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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.22 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v22n1p230-250 

ARTIGO
PSICOLOGIA SOCIAL

 

A psicodinâmica do preconceito: revisão bibliográfica

 

 

Rafael C. de Brito; Berenice Carpigianio

Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), São Paulo, SP, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

A intenção da presente pesquisa foi investigar como a teoria psicanalítica do funcionamento intrapsíquico do preconceituoso pode ajudar a delimitar as características anímicas desse mal social. Como metodologia, utilizou-se a pesquisa bibliográfica, isto é, um estudo das fontes documentais selecionadas de maneira ordenada, sistematizada e documentada, com critérios e procedimentos claramente delimitados. Dezessete artigos foram selecionados e cada um deles foi estudado, fichado e analisado. Como principal resultado, pôde-se concluir que o preconceito é, no fundo, um mecanismo de identificação. As funções primordiais a que atende são voltadas à manutenção das boas relações objetais e à coesão narcísica do self ante a ameaça de sua destruição pela sensação da ambivalência. Dessa forma, o indivíduo precisa proteger as identificações que são a base da constituição do seu self por meio de mecanismos de defesa que colocam tanto a gênese quanto o produto de suas angústias em outros, fundamentalmente percebidos como diferentes.

Palavras chave: preconceito; psicodinâmica; psicanálise; ambivalência; identificação.


ABSTRACT

The present research aims to investigate how the psychoanalytic theory of the intrapsychic functioning of the prejudiced can help to delimit the psychic characteristics of this social evil. Methodologically speaking, we conducted a bibliographic review, a study of the selected documentary sources in an orderly, systematized and documented way, with clearly delimited criteria and procedures. Seventeen articles were selected and each one was studied and analyzed. As a main result, we concluded that prejudice is, basically, a mechanism of identification. The primary functions it serves are directed towards the maintenance of good object relations and the narcissistic cohesion of the Self in the face of the threat of its destruction by the sense of ambivalence. Hence, the individual needs to protect the identifications that are the basis of his/her Self through defense mechanisms that place both the genesis and the product of his/her anguishes on others, fundamentally perceived as different.

Keywords: prejudice; psychodynamics; psychoanalysis; ambivalence; identification.


RESUMEN

La intención de esta investigación fue explorar como la teoría psicoanalítica del funcionamiento intrapsíquico de personas con prejuicios puede ayudar a delimitar las características anímicas de ese mal social. Metodológicamente, utilizamos la investigación bibliográfica, un estudio de las fuentes documentales seleccionadas de manera ordenada, sistematizada y documentada, con criterios y procedimientos claramente delimitados. Diecisiete artículos fueron seleccionados, estudiados, fichados y analizados. Como principal resultado, se pudo concluir que el prejuicio es, en el fondo, un mecanismo de identificación. Las funciones primordiales a que atiende están dirigidas al mantenimiento de las buenas relaciones objetivas y la cohesión narcisista del self frente a la amenaza de su destrucción por la sensación de la ambivalencia. De esta forma, el individuo necesita proteger las identificaciones que son la base de la constitución de su self por medio de mecanismos de defensa que colocan la génesis y el producto de sus angustias en otros, fundamentalmente percibidos como diferentes.

Palabras clave: prejuicio; psicodinámica; psicoanálisis; ambivalencia; identificación.


 

 

1. Introdução

O preconceito é tema clássico da psicologia e fenômeno tão antigo quanto o advento da sociedade. Snowden (1995) demonstra, ao realizar uma análise histórica, que existem atitudes preconceituosas desde a Antiguidade greco-romana. Entretanto, foi em 1950 que Gordon Allport formulou uma das primeiras teorias consistentes sobre o tema. Em seu livro A natureza do preconceito, Allport (1979, p. 22, tradução nossa) define preconceito como "uma atitude hostil ou preventiva com relação a uma pessoa que pertence a um grupo, simplesmente porque pertence a esse grupo, supondo-se, portanto, que possui as características contestáveis atribuídas a esse grupo".

Desde Allport, teóricos de diferentes abordagens avançaram em suas formulações sobre o preconceito, porém a maioria desses estudos concentrava-se em especificidades do objeto ou em tipos específicos de sua manifestação e não no preconceito como fenômeno global (Duckitt, 1992). Crandall e Eshleman (2003) argumentam que, apesar dessa histórica segmentação dos estudos, o preconceito é primordialmente um estado afetivo que, assim como outros estados afetivos, gera uma tensão no organismo que pode servir como incentivo ou motivação para a ação. Destarte, todos os tipos específicos de preconceito compartilham, pelo me-nos, um mesmo núcleo e, portanto, podem ser estudados em conjunto.

O foco do presente artigo é tentar compreender o preconceito por meio dos mecanismos intrapsíquicos do fenômeno e não das especificidades de seus alvos, porém, partindo do pressuposto de que todos os tipos de preconceito compartilham um mesmo núcleo, é possível utilizar-se das formulações desses estudos específicos para avançar teoricamente na tentativa de uma construção mais ampla. Como não se pode negar que os estudos que mais contribuíram para o avanço da compreensão do preconceito foram os trabalhos sobre o preconceito racial (Duckitt, 1992; Crandall & Eshleman, 2003), revisaremos brevemente alguns dos achados contemporâneos mais significativos dentro desse campo.

