016).

A partir dessas considerações, almejou-se discutir o uso de recursos artísticos-expressivos enquanto estratégia terapêutica capaz de acessar os conteúdos inconscientes que permeiam e vinculam os familiares, de modo a auxiliar o terapeuta no desenvolvimento do processo clínico. Tais discussões foram realizadas a partir de um caso atendido em um serviço-escola de psicologia de uma universidade pública.

 

2. Métodos

Trata-se de um estudo teórico-clínico que se utiliza do método clínico-qualitativo. Tal método, ao utilizar de uma abordagem compreensiva-interpretativa, preocupa-se menos em encontrar regularidades quantitativas no fenômeno estudado, pois prioriza a compreensão e a interpretação dos significados dos fenômenos vivenciados pelos sujeitos e pela sociedade (Silva, Herzberg, & Matos, 2015). Desse modo, permite uma análise mais aprofundada do fenômeno em questão e a ampliação das possibilidades de investigações do objeto de estudo, revelando particularidades não percebidas por meio de outras estratégias de pesquisa (Maldavsky, Álvarez, & Gomes, 2014).

Analisou-se, assim, a particularidade de um caso de psicoterapia psicanalítica familiar, cuja família foi atendida em um serviço-escola de psicologia de uma universidade pública. Foram realizados oito atendimentos antes da desistência da família da psicoterapia familiar e o encaminhamento de um dos familiares para o atendimento individual.

A análise teve como foco o conteúdo de duas sessões, em particular, a quinta e sétima sessões, para debater a contribuição dos recursos artísticos-expressivos enquanto estratégia terapêutica na psicoterapia psicanalítica familiar. Foram realizadas atividades a partir desses recursos como linha da vida e genograma, e, na quinta sessão, propôs-se uma atividade inspirada na fotolinguagem (Vacheret, 2008). Solicitou-se que os familiares procurassem uma imagem que respondesse à pergunta: "O que vocês esperam da psicoterapia familiar?". A partir dessa consigna, cada um selecionou, individualmente, uma figura que foi recortada e colada em uma folha sulfite, discutindo conjuntamente a escolha das imagens. Entende-se que a quinta e a sétima sessões se relacionam mais diretamente, pois o segredo familiar revelado na sétima sessão havia sido já apresentado em uma das imagens selecionadas na atividade proposta na quinta sessão.

 

3. Resultados

A família era composta, na época, por quatro membros: Fátima, casada com Pedro, ambos com idades aproximadas entre 30 a 40 anos, sendo Pedro alguns anos mais velho, que eram pais de Eduarda, filha mais velha, e Mateus, ambos adolescentes. Durante as oito sessões realizadas, a família alterou a configuração dos participantes da psicoterapia duas vezes até desistirem do atendimento.

Na primeira sessão, compareceram a mãe e os dois filhos. Fátima relatou os conflitos familiares que estavam dificultando a convivência deles. Após um "assalto" que Pedro sofreu, ao ser esfaqueado e carregar sequelas físicas da agressão, a relação familiar, especialmente entre o casal, mudou significativamente, pois aspectos desse incidente permaneciam mal esclarecidos. Com relação aos filhos, a mãe expôs preocupações com determinados comportamentos dos dois: Mateus, após o que aconteceu com o pai, passou a se comportar de maneira agressiva na escola e em casa (antes era um menino comportado e doce), e Eduarda havia enviado fotos íntimas para um rapaz maior de idade. Fátima e Pedro prestaram queixa na polícia e a menina começou a ser atendida individualmente no mesmo serviço-escola de Psicologia antes de eles iniciarem o atendimento familiar. Assim, além da psicoterapia familiar, Eduarda também estava em psicoterapia individual.

A queixa trazida pela família na primeira sessão não era clara. Fátima falou sobre a sua preocupação concernente às crianças, mas parecia inquieta ao contar, dando ênfase às lacunas existentes na história do seu marido sobre os detalhes de como, quando e onde ocorreu o suposto "assalto". Questionada a respeito da ausência do marido na sessão, ela respondeu que ele não havia podido comparecer devido ao trabalho. Entretanto, gostaria de saber se ele também poderia participar dos atendimentos caso conseguisse reorganizar o próprio horário. Foi dito que ele poderia participar e que ali era um espaço justamente para que eles pudessem conversar e desvendar questões relativas à comunicação e ao relacionamento familiar que poderiam causar desconforto e conflitos entre eles.

