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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.21 no.2 São Paulo May/Aug. 2019

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v21n2p99-121 

ARTIGOS
AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

 

Evidências de confiabilidade e validade do instrumento de avaliação sensorial Sensory Profile: um estudo preliminar

 

 

Jací C. MattosI; Maria Eloísa F. D'AntinoII; Roberta M. CysneirosIII

IDevelopment Disorders Postgraduate Program, Mackenzie Presbyterian University (UPM)
IIDevelopment Disorders Postgraduate Program, Mackenzie Presbyterian University (UPM)
IIIDevelopment Disorders Postgraduate Program, Mackenzie Presbyterian University (UPM)

Correspondência

 

 


RESUMO

Considerando-se a necessidade e importância de trabalhos que analisem propriedades psicométricas de instrumentos de avaliação, o presente estudo investigou parâmetros psicométricos de confiabilidade e validade do Sensory Profile. A amostra foi composta de 336 crianças da região metropolitana de São Paulo, Brasil, de 5 a 10 anos de idade, de ambos os sexos, sendo 298 sem transtornos do neurodesenvolvimento e 38 com Transtorno do Espectro Autista (TEA). O instrumento apresentou consistência interna satisfatória com valores de alfa acima de 0,60 na maioria das categorias e dos fatores. A média dos escores da amostra de crianças brasileiras sem transtornos do neurodesenvolvimento diferiu da amostra normativa norte-americana. As crianças com TEA apresentaram desempenho do processamento sensorial inferior ao das crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento. Os resultados mostraram que o Sensory Profile traduzido e adaptado culturalmente para o português do Brasil apontou para a presença de prejuízos sensoriais nas crianças com TEA investigadas nesta pesquisa.

Palavras-chave: Sensory Profile; avaliação; processamento sensorial; confiabilidade; validade.


 

 

1. Introdução

A terapia de integração sensorial, delineada para orientar a intervenção em crianças que apresentam dificuldades significativas no processamento sensorial que restringem sua participação nas atividades da vida diária, fundamenta-se na teoria de integração sensorial desenvolvida pela terapeuta ocupacional Anne Jean Ayres (1972), com base em sua experiência clínica para explicar as possíveis interações entre os processos neurais de recepção, modulação e integração sensorial com o comportamento adaptativo.

Ayres (1972) descreve o processamento sensorial como um processo neurológico complexo no qual as informações sensoriais oriundas do meio ambiente e do próprio corpo são registradas, organizadas, moduladas e interpretadas pelo cérebro, para serem posteriormente utilizadas em respostas às diferentes demandas ambientais. O processamento de informações permite que os indivíduos respondam de maneira automática e eficiente às informações sensoriais específicas recebidas. O processo neurobiológico da integração sensorial compreende uma série de cinco estágios: registro, modulação, discriminação, integração e práxis, sendo essencial para a atenção, a percepção visual, a memória e o planejamento de ações (Cabrera, Ayuso, Gil, & Juárez, 2017). A teoria de Ayres (1972) postula que o processamento e a integração adequados são fundamentais para o comportamento adaptativo, o desenvolvimento e a aprendizagem, e ainda que prejuízos nesses processos podem decorrer de falhas na integração das informações sensoriais e da incapacidade de centros superiores em modular e regular os circuitos sensório-motores (Ayres, 1972).

Ayres (1972) já sinalizava em seus estudos iniciais que 10% das crianças apresentam problemas adaptativos e de aprendizagem relacionados às dificuldades no processamento sensorial, hoje chamados de Transtornos do Processamento Sensorial (TPS). Os TPS são subdivididos em três tipos distintos: transtorno de modulação sensorial, transtorno de discriminação sensorial e transtornos motores com base sensorial. Cada um deles possui subtipos que se diferenciam pela reação aos estímulos sensoriais ou pelos comportamentos resultantes desses estímulos.

Parham e Mailloux (2001 como citado em Cabrera et al., 2017) relacionaram cinco comprometimentos funcionais ligados ao TPS: diminuição da participação social e do engajamento ocupacional; redução da magnitude, frequência ou complexidade das respostas adaptativas a um desafio ambiental; prejuízo da autoconfiança e/ou da autoestima; dificuldades nas habilidades da vida diária e no relacionamento familiar; e atraso no desenvolvimento das habilidades sensório-motoras e na coordenação motora global e fina. Todos esses comprometimentos impactam negativamente os domínios comportamental, emocional, motor e cognitivo, segundo Cabrera et al. (2017).