As teorias mais recentes acerca do preconceito racial defendem que o preconceito se modificou ao longo dos anos. Por causa de uma série de modificações políticas e sociais no mundo pós-Segunda Guerra Mundial, estabeleceram-se sociedades com democracias mais consolidadas em que valores igualitários, humanitários e libertários vigoram como normas sociais (Lima & Vala, 2004). Nesses novos ambientes, a expressão do preconceito genuíno, que se mostra de maneira aberta e direta, não mais pode ser aceita. Entretanto, em vez de se extinguir, o preconceito encontrou novas maneiras de se expressar para atender a essa nova configuração social, utilizando formas mais sutis, mascaradas e indiretas. Diversas teorias, como a do racismo aversivo, racismo moderno, racismo ambivalente, preconceito sutil e racismo cordial, diagnosticaram essa mudança, porém é o trabalho de Crandall e Eshleman (2003) que melhor nos explica como esse mecanismo entrou em ação.

Como o preconceito é um estado afetivo que motiva a ação, ele busca sempre a sua expressão. Contudo, como as normas sociais contemporâneas avaliam negativamente essa atitude, o sujeito, sendo socializado nessa nova configuração social, compreende essas atitudes como irracionais, injustas ou vergonhosas (Lima & Vala, 2004) e não quer ser visto ou até mesmo sentir-se preconceituoso. Cria-se, então, uma motivação nos indivíduos para suprimir preconceitos. Esse novo cenário cria uma situação de conflito, afinal, duas motivações ambivalentes e diametralmente opostas atuam simultaneamente sobre o sujeito: a expressão e a supressão do preconceito. Para conseguir respeitar as duas motivações, o indivíduo encontra uma solução pela criação de um compromisso: a motivação de expressão consegue se realizar adequando-se às normas sociais, ou seja, conseguindo se esquivar da motivação de supressão. Essa adequação se baseia em conseguir justificar a sua ação preconceituosa.

"Uma justificativa é qualquer processo social ou psicológico que serve como uma oportunidade para expressar o preconceito genuíno sem sofrer sanções internas ou externas" (Crandall & Eshleman, 2003, p. 425, tradução nossa), a qual pode ser facilmente reconhecida por sua natureza explicativa: é pautada em argumentos "lógicos" que explicam por que, em certas ocasiões, preconceitos podem ser aceitáveis ou até desejáveis e geralmente ocorrem em situações ambíguas o suficiente para justificar uma grande gama de respostas dos indivíduos.

Em consonância com os autores anteriores, porém aumentando a escala do indivíduo para a sociedade, Sidanius e Pratto (1999) desenvolveram a Teoria da Dominância Social, que propõe que as pessoas têm uma disposição para organizar-se em sociedades que reforçam padrões de dominação entre grupos sociais. Isso acontece porque os grupos e as instituições que os colocam no poder criam mitos legitimadores para as desigualdades sociais e podem usá-los como justificativas para a expressão de seus preconceitos. Segundo Crochik (1996), esses mitos podem ser classificados como estereótipos e são formados pelo conjunto de predicados atribuídos pela cultura a determinado grupo, tendo como função primordial a naturalização dos diferentes graus de valor na hierarquia dos papéis desempenhados na sociedade. Sua existência se deve às necessidades culturais de manutenção do status quo, pois constituem ferramenta imprescindível para a contínua permanência e reprodução dos valores morais nos quais a sociedade se sustenta.

Um processo psíquico muito bem descrito por Sigmund Freud (1976) em Além do princípio do prazer refere-se às motivações que precisam encontrar expressão, às forças que atuam contra a sua realização e à formação de compromisso entre elas. A sua teoria sobre a economia e a dinâmica do psiquismo humano, isto é, o funcionamento das forças intrapsíquicas conscientes e inconscientes, é de grande valia para o estudo dos fenômenos psíquicos. Os conceitos de pulsão, repressão e sintoma e a relação entre eles formam a base do funcionamento mental individual e parecem ser amplamente esquecidos pelos trabalhos contemporâneos no campo de estudos sobre o preconceito.

Sendo o preconceito um fenômeno multifatorial, faz-se benéfico à compreensão do tema o seu estudo por meio de uma pluralidade de perspectivas teóricas. De acordo com Duckitt (1992), historicamente, o preconceito foi estudado majoritariamente por três perspectivas teóricas: a sociológica, a cognitiva e a psicanalítica. Entretanto, na contemporaneidade, a vasta predominância dos estudos nesse campo específico do saber acontece por intermédio da psicologia social, principalmente se tratando do Brasil. Por conseguinte, o presente artigo pretende contribuir para a diversificação desse campo de estudos investigando a influência da dinâmica das forças intrapsíquicas e o papel do inconsciente na formação do preconceito. Para tanto, foram selecionados, estudados, fichados e analisados textos-chave dentro do tema proposto, e, a partir desse material, elaborou-se uma descrição crítica e integrativa das diversas teorias levantadas a respeito da psicodinâmica do preconceito.

