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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.21 no.2 São Paulo maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v21n2p378-396 

ARTIGOS
AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

 

Memória autobiográfica: uma proposta de estimulação mnêmica em idosos

 

 

Alliny Michelly S. ValeI; Henrique S. da SilvaII; Isabelle Patriciá F. S. ChariglioneIII

IGraduação em Psicologia, Universidade Católica de Brasília (UCB)
IIPrograma de Pós-Graduação em Gerontologia, Universidade Católica de Brasília (UCB)
IIIInstituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento (PED), Universidade de Brasília (UnB)

Correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo foi documentar o processo de implantação de uma intervenção de memória autobiográfica para idosos desenvolvida por Serrano, Latorre e Montañes (2005) e verificar o impacto na cognição, nos sintomas depressivos, na ansiedade e na qualidade de vida. O delineamento do estudo foi quase experimental, com avaliações pré e pós-intervenção, sendo investigadas dez pessoas idosas de ambos os sexos, divididas em grupo controle (GC = 5) e grupo experimental (GE = 5). Não houve ganhos em escores cognitivos, depressão, ansiedade e qualidade de vida. Contudo, a aplicação do protocolo proporcionou a interação e socialização dos idosos em um ambiente capaz de favorecer a rememoração autobiográfica. Sugere-se, porém, que os profissionais, ao aplicarem o roteiro, tenham flexibilidade necessária para possível ampliação de número de idoso, tempo e número de sessões.

Palavras-chave: memória autobiográfica; idoso; terapia de reminiscência; emoção; cognição.


 

 

1. Introdução

O uso de intervenções bem delineadas, adequadas e bem planejadas é um desafio crescente na prática clínica com pessoas idosas, especialmente no Brasil, na qual a Psicologia do Envelhecimento busca documentar intervenções e responder aos dilemas crescentes da velhice. Sendo assim, o envelhecimento acompanhado pelas síndromes demenciais e por altos níveis de sintomatologia depressiva é uma realidade que tende a aumentar nos próximos anos e em especial na velhice avançada (Gutierrez, Salmazo da Silva, Guimarães, & Campino, 2014; Santos et al., 2017). A criação de intervenções e serviços de saúde mental é uma questão urgente para promover a saúde mental de idosos (Canineu, Stella, & Samara, 2006; Engelhardt, Laks, Rozenthal, & Marinho, 1998; Netto, 2010; Santos et al., 2017).

De acordo com a literatura, as intervenções mais usadas são o treino e a estimulação cognitiva, especialmente pelo potencial de remediar os déficits cognitivos e, paralelamente, aumentar os indicadores de saúde mental, a socialização e a qualidade de vida, e reduzir os sintomas depressivos (Reijnders, Van Heugten, & Van Boxtel, 2013; Chariglione, Janczura, & Belleville, 2018). Conforme Huntley et al. (2015), a estimulação cognitiva refere-se a um conjunto de atividades não específicas que visam à estimulação de múltiplos domínios cognitivos e que podem assumir características que variam em função do interesse e das metas estabelecidas, como: terapia de reminiscência, orientação à realidade e estimulação cognitiva aliada a atividades sociais e sensório motoras.

Dessas intervenções, a terapia de reminiscência tem demonstrado benefícios para a cognição e para a redução dos sintomas depressivos da população idosa (Gil et al., 2018; Gonçalves, 2006; Gonçalves, Albuquerque, & Martín, 2008; Salazar-Villanea, 2012). O enfoque da terapia de reminiscência é estimular a memória autobiográfica e a reavaliação do histórico de vida, permitindo o enfrentamento de importantes eventos de vida, a construção de novas perspectivas sobre si mesmo e a atribuição de um sentido para a vida (Westerhof & Bohlmeijer, 2014).

Um dos primeiros teóricos a explorar o papel das intervenções de reminiscência foi o psiquiatra e pesquisador Robert Butler, em 1963, indicando que as reminiscências poderiam ter um papel adaptativo ante a finitude (Butler, 1963, 1974, 2002). Nesse contexto, as reminiscências podem colaborar de forma significativa na promoção do bem-estar psicológico na população idosa, tendo como funções a ressignificação do papel social - aumentando sua participação social na transmissão de conhecimentos e da cultura -, a partilha de mecanismos de enfrentamento, a regulação emocional - na qual as experiências pregressas podem ajudar a moldar percepções do presente, tendo respostas mais adaptativas perante os dilemas e problemas - e a integração do self, refletindo sobre o passado como uma estratégia para criação de percepções mais flexíveis sobre si mesmo (Gil et al., 2018; Westerhof & Bohlmeijer, 2014).