Prejuízos no processamento sensorial são mais frequentemente observados em crianças diagnosticadas com transtornos como o Transtorno do Espectro Autista (TEA), a Síndrome de Down (SD), o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e a esquizofrenia quando comparadas aos seus pares sem transtornos (Cabrera et al., 2017; Cervera, Cerezuela, Sala, Minguez, & Andrés, 2017). Mais concretamente, indivíduos com TEA frequentemente apresentam dificuldades em regular as respostas às sensações e aos estímulos específicos que resultam em um profundo impacto nas atividades da vida diária e na regulação emocional (Ashburner, Ziviani, & Rodger, 2008). As respostas sensoriais atípicas acometem de 42% a 88% dos indivíduos com TEA (Baranek et al., 2002; Pfeiffer, Koening, Kinnealey, Sheppard, & Henderson, 2011) e foram incluídas como critério para o diagnóstico do TEA no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5 (American Psychiatric Association [APA], 2014). As ferramentas comumente utilizadas para auxiliar no diagnóstico do TEA, como Autism Diagnostic Observational Schedule (ADOS) e Autism Diagnostic Interview-Revised (ADI-R), contêm itens relacionados ao processamento sensorial, mas não fornecem informações específicas sobre a natureza das dificuldades do processamento sensorial e seus impactos nos domínios comportamental, emocional, motor e cognitivo (Dubois, Lymer, Gibson, Desarkar, & Nalder, 2017), realçando a importância da utilização de instrumentos específicos como o Sensory Profile.

O Sensory Profile desenvolvido por Dunn (1999a) é um questionário destinado aos pais/cuidadores para medir comportamentos associados às respostas aos estímulos sensoriais em crianças de 3 a 10 anos. É um dos instrumentos mais utilizados para a avaliação do perfil sensorial que, em conjunto com a avaliação clínica e os demais instrumentos para análise cognitiva e comportamental, auxilia no estabelecimento de diagnósticos e no planejamento e na proposição de atividades, considerando as preferências ou aversões sensoriais das crianças acometidas, com vistas a melhorar o engajamento nas rotinas diárias (Dunn,1999b; Baranek et al., 2002).

A especificidade do questionário na avaliação de dificuldades sensoriais tem mobilizado profissionais de diferentes áreas e em diferentes países a realizar estudos que visam à sua utilização de forma adequada, traduzindo-o, adaptando-o e verificando sua fidedignidade/confiabilidade e validade (Neuman, Greenberg, Labovitz, & Suzuki, 2004; Chung, 2006; Engel-Yeger, 2012; Almomani, Brown, Dahab, Almomani, & Nadar, 2014; Ganapathy & Priyadarshini, 2014; Kayihan et al. 2015; Ee, Loh, Chinna, & Marret, 2016). A inexistência de instrumentos traduzidos e validados no nosso país para avaliar as habilidades do processamento sensorial motivou a pesquisa de Mattos, D'Antino e Cysneiros (2015) e sua continuidade no presente estudo.

O Sensory Profile traduzido e adaptado culturalmente do inglês para o português do Brasil por Mattos et al. (2015), em estudo anterior, envolveu 50 crianças, sendo 47 sem transtornos do neurodesenvolvimento, duas com SD e uma com TEA, todas com idades entre 5 e 10 anos, regularmente matriculadas numa escola particular de ensino fundamental da cidade de São Paulo. A análise da pontuação total do instrumento traduzido e adaptado resultou no valor do alfa de Cronbach de 0,76, indicando uma consistência interna satisfatória do instrumento. A proposta do presente estudo foi investigar evidências de confiabilidade e validade do Sensory Profile empregando uma casuística maior de crianças sem transtornos do neurode senvolvimento e com TEA. Para esse fim, mensurou-se a consistência interna do instrumento por categorias e fatores, compararam-se os escores médios entre as crianças brasileiras e as da amostra normativa norte-americana sem transtornos do neurodesenvolvimento e foram comparados os escores das crianças brasileiras com e sem TEA.