 

2. Método

O método utilizado para a construção deste artigo foi a pesquisa bibliográfica. Para Lima e Mioto (2007), esse método consiste em um estudo das fontes documentais selecionadas de maneira ordenada, sistematizada e documentada, com critérios e procedimentos claramente delimitados e que visa não apenas à revisão da bibliografia especializada, mas também à constante busca pela apreensão e compreensão da realidade.

Para a sistematização da revisão bibliográfica, foi realizada uma adequação da ferramenta elaborada por Conforto, Amaral e Silva (2011) aos propósitos deste artigo. Por conseguinte, o primeiro passo foi elencar, por meio de estudos preliminares, algumas fontes primárias, compostas basicamente de estudos clássicos ou amplamente conceituados sobre o tema do preconceito, com o objetivo de realizar uma primeira aproximação com o objeto e consolidar uma base teórica consistente para as futuras análises bibliográficas.

O segundo passo foi realizar um levantamento bibliográfico de fontes secundárias, isto é, artigos científicos, capítulos de livros, dissertações e teses, que relacionassem o nosso objeto de estudo (o preconceito) à teoria escolhida para sua análise (a psicanálise). Esse levantamento consistiu em três etapas.

Na primeira, foi realizada uma busca ampla em bases de dados previamente selecionadas (BVS-Psi, SciELO, PsycNET e PubMed), utilizando as seguintes palavras-chave: "preconceito e psicanálise", "preconceito e Freud", "preconceito e Klein", "preconceito e Winnicott" e "preconceito e Lacan". Como algumas das bases de dados pesquisadas eram internacionais, as palavras-chave também foram utilizadas em suas correspondentes das línguas inglesa e espanhola. Na segunda etapa, realizaram-se análises preliminares com a intenção de filtrar os documentos que interessam ao presente estudo. Essas análises consistiram em três filtros: 1. leitura do título, do resumo e das palavras-chave; 2. leitura da introdução, da conclusão e, no caso de teses e dissertações, do capítulo específico sobre o tema do preconceito; e 3. leitura completa do material remanescente.

Os critérios de exclusão foram, na respectiva ordem de importância, os seguintes: 1. o estudo não tratava objetivamente sobre o tema do preconceito, 2. não utilizava a psicanálise como teoria analítica e 3. estudava o indivíduo-alvo do preconceito e não o indivíduo preconceituoso. Ademais, bibliografias levantadas que não disponibilizavam resumos ou não estavam redigidas em inglês, português ou espanhol foram descartadas no primeiro filtro. No segundo filtro, excluíram-se obras que não disponibilizaram versão on-line ou não foram localizadas em bibliotecas ou livrarias locais.

A terceira etapa consistiu na curadoria de artigos importantes referenciados nas obras selecionadas, na fase anterior do levantamento bibliográfico. Novamente, foram aplicados os três filtros já citados para a seleção dos trabalhos relevantes. Nessa etapa, também foram levantados todos os textos de autores psicanalíticos clássicos referenciados, visando a uma revisão teórica prévia à análise bibliográfica propriamente dita. Tendo em vista um maior rigor metodológico, todo o processo de seleção da bibliografia, desde os resultados da busca nas bases de dados até a filtragem dos artigos referenciados, foi documentado e poderá ser consultado na Tabela 2.1.

Após as etapas de seleção da bibliografia serem concluídas, foi desenvolvida uma categorização temática das obras escolhidas de acordo com a proximidade teórica ou empírica de suas formulações com o objeto de estudo proposto. A finalidade dessa etapa foi possibilitar uma comparação tanto intra como intercategorias. Para guiar e sistematizar todo o processo de análise, também se elaborou um roteiro de leitura e fichamento, nos moldes do proposto por Lima e Mioto (2007). A intenção desse instrumento é possibilitar um maior rigor metodológico na comparação dos dados levantados. Dessa forma, documentaram-se aspectos de identificação da obra (título, autor, ano, tipo), caracterização (objetivo, conceitos utilizados, contexto) e contribuições para o estudo (descrições, reflexões, insights). A categorização e qualificação dos dados obtidos pode ser encontrada na Tabela 2.2.

Por fim, estudou-se e fichou-se cada obra, e os dados colhidos foram analisados com o intuito de compreender todas as nuances dos argumentos propostos por cada artigo e a sua relação com as formulações teóricas dos demais autores. Os resultados serão apresentados a seguir de maneira crítica e integrativa, visando à descrição clara e concisa das teorias sobre a psicodinâmica do preconceito, desde a sua gênese até a sua função, presentes nos textos selecionados para a realização desta pesquisa.

