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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.22 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v22n1p285-299 

ARTIGO
PSICOLOGIA SOCIAL

 

Extimidade virtual e conjugalidade: possíveis repercussões

 

 

Carolina Mendes-Campos; Terezinha Féres-Carneiro; Andrea S. Magalhães

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo investigar as possíveis repercussões da “extimidade virtual” na vivência da conjugalidade de hoje. A noção de intimidade tem passado por significativas transformações. Historicamente, ela mantinha um forte vínculo com a ideia de privacidade. Contudo, é notória a sua transformação na rede, já que as informações compartilhadas alcançam uma visibilidade nunca antes imaginada. Por esse motivo, a noção de “extimidade virtual” foi escolhida para designar essa nova perspectiva da intimidade na rede. Entrevistaram-se seis pessoas casadas e usuárias do Facebook. As entrevistas foram discutidas por meio do método da análise de conteúdo. Das narrativas emergiram categorias de análise. Verificou-se, a partir das análises, que estamos diante não de um fenômeno dicotômico que separa o virtual do real, mas de uma novidade que une e entrelaça os fios da experiência com o outro, dentro e fora da rede.

Palavras chave: extimidade virtual; intimidade; conjugalidade; redes sociais; conflito.


 

 

1. Introdução

O presente trabalho tem como objetivo investigar as possíveis repercussões da "extimidade virtual" na vivência da conjugalidade de hoje. A noção de "extimidade virtual" foi construída para designar a nova perspectiva da intimidade observada no espaço da internet. Historicamente, a intimidade tem relação com a vida privada. Contudo, é notória a sua transformação na rede com as janelas virtuais interligadas em todo o mundo. Buscamos compreender as possíveis repercussões que esse novo fenômeno está produzindo na vivência da conjugalidade, uma vez que os olhares parecem estar cada vez mais magnetizados pelos inúmeros outros virtuais.

Explorando a história da intimidade, encontramos na literatura a frequente associação entre essa noção e a ideia de privacidade, principalmente a partir do final do século XIX e ao longo do XX (Sibilia, 2015, 2016; Prost, 2012; Maluf & Mott, 2012; D'Incao, 2013; Sennett, 2014). Com o advento da modernização e da industrialização das sociedades ocidentais, a fronteira entre o público e o privado foi ressignificada, colocando a exploração da intimidade dentro dos limites da casa, da família e do casamento. Havia, assim, um espaço delimitado por paredes que a protegiam. Perante esse contexto que atrela a intimidade ao privado, identificamos com as redes sociais do início do século XXI uma significativa transformação no que concerne à exposição da intimidade no espaço virtual. As informações postadas na tela alcançam uma visibilidade nunca antes imaginada, afrouxando as fronteiras e deslocando a intimidade para fora do privado, na "ágora" contemporânea que é a internet (Cunha, Souza, & Lima, 2018; Vaz, 2016).

Entretanto, tal como propõe Sibilia (2015), indagamos se de fato o que vivemos nas redes sociais da internet pode também ser chamado de intimidade. Apesar de considerarmos que as ferramentas da internet estimulam a divulgação de informações íntimas dos internautas, bem como favorecem a formação de laços relacionais significativos, optamos por não tratar desse novo fenômeno igualando-o à intimidade. Por conta de percebermos nele especificidades próprias, preferimos denominá-lo de "extimidade virtual", a fim de sustentarmos sua vinculação com algo que de alguma forma remete à intimidade, mas que, ao mesmo tempo, indica uma nova perspectiva, vazada para o lado de fora, na exterioridade das telas de computadores interconectados, marcando um contraste fundamental em relação ao seu tradicional sentido atrelado à vida privada (Sibilia, 2016; Mendes-Campos, Féres-Carneiro, & Magalhães, 2015; Sennett, 2014; D'Incao, 2013; Prost, 2012; Maluf & Mott, 2012; Tisseron, 2008).