 

2. Métodos

2.1 Participantes

Participaram da amostra 336 crianças da região metropolitana de São Paulo, de 5 a 10 anos de idade, sendo 298 sem transtornos do neurodesenvolvimento (149 meninos e 149 meninas) e 38 com TEA (28 meninos e dez meninas).

As crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento estavam matriculadas em seis escolas de São Paulo, sendo duas escolas particulares (uma localizada na região central da cidade e a outra, na zona leste) e quatro escolas pertencentes à rede pública do município de Barueri/SP. Das 298 crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento, ou seja, sem queixas de pais ou professores e nem encaminhadas para avaliação e/ou possível diagnóstico, 47 compuseram a casuística da pesquisa prévia (Mattos et al., 2015). Das 298 crianças, 186 frequentavam as escolas públicas e 112 as escolas particulares. O critério de inclusão para a participação dos respondentes consistiu em ser um dos responsáveis e conviver diariamente com a criança. O critério de exclusão baseou-se no fato de a criança ter algum transtorno do neurodesenvolvimento ou estar em processo avaliativo para conclusão de possível diagnóstico. A participação foi voluntária, ou seja, os pais/cuidadores das crianças foram convidados a preencher o instrumento.

Os pais/cuidadores das crianças com TEA foram recrutados em uma instituição de atendimento a pessoas com TEA situada na região central da cidade de São Paulo. A instituição possui equipe multidisciplinar que abarca fonoaudiólogos, pedagogos, psicólogos e terapeutas ocupacionais. O diagnóstico do TEA, realizado por médicos neurologistas/psiquiatras e pela equipe multidisciplinar segundo os critérios do DSM-5 (American Psychiatric Association, 2014), é condição essencial para o ingresso dessas crianças no atendimento especializado três vezes por semana, no contraturno da escola regular, totalizando 12 horas semanais.

2.2 Instrumento

A versão do Sensory Profile utilizada nesta pesquisa foi a traduzida e adaptada culturalmente para o português do Brasil por Mattos et al. (2015). O Sensory Profile foi criado por Winnie Dunn em 1994, e, após extensa pesquisa entre 1993 e 1999 sobre o desempenho no processamento sensorial, o questionário foi finalizado com 125 questões (Dunn, 1999a). As pesquisas realizadas para o desenvolvimento e o aperfeiçoamento do instrumento original na língua inglesa envolveram 155 terapeutas ocupacionais, 1.037 crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento, 61 crianças com TDAH, 32 crianças com TEA, 24 crianças com síndrome do X frágil e 21 crianças com Transtorno Modular Sensorial, com idade entre 3 e 14 anos.

O instrumento está organizado em três áreas: processamento sensorial - subdividido em seis categorias (audição, visão, movimento, tato, multissensorial e oral) -, modulação, subdividida em cinco categorias (tônus, posição corporal/movimento, nível de atividade, respostas emocionais, estímulo visual) - e comportamento e respostas emocionais - subdivididos em três categorias (emocional/social, efeitos comportamentais no processamento sensorial e limiares para respostas). Além dessas 14 categorias, o instrumento possui nove fatores que foram organizados a partir de uma análise dos componentes principais do questionário, obtidos durante a interpretação dos resultados de sua aplicação na amostra normativa norte-americana (de crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento) estudada por Dunn (1999b). Segundo o manual do instrumento, os fatores fornecem uma maneira adicional de considerar as pontuações obtidas. Eles revelam padrões relacionados à responsividade quanto aos estímulos do ambiente (Dunn,1999b).

O Sensory Profile é um questionário baseado em julgamento e deve ser aplicado a quem tem um contato diário com a criança/adolescente e seja por ela responsável. Cada questão descreve as respostas das crianças às várias experiências sensoriais. As respostas deverão considerar com qual frequência (sempre, frequentemente, ocasionalmente, raramente, nunca) ocorrem os comportamentos, e as pontuações são dadas de 1 a 5 (1 para "sempre" e 5 para "nunca"). Quanto menor a pontuação, mais indícios de dificuldades sensoriais, ou seja, pontuações mais baixas indicam maior gravidade de problemas sensoriais, e, quanto maior a pontuação, menos indícios de dificuldades sensoriais. A maior pontuação possível obtida no somatório das 125 questões é 625 e a menor pontuação possível é 125.