 

3. Resultados

De acordo com a metodologia proposta, encontrou-se um total de 536 obras que atendiam aos critérios propostos para as fontes secundárias. Dessas obras, 467 foram excluídas no primeiro filtro, 35 no segundo e 17 no terceiro. Ao final, 17 obras foram escolhidas para a realização desta revisão bibliográfica. A categorização temática dividiu as obras estudadas em quatro agrupamentos relacionados às hipóteses principais da teorização de cada autor: ansiedades edipianas, identificação com ingroups, falhas no processo de ligação libidinal e falhas no processo de diferenciação. A seguir, explicaremos cada uma delas e apresentaremos, em separado, a teoria de cada autor.

O primeiro agrupamento defende que o preconceito é gerado numa tentativa de livrar o indivíduo de ansiedades perante seus primeiros objetos libidinais. Essas ansiedades seriam causadas por impulsos inconscientes inadmissíveis destinados aos objetos amados. Os autores selecionados para esse grupo foram Bird (1957), Money-Kyrle (1960), Steiner (2016), Wirth (2007), Parens (2007a, 2007b, 2007c), Young-Bruehl (2007) e Bloom (2008).

Bird (1957) postula o preconceito e a sua psicodinâmica como um produto do complexo de Édipo, começando como um impulso de inveja, originado no id, dirigido a uma pessoa libidinalmente investida e percebida pelo indivíduo como mais favorecida. Esses impulsos são de tal magnitude que impossibilitam a manutenção de um contato amigável com esses sujeitos. Numa tentativa de manter esse contato, o superego incorpora a "antecipação da vingança" da pessoa invejada e a utiliza para retaliar a inveja do próprio indivíduo por intermédio da castração. O ego, agora atacado pelo superego, sente-se culpado e se protege desse sentimento por meio da projeção da inveja em uma outra pessoa ou grupo que seja socialmente estigmatizado. Dessa forma, o autor entende o preconceito como uma maneira de o ego prevenir a perda de objetos desejados que entra em ação justamente quando essa relação é ameaçada por sentimentos de inveja.

Money-Kyrle (1960) também culpará um impulso inconsciente de inveja que será controlado pelo ego por intermédio da projeção. Para o autor, essa projeção funciona por uma cisão de aspectos ruins do self que são depositados em alvos convenientes para receber esses aspectos. Entretanto, além da projeção, é possível que o ego se utilize da negação para controlar os impulsos invejosos. Por meio dela, o indivíduo deforma o objeto do preconceito, privando-o da qualidade invejada ou deforma a realidade, negando a valorização daquela qualidade. Dessa forma, o preconceito seria um uso indevido dos mecanismos da negação e da projeção, ativados por um sentimento de inveja inconsciente. Ainda nesse texto, o autor argumenta que a natureza dos preconceitos individuais é relacionada diretamente à natureza do superego e do ideal de ego. São justamente os aspectos da personalidade capazes de gerar culpa - advinda do superego - ou vergonha - advinda do ideal de ego - que estão mais propensos a ser cindidos do self e projetados no objeto.

Steiner (2016) postula que cindir e projetar aspectos indesejados do self é o mecanismo central do preconceito. Porém, o narcisismo é o maior responsável por esse tipo de atitude e encontra as suas origens nas ansiedades edipianas precoces. Quando o casal idealizado mãe-bebê é invadido por um terceiro elemento, o indivíduo sente-se desprezado e retirado do seu lugar que, até então, era único. Esse movimento pode gerar sentimentos de humilhação, sendo necessário levantar defesas narcísicas para a proteção do ego. O mecanismo utilizado é a projeção desses aspectos vulneráveis do self em um objeto para que este seja humilhado em seu lugar. Dessa forma, a função de uma organização narcísica desse tipo é proteger o self de ansiedades edipianas, encontrando um alvo externo para projetar e livrar-se da vulnerabilidade sentida por meio de sua aniquilação no objeto encontrado.

Ainda para o autor, os objetos convenientes para alocar essa projeção são justamente os objetos percebidos como diferentes pela organização narcisista. Freud (1918 como citado em Steiner, 2016, p. 290, tradução nossa) reconheceu essa capacidade ao teorizar o narcisismo das pequenas diferenças, em que "são precisamente as pequenas diferenças entre pessoas que fora isso são semelhantes que formam a base de sentimentos de estranheza e hostilidade entre elas". Como os elementos projetados são odiados pelo self, seus alvos também se tornam odiados, e, assim, cria-se a necessidade de excluí-los, humilhá-los e até aniquilá-los para manter a segurança egóica. Essa segurança é alcançada por intermédio da capacidade de sustentar, após a projeção, uma identidade idealizada, livre das falhas que agora não fazem parte do indivíduo.

Para Wirth (2007), o preconceito é baseado em estruturas neuróticas ameaçadas por uma ansiedade que pode surgir tanto do medo de perder o objeto quanto do medo de ser punido por ele. O primeiro se desenvolve a partir da ansiedade de separação, que gera no indivíduo medo da desaprovação do objeto libidinal. Assim, o engajamento com estranhos ou desconhecidos é entendido como potencialmente desaprovador para seus cuidadores, resultando no comportamento de evitar o diferente. O segundo, ao contrário, se desenvolve a partir do medo de ser destruído pelo objeto libidinal e, na tentativa de se proteger, resulta em desconfiança, raiva narcísica, tendências autodestrutivas e diferenciação agressiva do mundo externo. Esses dois tipos de ansiedade possuem em comum um mesmo mecanismo, a cisão de aspectos bons e maus do self e a externalização desses aspectos cindidos em objetos exteriores.