Na segunda sessão, mais uma vez só compareceram os três familiares. Diferentemente da sessão anterior, eles mostraram-se mais reservados, tendo sido proposta uma atividade de linha da vida, com instruções de traçarem uma linha em uma folha sulfite. Nessa linha, em ordem cronológica, desde o nascimento de cada um até aquele momento, eles deveriam assinalar eventos considerados importantes, alegres ou tristes. No entanto, os momentos apontados por eles pareciam ser pouco significativos, como pode ser observado na linha da vida (Figura 3.1).

 

 

No final da segunda sessão, Fátima retomou a ideia de participação do marido nas sessões, de maneira que a terceira sessão foi marcada com a presença dos quatro. Com a presença de Pedro, explanou-se novamente sobre a função do espaço da psicoterapia familiar, discorrendo-se sobre questões discutidas com Fátima e os filhos nas sessões anteriores, nas quais Pedro não havia estado presente. Pedro começou, então, a falar a respeito do comportamento dos filhos, com início de uma longa discussão superficial acerca de qual realmente seria o problema deles. O casal discordava em vários pontos referentes a como educar as crianças. Tal discussão sobre como cada um dos filhos deveria ou não se comportar no dia a dia se prolongou até a quinta sessão. Por vezes, tanto um quanto o outro questionavam o terapeuta acerca de quem estava certo e qual seria a decisão correta.

Na quarta sessão, a mesma discussão sobre os filhos prolongou-se por quase toda a sessão, propondo-se o genograma, com o intuito de conhecer melhor a composição da família. Fez-se a solicitação de desenharem a árvore genealógica, sem apresentação de um modelo, com liberdade de desenharem como desejassem. Todavia, pouca atenção foi dada à atividade, com retorno à discussão a respeito dos filhos.

Diante da dificuldade de conversarem sobre temas mais delicados e importantes para o desenvolvimento do processo terapêutico, a atividade inspirada na fotolinguagem foi aplicada para evocar a discussão acerca do sentido da psicoterapia familiar para eles. Após essa atividade, decidiu-se pela continuidade do atendimento no enquadre da psicoterapia de casal, e não mais familiar. Mais duas sessões foram realizadas com o casal e, então, após uma sessão mais intensa, eles faltaram. O psicoterapeuta entrou em contato com Fátima, que contou da resistência do marido em continuar, porém verbalizou que tentaria convencê-lo a não desistir. Na última sessão, a oitava, apenas Fátima compareceu para comunicar a desistência deles. Como alternativa, propôs-se a ela a continuidade do atendimento por meio da psicoterapia individual, oferta prontamente aceita por ela, que foi, então, atendida individualmente por mais de um ano.

 

4. Discussão do caso

Em muitos momentos do setting, a comunicação somente por meio da linguagem não parece ser suficiente para que o paciente consiga se expressar plenamente (Sei, 2011). Isso ocorre, pois muitas angústias estão mais próximas do pré-verbal, de um terreno mais inconsciente, primitivo (Sei, 2011; Franco et al., 2016). Assim, o uso de recursos artísticos-expressivos possibilita outras formas de expressão além das palavras, guiadas por expressões mais livres e espontâneas, mais próximas dos conteúdos recalcados. Por exemplo, a escolha de uma atividade adaptada da fotolinguagem deveu-se ao fato de ser uma atividade que se utiliza de fotografias para expressar algo inconsciente, isto é, mobiliza um pensar visual para além do pensar em palavras. De acordo com Freud (2006, p. 35), a respeito do pensar visual:

Não devemos deixar-nos levar, talvez visando à simplificação, a esquecer a importância dos resíduos mnêmicos ópticos, quando o são de coisas, ou a negar que seja possível os processos de pensamento tornarem-se conscientes mediante uma reversão a resíduos visuais, e que em muitas pessoas, este parece ser o método favorito. O estudo dos sonhos e das fantasias pré-conscientes, como se demonstra nas observações de Varendonck, pode dar-nos uma idéia do caráter especial deste pensar visual. Aprendemos que o que nele se torna consciente é, via de regra, apenas o tema geral concreto do pensamento, e que as revelações entre os diversos elementos desse tema geral, que é o que caracteriza especialmente os pensamentos, não podem receber expressão visual. Pensar em figuras, portanto, é apenas uma forma muito incompleta de tornar-se consciente. De certa maneira, também, ela se situa mais perto dos processos inconsciente do que pensar em palavras, sendo inquestionavelmente mais antiga que o último, tanto ontogenética quanto filogeneticamente.

As duas primeiras atividades propostas antes da aplicação da atividade inspirada na fotolinguagem tornaram nítida a resistência da família em acessar determinados temas, por exemplo, o incidente ocorrido com Pedro, que foi trazido para o setting somente na primeira sessão, quando ele estava ausente, com ulterior silenciamento, assemelhando-se a um tabu e ressurgindo apenas na última sessão com o casal. Observa-se, ainda, que tais atividades acabaram suscitando mais um pensar em palavras. Diante dessa dificuldade em pensar em palavras para que determinados temas fossem acessados, buscou-se mobilizar o pensar visual de maneira que a reflexão acerca das expectativas em relação ao atendimento fosse realizada com mais facilidade.