2.3 Procedimentos

O estudo, de caráter descritivo e transversal, foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), sob o n. 1.593.863, e autorizado pela Editora Pearson, que detém os direitos autorais do instrumento, mediante contrato firmado (11486-U) entre as partes.

2.4 Aplicação

Os procedimentos utilizados foram os mesmos descritos por Mattos et al. (2015). Realizaram-se reuniões presenciais com o corpo diretivo das escolas e da instituição de apoio ao TEA para apresentar os objetivos da pesquisa e os instrumentos original na língua inglesa e o traduzido e adaptado culturalmente para o português no Brasil por Mattos et al. (2015). Estabeleceu-se que a aplicação do instrumento deveria ocorrer ao término das reuniões entre pais e professores e/ou entre pais e os coordenadores. A aplicação do questionário para os pais/cuidadores das crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento ocorreu de agosto de 2016 a fevereiro de 2018. Para os pais/cuidadores das crianças com TEA, a aplicação do instrumento deu-se nos meses de maio e junho de 2017.

Os representantes legais das escolas e da instituição de apoio ao TEA, assim como os pais das crianças, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O instrumento foi preenchido pelos pais/cuidadores de crianças de 5 a 10 anos de idade, na presença da pesquisadora para auxiliar o respondente caso este apresentasse alguma dificuldade em relação à linguagem do questionário ou interpretação das questões. Não foram observadas dificuldades quanto ao preenchimento do instrumento. A média de tempo para o preenchimento foi da ordem de 30 minutos.

2.5 Análise dos dados

Os escores para cada uma das questões do instrumento foram obtidos seguindo-se as instruções do Capítulo 4 do manual do Sensory Profile e utilizando-se como referência a Folha Resumo de Pontuação: sempre = 1 ponto, frequentemente = 2 pontos, ocasionalmente = 3 pontos, raramente = 4 pontos e nunca = 5 pontos.

Para avaliar a confiabilidade do instrumento por meio da verificação de sua consistência interna, calcularam-se os coeficientes do alfa de Cronbach, do grupo de crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento, em relação às 14 categorias e aos 9 fatores do instrumento que foram comparados com aqueles obtidos na amostra normativa norte-americana.

Os escores da amostra de crianças brasileiras sem transtornos do neurodesenvolvimento entre as seis faixas etárias foram comparados pela ANOVA de uma via, seguida pelo pós-teste de Bonferroni. Além disso, os escores da amostra de crianças brasileiras sem transtornos do neurodesenvolvimento, em cada uma das 14 categorias e por faixa etária, foram comparados com os escores da amostra normativa norte-americana, disponibilizados no manual do Sensory Profile (Dunn, 1999b), pelo teste t de Student (one sample), como realizado por Neuman (2006). Adicionalmente e para efeito de análise de validade em relação ao grupo clínico, os escores da amostra de crianças brasileiras sem transtornos do neurodesenvolvimento, em cada uma das 14 categorias, foram comparados com os escores da amostra brasileira com TEA pelo teste t de Student para amostras independentes. Também foram calculados os valores do d de Cohen para indicar a magnitude do efeito das diferenças significativas, ou seja, o tamanho do efeito dos resultados observados. Para a interpretação dos resultados em relação ao tamanho do efeito, consideraram-se os seguintes parâmetros: até 0,20 = pequeno; 0,50 = médio; 0,80 ou mais = grande (Conboy, 2003). Estabeleceram-se ainda valores referentes a um sistema de classificação de desempenho sensorial em que os escores são organizados em três grupos: desempenho típico, diferença provável e diferença definida. Desempenho sensorial típico corresponde a pontuações maiores que um desvio padrão abaixo da média; diferença provável corresponde a pontuações menores que um desvio padrão abaixo da média; diferença definida corresponde a pontuações menores que dois desvios padrão abaixo da média, sendo as médias e os desvios padrão referentes ao grupo de crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento da amostra normativa norte-americana (Dunn, 1999b). Para avaliar a presença de dificuldades sensoriais no grupo de crianças com TEA, as médias delas foram analisadas em relação às três faixas de desempenho sensorial: desempenho típico, diferença provável e diferença definida.

Foram considerados como significativos valores de p com nível de significância adotado em 5%, ou seja, p < 0,05.

Os dados foram analisados utilizando-se o SPSS/versão 24.0.