Dois tipos de externalização são possíveis: a projeção e a identificação projetiva. Na projeção, as partes rejeitadas do self são primeiro suprimidas e depois projetadas no estranho. Assim, esses impulsos são percebidos como advindos do alvo da projeção e, então, são evitados. Esse é o caso da ansiedade de perder o objeto. Na identificação projetiva, os impulsos indesejáveis são reprimidos apenas parcialmente no indivíduo, e, por ainda permanecerem na consciência, a sua projeção ocasiona apenas um alívio parcial da ansiedade. Por isso, a pessoa desenvolve uma constante necessidade de controlar o alvo ou, até mesmo, extingui-lo, numa tentativa de extinguir também os seus próprios impulsos, como é o caso do medo de ser punido pelo objeto.

Parens (2007a, 2007b, 2007c) argumenta que existem dois tipos de preconceito. O preconceito benigno e o maligno. O primeiro seria um subproduto do desenvolvimento natural e dos processos de formação de relações objetais. O ponto principal é que todos os indivíduos possuem tendências a favorecer os grupos dos quais fazem parte, em detrimento dos outros, por conta das identificações realizadas durante o desenvolvimento individual e das ansiedades perante estranhos. O segundo, apesar de possuir na base de sua formação os mesmos processos de desenvolvimento, é impregnado pelo ódio.

Para o autor, esse ódio é adicionado nessa equação por meio de excessivos traumas durante o processo de maturação. Esses traumas geram um sentimento de destrutividade hostil (hostile destructiveness - HD) e criam uma intensa ambiguidade no indivíduo. Essa destrutividade hostil não é inata nem surge de maneira espontânea, sendo gerada por intermédio de uma condição muito específica: uma experiência de desprazer traumática. Experiências traumáticas podem acontecer ao longo de toda a vida, porém, para o autor, são as dores emocionais intensas causadas pelos primeiros objetos libidinais as maiores responsáveis pelo desenvolvimento de grandes quantidades de agressividade destrutiva.

Como os traumas causados pelos primeiros objetos de amor do self provocam ambivalência, o indivíduo necessita levantar mecanismos de defesa para conseguir livrar-se da grande quantidade de destrutividade hostil que pressiona por descarga e, ao mesmo tempo, proteger seus objetos libidinais. Esse último mecanismo é o que resulta no desenvolvimento do preconceito. Com a ajuda das defesas de deslocamento, inibição, cisão, projeção, racionalização e negação num momento mais precoce, ou reducionismo, caricaturização, depreciação e difamação (vilification) após a fase de latência, grandes quantidades de destrutividade hostil serão transpostas para grupos de indivíduos reconhecidos como diferentes pelo processo de formação da identidade.

Young-Bruehl (2007) e Bloom (2008) são críticas à tentativa de se tentar mapear uma mesma raiz para os diferentes tipos de preconceito. Para as autoras, cada grupo discriminado possui a própria especificidade irredutível e sua única condição de vítima. Destarte, argumentam que cada tipo de preconceito está relacionado a um tipo diferente de estruturação da personalidade neurótica e que suas diferentes necessidades psíquicas e os mecanismos de defesa erguidos para suplantá-las dão ao preconceituoso o seu alvo específico. Apesar de reconhecer que essas estruturas distintas podem se misturar de formas variadas, Young-Bruehl argumenta que a maioria das pessoas possui um preconceito principal que respeita o padrão da estrutura de sua personalidade.

Nesse contexto, existem três tipos ideais de estrutura preconceituosa: histérica, obsessiva e narcisista (Young-Bruehl, 2007). A primeira é reconhecida pela maneira como utiliza a cisão ou a dissociação em selves opostos, um bom e um mau. O self mau é, então, percebido como inferior, primitivo, enquanto o bom é idealizado como norma. Todavia, em vez de os desejos reprimidos do self mau encontrarem vazão pelo sintoma do próprio corpo, preconceituosos histéricos criam seus sintomas nos corpos dos outros, reconhecendo sua inferioridade por intermédio da projeção dos desejos, majoritariamente sexuais, que foram reprimidos na cisão. Dessa forma, suas vítimas são vistas (ou imaginadas) como possuidoras de um poder sexual arcaico, primitivo, grotesco. Uma personificação dos impulsos do id reprimidos. O tipo de preconceito associado com essa estrutura neurótica é o racismo.

A segunda estrutura é a obsessiva, caracterizada por uma convencionalidade rígida, moralista e racionalista. Por ser cria de um superego muito severo ou muito defeituoso, essa estrutura é notadamente paranoica contra todos os demais grupos identitários aos quais ela não pertence, pois projeta suas angústias superegoicas nesses objetos. Os tipos de preconceito relacionados com essa estrutura são o antissemitismo e a xenofobia.