O material utilizado, portanto, centra-se na memória como senso de identidade pessoal (Izquierdo, 1989), responsável pela construção do repertório autobiográfico que se solidifica com o passar do curso de vida e permite que o indivíduo preserve sua identidade ao longo das variações que compõem as experiências da vida diária.

No Brasil, poucos estudos se debruçaram a investigar a aplicação de metodologias de sessões de reminiscências em idosos saudáveis. Em estudo de revisão da literatura, Golino e Golino (2017) não identificaram estudos brasileiros com intervenções específicas de terapias de reminiscências. Contudo, algumas intervenções já documentadas aliaram sessões de memória autobiográfica com jogos e discussão de papéis sociais dos idosos (Oliveira, Costa, Santos, & Lemos, 2012), ao passo que outras intervenções foram delineadas com encontros em que os idosos discorriam seu histórico de vida por meio de nove encontros com duração de duas horas semanais, utilizando-se como recursos leituras, reflexões, transcrição de narrativas para idosos iletrados, registro de histórias em diários e dinâmicas de grupo (Cabral, Amaral, & Brandão, 2009).

Nesse sentido, as metodologias usadas nesses tipos de intervenção variam em função dos objetivos, do público e dos materiais usados. Segundo Marques (2012), existe uma grande dificuldade no processo de compreensão de eficácia da intervenção da terapia de reminiscência porque não há um modelo estrutural que permita adotar parâmetros similares de intervenção. Em algumas intervenções, inexiste um roteiro de como são planejados os encontros (Yen & Lin, 2017).

Dada a escassez de modelos aplicados no Brasil, torna-se relevante investigar as potencialidades, as limitações e os ajustes necessários para a aplicação em nosso meio, considerando as características da população e os roteiros previamente aplicados em outros estudos. Existem atualmente diversas propostas de terapias de reminiscência, sendo algumas voltadas para pessoas com quadro demencial, conforme documentado por Woods, O'Philbin, Farrell, Spector e Orrell. (2018) em revisão sistemática de 22 estudos internacionais que investigaram 1.972 pacientes, e, para idosos cognitivamente saudáveis, conforme metodologia empregada por Serrano et al. (2005) na Espanha. O modelo de Serrano et al. (2005) norteia a intervenção em um roteiro de questões com eixos temáticos, o que pode facilitar a aplicação e o delineamento por permitir ao profissional fazer ajustes e adaptações compatíveis com o perfil e a evolução do grupo de pessoas idosas, como o dimensionamento do tempo e os tipos de questões disparadoras e assuntos que necessitam de maior aprofundamento. Nesse sentido, pesquisas interventivas em Psicologia do Envelhecimento podem fornecer dados sobre a eficácia, o andamento e os pontos que precisam ser modificados e ajustados com base no perfil e nas necessidades dos idosos participantes. Em pesquisa com grupos de idosos de Ivoti/RS, que utilizou a análise da história de vida dos participantes, Wosiack, Berlim e Santos (2013) sugerem que as intervenções psicossociais necessitam ser sistemáticas e bem delineadas, com o objetivo de contribuir para o autodesenvolvimento individual e grupal, potencializar a autoajuda e diminuir o isolamento dos idosos. Tendo em vista a aplicação dessas intervenções no cenário de atuação do profissional psicólogo, o objetivo deste estudo foi documentar o processo de implantação de uma intervenção de memória autobiográfica para idosos desenvolvida por Serrano et al. (2005), em um grupo de convivência de pessoas idosas do Distrito Federal, e verificar o impacto na cognição, nos sintomas depressivos, na ansiedade e na qualidade de vida.