 

3. Resultados

A amostra de crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento foi composta de 298 sujeitos, sendo 149 do sexo masculino (50%). Quanto às idades, os menores grupos foram os de 5 e 7 anos, ambos com 48 sujeitos (16,2% cada grupo), e o maior grupo foi o de 10 anos com 52 sujeitos (17,5%), seguido dos grupos de 6, 8 e 9 anos com 50 sujeitos (16,7% cada grupo). Buscou-se uma equiparação na composição dessa amostra em relação ao número de participantes por sexo e faixa etária, tendo sido possível atingir números muito próximos nas duas variáveis: sexo e idade (Tabela 3.1).

 

 

A amostra de crianças com TEA foi composta por 38 sujeitos, sendo 28 do sexo masculino (73,7%). Quanto às idades, os menores grupos foram os de 10 anos com três sujeitos (7,0%) e 9 anos com quatro sujeitos (11,5%). O maior grupo foi de 8 anos com 10 sujeitos (26,3%) seguido dos grupos de 5, 6 e 7 anos com 7 sujeitos cada (18,4%). Nessa amostra, não foi possível equiparar o número de sujeitos por gênero, considerando-se a maior prevalência do sexo masculino nesse transtorno (Tabela 3.1).

Sobre a confiabilidade, na Tabela 3.2 estão apresentados os valores do coeficiente alfa para as 14 categorias e para os 9 fatores do instrumento. Na amostra normativa norte-americana, os valores variaram de 0,47 a 0,91, e, nesta amostra brasileira de crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento, de 0,47 a 0,89. O menor valor de alfa foi encontrado na categoria N para a amostra norte-americana e para a amostra brasileira. O maior valor de alfa foi encontrado no fator dois - em ambas as amostras. Os valores do alfa de Cronbach dessa amostra brasileira de crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento, na maioria das categorias (12 dentre 14) e na maioria dos fatores (7 dentre 9) foram acima de 0,60. Exceções ocorreram apenas nas categorias K e N e nos fatores 7 e 9 (alfa entre 0,47 e 0,55). O valor mínimo de consistência interna aceitável para um instrumento conferido a partir do coeficiente do alfa de Cronbach não é consensualmente estabelecido na literatura. Segundo Souza, Alexandre e Guirardello (2017), há estudos que determinam que valores de alfa superiores a 0,70 sejam os ideais, porém algumas pesquisas consideram valores abaixo de 0,70 - mas próximos a 0,60 - como satisfatórios. Assim analisados, os resultados da amostra brasileira de crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento são semelhantes ao da amostra normativa norte-americana quanto aos valores de alfa e situaram-se entre o satisfatório e o ideal - em 12 categorias e em 7 fatores do instrumento.

 

 