Por fim, a terceira estrutura descrita é a narcísica, associada a homens falocêntricos que não toleram a ideia de existirem corpos ou pessoas diferentes de si. Esses preconceituosos não conseguem compreender a diferença e transformam tudo o que não é "eu" em "mistério" ou "nada". Os preconceitos visados por essa estrutura são o sexismo e a homofobia.

O segundo agrupamento temático acredita que o cerne do preconceito está na interiorização de ideais de ego grupais que são preconceituosos por meio da identificação do indivíduo com os grupos aos quais pertence. Dessa forma, a agressividade direcionada ao diferente seria uma tentativa de se identificar com os iguais. Seus autores representantes são McLean (1944), Hinshelwood (2007) e Aviram (2007).

McLean (1944) acredita que o preconceito é primariamente um processo inconsciente de identificação com as atitudes presentes no grupo do qual o indivíduo faz parte nos primeiros anos de vida, isto é, a família. Por querer afirmar seu pertencimento ao grupo, o indivíduo tende a acatar o mesmo ideal de ego do grupo, e, se esse ideal de ego contiver atitudes preconceituosas, o indivíduo tenderá a incorporar essas atitudes. Porém, mesmo que o preconceito seja incorporado pelo ideal de ego, este só se transformará em ação se o sujeito sentir-se, de alguma forma, inseguro perante o próprio ideal de ego. Sentimentos de inferioridade ou ansiedade, quando não suportados pelo ego, tendem a ser deslocados para um bode expiatório que então será tratado com discriminação. O procedimento de deslocamento dessas angústias permite que tanto a autoestima individual quanto a grupal permaneçam intactas ante as angústias e ansiedades.

De acordo com Hinshelwood (2007), o superego e o ideal de ego possuem importância primordial para o preconceito. Sua teorização postula que os preconceitos são socialmente determinados por valores preconceituosos, como a supremacia branca. Contudo, apenas indivíduos com um superego muito hostil, cheio de instintos agressivos derivados da pulsão de morte, utilizam esses valores em comportamentos de discriminação. Para o autor, esse superego é formado por uma cisão de aspectos negativos do ego e gera uma patologia denominada narcisismo negativo, em que o objeto bom é odiado mesmo quando tenta satisfazer as necessidades do self. Consequentemente, ele odeia igualmente as partes do self que se prezam de afirmar a pulsão de vida e se relacionar de maneira enriquecedora com o objeto bom. A hipótese desse autor sugere que essa estrutura serve como um "gancho" que acopla as atitudes preconceituosas e intolerantes presentes na sociedade por meio do ideal de ego, isto é, valores sociais internalizados advindos das relações objetais do indivíduo.

Aviram (2007) é um crítico da literatura que trata o preconceito apenas em seu aspecto individual e não olha para o fenômeno grupal. Por conseguinte, ele junta aspectos psicanalíticos com a Teoria da Categorização Social (Allport, 1979), que consiste no enviesamento natural dos indivíduos de preferência por seus grupos identitários (ingroups) e discriminação dos grupos a que não pertencem (outgrups). Para o autor, o ingroup primordial é a família, e, por isso, a identificação com esses objetos acontece na primeira infância. Assim, a relação indivíduo-cuidadores se torna a experiência de self. Se essa primeira identificação não der conta de suprir a dependência do indivíduo, a identificação pode ser direcionada para ingroups além da família e a aceitação desses grupos se torna a experiência de self. Como o self identificado com o ingroup quer ser aceito e amado por seus membros (os objetos bons internalizados), ele necessita rejeitar seus aspectos negativos para obter uma sensação de segurança. Por isso, os objetos maus são projetados nos outgroups, o que facilita tanto a diferenciação destes com o self, gerando ganhos de autoestima, quanto a justificação da agressividade destinada a eles.

O terceiro agrupamento temático crê que falhas que concernem aos cuidados nas primeiras relações libidinais ocasionam uma desorganização do self que precisa erguer defesas visando à sua integração. É representado pelos autores Scharff e Scharff (2007) e Fonagy e Higgitt (2007).

Scharff e Scharff (2007) acreditam que os preconceitos possuem raízes afetivas, cognitivas e culturais e operam tanto em níveis individuais como sociais. Mas o ponto principal de toda a sua argumentação é que a família é o elo de todas essas raízes no indivíduo. Ao tornarem-se pais, os cônjuges tendem a fantasiar, idealizar e projetar na criança uma mistura dos ideais de ego e dos medos, fardos e traumas da família. Assim, já nos primeiros dias de vida, o bebê está sob completa influência das atividades conscientes e inconscientes da dinâmica familiar. Quando ela é pautada por ligações libidinais inseguras, intrigas e traumas, essas questões tendem a ser transmitidas para as crianças e as predispõem ao desenvolvimento do preconceito, pois, por não possuírem uma boa relação objetal com seus familiares, a ansiedade perante estranhos é sentida como aterrorizadora porque ataca a coesão do self, e portanto, facilita o uso dos mecanismos de deslocamento, projeção e identificação projetiva para defender-se desse perigo.