 

2. Métodos

2.1 Participantes

A amostra foi composta por dez idosos do Centro de Convivência do Idoso (CCI) da Universidade Católica de Brasília (UCB), de ambos os sexos (nove mulheres e um homem), saudáveis, alfabetizados e com faixa etária no intervalo entre 61 e 83 anos. Tais participantes compuseram uma amostra de conveniência e, logo, não probabilística.

A Figura 2.1.1 ilustra o processo de alocação dos participantes e a perda amostral ocorrida durante a pesquisa.

 

 

Como critérios de exclusão, foram considerados: idosos com diagnóstico demencial, analfabetos e com déficits auditivos, visuais e/ou motores que impossibilitassem a execução dos testes e das intervenções. Apenas um voluntário da pesquisa foi excluído por ser analfabeto, não se enquadrando assim nos critérios de inclusão. As pessoas que atenderam aos requisitos para participação da pesquisa de maneira voluntária e não remunerada foram convidadas a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Este projeto e o TCLE foram submetidos ao Comitê de Ética em Pesquisas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/Conep) por meio da Plataforma Brasil do Ministério da Saúde, e o estudo foi realizado conforme aprovação das normas requeridas de trabalhos científicos com seres humanos - Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (Caae) n. 53888816.7.0000.0029.

2.2 Delineamento metodológico

Tratou-se de um estudo conduzido sob o enfoque de pesquisa quase-experimental com avaliações pré e pós-intervenção. Realizaram-se avaliações a fim de verificar o efeito da estimulação de memória autobiográfica utilizando-se da técnica de reminiscência, e o grupo de idosos foi subdividido em grupo experimental (GE) e grupo controle (GC). Ambos os grupos foram submetidos aos testes pré e pós-intervenção, e a subdivisão se deu de forma randomizada. Os idosos do GC, após intervenção e obtenção dos dados para a pesquisa, foram também submetidos ao processo de estimulação por motivos éticos.

2.3 Instrumentos

Os testes pré e pós-intervenção incluíram avaliações para obter as variáveis sociodemográficas e as condições clínicas do estado atual dos participantes, contemplando os aspectos cognitivos e emocionais dos idosos. Para isso, foram utilizados os seguintes instrumentos:

• Questionário sociodemográfico com informações sobre idade, sexo, escolaridade, aspectos de saúde e contexto familiar.

• Inventário de Ansiedade Beck (Beck Anxiety Inventory - BAI) composto por 21 questões de múltipla escolha, cujo escore varia de 0 a 63 pontos: de 0 a 7 pontos = grau mínimo de ansiedade, de 8 a 15 = ansiedade leve, de 16 a 25 = ansiedade moderada e de 26 a 63 = ansiedade severa (Cunha, 2011).

• Inventário de Depressão Beck (Beck Depression Inventory - BDI) composto por 21 itens com categorias de manifestações comportamentais cognitivas afetivas e somáticas da depressão. Cada categoria contém quatro ou cinco alternativas, e a pontuação para cada categoria varia de 0 a 3: 0 = ausência de sintomas depressivos e 3 = presença de sintomas intensos. Na pontuação total, escores de até 9 = ausência de depressão; de 10 a 18 = depressão leve a moderada; de 19 a 29 = depressão moderada a grave; e de 30 a 63 = depressão grave (Cunha, 2011).

• Instrumento de avaliação da qualidade de vida WHOQOL-bref composto por 26 questões que avaliam a qualidade de vida geral e se dividem em quatro domínios: físico, psicológico, relações sociais e meio ambiente. Esse teste é respondido em uma escala do tipo Likert variando de 1 a 5: 1 = nada e 5 = completamente. O sujeito faz referência às duas últimas semanas, e, quanto maior o score, melhor qualidade de vida;

• Mini Exame do Estado Mental (MEEM) que avalia o desempenho cognitivo global por meio dos subdomínios orientação no tempo e no espaço, memória, atenção, cálculo, linguagem e praxia construtiva. O questionário é composto por 30 questões, às quais é atribuído um ponto por resposta certa. Seu protocolo de correção foi validado para a população brasileira por Bertolucci, Brucki, Campacci e Juliano (1994) e aperfeiçoado por Brucki, Nitrini, Caramelli, Bertolucci e Okamoto (2003).