O termo "extimidade" é um neologismo primeiramente explorado por Lacan (1988) em O seminário. Livro 7: a ética da psicanálise, no contexto da discussão a respeito da Das Ding freudiana. O autor ressalta que a Das Ding é marcada por uma espécie de exclusão interna, ou seja, esse objeto perdido, essa coisa que visamos reencontrar, que é a Das Ding, algo que é interior sem deixar de ser exterior, tal como uma exterioridade íntima, ou ainda, uma "extimidade". Posteriormente, La-can (2008) retoma a discussão sobre a Das Ding e afirma que foi preciso criar a palavra "êxtimo" para designar o que nos é mais próximo, embora seja externo.

Tisseron (2008) também trabalhou esse termo dando a ele um sentido particular em sua obra. O psicanalista chama a atenção para o fato de que em francês o verbo se découvrir - descobrir-se - tem um duplo sentido: "é ao mesmo tempo ‘se colocar nu perante o outro' e ‘acessar o conhecimento de si'" (Tisseron, 2008, p. 39, tradução nossa). Essas duas condições correspondem ao que ele designa como desejo de "extimidade", isto é, trata-se do desejo de expor em público as partes secretas de si para que sejam conhecidas e validadas pelos outros. Dessa forma, o desejo de "extimidade" não precisa das novas tecnologias para existir. Muito pelo contrário, ele sempre existiu como estrutura necessária ao nosso modo de ser. Entretanto, hoje, os espaços da internet são novos espelhos nos quais buscamos viver tal desejo de "extimidade" (Tisseron, 2008).

Apesar de não utilizarmos o termo "extimidade", no presente trabalho, com o sentido dado pelos referidos autores, não podemos deixar de destacar que, em ambos, importantes inspirações se manifestam. Com Lacan encontramos a possibilidade de pensar a "extimidade" como uma noção paradoxal, e com Tisseron a possibilidade de ligar a dimensão da "extimidade" ao olhar do outro. Assim, a substituição do prefixo "in" pelo "ex" nos permite pensar em uma faceta exteriorizada da intimidade, marcando, com isso, a paradoxal condição que é falar de algo historicamente ligado ao "lá dentro", mas que, agora, sofre mutações e se manifesta "lá fora".

Em resumo, enquanto a intimidade está associada à ideia de privacidade, a "extimidade virtual", a nosso ver, está ligada à publicização de informações que antes eram predominantemente privadas. Aí mora o paradoxo dessa nova noção, e nosso desafio é buscar compreender melhor seu sentido e suas repercussões. Cabe ainda ressaltar que esse termo tem se tornado cada vez mais usual nos estudos que tratam das relações estabelecidas nesse território ambíguo que é a internet, apesar de ainda não serem muitos (Bolesina, 2017; Sibilia, 2016, 2015; Bauman, 2012; Tisseron, 2008).

O interesse por essa temática surgiu em razão do aumento de relatos na clínica de problemas nos relacionamentos amorosos provocados pelo fenômeno de evasão de si nas redes sociais. Ante o enorme fluxo de informação disponível no espaço virtual, comentários lidos podem se tornar suspeitos, fotos postadas podem se tornar flagrantes e a tela parece ter se transformado em um espaço privilegiado de busca de informação sobre o outro. Além disso, escutamos frequentemente a queixa de que o parceiro amoroso não sai do celular, o que, segundo as pessoas, tem dificultado a troca e a comunicação entre os membros do casal. Como indicam Bauman (2012), Turkle (2011) e Tisseron (2008), a moda da experiência on-line tem tornado, cada vez mais, o distante próximo e o próximo distante de nós.

No intuito de fazer avançar esses questionamentos a respeito da nova face "êxtima virtual" dos relacionamentos, realizamos uma pesquisa de campo com o objetivo de investigar as repercussões da "extimidade virtual" na vivência da conjugalidade em nossos dias.