Fonagy e Higgitt (2007) propõem que a base do preconceito é causada por uma desorganização nos processos de ligação libidinal e identificação com os primeiros objetos. Quando os cuidadores falham em espelhar o self do bebê, este identifica e introjeta o self do cuidador, que se torna um aspecto intruso dentro do próprio self. Esse aspecto cria uma noção de incoerência no self verdadeiro que, para alcançar a coesão, precisa livrar-se do primeiro utilizando a identificação projetiva. É muito importante para o indivíduo que o alvo dessa projeção esteja próximo, pois o self precisa comprovar que a projeção foi efetiva pela percepção de respostas de humilhação e vergonha para conseguir sentir-se superior e integrar-se novamente. Em certo momento, apenas a humilhação do alvo não será mais capaz de manter a coesão do self projetor, e este buscará satisfação na fantasia da eliminação dos aspectos projetados.

Por fim, o último agrupamento temático compreende que defeitos nos mecanismos de identificação e projeção, fundantes da diferenciação entre indivíduo e mundo, falseiam a realidade material por confundi-la com a realidade psíquica. Trata-se dos frankfurtianos, representados por Villac Oliva (2016), Vital (2012) e Souza e Birman (2014).

Villac Oliva (2016), realizando articulações entre a teoria crítica e a psicanálise, argumenta que os mecanismos de defesa fundantes do preconceito são a identificação e a projeção. Esses dois mecanismos estão intimamente ligados com a formação da personalidade e a designação de sentido ao mundo feita pelo indivíduo. Ao reter partes dos objetos e depois devolvê-las ao mundo externo, o sujeito constitui seu mundo interno e alcança a diferenciação. Porém, para a autora, se esse mecanismo falha e ocorre uma perversão da projeção original, o indivíduo cai na falsa projeção, cuja maior característica é uma "paranoica ausência de reflexão por parte daqueles que a praticam" (Souza & Birman, 2014, p. 255). Esse tipo específico de projeção cria um falseamento da realidade, utilizando-se da transposição para o exterior de impulsos inerentes ao id do indivíduo, que são inadmissíveis ou insuportáveis ao superego. Esses impulsos não podem ser tolerados, pois ameaçam a integridade do sujeito ao despertarem a culpa, sentimento de inadequação entre impulsos e ideal de ego.

Vital (2012) e Souza e Birman (2014), aprofundando essa discussão com a articulação do texto "O inquietante", de Freud, argumentam que esse conceito re-mete a uma experiência que, ao mesmo tempo que atrai e seduz, choca, aterroriza e causa repulsa. Freud (1919/1976c como citado em Souza & Birman, 2014, p. 256) explica essa sensação como "aquela variedade do aterrorizante que remonta ao há muito conhecido, ao há muito familiar". Desse modo, o inquietante causa a sensação da angústia e do desemparo por remeter justamente a um estranho muito familiar, o próprio inconsciente. Ora recalcados, os conteúdos inconscientes são reconhecidos nos objetos e causam a experiência do inquietante. Para concluir a aproximação das duas teorias, os autores postulam que, ao reconhecer o retorno dos impulsos recalcados a partir da experiência inquietante, o ego, que não pode aceitar esses impulsos como inerentes a si por influência superegoica, projeta-os para o exterior deformando a realidade na falsa projeção.

 

4. Discussão

Fundamentados em todo o trabalho de pesquisa, descrição e análise realizado até então, principalmente nas análises descritivas, comparativas e integrativas expostas nos últimos pontos, verificamos que a linha teórica majoritariamente seguida pelos autores selecionados é a psicanálise freudiana. Consegue-se notar certas influências kleinianas e winnicottianas em determinadas formulações (como a utilização da identificação projetiva ou a ênfase no ambiente do indivíduo) ou até mesmo a junção da psicanálise com a teoria crítica de Horkheimer e Adorno; porém, fundamentalmente, os autores instrumentalizam proposições e conceitualizações contidas nos escritos de Freud para a formulação de suas teorias.

Quanto à análise das teorias em si, podemos concluir que os autores compreendem que o preconceito é resultado de um mecanismo que busca preservar a integridade do self ante a ameaça de sua desintegração. O ponto de maior confluência entre todas as teorias estudadas é que a função do fenômeno em questão é proteger o indivíduo de uma possível desestruturação da sua identidade. Porém, no que concerne à gênese do preconceito e aos seus mecanismos de atuação, ocorrem discordâncias teóricas. Os argumentos dissonantes foram apresentados nos quatro agrupamentos realizados pela categorização temática: ansiedades edipianas, identificação com ingroups, falhas no processo de ligação libidinal e falhas no processo de diferenciação.