Segundo Melo, Magalhães e Féres-Carneiro (2014), o psicoterapeuta deve entender a importância de respeitar o ritmo da família no desenrolar das suas tramas e conflitos, pois a família deve ter recursos para entrar em contato com seus segredos. Assim, a atividade visava apontar para o setting enquanto um lugar seguro no qual poderiam confiar e conversar sobre medos, angústias e problemáticas familiares em geral. Notou-se que a atividade favoreceu o acesso à questão familiar conflitiva; embora não tenha revelado o conteúdo em si, expôs que de fato havia um segredo que os cercava e que permanecia no campo do não dito.

Em consonância, Eduarda, ao ser convidada para comentar a sua imagem escolhida, estava bastante emotiva e irritada e indicou que nada daquilo iria adiantar. Ao dizer isso, escreveu a palavra "nada" e desenhou várias setas que saíam da palavra e apontavam para a sua figura (Figura 4.1). Todos olharam surpresos para ela. Todavia, o silêncio entre os familiares continuou, semelhante à imagem escolhida por ela que representava todos envolvidos por uma obscuridade sem desejar enxergar o que estava escondido entre eles.

 

 

Os demais verbalizaram a mesma ideia de que a psicoterapia poderia mostrar o caminho certo para que pudessem melhorar. Destaca-se a Figura 4.2, escolhida por Fátima, por meio da qual se pode fazer uma analogia com a própria teoria da metapsicologia freudiana, das camadas mais profundas até a superfície, do inconsciente até a consciência, isto é, daquele indivíduo escalando a montanha até chegar ao topo dela, a superfície.

 

 

Fátima e Eduarda sugeriram que a psicoterapia fosse apenas entre o casal, pois Eduarda já estava em tratamento individual e Fátima parecia desejar as sessões somente com o marido, para que, talvez, pudessem tocar em assuntos que a presença dos filhos estava dificultando. Assim, a sexta e a sétima sessões foram apenas com o casal.

Na sexta sessão, no entanto, o casal repetiu a mesma dinâmica de quando os filhos estavam presentes. Tocaram em assuntos superficiais acerca de como criarem os filhos e quem estava certo ou errado. Não falaram sobre como se sentiam um ao outro e, quando questionados a respeito, desviaram a atenção para questões extremamente práticas. Percebeu-se que não adiantaria tentar entrar em questões mais delicadas, pois os dois não estavam prontos e forçá-los a tal poderia aumentar "[...] o risco de desintegração psíquica ou de abandono do tratamento" (Melo et al., 2014, p. 165).

No início da sétima sessão, Pedro questionou o tratamento, por entender que não estava surtindo mudanças neles. Foi-lhe indicado que a psicoterapia se tratava de um processo demorado, pois seu desenvolvimento dependia dos passos dos pacientes, do que era trabalhado em cada sessão a partir do que era levado ao atendimento, tendo em vista o que podia ou não ser suportado.

Houve alguns minutos de total silêncio, quando Fátima, impaciente, tocou na questão do "assalto". Contou que o caminho percorrido pelo seu marido naquele dia não era o que ele frequentemente percorria para casa e complementou com o que ouviu de um de seus cunhados e de um dos policiais: a praça na qual Pedro supostamente foi assaltado era um forte ponto de prostituição, principalmente de travestis. Ramos (2006, p. 79-80) argumenta que:

[...] o segredo determina a exclusão de um ou de vários membros, dividindo a família entre os que "sabem" e os que "não sabem" algo. O paciente identificado, ou seja, aquele apontado pela família como enfermo, é geralmente quem se encontra excluído pelo segredo familiar. O seu comportamento inadequado pode ser uma tentativa sintomática de denunciar esse segredo.

Os filhos surgiram desde o início como a principal queixa do casal, principalmente Eduarda, por consequência das fotos enviadas, tendo sido justamente ela quem realizou o principal movimento de tentar denunciar o segredo familiar. Sendo assim, pode-se supor o surgimento de uma aliança denegadora entre mãe e filha. Segundo Kaës (2014, p. 127), tal tipo de aliança "[...] caracteriza uma situação em que a relação é utilizada para manter fora da repressão secundária na mãe, as representações rejeitadas por meio da negação em sua filha". Dessa forma, a filha acaba sendo um sobreinvestimento de representações não reprimidas e conjuntamente negadas pela psique materna (Kaës, 2014). Entretanto, não se trata de somente receber passivamente aquilo que na mãe não pode ser elaborado ou recalcado, a filha assume, na verdade, um papel ativo, por isso há esse movimento do desejo de Eduarda em denunciar algo, mesmo que, nas palavras de Kaës (2014, p. 128), esse algo seja "[...] totalmente desprovido de sentido [...]". Por isso a imagem escolhida por Eduarda, algo obscuro, sem sentido, sem forma nenhuma.