 

2. Método

2.1 Participantes

Buscando dar voz aos que tornam possível a nova perspectiva da "extimidade" na internet, entrevistamos seis sujeitos independentes, casados/união estável/coabitação, com no mínimo dois anos de união, três homens e três mulheres, das camadas médias cariocas que fazem uso da rede social Facebook. Preconizando o sigilo dos participantes, apresentamos, na descrição seguinte, nomes fictícios:

• Ana é uma moça de 33 anos, casada há dois; ela não tem filhos, somente o marido, do primeiro relacionamento.

• Bruno é um rapaz de 31 anos, casado há oito anos; o casal não tem filhos.

• Carla é uma mulher de 55 anos, que está há 18 anos em seu segundo casamento; tem dois filhos do relacionamento anterior.

• Daniel é um rapaz de 33 anos, casado há quatro anos; tem um filho de um ano.

• Elisa é uma mulher de 43 anos, casada há seis; o casal não tem filhos.

• Fábio é um rapaz de 32 anos, casado há seis; tem uma filha de 11 meses.

2.2 Instrumento

Os participantes foram convidados para uma entrevista presencial, gravada em áudio, com a devida autorização, e posteriormente transcrita para fins de análise. Realizamos entrevistas com questões abertas pautadas em um roteiro invisível que contemplava temas relativos à anterior revisão da literatura. O roteiro de entrevista contemplou as seguintes questões: "Como usa o Facebook (postagens mais frequentes, o que procura ver)?"; "Como se relaciona com a rede social do parceiro?"; "Como o casal se comunica na rede social?"; "Como o casal se comunica fora do mundo virtual?"; "Como define intimidade?".

2.3 Procedimentos

Os participantes foram indicados pela rede de relacionamento da pesquisadora principal, dentre usuários frequentes do Facebook, caracterizando, assim, uma amostra de conveniência. Todos os indicados aceitaram participar e se mostraram interessados em compartilhar suas experiências virtuais. O convite foi feito via e-mail da seguinte forma: "Você gostaria de participar de uma pesquisa sobre redes sociais e suas repercussões nos relacionamentos?". As entrevistas tiveram a duração de uma a três horas, e o local, a data e o horário foram agendados de acordo com a disponibilidade dos participantes. Utilizamos o método da análise de conteúdo, na sua vertente categorial, para investigar os dados coletados nas entrevistas. Buscamos as significações atribuídas pelos participantes ao fenômeno estudado, a partir do material discursivo obtido (Bardin, 2011). Por meio da técnica categorial, observamos as semelhanças existentes no material coletado e organizamos algumas categorias temáticas. Recorremos à leitura flutuante, agrupando, identificando e relacionando as significações atribuídas pelos participantes ao fenômeno estudado, até se destacarem as categorias de análise. Das narrativas dos participantes, emergiram categorias de análise dentre as quais, para atingir os objetivos deste estudo, discutiremos: entre os fragmentos "êxtimos" e os dramas íntimos.

 

3. Resultados e discussão

3.1 Entre os fragmentos "êxtimos" e os dramas íntimos

As entrevistas revelaram de forma viva a imbricação existente entre a "extimidade virtual" e a intimidade do casal. Cada um dos seis participantes, com seu estilo próprio, mais reservado ou mais espontâneo, forneceu, em algum momento, um exemplo de situação na qual fragmentos "êxtimos" vistos no Facebook acabaram repercutindo e deflagrando dramas íntimos e bastante concretos, como veremos a seguir.

Além disso, todos os entrevistados fizeram alguma referência à faceta mais apelativa das redes sociais, na qual as postagens tentam produzir uma versão "comercial" dos participantes da internet. Segundo eles, o que as pessoas mostram não é exatamente o que elas são, mas o que querem parecer ser para se sentirem bem diante do olhar dos outros. Elisa relacionou as postagens a uma jogada de marketing, afirmando que o que é exposto está muito distante da intimidade. Bruno disse que as pessoas adoram aparecer nas redes sociais e que o Facebook é, na verdade, uma ferramenta de compartilhamento do que a pessoa está fazendo ou do que conseguiu para si. Em suas palavras, as postagens servem para "massagear o ego" dos internautas.