Se tentarmos, a partir das teorias colhidas, explicitar o elo entre os quatro agrupamentos descritos, evidenciaremos uma teoria do preconceito como falha de integração entre os processos de identificação da infância, ou seja, as primeiras ligações objetais dos indivíduos, e seus impulsos destrutivos provenientes do id. O ponto central reside no fato de que esses impulsos ocasionariam ambivalência, ou seja, sentimentos conflitantes de amor e ódio pelos primeiros objetos libidinais. Esses sentimentos causam uma severa ansiedade no indivíduo, pois este teme que odiar o objeto significaria também a sua destruição ou, de maneira menos intensa, a perda de uma boa relação entre as duas partes. Após uma estruturação superegoica, esses impulsos também causam a sensação da culpa, pois o superego entende-os como inadmissíveis e castra o indivíduo por possuí-los.

Para livrar-se da ansiedade e da sensação de culpa, o sujeito coloca em ação mecanismos de defesa que têm como objetivo eliminar a ambivalência, seja pelo deslocamento do ódio final para um objeto com o qual o indivíduo não possui nenhuma ligação libidinal, seja pela cisão dos primeiros impulsos conflitantes e sua projeção em outros indivíduos. Esses mecanismos de defesa, então, falseiam a realidade por tornarem externos os conteúdos e conflitos que são internos e, assim, materializam alvos que são, em sua essência, psíquicos. Os autores também concordam que os receptáculos desses conteúdos são sempre sujeitos percebidos como, de alguma forma, inferiores ao indivíduo e a seus objetos. Alguns autores argumentam, em consonância com a Teoria da Dominância Social, que esses receptáculos já estão socialmente postos por intermédio dos estigmas culturais e são introjetados no ideal de ego dos indivíduos, mas é Steiner (2016) quem melhor nos explica seu processo de escolha. Para esse autor, as defesas levantadas são orientadas por uma estrutura narcísica que, como visa à proteção do self, precisa encontrar algo diferente de si mesma e de suas identificações para alocar seus conteúdos. Como para Narciso só é belo o que é espelho, todos os que são reconhecidos como diferentes (e, portanto, pertencentes a outgroups) são objetos passíveis do preconceito.

Entretanto, duas questões ainda não são abarcadas por essa teoria generalista: "Por que existem diversas gradações nas maneiras de se exteriorizar o preconceito" e "Por que existem diferentes objetos que são utilizados como alvos do preconceito?". Para a primeira, a teoria de Parens (2007a, 2007b e 2007c) sobre o acúmulo de destrutividade hostil nos parece a mais adequada. Afinal, a potência da descarga de agressividade só pode estar relacionada à quantidade de ódio existente no indivíduo que pressiona por essa descarga, que é definida pela intensidade dos traumas sofridos por ele. Para a segunda, foi Young-Bruehl (2007) quem nos forneceu a explicação de que os alvos escolhidos para alocar os conteúdos inadmissíveis pelo indivíduo respeitam a natureza desses conteúdos e da estruturação de sua personalidade. Cada indivíduo, a depender de sua estrutura neurótica, possui conteúdos específicos que são percebidos como causadores de conflito. Dessa forma, são essas especificidades dos conteúdos que encontram pontos de contato com certas características ou estigmas culturalmente produzidos (Crochik, 1996) e geram os diferentes alvos dos preconceitos.

Podemos concluir, portanto, que Crandall e Eshleman (2003) acertam ao diagnosticarem o preconceito como um afeto com motivações de expressão. Esse afeto, em suma, é resultado de um complexo mecanismo de proteção da integridade do self. Entretanto, em sua gênese, esse mecanismo não serve a propósitos de segregação ou discriminação. Tudo o que quer é proteger o indivíduo da destruição de sua identidade. A questão é que essa proteção, invariavelmente, desemboca no ataque a outros que precisam ser compreendidos pela estrutura narcísica como diferentes, ou seja, não pertencentes ao ingroup fundamental, internalizado e libidinalmente investido: a família. Esses diferentes, então, tornam-se ameaçadores, afinal, após a atuação dos mecanismos de defesa do preconceituoso, a própria existência destes o remete ao que ele tanto quer negar e, inclusive, eliminar. É aqui que a discriminação e os discursos de ódio tomam forma.

Apesar de o presente artigo ajudar na compreensão do fenômeno do preconceito por meio de uma revisão integrativa de diversas formulações psicanalíticas a respeito da gênese e da função intrapsíquica do preconceito, compreendemos que a qualidade apenas teórica do método utilizado é uma limitação do estudo. É necessário que as próximas pesquisas se debrucem sobre a aplicabilidade prática dessa teoria, principalmente com desenhos metodológicos que permitam observar a importância dos mecanismos de identificação ante o desenvolvimento do self, o papel da ambivalência como desorientadora da coesão narcísica do self e a relação entre os diferentes tipos de estruturação psíquica, os mecanismos de defesa e os alvos sociais do preconceito.

 

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Correspondência:
Rafael Cardoso de Brito
Rua Marechal Juarez Távora, 408, Vila Élida
Diadema, SP, Brasil. CEP 09913-210
E-mail: rafabrito2@hotmail.com

Submissão: 11/09/2019
Aceite: 06/06/2019

Nota dos autores
Rafael Cardoso de Brito, Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM); Berenice Carpigiani, Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).

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