Sobre a comparação da média dos escores por categoria entre as seis faixas etárias das crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento por meio da ANOVA de uma via, observou-se não haver diferenças estatisticamente significativas na quase totalidade das faixas etárias e categorias analisadas, exceto na categoria D (F(5,292) = 3,215; p = 0,008). Exclusivamente nesta categoria, o post hoc revelou que a média dos escores das crianças de 10 anos foi significativamente maior comparativamente às crianças de 8 (t = 6,665; p = < 0,001) e 9 anos (t = 5,265; p = 0,003), mas não diferiu da amostra normativa norte-americana (Tabela 3.3A). Apesar de os escores médios das crianças de 8 e 9 anos, na categoria D, serem estatisticamente menores aos obtidos pelas crianças de 10 anos, eles estão situados dentro da faixa de desempenho sensorial típico (Tabela 3.3B). Quanto à comparação das médias dos escores da amostra de crianças brasileiras sem transtornos do neurodesenvolvimento com as médias da amostra normativa norte-americana, por faixa etária e em cada categoria do instrumento (Tabela 3.3A), observa-se que as médias da amostra brasileira foram menores na maioria das categorias e para todas as faixas etárias, com exceção da categoria B (em 5, 7, 8, 9 e 10 anos) e da categoria N (em 5, 6 e 10 anos). Para interpretar essas diferenças, verificou-se no manual do instrumento que na categoria B rastreiam-se as respostas visuais das crianças (por exemplo, incomodar-se com luzes brilhantes depois que os outros já se adaptaram à luminosidade) e na categoria N verifica-se o nível de modulação da criança (por exemplo, se ela pula de uma atividade para outra de modo que isso interfira num jogo) (Dunn, 1999b). Quando se constatou que as médias da amostra brasileira sem transtornos do neurodesenvolvimento foram maiores que as norte-americanas apenas nas duas categorias e faixas etárias já citadas - B (em 5, 7, 8, 9 e 10 anos) e N (em 5, 6 e 10 anos) -, inferiu-se que, nessas duas categorias, as crianças brasileiras sem transtornos do neurodesenvolvimento dessa amostra pesquisada possuem menos dificuldades sensoriais quando comparadas às crianças também sem transtornos da amostra normativa. Pelo fato de a média dos escores da amostra brasileira ter sido inferior ao da amostra normativa na quase totalidade das categorias e idades, foram calculados valores de escores referentes às três faixas de desempenho sensorial (Tabela 3.3B). Os referidos valores - assim como os valores referentes à amostra normativa - foram determinados de acordo com as orientações do manual do instrumento, da seguinte forma: desempenho sensorial típico corresponde a pontuações maiores que um desvio padrão abaixo da média geral por categoria (da amostra de crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento); diferença provável corresponde a pontuações menores que um desvio padrão abaixo da média geral por categoria; diferença definida corresponde a pontuações menores que dois desvios padrão abaixo da média geral por categoria (Dunn, 1999b). Os valores máximos da faixa de desempenho sensorial típico são iguais aos da amostra norte-americana (somando-se os valores máximos das 14 categorias chega-se à pontuação máxima possível do instrumento: 625), assim como os valores mínimos da faixa de diferença definida (somando-se os valores mínimos das 14 categorias chega-se à pontuação mínima possível do instrumento: 125); todos os outros valores foram calculados segundo as médias e os desvios padrão da amostra brasileira em cada categoria do instrumento (Tabela 3.3B).

 

 

Na Tabela 3.3A, é possível observar que, embora a média dos escores da amostra brasileira tenha diferido estatisticamente da amostra normativa norte-americana, com tamanho de efeito médio a grande, na maioria das categorias e em todas as idades, esses escores estão dentro da faixa de desempenho sensorial típico na totalidade das categorias do instrumento e para todas as faixas etárias.

Em seguida, avaliou-se se o instrumento discrimina as crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento das crianças com TEA. Nas 14 categorias do instrumento, as médias dos escores das crianças sem transtornos e com TEA foram estatisticamente diferentes. Além disso, as médias dos escores do grupo com TEA foram significativamente menores que os das crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento (Tabela 3.4), e, corroborando esses resultados, a classificação do desempenho sensorial crianças com TEA, situou-se nas faixas de diferença provável e/ou diferença definida em todas as categorias do instrumento e nas seis faixas etárias investigadas neste trabalho (Tabela 3.5). Os resultados dessas análises demonstram evidências de que o instrumento diferencia o desempenho sensorial das crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento e das crianças com TEA.

 

 

 

 

4. Discussão

O estudo prévio realizado por Mattos et al. (2015) mostrou que o Sensory Profile traduzido e adaptado culturalmente do inglês para o português do Brasil apresentou consistência interna satisfatória e que poderia ser investigado para verificar sua confiabilidade e validade. No presente estudo, a casuística foi ampliada e envolveu 336 crianças, sendo 298 sem transtornos do neurodesenvolvimento e 38 com TEA. Realça-se que neste estudo a amostra brasileira de crianças com TEA foi maior e mais homogênea em relação à faixa etária (de 5 a 10 anos) em comparação à amostra norte-americana, que envolveu 32 crianças na faixa etária dos 3 aos 13 anos (Dunn,1999b).

As pesquisas realizadas para o desenvolvimento do instrumento apontaram para o fato de as habilidades do processamento sensorial não mudarem substancialmente a partir dos 5 anos de idade (Dunn, 1999b), o que também foi verificado neste estudo. Embora os escores das crianças de 8 e 9 anos desta amostra brasileira de crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento tenham sido estatisticamente inferiores aos escores das crianças de 10 anos em apenas uma categoria do instrumento, eles ainda se situaram dentro da faixa de desempenho típico.