2.4 Procedimentos

As sessões de intervenção de memória autobiográfica foram baseadas no protocolo de Serrano et al. (2005), utilizando perguntas direcionadas para o ciclo de vida sempre com tonalidade positiva e com um número menor de perguntas para que fosse bem tolerado pelos idosos, a fim de evitar o cansaço. A intervenção original focalizava quatro sessões individuais baseadas na revisão de vida: as três primeiras abordavam uma época específica de vida (infância, adolescência e idade adulta) e a última se concentrava numa avaliação mais específica do percurso de vida do sujeito. No presente estudo, as mesmas sessões foram utilizadas em formato grupal com seis encontros semanais de 90 minutos: dois de avaliação (pré e pós-intervenções) e quatro de intervenção, aqui intitulados: infância, adolescência, idade adulta e resumo da vida; sem modificações procedimentais em relação à intervenção original, a não ser pelo fato de as intervenções serem grupais e não individuais. O GC, durante as seis semanas de intervenções do GE, continuou especificamente as atividades propostas pelo CCI da UCB, enquanto o GE acumulava as atividades do CCI e das intervenções de reminiscências. O GC e GE foram avaliados, no mesmo momento, por protocolo individual, nesta sequência de testes: BAI - BDI - WHOQOL-bref - MEEM.

2.5 Análise dos dados

Para descrição mais detalhada da implantação da intervenção de memória autobiográfica, utilizou-se a análise qualitativa dos depoimentos dos participantes no que se refere à percepção da intervenção e dos temas abordados, enquadrando a análise no âmbito da pesquisa interventiva em Psicologia (Szymanski & Cury, 2004). Para isso, os depoimentos foram transcritos na íntegra. Com relação aos dados quantitativos, compararam-se possíveis diferenças entre o pré e o pós-teste do grupo de estimulação (GE) e os pós-testes do grupo de estimulação (GE) e do GC. Para verificar a existência de diferença estatisticamente significativa entre os grupos, utilizou-se o teste Wilcoxon pareado para amostras independentes, e, para verificar a existência de diferença entre os grupos, adotou-se o mesmo teste para amostras relacionadas. O nível de significância adotado para os testes foi de p < 0,05.

 

3. Resultados

3.1 Aplicação e desenvolvimento da intervenção de memória autobiográfica

A aplicação da proposta de Serrano et al. (2005) indicou que os participantes tiveram, ao longo das sessões, dificuldades na evocação de memórias com conotação positiva e facilidade de evocar recordações negativas. Apesar disso, a estimulação de memória autobiográfica proporcionou, segundo os relatos das participantes da última sessão (resumo da vida), um espaço de fala e identificação de sua própria história ou de pontos em comum por meio da escuta das demais histórias de vida, como pode ser verificado nos relatos a seguir:

Eu achei maravilhosas essas atividades que fizemos aqui. Eu acho que eu nunca tinha falado tanto sobre a minha vida, e eu não sabia que falar sobre a vida me faria tão bem (Sujeito 1).

O que foi mais importante para mim foi saber que as coisas que eu passei e medos que eu tive também foram vividos pelas minhas colegas. Hoje entendi que nunca é tarde para deixar um pouco o peso da vida. Eu queria mais (Sujeito 2).

Lembrar da minha infância, na companhia dos meus pais e dos meus irmãos, foi o de mais bonito. Parece que voltei no tempo, e num tempo muito bom, sem problemas (Sujeito 3).

Eu ficava emocionada e chorava todos os dias, mas era como eu sempre dizia: “Não se preocupem, estou muito feliz de rever a minha vida e pensar nas pessoas que passaram por ela”. Eu ficaria nesse grupo o tempo que fosse possível (Sujeito 4).

Eu não sei nem como agradecer. Nos meus 83 anos de idade foi uma das coisas mais bonitas que já vivi. Muito obrigada pelo convite para participar (Sujeito 5).

Nesse sentido, a aplicação do protocolo em grupo demonstrou resultados favoráveis à sua aplicação e possíveis de ser bem delineados na prática profissional do psicólogo com pessoas idosas. Contudo, apenas o tempo de execução das atividades mostrou-se insuficiente para a realização satisfatória do protocolo original. Sendo assim, torna-se necessário o planejamento de um número maior de sessões para que os temas sejam mais bem trabalhados e o relato dos participantes valorizados. O desenvolvimento das sessões e o detalhamento das questões disparadoras encontram-se descritos em Gonçalves (2006).