Pode-se hipotetizar uma bissexualidade ou homossexualidade não admitida, mas sabida inconscientemente e negada por Fátima e Pedro em prol da construção e manutenção de uma família. Ou seja, o pacto denegativo, como qualquer outra aliança inconsciente, não pode se formar a partir do espaço interno somente, mas no espaço do continente metapsíquico familiar que permite que os conteúdos perpassem os membros familiares e os vínculos sejam estabelecidos e mantidos entre eles (Benghozi, 2009; Eiguer, 2014). Nas palavras de Kaës (2014, p. 119), tal tipo de pacto "[...] exige uma aliança que atribua a cada um o seu lugar e a função de guardião ou de avalista do pacto".

Conforme Melo et al. (2014) argumentam, os segredos podem ser constituídos com base em acontecimentos reais traumáticos ou vergonhosos, ou mesmo por fantasias, e pode-se considerar dois tipos de segredos: aqueles que produzem um movimento de possibilidade de desfecho por todos e aqueles que não podem ser compartilhados, pois interferem na manutenção dos vínculos, o que pode provocar a ruptura entre os membros. Desse modo, Pedro reafirmou a sua história de que foi vítima de um assalto, tendo dito chorando que não era gay para que os laços não fossem destruídos. No entanto, essa negação tem um custo, pois passa a não ser suficiente. No caso de Pedro, ele fazia atuações, ou seja, buscava o sexo a partir de programas que não pressupunham uma vinculação e um risco de exposição. Contudo, acabou sofrendo o assalto que denunciou algo que procurava ser negado pelo grupo. Em Fátima, o custo provavelmente localizava-se no pacto denegativo alienante, isto é, a aliança denegadora com a filha explicada ulterior.

Com relação aos adolescentes, tal segredo parece ter configurado um conteúdo transgeracional do qual ambos poderiam se tornar herdeiros. Configurava-se como algo que possivelmente os influenciava a apresentarem os sintomas descritos pelo casal: de um filho obediente e solidário a um adolescente agressivo com amigos e familiares, envolvendo-se em brigas físicas, inclusive; de uma filha responsável para uma adolescente sem limites, que se coloca em um relacionamento com um indivíduo maior de idade, expondo fotos íntimas suas.

Quanto ao custo psíquico de manter um conteúdo negado, Kaës (2014, p. 118) argumenta que:

Quando o pacto denegativo se constrói sobre o recalcamento e sobre a renuncia à satisfação imediata dos objetivos pulsionais destrutivos, resulta daí que os conteúdos reprimidos, os "deixados de lado" e os restos, cujos brotamentos são sempre capazes de voltar para as relações sob a forma de sintomas de estrutura neurótica, resultado de conflitos entre desejos e defesas.

Nesse sentido, os sintomas das crianças, bem como o pacto alienante entre mãe e filha surgem também como uma maneira de preservar os vínculos familiares. Rehbein e Chatelard (2013) defendem que, por se tratar da ordem do simbólico, a questão central do segredo familiar não trata necessariamente do seu conteúdo, e sim da necessidade de falar sobre o assunto e trazer para o verbal aquilo que não é dito. Porém, diante do medo do rompimento dos vínculos e por vergonha ou culpa, instala-se o segredo.

Almejou-se discutir a questão do segredo familiar na psicoterapia psicanalítica de casal e família, problemática importante, haja vista ser uma das principais causas de desistência do tratamento (Ramos, 2006; Melo et al., 2014). No caso em questão, percebeu-se a existência de grande resistência que impossibilitou a continuidade da psicoterapia familiar. Apesar desse desfecho, compreende-se que o uso de recursos artísticos-expressivos auxiliou na emergência de conteúdos inconscientes e consequente compreensão da dinâmica familiar (Franco et al., 2016), configurando-se como uma proposta pertinente para o cenário da psicoterapia psicanalítica de casal e família.

 

Referências

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Endereço de correspondência:
Ricardo da Silva Franco
Rua República, n. 227, Vila Odilon
Ourinhos, SP, Brasil. CEP 19905-154
E-mail: rs_franco@hotmail.com

Submissão: 04/10/2017
Aceite: 13/11/2018

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