Essas ideias apresentadas por Elisa e Bruno estão em concordância com os estudos de Sibilia (2016) sobre a espetacularização da vida em nossos dias exibida nas telas da internet. Para a autora, é preciso converter o próprio eu em um show, espetacularizando a personalidade, em busca de se posicionar bem no mercado, criando uma espécie de grife pessoal. O mercado a que Sibilia (2016) se refere é o competitivo mercado dos olhares, inflado com os novos dispositivos da rede.

Pensamos que essa necessidade de ser visto é intrínseca ao humano, contudo é inegável que essa necessidade encontra, na situação contemporânea, uma série de apelos e dispositivos que intensificam e favorecem a sua exploração. Dito de outro modo, as pessoas sempre careceram do olhar do outro, mas é bem verdade que, em nossos dias, os apelos midiáticos e os versáteis dispositivos tecnológicos fomentam e potencializam essa necessidade e essa busca por reconhecimento.

O Facebook, por exemplo, é célebre na propagação das famosas e almejadas "curtidas". Tudo o que é compartilhado, como uma foto, uma frase, um vídeo, tem como expectativa primeira ser curtido pelos outros. Fábio e Bruno lembraram-se alegremente de seus posts de maior repercussão, assumindo a imensa satisfação alcançada em razão do número elevado de curtidas. Essa relação entre a satisfação e o número de curtidas é abordada na análise de Tisseron (2008) sobre a rede. Para o autor, uma das principais finalidades desse espaço é, precisamente, fazer com que as pessoas busquem por meio do compartilhamento a confirmação daquilo que pretendem ser. Para ele, essa novidade de nosso tempo faz com que as fronteiras espaciais sejam redefinidas, pois a internet torna quase sem limites esse espaço de evasão de si. Mesmo se destacando um tom crítico na fala dos entrevistados sobre essa faceta midiática da rede, eles também se reconhecem como viciados nesse hábito contemporâneo de postar e espiar. Esse hábito acaba, segundo eles, resvalando na dinâmica da intimidade, uma vez que os olhares estão voltados para as telas e não para os parceiros.

Muitos participantes abordaram diretamente esse tema da invasão da internet no tempo e espaço da intimidade. Elisa demostrou uma forma mais incisiva de lidar com essa "invasão", optando por desligar o celular ou desconectar a internet nos momentos em que está com o marido. Especialmente Bruno e Daniel, que se declararam viciados em internet e redes sociais, destacaram a necessidade de se policiar constantemente para que o celular não se sobreponha aos momentos de convívio a dois.

Daniel acrescentou ainda outros momentos íntimos do casal, nos quais a rede se faz presente. Refletiu que, por diversas vezes, já se pegou deitado na cama ao lado de sua esposa, sem nenhum diálogo, pois ambos estavam com os olhos grudados no celular, capturados pelo Facebook ou por alguma outra janela virtual. Disse que tem tentado se policiar, para que isso não vire "um caminho sem volta".

Fábio também comentou semelhante situação vivida, com espanto, por ele e sua parceira: "A gente já se viu algumas vezes e, aí, imediatamente, desativou aquela armadilha... Assim, os dois juntos e cada um aqui [aponta para o celular], o que é ridículo!". Relatou uma cena dos dois sentados num restaurante tomando um vinho e, de repente, percebeu que não conversavam, pois estavam no celular. Para Fábio, esse é claramente um lado ruim da tecnologia.

Muitos deles também comentaram que lançam mão da internet para se comunicar com o parceiro ou a parceira. Bruno disse que fala com a esposa dentro de casa pelo WhatsApp, bem como Daniel. Este último contribuiu com uma forte descrição a esse respeito:

Eu falava sobre isso... Que hoje, muitas vezes, o casal em casa não está mais sendo casal, mas são duas ilhas solitárias que ficam se comunicando através da internet [...]. Acho que interfere, interfere muito, acho que pode sim abalar um relacionamento... Tipo, você está junto, mas você não está junto, né? Pois você está on-line... (Informação verbal, Daniel, 33 anos, casado há quatro).