Concernente à verificação da confiabilidade do instrumento, o alfa de Cronbach foi calculado para as 14 categorias e os 9 fatores do instrumento, em relação ao desempenho das crianças brasileiras sem transtornos do neurodesenvolvimento. Os valores de alfa maiores que 0,60 foram observados em 12 das 14 categorias e em 7 dos 9 fatores do instrumento, situaram-se entre o satisfatório e o ideal, e foram ainda semelhantes aos relatados na amostra normativa norte-americana. Corroborando nossos resultados, Neuman et al. (2004) e Kayihan et al. (2015) também relataram, em uma minoria das categorias, valores de alfa abaixo de 0,60, mas consideraram o Sensory Profile um instrumento confiável, pois argumentaram que valores de alfa acima de 0,60, na maioria das categorias, são indicadores de uma consistência interna aceitável. A despeito de a consistência interna do instrumento estar situada entre o satisfatório e o ideal, o desempenho sensorial das crianças brasileiras sem transtornos do neurodesenvolvimento, na grande maioria das categorias e faixas etárias, foi inferior ao desempenho relatado na amostra normativa norte-americana (Dunn, 1999b), tal como observado por Neuman (2006) para as crianças israelenses. Assim, foram estabelecidas novas faixas de escores para a classificação de desempenho sensorial (desempenho típico, diferença provável e diferença definida), em cada uma das categorias do instrumento e de acordo com as instruções de seu manual. Utilizando as novas faixas de escores, observou-se que o desempenho sensorial das crianças com TEA, em todas as idades e categorias, situou-se em provável diferença e/ou diferença definida, e em nenhuma categoria nem faixa etária, situou-se em desempenho típico. Não surpreendentemente, observou-se que as médias das crianças com TEA foram notadamente menores em todas as categorias do instrumento quando comparadas com as médias das crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento.

Os resultados mostraram que o Sensory Profile traduzido e adaptado culturalmente para o português do Brasil apontou para a presença de prejuízos sensoriais nas crianças com TEA investigadas neste estudo, reiterando a presença de dificuldades no processamento sensorial em quadros de TEA amplamente descrita na literatura (Pfeiffer et al., 2011; Ganapathy & Priyadarshini, 2014; Kayihan et al., 2015) e no DSM-5 (American Psychiatric Association, 2014).

 

5. Considerações finais

Os resultados do presente estudo mostraram que o Sensory Profile traduzido e adaptado culturalmente para o português do Brasil apresenta consistência interna semelhante à observada no instrumento original na língua inglesa, situada entre satisfatória e ideal. As crianças brasileiras sem transtornos do neurodesenvolvimento - todas residentes na Região Sudeste do Brasil, mais especificamente na região metropolitana de São Paulo - apresentaram, no geral, médias mais baixas que as das crianças da amostra normativa norte-americana. Por meio de novas faixas de escores estabelecidas para as crianças brasileiras quanto à classificação de desempenho sensorial em todas as categorias do instrumento, foi possível observar que todas as crianças com TEA investigadas nesta casuística enquadraram-se nas faixas de provável diferença e/ou diferença definida e que seus desempenhos sensoriais foram inferiores aos observados nas crianças sem transtornos do neurodesenvolvimento.

Estudos futuros com uma amostra nacional representativa e com outros grupos clínicos são requeridos para assegurar a confiabilidade e a validade do instrumento, incluindo a expansão da faixa etária que neste estudo se restringiu as idades de 5 a 10 anos. Além disso, seria adequada a inclusão da análise fatorial confirmatória para investigar se a estrutura fatorial do instrumento original se mantém na versão traduzida e adaptada. A despeito dessas limitações, os resultados do presente estudo mostraram que o Sensory Profile, traduzido e adaptado culturalmente para o português do Brasil, apontou para a presença de prejuízos no processamento sensorial das crianças com TEA investigadas nesta pesquisa.

 

Referências

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Correspondência:
Jací Carnicelli Mattos
Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, Universidade Presbiteriana Mackenzie
Rua da Consolação, 930, Prédio 28
São Paulo, SP, Brasil. CEP 01302-907
E-mail: jcarnicellimattos@gmail.com

Submissão: 10/05/2018
Aceite: 28/02/2019
O presente trabalho foi realizado com apoio do Fundo Mackenzie de Pesquisa (MackPesquisa) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Código de Financiamento 001.

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