3.2 Avaliação da intervenção na cognição, depressão, ansiedade e qualidade de vida

Segundo a caracterização sociodemográfica (Tabela 3.2.1), grande parte da amostra foi composta por mulheres, e o grau de escolaridade do GE foi relativamente superior se comparado ao GC.

 

 

Conforme a Tabela 3.2.2, os grupos não se diferenciaram estatisticamente em relação ao BAI, BDI, WHOQOL- bref e MEEM (p > 0,05).

 

 

A comparação do pré e pós-teste indicou que o programa não se associou a mudanças na cognição, nos sintomas depressivos, na ansiedade e na qualidade de vida. Contudo, houve tendência a redução nos escores no BAI e BDI, mas sem diferenças estatísticas.

 

4. Discussão

Os resultados deste estudo indicam que intervenções de estimulação de memória autobiográfica representam uma importante ferramenta de atuação com pessoas idosas, especialmente se reunirem questões orientadas, fundamentadas e bem delineadas como foram usadas no presente estudo. O método de Serrano et al. (2005), adaptado por Gonçalves (2006), mostrou-se útil para a efetivação da intervenção grupal estudada e pode servir de base para intervenções de memória autobiográfica com idosos brasileiros. Sugere-se, porém, que os profissionais, ao aplicarem o roteiro, tenham flexibilidade necessária para possível ampliação do tempo e do número de sessões, visto que no presente estudo essa foi uma necessidade observada.

Em oposição aos achados de Salazar-Villanea (2012) e Gonçalves (2006), que indicaram aumento do desempenho cognitivo e emocional, neste estudo não houve a documentação de ganhos. As razões para isso ocorrer podem estar relacionadas ao fato de a amostra ser pequena, configurando este estudo como um ensaio quase experimental, de caráter exploratório e descritivo, como também observado em Chariglione e Janczura (2013). Embora não tenham sido documentados ganhos objetivos nos testes, a estimulação de memória autobiográfica proporcionou, segundo os relatos das participantes, um espaço de fala e identificação da própria história ou de pontos em comum por meio da escuta das demais histórias de vida, benefícios já documentados em outros estudos da área (Butler, 2002; Westerhof & Bohlmeijer, 2014).

Com relação à ausência de alterações nas medidas de humor e cognição, alguns estudos apontam que alterações nesses domínios seguem relações complexas. Estudos como o de Nascimento e Pergher (2011) apoiam que existe uma correlação inversa entre a memória autobiográfica e sintomas depressivos, ou seja, quanto mais intensa for a depressão, mais inespecífica será a recordação autobiográfica. No trabalho proposto por Gonçalves (2006), a amostra submetida ao treino de recuperação de memórias autobiográficas registrou diminuição estatisticamente significativa na sintomatologia depressiva e um aumento igualmente significativo na satisfação de vida, mesmo que não se possa concluir que tais resultados finais sejam atribuídos à estimulação.

Diante de tais dados, pesquisadores discutem de que forma a terapia de reminiscência pode ser mensurada como metodologia experimental. Assim como trazido por Marques (2012), não existe um modelo padrão que permita adotar parâmetros similares de intervenção, assim como também o modo de avaliar os efeitos dessa técnica ainda é pouco documentado. Sendo assim, a melhor forma encontrada para análise se enquadra nos aspectos qualitativos da intervenção. De acordo com Szymanski & Cury (2004), a análise da eficácia de pesquisas interventivas em Psicologia pode auxiliar na formação de profissionais, pesquisadores, serviços voltados às necessidades e realidades da população. Nesse sentido, as conexões entre teoria e prática constituem terreno fértil para o amadurecimento de áreas como a Psicologia do Envelhecimento no Brasil, auxiliando a detectar ajustes, possibilidades e a superação de desafios na atuação com a população idosa.

Outra questão observada durante as intervenções foi a dificuldade de evocação de memórias com conotação positiva e a facilidade de evocar recordações negativas. Isso ocorreu porque, de acordo com McGaugh (2013), a força das memórias dos acontecimentos varia de acordo com o significado emocional destes, e, portanto, experiências desagradáveis são lembradas mais facilmente do que aquelas vivenciadas no dia a dia.