A fala de Daniel revela, a nosso ver, uma reflexão encarnada da problemática contemporânea do virtual que destacamos neste trabalho. A imagem das duas ilhas solitárias expressa o que, para nós, representa o novo desafio de ser casal em nossos dias: "Como conjugar as individualidades, a conjugalidade e todos os outros virtuais que adentram o espaço da intimidade via pequenas e viciantes telinhas que estão em toda parte?". Féres-Carneiro, Ziviani e Magalhães (2011) destacam que o desafio da constituição de uma identidade de casal é, justamente, o difícil convívio das individualidades com a conjugalidade, ou seja, a delicada tarefa de articular o eu, o tu e o nós do casal. Se isso já era um enorme desafio, intensificado pelos valores individualistas de nossa sociedade, agora esse desafio se torna maior mediante a enxurrada de atravessamentos virtuais que perpassam vários cantos íntimos do cotidiano, como revelam nossos entrevistados. Assim sendo, o desafio de ser casal hoje parece se anunciar, também, pela busca do equilíbrio entre as esferas da intimidade e da "extimidade virtual". Nossos entrevistados percebem esse fato, mas parecem, ainda, procurar a melhor forma de lidar com essa novidade.

Além disso, em diversos trechos, os entrevistados destacaram o quanto o Facebook pode trazer problemas para o dia a dia dos casais, por diferentes motivos. Dois entrevistados comentaram sobre situações vividas por amigos, nas quais as parceiras descobriram conteúdos "suspeitos" no Facebook. Fábio, por exemplo, destacou que existem horários mais propícios para as paqueras nos chats. A madrugada é tida como o período em que esse tipo de aproximação mais acontece. Por isso, ele disse que não costuma entrar.

Ana também disse que procura se proteger de situações de paquera na rede, pois sabe que pode despertar o ciúme de seu parceiro, caso ele leia alguma coisa fora de contexto. Essas observações reforçam os argumentos da pesquisa de Muise, Christofides e Desmarais (2009) que consideram o Facebook um "veneno" para os casais de nossos dias. Os autores esclarecem que o Facebook, por sua extensiva abrangência, envolve números astronômicos de usuários e tem afetado significativamente muitos relacionamentos. Ressaltam que um comentário banal sobre o perfil do parceiro, feito por um contato do sexo oposto, pode levar um participante à desconfiança e ao ciúme, fazendo com que ele passe a acompanhar de perto o perfil dos potenciais "suspeitos". Muise et al. (2009) ainda salientam que muitas dessas informações produzem uma verdadeira espiral de ciúme, pois, na maioria das vezes, são acessadas fora de contexto, isto é, o que se vê ou o que se lê são fragmentos de conversas. Assim, muitas são as entonações e as interpretações possíveis, fato que, segundo os pesquisadores, pode acabar produzindo desconfianças e desentendimentos nos relacionamentos íntimos.

Como mencionamos, em todas as entrevistas percebemos fragmentos "êxtimos" repercutindo em dramas íntimos. Ana, por exemplo, contou sobre suas curiosas incursões na página do parceiro, onde lia frases soltas e produzia desconfiadas interpretações que a faziam acompanhar a página dos supostos suspeitos, tal como apontado na pesquisa de Muise et al. (2009). O entrelaçamento das dimensões "êxtima" e íntima se faz notar na atitude da moça de exigir que o parceiro exclua de seu Facebook alguém que despertou nela ciúmes ou desconfiança, ou seja, para Ana, o que é visto na rede é levado para a intimidade do casal e o que se discute na intimidade deve repercutir igualmente na rede.

Carla trouxe como exemplo um episódio de desentendimento do casal ocorrido via Facebook: seu companheiro teria, segundo sua interpretação, postado uma mensagem para alfinetá-la durante uma briga. Ela disse ter ficado tão aborrecida que decidiu excluir o Facebook do parceiro de sua conta. Depois dessa decisão, ela se tranquilizou, pois não estava mais exposta a informações "extras" que a deixavam insegura e propensa a fantasias.

Os participantes que não relataram um drama conjugal provocado por circunstâncias "êxtimas" contribuíram, igualmente, narrando desavenças com amigos.

Bruno e Daniel contaram sobre desentendimentos com pessoas próximas via Facebook. Carla e Ana acrescentaram problemas vividos on-line com parentes.

Elisa também relatou um drama íntimo vivido com uma amiga, que teve sua origem em um post de Facebook. Neste caso, o desentendimento teve início entre o parceiro de Elisa e uma amiga, provocado por uma divergência de opinião entre eles. O parceiro de Elisa se chateou e deletou a amiga, que, por sua vez, deletou os dois em retaliação.

Assim sendo, percebemos, no relato dos entrevistados, o forte lugar que a "extimidade virtual" ocupa em suas intimidades de casal. Seja como via de comunicação, seja como espaço para construir uma imagem, seja como uma tela de "recados" indiretos ou busca de informação sobre o parceiro, o que é compartilhado na rede repercute no dia a dia das pessoas. As falas dos entrevistados deixaram isso claro e também reforçaram a máxima dos estudiosos da área, segundo a qual estamos mais perto de quem está distante e mais distante de quem está perto (Bauman, 2012; Turkle, 2011; Tisseron, 2008).

Esse forte magnetismo da rede, que parece cada vez mais aumentar, apesar de produzir tantos problemas nas relações íntimas, pode ser entendido como uma tentativa de escapar da solidão, como revelam os estudos de Sibilia (2016) e Tisseron (2008). Nesse contexto, Sibilia (2016) considera que a solidão, cada vez mais intolerável em nossos dias, encontra nas telas um suposto antídoto, na medida em que lá existe a ilusão de se ter "um milhão de amigos".

Fábio confirmou essa ideia de Sibilia (2016). Disse que encontra no diálogo virtual um escape da saudade, já que na rede há sempre alguém à disposição para conversar. Entretanto, ressaltou a carência desse convívio virtual, que não passa pela pele, pelo encontro concreto com o interlocutor e, por isso, deixa sempre a saudade no ar.

Para nós, essa reflexão de Fábio expressa de modo bastante acertado o duplo sentido percebido na extimidade virtual. Ela é real, uma forma de encontro efetivamente se realiza por ali e, até mesmo, alivia a necessidade de estar com o outro, parecendo ser assim uma fuga da solidão. Ao mesmo tempo, alguma coisa parece escapar nesse encontro justamente por conta do faltoso ingrediente que se expressa via corpo.

Mesmo assim, diante da correria do cotidiano, pequenas doses de encontro on-line parecem servir de consolo para alguns ou, quem sabe, de defesa para outros, que tenham mais dificuldades de se relacionar, como aponta a pesquisa de Turkle (2011). Segundo a autora, por causa do corre-corre cada vez mais intenso da vida contemporânea, as pessoas passam a buscar na tecnologia a reconfortante sensação de que ali há alguém nos ouvindo. Por isso, diz ela, ligamo-nos aos dispositivos que parecem gostar da gente. Entretanto, Turkle (2011) salienta que, paradoxalmente, estamos cada vez mais conectados uns aos outros, porém, estranhamente, estamos também nos sentindo mais sozinhos. Essa nova condição contemporânea fomenta, ao mesmo tempo, novas formas de intimidade e novas formas de solidão. Por isso, a autora resume essa nova condição da internet como alone together, ou seja, paradoxalmente juntos e sozinhos, ao mesmo tempo. Nossos entrevistados confirmam essa percepção de Turkle (2011), pois, apesar de absorvidos pela tela, foram unânimes em protestar contra esse excesso que esvazia as relações concretas com os parceiros.