A troca de experiências e informações se constitui ainda como uma forma de inclusão social e para assegurar o exercício da cidadania (Dalmolin, Leite, Hildebrandt, Sassi, & Perdonssini, 2011; Gil et al., 2018; Golino & Golino, 2017). As propostas dos centros de convivência e do projeto de extensão no qual tais participantes estão inseridas visam proporcionar a esse público socialização, interação e bem-estar. Dessa forma, é possível inferir que o fato de as participantes do grupo de estimulação estarem em um grupo de convivência já as distingue dos demais participantes não pertencentes a tais espaços, pois as ações socioeducativas, físicas, artesanais e tecnológicas frequentemente proporcionadas por essas entidades direcionam o idoso para obtenção de um estilo de vida mais saudável, resgatando a autonomia e, consequentemente, uma melhor qualidade de vida (Wichmann, Couto, Areosa, & Montañés, 2013).

Além da oportunidade de compartilhar suas vivências, a estimulação de memória autobiográfica realizada neste estudo proporcionou, segundo os relatos das participantes do grupo de estimulação, um espaço de fala e identificação da própria história ou de pontos em comum por meio da escuta das demais pessoas idosas. Esse fenômeno que possibilita que determinada manifestação de um membro do grupo encontre uma equivalência afetiva e desperte emoções semelhantes nos demais membros é nomeado por Osorio (2003) como "ressonância". Além desse, diversos fenômenos específicos da situação grupal puderam ser observados.

Portanto, a aplicação do protocolo em grupo de Serrano et al. (2005) demonstrou resultados favoráveis para replicação em estudos futuros por proporcionar a interação e a socialização dos idosos em um ambiente capaz de favorecer a rememoração autobiográfica. E, além das possibilidades já mencionadas, sugerem-se, para novas aplicações e avaliações desse tipo de estimulação, a composição de uma amostra representativa e heterogênea, que seja capaz de oferecer dados passíveis de generalização, e estudos com idosos com sintomatologia depressiva ou com transtorno cognitivo leve.

O tempo para execução das atividades, apesar de ter seguido precisamente o cronograma proposto para a realização desta pesquisa, mostrou-se insuficiente pela fala dos membros do grupo e pela observação da psicóloga responsável pela pesquisa. Porém, a adaptação do tempo durante as sessões de estimulação não se configurou como uma perda, tendo em vista a relevância emocional, observada por meio da fala das participantes do grupo de estimulação. Sendo assim, para pesquisas futuras, sugere-se ainda a aplicação do protocolo em um número maior de sessões.

Os resultados obtidos neste estudo revelaram a carência e a necessidade de novos trabalhos relacionados à investigação da estimulação da memória autobiográfica, especialmente na replicação da intervenção sistematizada. Conforme Westerhof e Bohlmeijer (2014), após 55 anos das primeiras intervenções propostas por Butler (1963), a área de pesquisa irá se beneficiar se considerar intervenções com desenhos longitudinais, isto é, feitas com o objetivo de documentar benefícios em longo prazo das intervenções. Além disso, tornam-se necessários o desenvolvimento de estudos comparativos de diferentes tipos de metodologias de coleta e análise de reminiscências, e a discussão de teorias cognitivas e da personalidade para investigar as relações entre cognição, traços de personalidade e saúde mental na velhice.

Outras questões para o avanço dos estudos na área incluem o mapeamento das condições socioeconômicas e de saúde mental dos participantes, o desenvolvimento de ensaios clínicos randomizados e a adaptação à cultura da população investigada (Yen & Li, 2017). Dessa forma, propõe-se que novas pesquisas levantem subsídios capazes de fomentar o desenvolvimento de estratégias para retardar ou minimizar os declínios cognitivos advindos do envelhecimento, concentrando esforços para uma análise que contemple de forma mais abrangente os resultados quantitativos e qualitativos.

 

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Correspondência:
Isabelle Patriciá Freitas Soares Chariglione
Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, Campus Universitário Darcy Ribeiro
Brasília, DF, Brasil. CEP 70910-900
E-mail:ichariglione@unb.br

Submissão: 03/11/2017
Aceite: 01/04/2019

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