 

4. Conclusão

Consideramos que não é mais possível conceber nossa história sem esse marco revolucionário que é a internet e a dimensão virtual aberta por ela. Entre benefícios e prejuízos, muito se discute sobre a exacerbação da solidão, do isolamento e do individualismo que a internet fomenta. Os participantes de nossa pesquisa de campo enfatizaram, a todo momento, a preocupação de não se isolar nesse novo e sedutor universo. Destacaram, primordialmente, o desejo de atentar-se para as suas relações com a tecnologia e para a absorção magnética do virtual. Também revelaram o desejo de cuidar das relações não mediadas pela técnica, isto é, dessas que acontecem na espontaneidade do encontro presencial com o outro, como no caso da conjugalidade. Pelo menos, essa foi a posição notadamente marcada das seis pessoas que ouvimos neste estudo.

Percebemos na fala dos entrevistados a necessidade de questionar os sentidos que estão sendo propagados por meio dessa invasão da tecnologia no cotidiano. Nossos entrevistados refletem de modo encarnado a respeito de seus dramas particulares, de seus provisórios isolamentos, inventariando os prós e os contras da "extimidade virtual".

Ainda ressaltamos que, apesar dessa atenção crítica percebida na narrativa dos entrevistados, todos eles também manifestaram a percepção de que a "extimidade virtual" repercute na vivência da intimidade conjugal. Com os olhos capturados pela tela, vivendo e desfrutando de contatos e postagens "êxtimas", as pessoas têm menos tempo de dedicação aos íntimos. Essa foi uma constatação unânime entre os entrevistados. Exatamente nesse ponto parece residir o grande desafio das relações contemporâneas, ou seja, se a presença do virtual em nossas vidas parece se desenhar como um caminho sem volta, precisamos aprender a construir as fronteiras entre os espaços de intimidade e de "extimidade" que parecem se interpenetrar.

Contudo, destacamos duas importantes questões derivadas do presente trabalho. A primeira se refere à estranha carência de estudos nessa área tão comentada, mas pouco pesquisada a fundo. Consideramos fundamental a continuidade de estudos na linha de relacionamentos e internet para que possamos mapear melhor esse novo universo paradoxal da rede que problematiza e entrelaça noções como: virtual e real; perto e distante; "êxtimo" e íntimo. Somente mergulhando na vivência contemporânea conseguiremos compreender melhor os "papéis" dessas esferas que se interpenetram.

Percebemos também, como já ressaltado, que os entrevistados têm forte preocupação em manter a esfera íntima, apesar do magnetismo da "extimidade virtual". Porém, questionamos se esse resultado não se origina de um fator geracional, ou seja, nossos entrevistados pertencem a uma geração que teve que se adaptar à novidade da rede. Sendo assim, eles têm uma sólida referência dos relacionamentos antes e depois da internet. Questionamos se a percepção dos mais jovens, que já nasceram imersos neste universo, seria a mesma. Talvez, pelo fato de terem nascido em um mundo já permeado pela virtualidade, as noções de intimidade e privacidade não sejam as mesmas. Ressaltamos a importância de desenvolver estudos que permitam contrastar essa dimensão geracional e, assim, entender a repercussão da internet em cada uma das experiências.

Por fim, aprendemos com os entrevistados que a "extimidade virtual" não é um fenômeno dicotômico que separa o virtual do real. Justamente por percebermos suas repercussões nas relações íntimas, podemos afirmar que essa nova condição de nosso tempo une e entrelaça os fios da experiência com o outro, dentro e fora da rede.

 

Referências

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Correspondence:
Terezinha Féres-Carneiro
Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea
Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP 22453-900
E-mail: teferca@puc-rio.br

Submissão: 17/07/2018
Aceite: 09/09/2019

Nota dos autores
Carolina Mendes Campos O. Mattos, Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Terezinha Féres-Carneiro, Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Andrea Seixas Magalhães, Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

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